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Pacientes com neoplasias hematológicas internados nas unidades de terapia intensiva: novos desafios para o intensivista

Os avanços no tratamento de pacientes com câncer e a maior compreensão dos mecanismos fisiopatológicos das doenças neoplásicas aumentaram a sobrevida e, consequentemente, a demanda de cuidados intensivos nessa população.(1Azoulay E, Pène F, Darmon M, Lengliné E, Benoit D, Soares M, Vincent F, Bruneel F, Perez P, Lemiale V, Mokart D; Groupe de Recherche Respiratoire en Réanimation Onco-Hématologique (Grrr-OH). Managing critically Ill hematology patients: Time to think differently. Blood Rev. 2015. [Epub ahead of print]) É importante enfatizar que “câncer” é uma denominação feita a um grupo heterogêneo de doenças, e que as neoplasias hematológicas apresentam particularidades quando comparadas aos tumores sólidos. Dentre seus aspectos mais importantes, destaca-se a urgência para a instituição do tratamento antineoplásico, frequentemente requerida nas neoplasias hematológicas de alto grau, como leucemias agudas e linfomas agressivos. Estudos específicos nesse subgrupo justificam-se pelo potencial impacto no prognóstico exercido pelo comportamento da neoplasia subjacente e pelas características dos centros (como o volume de casos, a disponibilidade de agentes quimioterápicos e de técnicas diagnósticas específicas).(2Bird GT, Farquhar-Smith P, Wigmore T, Potter M, Gruber PC. Outcomes and prognostic factors in patients with haematological malignancy admitted to a specialist cancer intensive care unit: a 5 yr study. Br J Anaesth. 2012;108(3):452-9.)

Nas duas últimas décadas, as unidades de terapia intensiva (UTI) têm desempenhado um importante papel tanto no tratamento de intercorrências infecciosas e complicações graves relacionadas diretamente ao câncer ou ao seu tratamento, quanto na internação preventiva de pacientes submetidos a regimes quimioterápicos de alto risco.(3Benoit DD, Depuydt PO, Vandewoude KH, Offner FC, Boterberg T, De Cock CA, et al. Outcome in severely ill patients with hematological malignancies who received intravenous chemotherapy in the intensive care unit. Intensive Care Med. 2006;32(1):93-9.) Atualmente, a recusa da internação na UTI com base exclusivamente no tipo de neoplasia hematológica não se justifica mais. Desse modo, a terapia intensiva encontra-se diante de uma realidade representada pelo doente grave com uma doença subjacente maligna que necessita, além dos cuidados intensivos, cada vez mais dos conhecimentos específicos da oncologia.(4Azoulay E, Soares M, Darmon M, Benoit D, Pastores S, Afessa B. Intensive care of the cancer patient: recent achievements and remaining challenges. Ann Intensive Care. 2011;1(1):5.)

Esses novos e crescentes desafios exigem que o intensivista esteja capacitado para oferecer a melhor condução clínica e o adequado aconselhamento de pacientes e familiares quanto ao prognóstico do paciente, opções e preferências de tratamento. Para isso, algumas mudanças de comportamento são esperadas, principalmente no que tange à necessidade de maior colaboração entre intensivistas e oncologistas/hematologistas. Além de influenciar na prática clínica e nas decisões a respeito do tratamento antioneoplásico, tal interação contribui para a adequada seleção dos pacientes que apresentarão benefício com a instituição dos cuidados intensivos.(4Azoulay E, Soares M, Darmon M, Benoit D, Pastores S, Afessa B. Intensive care of the cancer patient: recent achievements and remaining challenges. Ann Intensive Care. 2011;1(1):5.) Um exemplo apropriado dessa colaboração é o emprego da quimioterapia intravenosa de urgência durante a internação na UTI em doentes hematológicos. Esta tem se mostrado viável e com impacto positivo no prognóstico de pacientes selecionados, inclusive aqueles com elevada gravidade.(3Benoit DD, Depuydt PO, Vandewoude KH, Offner FC, Boterberg T, De Cock CA, et al. Outcome in severely ill patients with hematological malignancies who received intravenous chemotherapy in the intensive care unit. Intensive Care Med. 2006;32(1):93-9.,5Darmon M, Thiery G, Ciroldi M, de Miranda S, Galicier L, Raffoux E, et al. Intensive care in patients with newly diagnosed malignancies and a need for cancer chemotherapy. Crit Care Med. 2005;33(11):2488-93.)

Alguns fatores independentes associados a um pior prognóstico em pacientes graves com neoplasias hematológicas já foram identificados, como a necessidade de suporte ventilatório invasivo, o maior número de disfunções orgânicas instaladas, o pior performance status e a infiltração neoplásica de órgãos.(6Benoit DD, Vandewoude KH, Decruyenaere JM, Hoste EA, Colardyn FA. Outcome and early prognostic indicators in patients with a hematologic malignancy admitted to the intensive care unit for a life-threatening complication. Crit Care Med. 2003;31(1):104-12.,7Azoulay E, Mokart D, Pène F, Lambert J, Kouatchet A, Mayaux J, et al. Outcomes of critically ill patients with hematologic malignancies: prospective multicenter data from France and Belgium-a groupe de recherche respiratoire en réanimation onco-hématologique study. J Clin Oncol. 2013;31(22):2810-8.) O desafio agora é avaliar se tais achados têm se traduzido em benefícios a beira de leito nos diferentes cenários.(8Benoit DD, Soares M, Azoulay E. Has survival increased in cancer patients admitted to the ICU? We are not sure. Intensive Care Med. 2014;40(10):1576-9.) Até o momento, a maior parte dos estudos que avaliaram os desfechos nessa população conduzidos nas UTI brasileiras incluiu também os tumores sólidos, o que dificulta a interpretação de seus resultados.(9Soares M, Caruso P, Silva E, Teles JM, Lobo SM, Friedman G, Dal Pizzol F, Mello PV, Bozza FA, Silva UV, Torelly AP, Knibel MF, Rezende E, Netto JJ, Piras C, Castro A, Ferreira BS, Réa-Neto A, Olmedo PB, Salluh JI; Brazilian Research in Intensive Care Network (BRICNet). Characteristics and outcomes of patients with cancer requiring admission to intensive care units: a prospective multicenter study. Crit Care Med. 2010;38(1):9-15.)

Neste número da RBTI, Barreto et al. avaliaram 157 pacientes adultos com doenças hematológicas internados em uma UTI geral de um hospital universitário brasileiro por um período de 2 anos.(1010 Barreto LM, Torga JP, Coelho SV, Nobre V. Principais características observadas em pacientes com doenças hematológicas admitidos em unidade de terapia intensiva de um hospital universitário. Rev Bras Ter Intensiva. 2015;27(3):212-9.) Embora realizado em um único centro, esse estudo acrescenta importantes informações a respeito do panorama brasileiro dos cuidados intensivos dos doentes hematológicos. Os autores observaram elevada incidência de câncer, que correspondeu a 81,6% dos doentes hematológicos e representou uma em cada seis do total de internações na UTI no período estudado. As taxas de mortalidade reportadas na UTI e no hospital foram de 47,8% e 73,2%, respectivamente. Múltiplos fatores podem ter contribuído, de forma independente ou não, para os elevados índices observados. Dentre eles, a gravidade do quadro clínico no momento da internação na UTI, avaliada pelo escore SAPS 3, mostrou-se um preditor independente de mortalidade. Esses achados reforçam os resultados de estudos recentes a respeito da importância na instituição precoce dos cuidados intensivos em pacientes graves. A recomendação de especialistas a respeito da ampliação das políticas de internação de pacientes com neoplasias hematológicas nas UTI e o suporte intensivo pleno nos primeiros dias devem estar alinhados à percepção da doença crítica em seu estágio inicial. Idealmente, antes que as disfunções orgânicas já estejam instaladas.(1111 Mokart D, Lambert J, Schnell D, Fouché L, Rabbat A, Kouatchet A, et al. Delayed intensive care unit admission is associated with increased mortality in patients with cancer with acute respiratory failure. Leuk Lymphoma. 2013;54(8):1724-9.) Assim, configura-se um possível alvo de intervenção, especialmente no Brasil, onde o acesso aos cuidados intensivos é prejudicado por ineficiências do sistema ou pela restrição de leitos de terapia intensiva.(1212 Soares M, Salluh JI, Sullah JI. Advanced supportive care for patients with cancer in Latin America. Lancet Oncol. 2013;14(9):e337. Erratum in: Lancet Oncol. 2013;14(12):e493. Sullah, Jorge I F [corrected to Salluh, Jorge I F].)Recentemente, um estudo europeu que incluiu pacientes com câncer hematológico em 17 UTI na França e Bélgica identificou que a internação na UTI dentro das primeiras 24 horas da internação hospitalar associou-se a melhores taxas de sobrevida em relação às esperadas a priori. A mortalidade hospitalar reportada foi de 39%, e tanto o controle da doença neoplásica, quanto a qualidade de vida relacionada à saúde após a alta foram considerados satisfatórios, o que sugere uma adequada relação dos custos com o benefício alcançado.(7Azoulay E, Mokart D, Pène F, Lambert J, Kouatchet A, Mayaux J, et al. Outcomes of critically ill patients with hematologic malignancies: prospective multicenter data from France and Belgium-a groupe de recherche respiratoire en réanimation onco-hématologique study. J Clin Oncol. 2013;31(22):2810-8.)

Sabe-se que a insuficiência respiratória é a principal razão para a internação de doentes hematológicos em terapia intensiva, e outra importante contribuição do estudo de Barreto et al.(1010 Barreto LM, Torga JP, Coelho SV, Nobre V. Principais características observadas em pacientes com doenças hematológicas admitidos em unidade de terapia intensiva de um hospital universitário. Rev Bras Ter Intensiva. 2015;27(3):212-9.) está relacionada às encorajadoras taxas de sobrevida hospitalar observadas nos pacientes que apresentaram boa resposta à ventilação mecânica não invasiva (VMNI). Elas foram semelhantes, inclusive, às daqueles que não necessitaram de nenhum suporte ventilatório. Já nos pacientes que evoluíram com falha à VMNI, a mortalidade foi elevada e superior àquela observada nos pacientes em que a ventilação invasiva foi a primeira opção de suporte ventilatório. Esses resultados confirmam os achados de séries anteriores(1313 Azoulay E, Attalah H, Harf A, Schlemmer B, Delclaux C. Granulocyte colony-stimulating factor or neutrophil-induced pulmonary toxicity: myth or reality? Systematic review of clinical case reports and experimental data. Chest. 2001;120(5):1695-701.,1414 Depuydt PO, Benoit DD, Roosens CD, Offner FC, Noens LA, Decruyenaere JM. The impact of the initial ventilatory strategy on survival in hematological patients with acute hypoxemic respiratory failure. J Crit Care. 2010;25(1):30-6.) e apoiam tanto as decisões de escolha da modalidade ventilatória não invasiva para pacientes selecionados, como a importância na identificação precoce dos fatores associados à falha na VMNI. No referido estudo, no subgrupo que apresentou falha a essa modalidade, observaram-se, em concordância com a literatura,(1515 Adda M, Coquet I, Darmon M, Thiery G, Schlemmer B, Azoulay E. Predictors of noninvasive ventilation failure in patients with hematologic malignancy and acute respiratory failure. Crit Care Med. 2008;36(10):2766-72.) maior gravidade da disfunção respiratória e maior utilização de suporte hemodinâmico nas primeiras 24 horas de internação na UTI. De acordo com o que é conhecido até o momento, na presença de tais variáveis, o suporte ventilatório invasivo seria a estratégia inicial recomendada.

No estudo de Barreto et al.,(1010 Barreto LM, Torga JP, Coelho SV, Nobre V. Principais características observadas em pacientes com doenças hematológicas admitidos em unidade de terapia intensiva de um hospital universitário. Rev Bras Ter Intensiva. 2015;27(3):212-9.) importantes informações a respeito da caracterização das doenças hematológicas no paciente gravemente enfermo foram identificadas. No entanto, novas pesquisas ainda são necessárias para que o perfil dessa população, que ocupa um número cada vez maior de leitos nas UTI brasileiras, seja melhor compreendido. Dados a respeito da mortalidade em longo prazo, qualidade de vida após a alta da UTI e caracterização de fatores relacionados aos centros que possam estar associados aos desfechos são necessários para uma avaliação mais adequada a respeito da evolução desses pacientes.

REFERÊNCIAS

  • 1
    Azoulay E, Pène F, Darmon M, Lengliné E, Benoit D, Soares M, Vincent F, Bruneel F, Perez P, Lemiale V, Mokart D; Groupe de Recherche Respiratoire en Réanimation Onco-Hématologique (Grrr-OH). Managing critically Ill hematology patients: Time to think differently. Blood Rev. 2015. [Epub ahead of print]
  • 2
    Bird GT, Farquhar-Smith P, Wigmore T, Potter M, Gruber PC. Outcomes and prognostic factors in patients with haematological malignancy admitted to a specialist cancer intensive care unit: a 5 yr study. Br J Anaesth. 2012;108(3):452-9.
  • 3
    Benoit DD, Depuydt PO, Vandewoude KH, Offner FC, Boterberg T, De Cock CA, et al. Outcome in severely ill patients with hematological malignancies who received intravenous chemotherapy in the intensive care unit. Intensive Care Med. 2006;32(1):93-9.
  • 4
    Azoulay E, Soares M, Darmon M, Benoit D, Pastores S, Afessa B. Intensive care of the cancer patient: recent achievements and remaining challenges. Ann Intensive Care. 2011;1(1):5.
  • 5
    Darmon M, Thiery G, Ciroldi M, de Miranda S, Galicier L, Raffoux E, et al. Intensive care in patients with newly diagnosed malignancies and a need for cancer chemotherapy. Crit Care Med. 2005;33(11):2488-93.
  • 6
    Benoit DD, Vandewoude KH, Decruyenaere JM, Hoste EA, Colardyn FA. Outcome and early prognostic indicators in patients with a hematologic malignancy admitted to the intensive care unit for a life-threatening complication. Crit Care Med. 2003;31(1):104-12.
  • 7
    Azoulay E, Mokart D, Pène F, Lambert J, Kouatchet A, Mayaux J, et al. Outcomes of critically ill patients with hematologic malignancies: prospective multicenter data from France and Belgium-a groupe de recherche respiratoire en réanimation onco-hématologique study. J Clin Oncol. 2013;31(22):2810-8.
  • 8
    Benoit DD, Soares M, Azoulay E. Has survival increased in cancer patients admitted to the ICU? We are not sure. Intensive Care Med. 2014;40(10):1576-9.
  • 9
    Soares M, Caruso P, Silva E, Teles JM, Lobo SM, Friedman G, Dal Pizzol F, Mello PV, Bozza FA, Silva UV, Torelly AP, Knibel MF, Rezende E, Netto JJ, Piras C, Castro A, Ferreira BS, Réa-Neto A, Olmedo PB, Salluh JI; Brazilian Research in Intensive Care Network (BRICNet). Characteristics and outcomes of patients with cancer requiring admission to intensive care units: a prospective multicenter study. Crit Care Med. 2010;38(1):9-15.
  • 10
    Barreto LM, Torga JP, Coelho SV, Nobre V. Principais características observadas em pacientes com doenças hematológicas admitidos em unidade de terapia intensiva de um hospital universitário. Rev Bras Ter Intensiva. 2015;27(3):212-9.
  • 11
    Mokart D, Lambert J, Schnell D, Fouché L, Rabbat A, Kouatchet A, et al. Delayed intensive care unit admission is associated with increased mortality in patients with cancer with acute respiratory failure. Leuk Lymphoma. 2013;54(8):1724-9.
  • 12
    Soares M, Salluh JI, Sullah JI. Advanced supportive care for patients with cancer in Latin America. Lancet Oncol. 2013;14(9):e337. Erratum in: Lancet Oncol. 2013;14(12):e493. Sullah, Jorge I F [corrected to Salluh, Jorge I F].
  • 13
    Azoulay E, Attalah H, Harf A, Schlemmer B, Delclaux C. Granulocyte colony-stimulating factor or neutrophil-induced pulmonary toxicity: myth or reality? Systematic review of clinical case reports and experimental data. Chest. 2001;120(5):1695-701.
  • 14
    Depuydt PO, Benoit DD, Roosens CD, Offner FC, Noens LA, Decruyenaere JM. The impact of the initial ventilatory strategy on survival in hematological patients with acute hypoxemic respiratory failure. J Crit Care. 2010;25(1):30-6.
  • 15
    Adda M, Coquet I, Darmon M, Thiery G, Schlemmer B, Azoulay E. Predictors of noninvasive ventilation failure in patients with hematologic malignancy and acute respiratory failure. Crit Care Med. 2008;36(10):2766-72.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Set 2015
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