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Intensivistas brasileiros: estafados, porém (ainda) satisfeitos com a escolha?

A síndrome de esgotamento tornou-se notória desde que o termo foi cunhado por Freudenberger, em 1974.(11 Freudenberger HJ. Staff burn-out. J Soc Issues. 1974;30(1):159-65.) É espantoso que a primeira descrição sistematizada do esgotamento físico ou mental relacionado ao trabalho tenha surgido mais de dois séculos após a contextualização moderna de trabalho.(22 Dupré J, Gagnier R. A brief history of work. J Econ Issues. 1996;30(2):553-9.) É ainda mais assombroso que mais de 40 anos se passaram sem que a real implicação da síndrome sobre a dinâmica de trabalho no cuidado à saúde e sobre os resultados na assistência ao paciente tenha sido estimada. A despeito de um expressivo incremento no número de trabalhos sobre o assunto publicados nos últimos 5 anos (Figura 1), a quantidade ainda é ínfima, perto de outras doenças relacionadas ao trabalho (não ultrapassando cerca de 70 artigos dedicados ao ano).

Figura 1
Número de artigos publicados por ano indexados até final de julho de 2016 que incluíam o termo "burnout" no título ou no resumo. Apesar do incremento nos últimos 5 anos, o número de artigos sobre o tema ainda é surpreendentemente pequeno.

Na presente edição da Revista Brasileira de Terapia Intensiva, Tironi et al.(33 Tironi MO, Teles JM, Barros DS, Vieira DF, Silva Filho CM, Martins Junior DF, et al. Prevalência de síndrome de burnout em médicos intensivistas de cinco capitais brasileiras. Rev Bras Ter Intensiva. 2016;28(3):xxx-xx.) reportam os resultados de um questionário sistematizado respondido por 180 médicos intensivistas brasileiros locados em 5 capitais. Foi avaliada a prevalência de sintomas de exaustão emocional, despersonalização e ineficácia por meio do uso de questionário sistematizado, previamente validado. Os autores tiveram o cuidado de tentar tornar sua amostra representativa do panorama nacional por meio do sorteio de 60 unidades de terapia intensiva em grandes capitais brasileiras; entretanto, a taxa de retorno dos questionários foi muito aquém do esperado (apesar da mencionada recusa de participação de alguns centros). Assim, antes de interpretarmos os resultados do estudo, devemos ressaltar que estes se referem a profissionais dispostos a preencherem o questionário em unidades que anuíram participar do estudo. Desta maneira, é concebível que, caso a amostra fosse ampliada, os resultados fossem mais alarmantes do que os encontrados. Os autores encontraram prevalência de burnout acima de 60%, considerando-se burnout a presença de pelo menos um dos domínios envolvidos.

Os resultados de Tironi(33 Tironi MO, Teles JM, Barros DS, Vieira DF, Silva Filho CM, Martins Junior DF, et al. Prevalência de síndrome de burnout em médicos intensivistas de cinco capitais brasileiras. Rev Bras Ter Intensiva. 2016;28(3):xxx-xx.) devem ser interpretados diante de outras iniciativas internacionais e em conjunção com os dados de satisfação profissional e pessoal entre intensivistas, publicados por Nassar, também na Revista Brasileira de Terapia Intensiva.(44 Nassar Junior AP, Azevedo LC. Fatores associados à satisfação profissional e pessoal em intensivistas adultos brasileiros. Rev Bras Ter Intensiva. 2010;28(2):107-13.) O intensivista brasileiro é jovem, frequentemente bem remunerado, porém sujeito à carga horária semanal elevada. Assim como os demais médicos em outras partes do mundo, a exaustão emocional é o aspecto mais frequentemente reportado dentro os componentes da síndrome de burnout.(55 Lee RT, Seo B, Hladkyj S, Lovell BL, Schwartzmann L. Correlates of physician burnout across regions and specialties: a meta-analysis. Hum Resour Health. 2013;11:48.) Entretanto, o intensivista brasileiro parece padecer de burnout mais frequentemente do que seus colegas portugueses.(66 Teixeira C, Ribeiro O, Fonseca AM, Carvalho AS. Burnout in intensive care units - a consideration of the possible prevalence and frequency of new risk factors: a descriptive correlational multicentre study. BMC Anesthesiol. 2013;13(1):38.)

Sabemos pouco sobre as consequências do burnout. A relação direta entre burnout e pior desempenho assistencial, embora plausível, carece de demonstração prática. Alguns dados sugerem que a satisfação do paciente é menor quando o médico assistente possui burnout, porém, a ligação entre a presença da síndrome e os piores desfechos ainda precisa ser claramente demonstrada.(77 Scheepers RA, Boerebach BC, Arah OA, Heineman MJ, Lombarts KM. A systematic review of the impact of physicians' occupational well-being on the quality of patient care. Int J Behav Med. 2015;22(6):683-98.) Há, entretanto, evidências indiretas. Médicos emergencistas com burnout reportam exercer cuidado subótimo em um maior número de ocasiões.(88 Lu DW, Dresden S, McCloskey C, Branzetti J, Gisondi MA. Impact of Burnout on self-reported patient care among emergency physicians. West J Emerg Med. 2015;16(7):996-1001.) Em um trabalho importante, Welp et al. demonstraram que a exaustão emocional em médicos intensivistas e enfermeiros influenciavam negativamente no cuidado transdisciplinar e a cultura de segurança do ambiente de terapia intensiva, ressaltando a importância de se realizar vigilância, reconhecimento e tratamento da síndrome de burnout.(99 Welp A, Meier LL, Manser T. The interplay between teamwork, clinicians' emotional exhaustion, and clinician-rated patient safety: a longitudinal study. Crit Care. 2016;20(1):110.)

Há uma escassez de médicos intensivistas no país e no mundo.(1010 Courtright KR, Kerlin MP. Intensive care unit staffing and quality of care: challenges in times of an intensivist shortage. Rev Bras Ter intensiva. 2014;26(3):205-7.) Além das consequências assistenciais diretas, a alta prevalência de burnout em intensivistas pode gerar a migração de profissionais da terapia intensiva para outras áreas de atuação, especialmente em um contexto em que muitos médicos exercem outras especialidades em paralelo com a medicina intensiva, como o brasileiro.(44 Nassar Junior AP, Azevedo LC. Fatores associados à satisfação profissional e pessoal em intensivistas adultos brasileiros. Rev Bras Ter Intensiva. 2010;28(2):107-13.) Em um questionário envolvendo profissionais de saúde envolvidos com o cuidado de pacientes oncológicos e que observou taxas de exaustão emocional semelhantes ao trabalho de Tironi(33 Tironi MO, Teles JM, Barros DS, Vieira DF, Silva Filho CM, Martins Junior DF, et al. Prevalência de síndrome de burnout em médicos intensivistas de cinco capitais brasileiras. Rev Bras Ter Intensiva. 2016;28(3):xxx-xx.) (53,3% versus 50,6%), aproximadamente um terço dos respondedores referiu intenção de buscar área de atuação distinta.(1111 Grunfeld E, Whelan TJ, Zitzelsberger L, Willan AR, Montesanto B, Evans WK. Cancer care workers in Ontario: prevalence of burnout, job stress and job satisfaction. CMAJ. 2000;163(2):166-9.) É incerto se há associação entre burnout e tendência a mudar de área de atuação dentro os intensivistas brasileiros, visto que níveis razoáveis de satisfação com sua escolha profissional foram reportados.(44 Nassar Junior AP, Azevedo LC. Fatores associados à satisfação profissional e pessoal em intensivistas adultos brasileiros. Rev Bras Ter Intensiva. 2010;28(2):107-13.) O cenário, entretanto, não parece animador. Conforme reportado por Tironi,(33 Tironi MO, Teles JM, Barros DS, Vieira DF, Silva Filho CM, Martins Junior DF, et al. Prevalência de síndrome de burnout em médicos intensivistas de cinco capitais brasileiras. Rev Bras Ter Intensiva. 2016;28(3):xxx-xx.) a carga burocrática e a falta de tempo em lidar com necessidades emocionais do paciente, juntamente da imprescindibilidade de se defrontar conflitos familiares, são queixas frequentes do intensivista brasileiro. Como a primeira é incapaz de aferir o valor da segunda e ambas se relacionam com a terceira, cria-se um sistema no qual o usuário, ao invés de empoderado, fica à deriva.(1212 Cowden S, Singh G. The "User": Friend, foe or fetish?: A critical exploration of user involvement in health and social care. Crit Soc Policy. 2007;27(1):5-23.) Ressalve-se aqui que me refiro à burocracia disfuncional, como descrita por Merton, e não à protocolização de aspectos essenciais de cuidado que visam desafogar o médico e melhorar desfechos.(1313 Soares M, Bozza FA, Angus DC, Japiassú AM, Viana WN, Costa R, et al. Organizational characteristics, outcomes, and resource use in 78 Brazilian intensive care units: the ORCHESTRA study. Intensive Care Med. 2015;41(12):2149-60.) Os próximos anos dirão se a satisfação do intensivista brasileiro com sua profissão persistirá ou se o burnout prevalecerá.

REFERÊNCIAS

  • 1
    Freudenberger HJ. Staff burn-out. J Soc Issues. 1974;30(1):159-65.
  • 2
    Dupré J, Gagnier R. A brief history of work. J Econ Issues. 1996;30(2):553-9.
  • 3
    Tironi MO, Teles JM, Barros DS, Vieira DF, Silva Filho CM, Martins Junior DF, et al. Prevalência de síndrome de burnout em médicos intensivistas de cinco capitais brasileiras. Rev Bras Ter Intensiva. 2016;28(3):xxx-xx.
  • 4
    Nassar Junior AP, Azevedo LC. Fatores associados à satisfação profissional e pessoal em intensivistas adultos brasileiros. Rev Bras Ter Intensiva. 2010;28(2):107-13.
  • 5
    Lee RT, Seo B, Hladkyj S, Lovell BL, Schwartzmann L. Correlates of physician burnout across regions and specialties: a meta-analysis. Hum Resour Health. 2013;11:48.
  • 6
    Teixeira C, Ribeiro O, Fonseca AM, Carvalho AS. Burnout in intensive care units - a consideration of the possible prevalence and frequency of new risk factors: a descriptive correlational multicentre study. BMC Anesthesiol. 2013;13(1):38.
  • 7
    Scheepers RA, Boerebach BC, Arah OA, Heineman MJ, Lombarts KM. A systematic review of the impact of physicians' occupational well-being on the quality of patient care. Int J Behav Med. 2015;22(6):683-98.
  • 8
    Lu DW, Dresden S, McCloskey C, Branzetti J, Gisondi MA. Impact of Burnout on self-reported patient care among emergency physicians. West J Emerg Med. 2015;16(7):996-1001.
  • 9
    Welp A, Meier LL, Manser T. The interplay between teamwork, clinicians' emotional exhaustion, and clinician-rated patient safety: a longitudinal study. Crit Care. 2016;20(1):110.
  • 10
    Courtright KR, Kerlin MP. Intensive care unit staffing and quality of care: challenges in times of an intensivist shortage. Rev Bras Ter intensiva. 2014;26(3):205-7.
  • 11
    Grunfeld E, Whelan TJ, Zitzelsberger L, Willan AR, Montesanto B, Evans WK. Cancer care workers in Ontario: prevalence of burnout, job stress and job satisfaction. CMAJ. 2000;163(2):166-9.
  • 12
    Cowden S, Singh G. The "User": Friend, foe or fetish?: A critical exploration of user involvement in health and social care. Crit Soc Policy. 2007;27(1):5-23.
  • 13
    Soares M, Bozza FA, Angus DC, Japiassú AM, Viana WN, Costa R, et al. Organizational characteristics, outcomes, and resource use in 78 Brazilian intensive care units: the ORCHESTRA study. Intensive Care Med. 2015;41(12):2149-60.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Sep 2016
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