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Avaliação urinária no paciente crítico: uma questão tanto de quantidade como de qualidade

Neste número da Revista Brasileira de Terapia Intensiva, Masevicius et al.( 11. Masevicius FD, Vazquez AR, Enrico C, Dubin A. Urinary strong-ion difference is a major determinant of the changes in plasma chloride concentration in postoperative patients. Rev Bras Ter Intensiva. 2013;25(3):197-204. ) relatam o comportamento das concentrações plasmáticas de cloreto ([Cl-]plasma) de 148 pacientes consecutivos em pós-operatório nas primeiras 24 horas após a admissão na unidade de terapia intensiva (UTI). O principal achado dos autores foi que, ao final do primeiro dia de UTI, a [Cl-]plasma foi primariamente dependente da [Cl-]plasma obtida na admissão à UTI e da diferença de íons fortes na urina ([SID]urina), também chamada de ânion gap urinário. Durante o período de 24 horas, os pacientes foram divididos em três grupos: aqueles em que a [Cl-]plasma aumentou (1), diminuiu (2) ou permaneceu inalterada (3). O grupo em que a [Cl-]plasma aumentou nas 24 horas tinha uma [Cl-]plasma mais baixa por ocasião da admissão à UTI, e níveis mais altos de strong ion gap (SIG, isto é, concentrações mais altas de ânions não mensuráveis). O oposto foi observado neste mesmo grupo após 24 horas: níveis mais elevados de [Cl-]plasma e SIG mais baixo. O volume de fluidos infundidos e os SIDs desses fluidos (apenas cristaloides) no primeiro dia na UTI foram similares entre os grupos, o que levou os autores a concluírem que os fluidos recebidos durante esse período não eram responsáveis pelos diferentes comportamentos da [Cl-]plasma observados entre os grupos.

Esses resultados devem ser interpretados com cautela. Primeiramente, é intuitivo que a [Cl-]plasma por ocasião da admissão à UTI seja determinante da [Cl-]plasma após 24 horas, pois a última depende grandemente da primeira (a qual era diferente entre os grupos) e da quantidade de [Cl-] recebida durante esse período de 24 horas, que foi similar entre os grupos. O soro fisiológico 0,9%, que tem uma elevada concentração de [Cl-] (154mEq/L, bem acima das [Cl-]plasma iniciais nos três grupos), foi o fluido primariamente utilizado; logo, não seria esperado que a [Cl-]plasma diminuísse ou permanecesse inalterada. Ao contrário, seria esperado um aumento de [Cl-]plasma em todos os grupos, particularmente naquele com [Cl-]plasma inicial mais baixa. Nesse ponto, o nível de [SID]urina e o volume total de urina desempenham papéis cruciais. Como os rins são o principal órgão responsável pela regulação de SID no plasma, espera-se que tanto o volume urinário quanto a [SID]urina sejam responsáveis pela [Cl-]plasma final. O volume de diurese no período de 24 horas foi similar entre os grupos, o que direciona nossa atenção para a [SID]urina. A urina é o principal fluido pelo qual excretamos [Cl-]. A excreção urinária de [Cl-] é de absoluta relevância no equilíbrio acidobásico, pois é geralmente o ânion excretado conjuntamente com o amônio (NH4 +), que por sua vez é a principal forma de excreção de ácidos pelo organismo. No estudo de Masevicius et al.,( 11. Masevicius FD, Vazquez AR, Enrico C, Dubin A. Urinary strong-ion difference is a major determinant of the changes in plasma chloride concentration in postoperative patients. Rev Bras Ter Intensiva. 2013;25(3):197-204. ) o grupo com [Cl-]plasma aumentada teve o nível mais alto de [SID]urina, sugerindo que teve menor capacidade de excretar [Cl-] e gerenciar a hipercloremia induzida por soro fisiológico 0,9%. Tal resultado poderia ser um sinal indireto de comprometimento renal,( 22. Masevicius FD, Tuhay G, Pein MC, Ventrice E, Dubin A. Alterations in urinary strong ion difference in critically ill patients with metabolic acidosis: a prospective observational study. Crit Care Resusc. 2010;12(4):248-54.

3. Maciel AT, Park M, Macedo E. Urinary electrolyte monitoring in critically ill patients: a preliminary observational study. Rev Bras Ter Intensiva. 2012;24(3):236-45.
- 44. Moviat M, Terpstra AM, van der Hoeven JG, Pickkers P. Impaired renal function is associated with greater urinary strong ion differences in critically ill patients with metabolic acidosis. J Crit Care. 2012;27(3):255-60. ) embora, no presente estudo, poucos pacientes tenham preenchido critérios para injúria renal aguda (IRA) pelos critérios AKIN,( 55. Mehta RL, Kellum JA, Shah SV, Molitoris BA, Ronco C, Warnock DG, Levin A; Acute Kidney Injury Network. Acute Kidney Injury Network: report of an initiative to improve outcomes in acute kidney injury. Crit Care. 2007;11(2):R31. ) além da incidência de IRA ter sido similar entre os grupos.

Outra diferença entre os grupos foi o valor do SIG quando da admissão à UTI. É difícil explicar as razões pelas quais o SIG teve valores distintos baseados apenas nas informações fornecidas pelos autores. Além disso, em termos de prognóstico e manejo terapêutico de pacientes críticos, a utilidade do SIG ainda precisa ser determinada. Os comportamentos opostos do [Cl-] e dos ânions não mensuráveis (um aumenta, o outro diminui e vice-versa) podem representar um fenômeno fisiológico, como foi sugerido para explicar a hipocloremia em cetoacidose diabética não tratada( 66. Funk GC, Zauner C, Bauer E, Oschatz E, Schneeweiss B. Compensatory hypochloraemic alkalosis in diabetic ketoacidosis. Diabetologia. 2003;46(6):871-3. ) ou para um aumento do SIG na presença de hipoalbuminemia.( 77. Gómez JL, Gunnerson KJ, Song M, Li J, Kellum JA. Effects of hypercapnia on BP in hypoalbuminemic and Nagase analbuminemic rats. Chest. 2007;131(5):1295-300. ) Entretanto, pode ser apenas um acoplamento matemático, pois, até agora, o SIG ainda é uma variável calculada, e não uma variável diretamente medida. O fato de que o grupo com [Cl-]plasma aumentada ter tido SIG mais alto na admissão pode também influenciar nossa interpretação da [SID]urina neste estudo. Na presença de predominância da acidose por SIG, é possível que os ânions não mensuráveis acompanhem a excreção urinária de NH4 + e não o [Cl-], o que resulta em menos excreção de [Cl-] e valores mais altos de [SID]urina.

Em conclusão, este importante artigo de Masevicius et al.( 11. Masevicius FD, Vazquez AR, Enrico C, Dubin A. Urinary strong-ion difference is a major determinant of the changes in plasma chloride concentration in postoperative patients. Rev Bras Ter Intensiva. 2013;25(3):197-204. ) traz algum grau de incerteza a respeito de como interpretar os dados: A [SID]urina determina a modificação na [Cl-]plasma ou a [Cl-]plasma e o SIG iniciais determinam a [SID]urina? Uma certeza, entretanto, é possível com este estudo: devemos avaliar a composição eletrolítica da urina para obter uma plena compreensão do equilíbrio acidobásico, e esta avaliação deve ser feita pelos intensivistas diariamente. A relevância da urina na UTI vai além de seu volume e fluxo.

REFERÊNCIAS

  • 1
    Masevicius FD, Vazquez AR, Enrico C, Dubin A. Urinary strong-ion difference is a major determinant of the changes in plasma chloride concentration in postoperative patients. Rev Bras Ter Intensiva. 2013;25(3):197-204.
  • 2
    Masevicius FD, Tuhay G, Pein MC, Ventrice E, Dubin A. Alterations in urinary strong ion difference in critically ill patients with metabolic acidosis: a prospective observational study. Crit Care Resusc. 2010;12(4):248-54.
  • 3
    Maciel AT, Park M, Macedo E. Urinary electrolyte monitoring in critically ill patients: a preliminary observational study. Rev Bras Ter Intensiva. 2012;24(3):236-45.
  • 4
    Moviat M, Terpstra AM, van der Hoeven JG, Pickkers P. Impaired renal function is associated with greater urinary strong ion differences in critically ill patients with metabolic acidosis. J Crit Care. 2012;27(3):255-60.
  • 5
    Mehta RL, Kellum JA, Shah SV, Molitoris BA, Ronco C, Warnock DG, Levin A; Acute Kidney Injury Network. Acute Kidney Injury Network: report of an initiative to improve outcomes in acute kidney injury. Crit Care. 2007;11(2):R31.
  • 6
    Funk GC, Zauner C, Bauer E, Oschatz E, Schneeweiss B. Compensatory hypochloraemic alkalosis in diabetic ketoacidosis. Diabetologia. 2003;46(6):871-3.
  • 7
    Gómez JL, Gunnerson KJ, Song M, Li J, Kellum JA. Effects of hypercapnia on BP in hypoalbuminemic and Nagase analbuminemic rats. Chest. 2007;131(5):1295-300.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Sep 2013
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