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PIRO na estratificação da sepse: realidade ou miragem?

O que é estratificação?

Um sistema de estadiamento tem como objetivo estratificar um determinado doente com uma determinada afecção relativamente ao risco de eventos adversos; avaliar o potencial de resposta a um determinado tratamento; e monitorizar a resposta. Esses sistemas de estadiamento são amplamente usados, sendo o mais conhecido o Classification of Malignant Tumours (TNM).(1Hermanek P, Sobin LH, Wittekind C. How to improve the present TNM staging system. Cancer. 1999;86(11):2189-91.) Em oncologia, o estadiamento de uma neoplasia constitui passo essencial no processo de tomada de decisão clínica, uma vez que é fundamental na avaliação do prognóstico e na escolha da abordagem terapêutica mais adequada.(1Hermanek P, Sobin LH, Wittekind C. How to improve the present TNM staging system. Cancer. 1999;86(11):2189-91.)

Os conceitos de infecção, síndrome da resposta inflamatória sistêmica (SRIS), sepse, sepse grave e choque séptico, definidos na Conferência de Consenso da American College of Chest Physicians/Society of Critical Care Medicine (ACCP/SCCM), foram a primeira tentativa de estratificação da sepse.(2Bone RC, Balk RA, Cerra FB, Dellinger RP, Fein AM, Knaus WA, et al. Definitions for sepsis and organ failure and guidelines for the use of innovative therapies in sepsis. The ACCP/SCCM Consensus Conference Committee. American College of Chest Physicians/Society of Critical Care Medicine. Chest. 1992;101(6):1644-55. Review.) Cedo, percebeu-se que a mortalidade dos doentes sépticos é tanto maior quanto maior o número de critérios de SRIS presentes, bem como a presença de falência orgânica (sepse grave) e, em particular, choque séptico, ultrapassando os 50% nos estudos originais.(3Rangel-Frausto MS, Pittet D, Costigan M, Hwang T, Davis CS, Wenzel RP. (1995). The natural history of the systemic inflammatory response syndrome (SIRS). A prospective study. JAMA. 1995;273(2):117-23.)

Segunda conferência de consenso e o conceito PIRO

Dado que os resultados obtidos das definições da conferência de consenso realizada em 1991 de algum modo ficaram aquém das expectativas(4Bone RC. Why sepsis trials fail. JAMA. 1996;276(7):565-6.) e que, além disso, quase uma década se passou, a Society of Critical Care Medicine, a European Society of Intensive Care Medicine, o American College of Chest Physicians, a American Thoracic Society e a Surgical Infection Society realizaram uma segunda conferência de consenso.(5Levy MM, Fink MP, Marshall JC, Abraham E, Angus D, Cook D, Cohen J, Opal SM, Vincent JL, Ramsay G; SCCM/ESICM/ACCP/ATS/SIS. 2001 SCCM/ESICM/ACCP/ATS/SIS International Sepsis Definitions Conference. Crit Care Med. 2003;31(4):1250-6. Review. ) Foi considerado que os conceitos de sepse, sepse grave e choque séptico eram úteis, bem como o conceito de SRIS, apesar de o mesmo ser muito sensível e pouco específico. Infecção continuou a ser definida da mesma forma. Sepse continuou a ser uma síndrome clínica caracterizada por uma infecção e por uma resposta inflamatória sistêmica (e, consequentemente, a sepse sem documentação microbiológica só pode ser fortemente presumida). Esses conceitos são muito semelhantes aos anteriormente definidos nos trabalhos originais de Bone et al.(2Bone RC, Balk RA, Cerra FB, Dellinger RP, Fein AM, Knaus WA, et al. Definitions for sepsis and organ failure and guidelines for the use of innovative therapies in sepsis. The ACCP/SCCM Consensus Conference Committee. American College of Chest Physicians/Society of Critical Care Medicine. Chest. 1992;101(6):1644-55. Review.) Foi ainda reconhecido que tais conceitos e definições não permitiam realizar um estadiamento e nem uma estratificação do risco do doente séptico.(5Levy MM, Fink MP, Marshall JC, Abraham E, Angus D, Cook D, Cohen J, Opal SM, Vincent JL, Ramsay G; SCCM/ESICM/ACCP/ATS/SIS. 2001 SCCM/ESICM/ACCP/ATS/SIS International Sepsis Definitions Conference. Crit Care Med. 2003;31(4):1250-6. Review. ) Por este motivo, a lista de sinais e sintomas associados à sepse foi muito alargada, para poder refletir, de uma forma mais adequada, a resposta clínica do hospedeiro à infecção.(5Levy MM, Fink MP, Marshall JC, Abraham E, Angus D, Cook D, Cohen J, Opal SM, Vincent JL, Ramsay G; SCCM/ESICM/ACCP/ATS/SIS. 2001 SCCM/ESICM/ACCP/ATS/SIS International Sepsis Definitions Conference. Crit Care Med. 2003;31(4):1250-6. Review. )

Por último, essa conferência de consenso, à semelhança do modelo TNM, propôs um modelo hipotético de estratificação da sepse designado como “PIRO” (acrônimo do inglês Predisposition, Insult, deleterious Response and Organ failure), que potencialmente descreveria melhor a síndrome séptica. Esta classificação seria caracterizada pela descrição de quatro variáveis: P de predisposição, na qual estariam todos os fatores predisponentes, comorbilidades e fatores genéticos existentes antes da instalação do quadro séptico; I de insulto ou infecção, que descreveria a infecção propriamente dita, o agente e sua virulência, o padrão de sensibilidade, a localização e a compartimentação da infecção; R de resposta, que descreveria o tipo de resposta do hospedeiro, nomeadamente a resposta inflamatória e a resposta de fase aguda; O de disfunção de órgão, no qual se descreveriam o número e a gravidade da disfunção orgânica associada.

Esse conceito PIRO foi um desenvolvimento a partir de outro, o IRO, apresentado pela primeira vez em 2000, por John Marshall.(6Marshall JC, Vincent JL, Fink MP, Cook DJ, Rubenfeld G, Foster D, et al. Measures, markers, and mediators: toward a staging system for clinical sepsis. A report of the Fifth Toronto Sepsis Roundtable, Toronto, Ontario, Canada, October 25-26, 2000. Crit Care Med. 2003;31(5):1560-7.) Para além de se fazer uma estratifi cação baseada na infecção (I), resposta do hospedeiro (R) e falência orgânica (R) presentes, idealmente se pretendia poder fazer um tratamento individualizado. Com essa classificação conceitual, os doentes eram divididos em quatro estádios. A título de exemplo, no estádio I (presença de infecção com uma resposta sistêmica ausente ou mínima, e sem falência orgânica - I1R0O0), estariam os doentes apropriados para o estudo de um novo antimicrobiano. Já no estádio IV (presença de resposta e disfunção orgânica grave - IxR3O2), estariam aqueles a serem incluídos em estudo de terapêuticas de resgate, como a plasmaferese ou imunoglobulina.

PIRO e aplicabilidade na prática clínica

Apesar de a construção do conceito ser atraente, do ponto de vista teórico, a verdade é que está longe de ter aplicabilidade real na prática clínica. Tendo sido tentado por diversos autores,(7Moreno RP, Metnitz B, Adler L, Hoechtl A, Bauer P, Metnitz PG; SAPS 3 Investigators. Sepsis mortality prediction based on predisposition, infection and response. Intensive Care Med. 2008;34(3):496-504.

Rubulotta F, Marshall JC, Ramsay G, Nelson D, Levy M, Williams M. Predisposition, insult/infection, response, and organ dysfunction: A new model for staging severe sepsis. Crit Care Med. 2009;37(4):1329-35.

Howell MD, Talmor D, Schuetz P, Hunziker S, Jones AE, Shapiro NI. Proof of principle: the predisposition, infection, response, organ failure sepsis staging system. Crit Care Med. 2011;39(2):322-7.

10 Rello J, Rodriguez A, Lisboa T, Gallego M, Lujan M, Wunderink R. PIRO score for community-acquired pneumonia: a new prediction rule for assessment of severity in intensive care unit patients with community-acquired pneumonia. Crit Care Med. 2009;37(2):456-62.
-1111 Lisboa T, Diaz E, Sa-Borges M, Socias A, Sole-Violan J, Rodríguez A, et al. The ventilator-associated pneumonia PIRO score: a tool for predicting ICU mortality and health-care resources use in ventilator-associated pneumonia. Chest. 2008;134(6):1208-16.) a introdução do conceito PIRO para a prática clínica não se revelou fácil por inúmeras razões, desde as próprias limitações dos estudos realizados: inclusão de doentes com um único diagnóstico (pneumonia adquirida na comunidade(1010 Rello J, Rodriguez A, Lisboa T, Gallego M, Lujan M, Wunderink R. PIRO score for community-acquired pneumonia: a new prediction rule for assessment of severity in intensive care unit patients with community-acquired pneumonia. Crit Care Med. 2009;37(2):456-62.)ou associada a ventilador);(1111 Lisboa T, Diaz E, Sa-Borges M, Socias A, Sole-Violan J, Rodríguez A, et al. The ventilator-associated pneumonia PIRO score: a tool for predicting ICU mortality and health-care resources use in ventilator-associated pneumonia. Chest. 2008;134(6):1208-16.) com base em análises secundárias provenientes de grupos de doentes incluídos em outros estudos, cujos objetivos eram diferentes;(7Moreno RP, Metnitz B, Adler L, Hoechtl A, Bauer P, Metnitz PG; SAPS 3 Investigators. Sepsis mortality prediction based on predisposition, infection and response. Intensive Care Med. 2008;34(3):496-504.,8Rubulotta F, Marshall JC, Ramsay G, Nelson D, Levy M, Williams M. Predisposition, insult/infection, response, and organ dysfunction: A new model for staging severe sepsis. Crit Care Med. 2009;37(4):1329-35.) inclusão de doentes cujo diagnóstico de sepse foi baseado em “suspeição”, abrindo a possibilidade de inclusão de doentes sem sepse.(9Howell MD, Talmor D, Schuetz P, Hunziker S, Jones AE, Shapiro NI. Proof of principle: the predisposition, infection, response, organ failure sepsis staging system. Crit Care Med. 2011;39(2):322-7.)

Abordagem dinâmica do conceito PIRO

Granja et al.(1212 Granja C, Póvoa P, Lobo C, Teixeira-Pinto A, Carneiro A, Costa-Pereira A. The predisposition, infection, response and organ failure (Piro) sepsis classification system: results of hospital mortality using a novel concept and methodological approach. PLoS One. 2013;8(1):e53885.)publicaram uma tentativa de abordagem metodológica original, fazendo um paralelo entre aquilo que é a evolução clínica dinâmica da sepse e a criação de um modelo metodológico dinâmico para o PIRO: em vez de estudar um valor estático para cada uma das variáveis em cada componente PIRO, os autores estudaram a variação (delta) das variáveis do componente I e R, com uma técnica descrita anteriormente para documentar a variação da proteína C-reactiva, e como o estudo da inclinação (slope) dessa curva poderia adquirir capacidade prognóstica.(1313 Póvoa P, Teixeira-Pinto AM, Carneiro AH; Portuguese Community-Acquired Sepsis Study Group SACiUCI. C-reactive protein, an early marker of community-acquired sepsis resolution: a multi-center prospective observational study. Crit Care. 2011;15(4):R169.) O desempenho global do nosso modelo apresentou uma área sob a curva ROC (AUC-ROC, sigla do inglês area under the ROCcurve) de 0,84 - valor idêntico ou até superior ao dos estudos citados anteriormente. Esse modelo assim desenvolvido aproximou-se mais do conceito inicial da necessidade de estratificação dos doentes com sepse, na tentativa de possibilitar estadiar os doentes de acordo com sua gravidade, e logo estimar o prognóstico e encontrar a terapêutica mais adequada, de forma dinâmica. Ou seja, acompanhando a evolução da sepse ao longo dos primeiros 5 dias, em oposição a uma abordagem clássica, na qualsão apenas introduzidos os valores iniciais ou das primeiras 24 horas, traduzindo uma avaliação menos próxima da realidade clínica.

Esse estudo cursou com diversas limitações, quais sejam: exclusão de sepse nosocomial; inclusão de apenas um biomarcador (proteina C-reactiva) e, por consequência, exclusão de outros biomarcadores ou paineis de biomarcadores (procalcitonina e citoquinas); ausência de documentação microbiológica em cerca de 40% dos doentes; e não inclusão de todo o lequede gravidade da doença neoplásica, já que incluiu apenas a doença metastática na definição de neoplasia.

Apesar das limitações apontadas, a abordagem dinâmica do conceito PIRO é atraente, do ponto de vista clínico, e aplicável à cabeceira do doente, tal como os autores o demonstraram. Para ser implementado na prática clínica e se fazer valer, esses resultados necessitam, agora, ser validados e testados em outros ambientes e em outras coortes.

  • Editor responsável: Jorge Ibrain Figueira Salluh

REFERÊNCIAS

  • 1
    Hermanek P, Sobin LH, Wittekind C. How to improve the present TNM staging system. Cancer. 1999;86(11):2189-91.
  • 2
    Bone RC, Balk RA, Cerra FB, Dellinger RP, Fein AM, Knaus WA, et al. Definitions for sepsis and organ failure and guidelines for the use of innovative therapies in sepsis. The ACCP/SCCM Consensus Conference Committee. American College of Chest Physicians/Society of Critical Care Medicine. Chest. 1992;101(6):1644-55. Review.
  • 3
    Rangel-Frausto MS, Pittet D, Costigan M, Hwang T, Davis CS, Wenzel RP. (1995). The natural history of the systemic inflammatory response syndrome (SIRS). A prospective study. JAMA. 1995;273(2):117-23.
  • 4
    Bone RC. Why sepsis trials fail. JAMA. 1996;276(7):565-6.
  • 5
    Levy MM, Fink MP, Marshall JC, Abraham E, Angus D, Cook D, Cohen J, Opal SM, Vincent JL, Ramsay G; SCCM/ESICM/ACCP/ATS/SIS. 2001 SCCM/ESICM/ACCP/ATS/SIS International Sepsis Definitions Conference. Crit Care Med. 2003;31(4):1250-6. Review.
  • 6
    Marshall JC, Vincent JL, Fink MP, Cook DJ, Rubenfeld G, Foster D, et al. Measures, markers, and mediators: toward a staging system for clinical sepsis. A report of the Fifth Toronto Sepsis Roundtable, Toronto, Ontario, Canada, October 25-26, 2000. Crit Care Med. 2003;31(5):1560-7.
  • 7
    Moreno RP, Metnitz B, Adler L, Hoechtl A, Bauer P, Metnitz PG; SAPS 3 Investigators. Sepsis mortality prediction based on predisposition, infection and response. Intensive Care Med. 2008;34(3):496-504.
  • 8
    Rubulotta F, Marshall JC, Ramsay G, Nelson D, Levy M, Williams M. Predisposition, insult/infection, response, and organ dysfunction: A new model for staging severe sepsis. Crit Care Med. 2009;37(4):1329-35.
  • 9
    Howell MD, Talmor D, Schuetz P, Hunziker S, Jones AE, Shapiro NI. Proof of principle: the predisposition, infection, response, organ failure sepsis staging system. Crit Care Med. 2011;39(2):322-7.
  • 10
    Rello J, Rodriguez A, Lisboa T, Gallego M, Lujan M, Wunderink R. PIRO score for community-acquired pneumonia: a new prediction rule for assessment of severity in intensive care unit patients with community-acquired pneumonia. Crit Care Med. 2009;37(2):456-62.
  • 11
    Lisboa T, Diaz E, Sa-Borges M, Socias A, Sole-Violan J, Rodríguez A, et al. The ventilator-associated pneumonia PIRO score: a tool for predicting ICU mortality and health-care resources use in ventilator-associated pneumonia. Chest. 2008;134(6):1208-16.
  • 12
    Granja C, Póvoa P, Lobo C, Teixeira-Pinto A, Carneiro A, Costa-Pereira A. The predisposition, infection, response and organ failure (Piro) sepsis classification system: results of hospital mortality using a novel concept and methodological approach. PLoS One. 2013;8(1):e53885.
  • 13
    Póvoa P, Teixeira-Pinto AM, Carneiro AH; Portuguese Community-Acquired Sepsis Study Group SACiUCI. C-reactive protein, an early marker of community-acquired sepsis resolution: a multi-center prospective observational study. Crit Care. 2011;15(4):R169.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Set 2015
  • Data do Fascículo
    Jul-Sep 2015

Histórico

  • Recebido
    16 Jul 2015
  • Aceito
    20 Jul 2015
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