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Uso de biomarcadores na sepse: muitas perguntas, poucas respostas

EDITORIAL

Uso de biomarcadores na sepse: muitas perguntas, poucas respostas

Pedro PóvoaI,II; Jorge Ibrain Figueira SalluhIII,IV

IUnidade de Cuidados Intensivos Polivalente, Hospital de São Francisco Xavier, Centro Hospitalar de Lisboa Ocidental - Lisboa, Portugal

IIFaculdade de Ciências Médicas, Universidade Nova de Lisboa - Lisboa, Portugal

IIIInstituto D'Or de Pesquisa e Ensino - Rio de Janeiro (RJ), Brasil

IVPrograma de Pós-graduação, Instituto Nacional de Câncer - INCA - Rio de Janeiro (RJ), Brasil

Autor correspondente Autor correspondente: Pedro Póvoa Unidade de Cuidados Intensivos Polivalente Hospital de São Francisco Xavier, CHLO Estrada do Forte do Alto do Duque 1449-005 Lisboa, Portugal E-mail: povoap@netcabo.pt

Para que usamos biomarcadores na sepse? A resposta a tal questão é diversa. Uns dirão que usam os biomarcadores para avaliar o prognóstico dos doentes sépticos.(1) Mas para que usar um biomarcador apenas para ver que um doente tem um risco acrescido de morte, quando não é possível fazer nada para modificar esse prognóstico?(2) Como todos sabemos, já foram feitos várias dezenas de ensaios clínicos aleatorizados e controlados com o objetivo de modular a resposta inflamatória na sepse sem sucesso.(3,4) Outros responderão que usam os biomarcadores que acrescentam alguma informação adicional à avaliação clínica e laboratorial do doente séptico.(2,5) Essa informação clínica adicional pode ser categorizada da seguinte forma: triagem, diagnóstico, estratificação de risco, monitorização da evolução e decisão de prescrever antimicrobianos.(6)

No entanto, antes de se utilizar um biomarcador na clínica, este deve passar por uma avaliação rigorosa que compreende três etapas.(7) A primeira consiste na validação analítica, que é um processo essencialmente de caracterização laboratorial do método de determinação do biomarcador. A segunda etapa consiste na qualificação, isto é, na avaliação da evidência de uma associação entre o biomarcador e a doença, nomeadamente mostrando efeitos de intervenções clínicas, tanto no biomarcador como na evolução da doença. Dessa forma, por meio da monitorização do biomarcador, seria possível prever os efeitos de uma intervenção sobre a doença. É de notar que, na qualificação de um biomarcador, as relações deste com a doença são, na maioria das vezes, probabilísticas e não determinísticas. Por último, a utilização, ou seja, a avaliação do uso de um determinado biomarcador. Essa análise da evidência disponível deve ser feita em relação à utilização proposta para um determinado biomarcador, em particular avaliando as vantagens e as limitações.

Neste número da RBTI é publicado um artigo original de Orati et al., em que acrescentaram informação clínica original sobre a utilização da proteína C-reativa (PCR).(8) Os autores realizaram um estudo retrospectivo em 345 doentes críticos com sepse de origem pulmonar (N=195) e de origem abdominal (N=150), com o objetivo de comparar a cinética da PCR nos primeiros 5 dias após o diagnóstico de sepse. Eles verificaram que a concentração sérica da PCR era significativamente mais elevada nos doentes com sepse de foco abdominal no dia do diagnóstico bem como nos 5 primeiros dias de evolução. A conclusão deste estudo não é de que a PCR deva ser usada para distinguir uma sepse de origem pulmonar de outra, de origem abdominal, tanto mais que as áreas sob as curvas ROC são muito pouco discriminativas, mas, antes, que existe uma diferente cinética da PCR. E qual a razão dessas diferenças?

Classicamente, considera-se que a PCR, bem como outros biomarcadores de sepse não são específicos de foco infeccioso, nem de agente microbiológico.(9) No entanto, os resultados do estudo, agora publicado, apontam para o fato da sepse de origem abdominal apresentar concentrações de PCR superiores às da sepse de origem pulmonar. Uma das possíveis razões dessa diferença poderia estar relacionada à agressão cirúrgica.(10) É sabido que no pós-operatório, mesmo de cirurgias "limpas", observa-se uma elevação da PCR, bem como de outros biomarcadores, como a procalcitonina, que atingem o pico entre 24 e 48 horas e, caso não haja qualquer complicação, os biomarcadores descem de forma continuada a partir do 3º/4º dia de pós-operatório.(10) No entanto, como os próprios autores referem na discussão, há trabalhos que refutam essa explicação.(11)

No entanto, há outros aspectos, não discutidos pelos autores, que podem estar na origem dessas diferenças. É possível especular que a carga microbiológica de uma sepse de origem abdominal seja maior, em particular no caso de uma perfuração de víscera oca, que numa sepse de origem pulmonar, e há evidências de que a PCR correlaciona-se bem com a carga bacteriana.(12) Para além disso, a sepse abdominal, em particular a peritonite secundária, é polimicrobiana, com agentes Gram-negativos, Gram-positivos e anaeróbios, enquanto que a pneumonia é habitualmente monomicrobiana. Outro aspecto não estudado relaciona-se à presença de bacteriémia secundária que, no caso de ser a Gram-negativa, associa-se a valores de PCR mais elevados.(13)

Mas, mais importante do que ver se os valores absolutos da PCR são diferentes em função do foco, é monitorizar as variações relativas da PCR nos primeiros 5 dias de evolução clínica.(14) Demonstrou-se que um doente com uma diminuição média diária de 10% da concentração da PCR tem um risco 32% menor de morte após ajuste para a gravidade clínica,(14) e que os níveis da PCR não são influenciados nem pela corticoterapia(15) nem pela imunossupressão.(16)

Em conclusão, o estudo de Orati et al.(8) nos ajuda a compreender melhor a cinética desse importante biomarcador, já muito incorporado à prática clínica. Fica evidente, mais uma vez, que sua melhor utilização deve ser feita com intuito de avaliar a resposta terapêutica e o prognóstico associado a esta, por meio da avaliação dinâmica desse biomarcador, e não por dosagens pontuais. Futuros estudos deverão avaliar o papel da PCR, em pacientes com sepse, independente da etiologia, para orientar a duração e a adequação da terapia antimicrobiana, bem como a necessidade de potenciais intervenções de controle de foco infeccioso em pacientes cirúrgicos.

Conflitos de interesse: Pedro Póvoa possui bolsa de investigação da ThermoFisher Scientific; Jorge Ibrain Figueira Salluh não possui nenhum conflito.

  • 1. Pierrakos C, Vincent JL. Sepsis biomarkers: a review. Crit Care. 2010;14(1):R15.
  • 2. Póvoa P. Serum markers in community-acquired pneumonia and ventilator-associated pneumonia. Curr Opin Infect Dis. 2008;21(2):157-62.
  • 3. Marshall JC. Such stuff as dreams are made on: mediator-directed therapy in sepsis. Nat Rev Drug Discov. 2003;2(5):391-405.
  • 4. Ospina-Tascón GA, Büchele GL, Vincent JL. Multicenter, randomized, controlled trials evaluating mortality in intensive care: doomed to fail? Crit Care Med. 2008;36(4):1311-22.
  • 5. Salluh JI, Póvoa P. Biomarkers as end points in clinical trials of severe sepsis: a garden of forking paths. Crit Care Med. 2010;38(8):1749-51.
  • 6. Marshall JC, Vincent JL, Fink MP, Cook DJ, Rubenfeld G, Foster D, et al. Measures, markers, and mediators: toward a staging system for clinical sepsis. A report of the Fifth Toronto Sepsis Roundtable, Toronto, Ontario, Canada, October 25-26, 2000. Crit Care Med. 2003;31(5):1560-7.
  • 7
    Institute of Medicine of the National Academies. Evaluation of biomarkers and surrogate endpoints in chronic disease. Washington: The National Academies Press; 2010.
  • 8. Orati JA, Almeida P, Santos V, Ciorla G, Lobo SM. Dosagens séricas de proteína C-reativa na fase inicial da sepse abdominal e pulmonar. Rev Bras Ter Intensiva. 2013;25(1):6-11.
  • 9. Rabello LS, Pitrowsky MT, Soares M, Póvoa P, Salluh JI. Novos marcadores biológicos na pneumonia comunitária grave. Rev Bras Ter Intensiva. 2011;23(4):499-506.
  • 10. Póvoa P. C-reactive protein: a valuable marker of sepsis. Intensive Care Med. 2002;28(3):235-43.
  • 11. Miyano G, Okazaki T, Kato Y, Marusasa T, Takahashi T, Lane GJ, et al. Open versus laparoscopic treatment for pan-peritonitis secondary to perforated appendicitis in children: a prospective analysis. J Laparoendosc Adv Surg Tech A. 2010;20(7):655-7.
  • 12. Lisboa T, Seligman R, Diaz E, Rodriguez A, Teixeira PJ, Rello J. C-reactive protein correlates with bacterial load and appropriate antibiotic therapy in suspected ventilator-associated pneumonia. Crit Care Med. 2008;36(1):166-71.
  • 13. Vandijck DM, Hoste EA, Blot SI, Depuydt PO, Peleman RA, Decruyenaere JM. Dynamics of C-reactive protein and white blood cell count in critically ill patients with nosocomial Gram positive vs. Gram negative bacteremia: a historical cohort study. BMC Infect Dis. 2007;7:106.
  • 14. Póvoa P, Teixeira-Pinto AM, Carneiro AH; Portuguese Community-Acquired Sepsis Study Group SACiUCI. C-reactive protein, an early marker of community-acquired sepsis resolution: a multi-center prospective observational study. Crit Care. 2011;15(4):R169.
  • 15. Salluh JI, Soares M, Coelho LM, Bozza FA, Verdeal JC, Castro-Faria-Neto HC, et al. Impact of systemic corticosteroids on the clinical course and outcomes of patients with severe community-acquired pneumonia: a cohort study. J Crit Care. 2011;26(2):193-200.
  • 16. Póvoa P, Souza-Dantas VC, Soares M, Salluh JF. C-reactive protein in critically ill cancer patients with sepsis: influence of neutropenia. Crit Care. 2011;15(3):R129.
  • Autor correspondente:

    Pedro Póvoa
    Unidade de Cuidados Intensivos Polivalente
    Hospital de São Francisco Xavier, CHLO
    Estrada do Forte do Alto do Duque
    1449-005 Lisboa, Portugal
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      23 Abr 2013
    • Data do Fascículo
      Mar 2013
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