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Acorde seus pacientes!

“... Mas o que vejo hoje são pacientes paralisados, sedados, jazendo sem movimentos e parecendo mortos, exceto pelos monitores que me dizem o contrário”.

Thomas L. Petty, Chest, 1998

Em 1998, Thomas L. Petty expressou sua preocupação com a sedação profunda e sugeriu uma conexão entre a sedação e as complicações graves.(1Petty TL. Suspended life or extending death? Chest. 1998;114(2):360-1.) Suas palavras enfatizaram que não era somente a doença de base, mas os próprios médicos que causam a situação sombria que experimentou em sua unidade de terapia intensiva (UTI).

À medida que emergiram mais evidências dando suporte à sua teoria, o editorial de Petty parece hoje ser ainda mais visionário do que quando foi publicado.

Em 2012 e 2013, Shehabi et al. demonstraram, pela primeira vez, que a sedação profunda nas primeiras 48 horas de terapia intensiva resultava em mortalidade em 180 dias significantemente mais elevada e que cada evento individual de sedação excessiva levou a um prolongamento significante da ventilação mecânica.(2Shehabi Y, Bellomo R, Reade MC, Bailey M, Bass F, Howe B, McArthur C, Seppelt IM, Webb S, Weisbrodt L; Sedation Practice in Intensive Care Evaluation (SPICE) Study Investigators; ANZICS Clinical Trials Group. Early intensive care sedation predicts long-term mortality in ventilated critically ill patients. Am J Respir Crit Care Med. 2012;186(8):724-31.,3Shehabi Y, Chan L, Kadiman S, Alias A, Ismail WN, Tan MA, Khoo TM, Ali SB, Saman MA, Shaltut A, Tan CC, Yong CY, Bailey M; Sedation Practice in Intensive Care Evaluation (SPICE) Study Group investigators. Sedation depth and long-term mortality in mechanically ventilated critically ill adults: a prospective longitudinal multicentre cohort study. Intensive Care Med. 2013;39(5):910-8.) Os resultados desses estudos observacionais foram impressionantes, provocando uma avalanche de discussões a respeito da sedação, das práticas de sedação e dos desfechos relacionados.

Em 2000, estudo que investigou o uso de interrupções diárias da infusão de sedação publicado por Kress et al. demonstrou que tentativas diárias de despertar se associaram com 2,4 dias de ventilação mecânica a menos.(4Kress JP, Pohlman AS, O’Connor MF, Hall JB. Daily interruption of sedative infusions in critically ill patients undergoing mechanical ventilation. N Engl J Med. 2000;342(20):1471-7.) Oito anos mais tarde, Girard et al. realizaram um estudo clínico randomizado a respeito de despertar e respirar, em vez de apenas respirar, demonstrando que a combinação levou à redução de 32% na mortalidade em 1 ano.(5Girard TD, Kress JP, Fuchs BD, Thomason JW, Schweickert WD, Pun BT, et al. Efficacy and safety of a paired sedation and ventilator weaning protocol for mechanically ventilated patients in intensive care (Awakening and Breathing Controlled trial): a randomised controlled trial. Lancet. 2008;371(9607):126-34.)

Em 2010, o grupo de trabalho ligado a Thomas Strøm publicou a abordagem “não sedante”. Os pacientes receberam um protocolo de “não sedação”, o que, na prática, significou morfina, haloperidol e um regime terapêutico em fases com base em propofol, evitando, sempre que possível, sedativos, para manter o paciente desperto.(6Strom T, Martinussen T, Toft P. A protocol of no sedation for critically ill patients receiving mechanical ventilation: a randomised trial. Lancet. 2010;375(9713):475-80.) Os pacientes tiveram um tempo menor sob ventilação, uma menor duração da permanência na UTI e no hospital. Nesse ano, sua publicação tornou-se um dos artigos mais discutidos na área de terapia intensiva.

Há profundas evidências de que pacientes gravemente enfermos se beneficiem de estar despertos. Atualmente, parece provável que qualquer tipo de sedação se associa com piora dos desfechos. Assim, ela se limita a pouquíssimas e específicas indicações (por exemplo, aumento da pressão intracraniana em pacientes com lesão cerebral traumática, ou colocação em posição prona em pacientes com síndrome da angústia respiratória aguda).

As diretrizes internacionais recomendam uma abordagem guiada por objetivos: deve ser definido um alvo de sedação pelo menos uma vez ao dia, e o nível de sedação deve ser monitorado frequentemente, para evitar sedação excessiva.(7Martin J, Heymann A, Bäsell K, Baron R, Biniek R, Bürkle H, et al. Evidence and consensus-based German guidelines for the management of analgesia, sedation and delirium in intensive care-short version. Ger Med Sci. 2010;8:Doc02.,8Barr J, Fraser GL, Puntillo K, Ely EW, Gélinas C, Dasta JF, Davidson JE, Devlin JW, Kress JP, Joffe AM, Coursin DB, Herr DL, Tung A, Robinson BR, Fontaine DK, Ramsay MA, Riker RR, Sessler CN, Pun B, Skrobik Y, Jaeschke R; American College of Critical Care Medicine. Clinical practice guidelines for the management of pain, agitation, and delirium in adult patients in the intensive care unit. Crit Care Med. 2013;41(1):263-306.) A definição e a avaliação devem ser realizadas utilizando um sistema validado de pontuação.

Com relação a evidências recentes, deve ser utilizada a Richmond Agitation Sedation Scale (RASS) como padrão para monitoramento da sedação em pacientes de UTI.(7Martin J, Heymann A, Bäsell K, Baron R, Biniek R, Bürkle H, et al. Evidence and consensus-based German guidelines for the management of analgesia, sedation and delirium in intensive care-short version. Ger Med Sci. 2010;8:Doc02.,8Barr J, Fraser GL, Puntillo K, Ely EW, Gélinas C, Dasta JF, Davidson JE, Devlin JW, Kress JP, Joffe AM, Coursin DB, Herr DL, Tung A, Robinson BR, Fontaine DK, Ramsay MA, Riker RR, Sessler CN, Pun B, Skrobik Y, Jaeschke R; American College of Critical Care Medicine. Clinical practice guidelines for the management of pain, agitation, and delirium in adult patients in the intensive care unit. Crit Care Med. 2013;41(1):263-306.) Esta escala de 10 pontos permite que os profissionais distingam entre os diferentes estágios de sedação e agitação.(9Sessler CN, Gosnell MS, Grap MJ, Brophy GM, O’Neal PV, Keane KA, et al. The Richmond Agitation-Sedation Scale: validity and reliability in adult intensive care unit patients. Am J Respir Crit Care Med. 2002;166(10):1338-44.) Trata-se de ferramenta de fácil utilização, que utiliza critérios objetivos (despertar sob estímulo verbal ou táctil), e que foi validada em diferentes idiomas, sendo desse modo amplamente acessível. Pontuação zero na RASS (desperto e calmo) ou -1 (desperta com estímulo verbal, mantendo contato ocular por mais de 10 segundos) devem ser o alvo padrão para o nível de vigília.

Embora as evidências pareçam esmagadoras, foi demonstrado, em levantamentos realizados, que a prática de sedação na rotina clínica ainda se encontra muito além do que seria considerado seguro para nossos pacientes.(1010 Woien H, Stubhaug A, Bjork IT. Analgesia and sedation of mechanically ventilated patients - a national survey of clinical practice. Acta Anaesthesiol Scand. 2012;56(1):23-9.) Ninguém ainda respondeu de forma abrangente por que os médicos ainda sedam excessivamente seus pacientes com tanta frequência.

Talvez a sedação seja percebida como um alívio para o estresse. O mesmo argumento é utilizado para a sedação noturna, se os pacientes sofrem de insônia.

Levantamentos a respeito de estressores na UTI mostraram que estar desperto é o segundo estressor mais grave em pacientes gravemente enfermos, logo depois da dor.(1111 Novaes MA, Aronovich A, Ferraz MB, Knobel E. Stressors in ICU: patients’ evaluation. Intensive Care Med. 1997;23(12):1282-5.) Há pouquíssimos dados disponíveis a respeito da arquitetura objetiva do sono em pacientes gravemente enfermos. Contudo, estes estudos salientam a significância das experiências dos pacientes: a arquitetura do sono é, em geral, ruim em uma UTI e se torna ainda pior com o uso de sedativos. O propofol, por exemplo, leva a menos tempo de sono com ondas lentas, e menos tempo de sono com movimentos oculares rápidos(1212 Kondili E, Alexopoulou C, Xirouchaki N, Georgopoulos D. Effects of propofol on sleep quality in mechanically ventilated critically ill patients: a physiological study. Intensive Care Med. 2012;38(10):1640-6.) - ambas fases importantes para a recuperação física e mental. Devemos reconsiderar nossas percepções à luz da evidência e reconhecer que a sedação é uma quantidade extrema de estresse para o cérebro.

O que fazer se não vamos sedar o paciente? Devemos realizar um tratamento guiado pelos sintomas de alucinação, agitação, estresse e, possivelmente o mais importante, dor. A analgesia adequada parece ser o fator central mais relevante de uma “abordagem sem sedação” bem-sucedida.(8Barr J, Fraser GL, Puntillo K, Ely EW, Gélinas C, Dasta JF, Davidson JE, Devlin JW, Kress JP, Joffe AM, Coursin DB, Herr DL, Tung A, Robinson BR, Fontaine DK, Ramsay MA, Riker RR, Sessler CN, Pun B, Skrobik Y, Jaeschke R; American College of Critical Care Medicine. Clinical practice guidelines for the management of pain, agitation, and delirium in adult patients in the intensive care unit. Crit Care Med. 2013;41(1):263-306.)

Além disso, um paciente desperto deve se beneficiar de estímulos cognitivos e físicos apropriados à sua situação individual. O ambiente direto pode igualmente desempenhar um importante papel nesse contexto. Antigamente, o ambiente da UTI era influenciado exclusivamente pelas demandas técnicas, o que resultava em um ambiente quase insuportável para pacientes despertos. Até mesmo a vista de uma janela continua sendo uma exceção. Barulho, iluminação inadequada e falta de privacidade definem o padrão do que se observa nas UTI. Deveríamos saber melhor, já que há estudos muito mais antigos que o editorial de Thomas L. Petty demonstrando que o ambiente do hospital tem uma importante influência na experiência e percepção do paciente.

Em resumo, não se trata mais de uma atitude visionária manter nossos pacientes despertos, mas apenas o que a evidência nos diz que devemos fazer. Acordem doutores, e acordem seus pacientes!

  • Editor responsável: Jorge Ibrain de Figueira Salluh

REFERÊNCIAS

  • 1
    Petty TL. Suspended life or extending death? Chest. 1998;114(2):360-1.
  • 2
    Shehabi Y, Bellomo R, Reade MC, Bailey M, Bass F, Howe B, McArthur C, Seppelt IM, Webb S, Weisbrodt L; Sedation Practice in Intensive Care Evaluation (SPICE) Study Investigators; ANZICS Clinical Trials Group. Early intensive care sedation predicts long-term mortality in ventilated critically ill patients. Am J Respir Crit Care Med. 2012;186(8):724-31.
  • 3
    Shehabi Y, Chan L, Kadiman S, Alias A, Ismail WN, Tan MA, Khoo TM, Ali SB, Saman MA, Shaltut A, Tan CC, Yong CY, Bailey M; Sedation Practice in Intensive Care Evaluation (SPICE) Study Group investigators. Sedation depth and long-term mortality in mechanically ventilated critically ill adults: a prospective longitudinal multicentre cohort study. Intensive Care Med. 2013;39(5):910-8.
  • 4
    Kress JP, Pohlman AS, O’Connor MF, Hall JB. Daily interruption of sedative infusions in critically ill patients undergoing mechanical ventilation. N Engl J Med. 2000;342(20):1471-7.
  • 5
    Girard TD, Kress JP, Fuchs BD, Thomason JW, Schweickert WD, Pun BT, et al. Efficacy and safety of a paired sedation and ventilator weaning protocol for mechanically ventilated patients in intensive care (Awakening and Breathing Controlled trial): a randomised controlled trial. Lancet. 2008;371(9607):126-34.
  • 6
    Strom T, Martinussen T, Toft P. A protocol of no sedation for critically ill patients receiving mechanical ventilation: a randomised trial. Lancet. 2010;375(9713):475-80.
  • 7
    Martin J, Heymann A, Bäsell K, Baron R, Biniek R, Bürkle H, et al. Evidence and consensus-based German guidelines for the management of analgesia, sedation and delirium in intensive care-short version. Ger Med Sci. 2010;8:Doc02.
  • 8
    Barr J, Fraser GL, Puntillo K, Ely EW, Gélinas C, Dasta JF, Davidson JE, Devlin JW, Kress JP, Joffe AM, Coursin DB, Herr DL, Tung A, Robinson BR, Fontaine DK, Ramsay MA, Riker RR, Sessler CN, Pun B, Skrobik Y, Jaeschke R; American College of Critical Care Medicine. Clinical practice guidelines for the management of pain, agitation, and delirium in adult patients in the intensive care unit. Crit Care Med. 2013;41(1):263-306.
  • 9
    Sessler CN, Gosnell MS, Grap MJ, Brophy GM, O’Neal PV, Keane KA, et al. The Richmond Agitation-Sedation Scale: validity and reliability in adult intensive care unit patients. Am J Respir Crit Care Med. 2002;166(10):1338-44.
  • 10
    Woien H, Stubhaug A, Bjork IT. Analgesia and sedation of mechanically ventilated patients - a national survey of clinical practice. Acta Anaesthesiol Scand. 2012;56(1):23-9.
  • 11
    Novaes MA, Aronovich A, Ferraz MB, Knobel E. Stressors in ICU: patients’ evaluation. Intensive Care Med. 1997;23(12):1282-5.
  • 12
    Kondili E, Alexopoulou C, Xirouchaki N, Georgopoulos D. Effects of propofol on sleep quality in mechanically ventilated critically ill patients: a physiological study. Intensive Care Med. 2012;38(10):1640-6.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Oct-Dec 2014

Histórico

  • Recebido
    21 Out 2014
  • Aceito
    17 Nov 2014
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