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Prestação de terapia intensiva: um problema global

ARTIGO ESPECIAL

Prestação de terapia intensiva: um problema global

Andrew RhodesI; Rui Paulo MorenoII

ICritical Care Medicine, St. George's Healthcare NHS Trust and St. George's, University of London - UK

IIUnidade de Cuidados Intensivos Neurocríticos, Hospital de São José, Centro Hospitalar de Lisboa Central, E.P.E. - Lisboa, Portugal

Autor correspondente Autor correspondente: Andrew Rhodes General Intensive Care Unit St George's Healthcare NHS Trust London SW17 0QT UK E-mail: andrewrhodees@nhs.net

Recentemente, muitos países têm descrito uma lacuna crescente entre a oferta e a procura de intensivistas e a consequente capacidade do país de fornecer cuidado intensivo adequado.(1,2) Essa diferença é impulsionada principalmente pelo crescente tamanho populacional de muitas nações, junto do reconhecimento de que a expectativa de vida aumenta em conjunto com a proliferação das chamadas "doenças da civilização", como diabetes, doenças coronárias, acidente vascular cerebral e obesidade. Esses grupos de pacientes idosos, que têm (ou terão) significantes comorbidades, são a população que se apresenta à terapia intensiva na atualidade na América do Norte e na maioria dos países europeus, sendo geralmente admitidos no hospital por causa de uma doença aguda ou de uma complicação após uma importante cirurgia eletiva.(3) O uso adequado da terapia intensiva pode salvar um número significativo de pacientes e pode capacitá-los ao retorno a uma vida ativa; no entanto, esses esforços consumirão grande quantidade de recursos para um grupo de pacientes que pode não ser beneficiado. A menos que essa demanda crescente de leitos seja adequadamente gerida, haverá problemas, pois uma equipe capacitada e treinada não será reconhecida e nem estará disponível sempre que for necessária. Consequentemente, profissionais da saúde terão que prestar cuidado intensivo com uma equipe sem treinamento e desqualificada, ou mudar para um modelo de prestação de cuidado intensivo com outros grupos de profissionais, com competência delegada por médicos que trabalham com protocolos e diretrizes. As duas opções permitirão que os profissionais da saúde trabalhem com entendimento limitado sobre seu trabalho e sobre as alternativas para tratamento para cada paciente específico.

O primeiro passo para o planejamento de uma mudança (nesse caso, um aumento nos serviços prestados) é entender o que é atualmente fornecido. Infelizmente, tal entendimento raramente está presente e deve ser urgentemente discutido. Alguns estudos recentes, ao avaliarem a prestação de cuidado intensivo entre países e também os desfechos de cirurgias, oferecem visões interessantes sobre essa questão.(4-6) A maioria desses estudos foi concebida para observar as populações europeias, porém, muitos aspectos importantes presentes na Europa provavelmente também existem no Brasil, e as lições desses estudos são igualmente relevantes.

Se os números de leitos no cuidado intensivo são restritos - formalmente ou não -, deve necessariamente ocorrer a seleção dos pacientes. Essa prática é comumente referida como racionamento.(7) Quando a terapia intensiva não está disponível, os serviços respondem de diferentes maneiras, que incluem: alta precoce e prematura de pacientes que já estão no serviço, atraso na internação de pacientes, mudança em critérios para retirada de cuidados, cancelamento de pacientes eletivos com internação planejada após cirurgia de rotina, ou restrição à internação de determinados grupos de pacientes com base no tipo e nas condições da assistência de saúde.(8) Nenhuma dessas reações é desejável e muitas provavelmente reduzirão a qualidade do cuidado oferecido pelo serviço, podendo afetar os desfechos dos pacientes. Dados da década anterior do Reino Unido reconheceram essas fraquezas (pelo menos no sistema do Reino Unido) e documentaram os efeitos que essa reação tem nos desfechos de pacientes cirúrgicos que requerem cuidado intensivo após a cirurgia. Em 2006, Pearse et al.(9) apresentaram dados extraídos de uma grande base de dados que documentava a prática cirúrgica no Reino Unido. Esses pesquisadores delinearam um grupo de pacientes com alto risco de complicações e morte após a cirurgia. Curiosamente, eles encontraram que poucos desses pacientes foram submetidos a cuidado intensivo após cirurgia e que 85% dos pacientes que morreram nunca haviam sido internados em unidade de terapia intensiva (UTI). Alguns desses pacientes podem ser inapropriados para encaminhamento e atendimento em ambiente de terapia intensiva, mas parece pouco provável que nenhum deles tenha se beneficiado desses cuidados. Infelizmente, é improvável que esse exemplo seja específico do Reino Unido.

Para compreender esse problema, duas informações importantes devem ser entendidas: (1) quantos leitos de UTI são necessários para uma população e (2) se a organização do serviço atual é a ideal para os grupos de pacientes atendidos. Infelizmente, é difícil compreender totalmente os números de leitos necessários para uma dada população. Vários autores tentaram observar isso comparando práticas e prestação entre vários países no sentido de identificar diferenças que pudessem ajudar a responder essas questões. Em 2008, Wunsch et al. avaliaram o fornecimento de leitos para terapia intensiva em vários países ocidentais.(6) Eles reconheceram que alguns países possuíam significativamente mais leitos na UTI, mesmo quando corrigido para o tamanho populacional, do que outros: os Estados Unidos tinham quase seis vezes o número de leitos do Reino Unido. Esses autores também identificaram relações entre o poder econômico de cada um dos países, o tamanho do hospital e o número de leitos de UTI oferecido. Eles ainda demonstraram que países com números restritos de leitos parecem ter aumento na taxa de mortalidade por sepse de pacientes admitidos para cuidado intensivo. Rhodes et al. seguiram recentemente por essa via de pesquisa, mas concentrando-se em todos os países europeus.(5) Eles demonstraram que havia heterogeneidade acentuada nos serviços prestados no cuidado intensivo mesmo em uma área geográfica discreta como a Europa. Os números totais identificados são muito semelhantes aos encontrados por Wunsch, apesar deles terem encontrado uma série de problemas na coleta dos dados, que, na realidade, deveriam estar imediatamente disponíveis em cada país. O número de leitos de UTI variou de 4,2/100.000 habitantes em Portugal a 29/100.000 na Alemanha. Essa diferença é muito grande para ser explicada por características dos pacientes; outras explicações são necessárias como diferenças na maneira como a terapia intensiva é prestada a diferentes grupos e a falta de uma definição consistente do que seja atualmente um leito de UTI. Embora todos concordem sobre o que seja um típico paciente de terapia intensiva, países diferentes têm critérios diferentes para definir um leito hospitalar como de UTI, o que muitas vezes está relacionado a mecanismos de financiamento e profissionais e, principalmente, a pressões políticas específicas. Deve haver uma definição padrão que possa ser usada em todos os meios da saúde

Um estudo recente (EuSOS) publicado na Lancet avaliou como pacientes cirúrgicos são internados para cuidado intensivo na Europa e como essa prática afeta seus desfechos.(4) Um grande estudo observacional, com quase 50 mil pacientes de praticamente todos os países europeus, avaliou os desfechos clínicos para determinar como tais resultados se relacionam a questões do pré-operatório, do intra-operatório e da terapia intensiva. Assim como em estudos anteriores, eles encontraram grandes discrepâncias nas taxas de mortalidade, entre os países, após cirurgia, as quais permaneceram mesmo depois do ajuste para um grande número de problemas pré-operatórios relevantes. Além disso, eles encontraram grandes discrepâncias na internação em UTI após cirurgia; foram admitidos 70% mais pacientes eletivos nas UTIs na Alemanha do que no Reino Unido.

Considerando as diferentes informações relatadas, são propostas algumas questões interessantes. A Alemanha tem aproximadamente sete vezes o número de leitos de UTI que Portugal;(4,5) admite mais pacientes para a UTI após cirurgia eletiva; e apresenta um melhor desfecho para esses pacientes. Há algum nexo causal entre esses diferentes fatos ou se trata simplesmente de uma associação? Se a relação for causal, então algumas questões importantes devem ser estudadas, como Portugal estar claramente sub-utilizando a prestação de terapia intensiva para sua população. Se não houver relação, então, talvez, a Alemanha esteja desperdiçando esse recurso caro.

Se essas diferenças foram encontradas na Europa, quais são as implicações para os outros países? De acordo com dados de 2010 do levantamento realizado pela Associação de Medicina Intensiva Brasileira (AMIB), (dados disponíveis em www.amib.com.br, acessados em 10 de novembro de 2012), os números de leitos de UTI no Brasil são mais altos que os da Europa (13 versus 11,5, por 100 mil habitantes). O Brasil, porém, é um país interessante; embora geograficamente extenso, com grande população e economia crescente, ele oferece sua assistência médica de uma maneira mais heterogênea que quaisquer países europeus; há uma diferença acentuada entre cidades ricas e populosas do sul do país e as regiões mais pobres do norte (Figura 1). Além disso, há diferenças entre hospitais privados e públicos, e entre o tipo de assistência de saúde para cada paciente. Essas diferenças nos cuidados prestados podem estar diretamente relacionadas a diferenças no acesso à terapia intensiva e eventualmente ao desfecho de doenças graves, podendo explicar por que os resultados do cuidado intensivo são tão heterogêneos e inferiores aos encontrados na maioria dos países europeus.(3,10)


O que deve ser feito e qual o papel das sociedades nacional e internacionais de terapia intensiva no desenvolvimento de pesquisa e educação, assim como da pressão política dos governos, para mudar a situação? Além de servir como profissionais de saúde, nosso papel é defender e representar nossos pacientes.(11) Para executar esse papel eficientemente, é preciso saber se o país tem condições de expandir sua prestação de terapia intensiva e se deve entender como cada país pode prestar esse cuidado. Essas questões importantes devem ser respondidas. Quando obtivermos essas respostas, então poderemos planejar adequadamente e realizar os serviços aos quais a população tem direito.

Submetido em 5 de dezembro de 2012

Aceito em 7 de dezembro de 2012

Conflitos de interesse: Nenhum.

  • 1. Angus DC, Kelley MA, Schmitz RJ, White A, Popovich J Jr; Committee on Manpower for Pulmonary and Critical Care Societies (COMPACCS). Caring for the critically ill patient. Current and projected workforce requirements for care of the critically ill and patients with pulmonary disease: can we meet the requirements of an aging population? JAMA. 2000;284(21):2762-70.
  • 2. Laake JH, Dybwik K, Flaatten HK, Fonneland IL, Kvåle R, Strand K. Impact of the post-World War II generation on intensive care needs in Norway. Acta Anaesthesiol Scand. 2010;54(4):479-84.
  • 3. Adhikari NK, Fowler RA, Bhagwanjee S, Rubenfeld GD. Critical care and the global burden of critical illness in adults. Lancet. 2010;376(9749):1339-46.
  • 4. Pearse RM, Moreno RP, Bauer P, Pelosi P, Metnitz P, Spies C, Vallet B, Vincent JL, Hoeft A, Rhodes A; European Surgical Outcomes Study (EuSOS) group for the Trials groups of the European Society of Intensive Care Medicine and the European Society of Anaesthesiology. Mortality after surgery in Europe: a 7 day cohort study. Lancet. 2012;380(9847):1059-65.
  • 5. Rhodes A, Ferdinande P, Flaatten H, Guidet B, Metnitz PG, Moreno RP. The variability of critical care bed numbers in Europe. Intensive Care Med. 2012;38(10):1647-53.
  • 6. Wunsch H, Angus DC, Harrison DA, Collange O, Fowler R, Hoste EA, et al. Variation in critical care services across North America and Western Europe. Crit Care Med. 2008;36(10):2787-93, e1-9.
  • 7. Eastman N, Philips B, Rhodes A. Triaging for adult critical care in the event of overwhelming need. Intensive Care Med. 2010;36(6):1076-82.
  • 8. Rhodes A, Moreno RP, Azoulay E, Capuzzo M, Chiche JD, Eddleston J, Endacott R, Ferdinande P, Flaatten H, Guidet B, Kuhlen R, León-Gil C, Martin Delgado MC, Metnitz PG, Soares M, Sprung CL, Timsit JF, Valentin A; Task Force on Safety and Quality of European Society of Intensive Care Medicine (ESICM). Prospectively defined indicators to improve the safety and quality of care for critically ill patients: a report from the Task Force on Safety and Quality of the European Society of Intensive Care Medicine (ESICM). Intensive Care Med. 2012;38(4):598-605.
  • 9. Pearse RM, Harrison DA, James P, Watson D, Hinds C, Rhodes A, et al. Identification and characterisation of the high-risk surgical population in the United Kingdom. Critical Care. 2006;10(3):R81.
  • 10. Vincent JL, Rello J, Marshall J, Silva E, Anzueto A, Martin CD, Moreno R, Lipman J, Gomersall C, Sakr Y, Reinhart K; EPIC II Group of Investigators. International study of the prevalence and outcomes of infection in intensive care units. JAMA. 2009;302(21):2323-9.
  • 11. Moreno RP, Rhodes A, Chiche JD. The ongoing H1N1 flu pandemic and the intensive care community: challenges, opportunities, and the duties of scientific societies and intensivists. Intensive Care Med. 2009;35(12):2005-8.
  • Autor correspondente:
    Andrew Rhodes
    General Intensive Care Unit
    St George's Healthcare NHS Trust
    London SW17 0QT
    UK
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      30 Jan 2013
    • Data do Fascículo
      Dez 2012
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