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Os diferentes delineamentos de pesquisa e suas particularidades na terapia intensiva

RESUMO

Os diferentes delineamentos de pesquisa apresentam diversas vantagens e limitações, inerentes às suas características principais. O conhecimento sobre o emprego adequado de cada um deles é de grande importância na aplicabilidade da epidemiologia clínica.

Em terapia intensiva, uma classificação hierárquica dos delineamentos, sem compreender suas peculiaridades neste contexto, pode muitas vezes ser errônea, devendo-se atentar para problemas corriqueiros em ensaios clínicos randomizados e em revisões sistemáticas/metanálises, que abordem questões clínicas referentes a cuidados de pacientes gravemente enfermos.

Descritores:
Delineamentos de pesquisa; Ensaio clínico randomizado; Revisão sistemática; Metanálise; Estudos de coorte

ABSTRACT

Different research designs have various advantages and limitations inherent to their main characteristics. Knowledge of the proper use of each design is of great importance to understanding the applicability of research findings to clinical epidemiology.

In intensive care, a hierarchical classification of designs can often be misleading if the characteristics of the design in this context are not understood. One must therefore be alert to common problems in randomized clinical trials and systematic reviews/meta-analyses that address clinical issues related to the care of the critically ill patient.

Keywords:
Research designs; Randomized clinical trial; Systematic review; Meta-analysis; Cohort studies

INTRODUÇÃO

A epidemiologia contribui com o desenvolvimento de diferentes metodologias de pesquisa, com a finalidade de responder a perguntas clínicas. O conhecimento adequado desses delineamentos de pesquisa é fundamental no planejamento de uma pesquisa, e também na leitura e na interpretação dos estudos, para as quais recomendamos revisões recentes sobre o assunto.(11 Berwanger O, Suzumura EA, Buehler AM, Oliveira JB. Como avaliar criticamente revisões sistemáticas e metanálises? Rev Bras Ter Intensiva. 2007;19(4):475-80.

2 Suzumura EA, Oliveira JB, Buehler AM, Carballo M, Berwanger O. Como avaliar criticamente estudos de coorte em terapia intensiva? Rev Bras Ter Intensiva. 2008;20(1):93-8.
-33 Buehler AM, Cavalcanti AB, Suzumura EA, Carballo MT, Berwanger O. Como avaliar criticamente um ensaio clinico de alocação aleatória em terapia intensiva. Rev Bras Ter Intensiva. 2009;21(2):219-25.)

O nosso objetivo foi fornecer ferramentas básicas de identificação dos diferentes delineamentos, com as peculiaridades inerentes ao contexto da terapia intensiva.

ESTUDOS EXPERIMENTAIS

Caracterizam-se pela manipulação artificial da intervenção por parte do pesquisador, administrando-se uma intervenção e observando-se seu efeito sobre o desfecho. Dividem-se em:

Ensaio clínico randomizado (ECR) - Estudo intervencionista e prospectivo. Os participantes devem ter a mesma oportunidade de receber, ou não, a intervenção proposta e esses grupos devem ser os mais parecidos possíveis, de forma que a única diferença entre eles seja a intervenção em si, podendo-se, assim, avaliar o impacto na ocorrência do desfecho em um grupo sobre o outro. É o padrão de excelência em estudos que pretendem avaliar o efeito de uma intervenção no curso de uma situação clínica. Permite eliminar diversos vieses, pois os grupos intervenção e controle são alocados usando técnicas aleatórias, e as características são distribuídas de um modo semelhante entre os grupos.(33 Buehler AM, Cavalcanti AB, Suzumura EA, Carballo MT, Berwanger O. Como avaliar criticamente um ensaio clinico de alocação aleatória em terapia intensiva. Rev Bras Ter Intensiva. 2009;21(2):219-25.,44 Portela MC, Pronovost PJ, Woodcock T, Carter P, Dixon-Woods M. How to study improvement interventions: a brief overview of possible study types. BMJ Qual Saf. 2015;24(5):325-36. Review.)

Os critérios de elegibilidade para o estudo podem ser numerosos, quando se quer reduzir o estudo a uma situação específica, ou simplificados, quando se quer aproximar mais o estudo da prática clínica. Os critérios são planejados para aumentar a homogeneidade entre os pacientes, fortalecendo a validade interna do estudo. O grupo de tratamento pode ser comparado com um ou mais grupos controles, sendo em paralelo quando há o acompanhamento em paralelo dos grupos ou cruzado quando os indivíduos são randomizados para grupos intervenção e controle e, após aferir o desfecho clínico, inverte-se a sequência. Logo, o mesmo grupo recebe a intervenção e o tratamento controle, e vice-versa, em tempos diferentes.

Participantes alocados para os grupos intervenção e controle, ao desconhecerem o que estão recebendo, são definidos como "cegados" para o tipo de intervenção. Do mesmo modo, o investigador que administra, acompanha ou avalia a intervenção pode desconhecer o que o paciente está recebendo. Estando pacientes e investigadores cegados para a intervenção, o ECR é duplo-cego. Algumas vezes, especialmente no ambiente da terapia intensiva, investigadores ou a equipe assistente não podem ser cegados e, neste caso, o pesquisador que afere o desfecho clínico deve ser "mascarado" sobre o grupo de alocação do participante (ensaio unicego).

Ensaio clínico não randomizado (quase experimental) - Neste tipo de estudo há um grupo intervenção e um grupo controle, mas a designação dos participantes para cada grupo não se dá de forma aleatória, como no ECR, mas conveniência do pesquisador.(55 Thiese MS. Observational and interventional study design types; an overview. Biochem Med (Zagreb). 2014;24(2):199-210. Review.) Os controles podem ser contemporâneos (pacientes tratados ao mesmo tempo) ou históricos (obtidos de registros médicos). Os estudos de antes e depois são uma modalidade de ECR não randomizado. Este delineamento não consegue controlar outros fatores que podem ter ocorrido concomitantes à intervenção implantada, e que podem ter contribuído para a mudança no desfecho.(55 Thiese MS. Observational and interventional study design types; an overview. Biochem Med (Zagreb). 2014;24(2):199-210. Review.,66 Elmer J, Kahn J. Implementing evidence-based practice in the neuroscience intensive care unit. Crit Care. 2014;18(2):303.)

ESTUDOS DE PREVALÊNCIA (TRANSVERSAIS)

As mensurações dos fatores de risco e dos desfechos analisados ocorrem em um mesmo momento, concomitantemente, não podendo inferir no que veio primeiro (exposição ou desfecho).

SÉRIE DE CASOS

Relato da presença de determinado desfecho em um grupo de pacientes, não tendo um grupo de comparação, útil em gerar hipóteses, a serem testadas em estudos posteriores.

CASO-CONTROLE

Observacional, longitudinal e retrospectivo. Seleciona-se uma população com determinado desfecho de interesse (casos) e outra, semelhante ao primeiro grupo, sem o desfecho de interesse (controles). Comparando-se os dois grupos, avaliam-se os fatores que poderiam estar relacionados à ocorrência do desfecho pesquisado.

ESTUDOS DE COORTE

Observacional longitudinal, prospectivo ou retrospectivo. Selecionam-se populações exposta e não exposta a determinado fator, fazendo seu acompanhamento por um determinado período de tempo, ao final do qual deve ser analisado o efeito do fator de exposição no aparecimento do desfecho.(77 Carson SS. Outcomes research: methods and implications. Semin Respir Crit Care Med. 2010;31(1):3-12. Review.) Têm diversas finalidades, como avaliar fatores de risco para determinada doença, mensurar o impacto de fatores prognósticos, ou em intervenções diagnósticas e terapêuticas.

REVISÃO SISTEMÁTICA COM METANÁLISE

O objeto de análise deixa de ser os pacientes e passa a ser as pesquisas já realizadas anteriormente sobre determinado objeto de pesquisa. Os trabalhos originais publicados na literatura são revisados e selecionados de maneira sistemática, e os resultados deles podem ser sumarizados sob um único parâmetro de magnitude de efeito (a metanálise).(11 Berwanger O, Suzumura EA, Buehler AM, Oliveira JB. Como avaliar criticamente revisões sistemáticas e metanálises? Rev Bras Ter Intensiva. 2007;19(4):475-80.,88 Nordmann AJ, Kasenda B, Briel M. Meta-analyses: what they can and cannot do. Swiss Med Wkly. 2012;142:w13518.) Idealmente, deve reunir toda a evidência existente referente a um assunto, e a busca de artigos deve ocorrer em mais de um banco de dados.

QUAL O MELHOR DELINEAMENTO DE PESQUISA EM TERAPIA INTENSIVA?

O ECR é definido como a "pedra angular" da pesquisa clínica, quando analisado pelo espectro da medicina baseada em evidências (MBE). Diante disso, a classificação hierárquica dos delineamentos, a partir dos princípios da MBE, determina que os ECR e as metanálises derivadas de ECR compreendem a ponta da pirâmide, correspondendo a melhor qualidade metodológica possível para a resposta a uma questão clínica (Figura 1), uma vez que o ECR é, potencialmente, menos suscetível a vieses quando comparado aos estudos observacionais.(99 Goulart BH, Ramsey SD, Parvathaneni U. Observational study designs for comparative effectiveness research: an alternative approach to close evidence gaps in head-and-neck cancer. Int J Radiat Oncol Biol Phys. 2014;88(1):106-14.) Entretanto, no contexto da terapia intensiva, muitas vezes tal hierarquia é questionada, inclusive com a sugestão de abandono dos ECR neste cenário,(1010 Vincent JL. We should abandon randomized controlled trials in the intensive care unit. Crit Care Med. 2010;38(10 Suppl):S534-8.) sendo importante atentar para o fato de que os diferentes delineamentos possuem suas vantagens e suas limitações, e que o desenho de estudo empregado depende basicamente da questão de pesquisa a ser respondida (Quadro 1).(99 Goulart BH, Ramsey SD, Parvathaneni U. Observational study designs for comparative effectiveness research: an alternative approach to close evidence gaps in head-and-neck cancer. Int J Radiat Oncol Biol Phys. 2014;88(1):106-14.)

Figura 1
Classificação hierárquica tradicional dos delineamentos de pesquisa.

ECR - ensaio clínico randomizado.


Quadro 1
Características dos principais delineamentos de pesquisa

Ensaio clínico randomizado na unidade de terapia intensiva (UTI) comumente apresentam resultados negativos, com tamanhos amostrais calculados com base em efeitos terapêuticos irrealísticos, associados a estimativas pouco precisas quanto ao cálculo de tamanho amostral, como também quanto a incidência de desfecho no baseline.(1111 Harhay MO, Wagner J, Ratcliffe SJ, Bronheim RS, Gopal A, Green S, et al. Outcomes and statistical power in adult critical care randomized trials. Am J Respir Crit Care Med. 2014;189(12):1469-78.) O registro inadequado previamente à execução do trial, como também modificações no protocolo ou em seu tamanho amostral durante o curso do estudo são eventos também frequentes, permitindo o questionamento sobre o quanto eventos ocorridos no curso do trial podem influenciar no desenho do estudo e, consequentemente, nos resultados reportados. Os resultados de ECR também podem ser pouco generalizáveis, tanto pelas elevadas taxas de exclusões como também pelos resultados obtidos no grupo controle, o qual pode divergir do cenário de vida real no qual os resultados devem ser aplicados. No manejo de pacientes gravemente enfermos, submetidos a inúmeras variáveis fisiológicas e terapêuticas, que potencialmente possam mascarar o resultado de uma determinada intervenção, tais modificações podem induzir a um maior prejuízo na interpretação dos resultados obtidos.(1010 Vincent JL. We should abandon randomized controlled trials in the intensive care unit. Crit Care Med. 2010;38(10 Suppl):S534-8.)

Até mesmo as revisões sistemáticas com metanálise apresentam limitações importantes, que impedem uma ampla tradução em mudanças na prática clínica, por conta da inclusão de trials de baixa qualidade metodológica e com potenciais vieses de publicação.(88 Nordmann AJ, Kasenda B, Briel M. Meta-analyses: what they can and cannot do. Swiss Med Wkly. 2012;142:w13518.,1212 Berlin JA, Golub RM. Meta-analysis as evidence: building a better pyramid. JAMA. 2014;312(6):603-5.) Pequenos estudos tendem a apresentar uma maior incidência de efeitos benéficos no grupo intervenção, sendo que, ao menos em parte, isso possa se justificar pela menor qualidade metodológica presente nos pequenos estudos.(1313 Kjaergard LL, Villumsen J, Gluud C. Reported methodologic quality and discrepancies between large and small randomized trials in meta-analyses. Ann Intern Med. 2001;135(11):982-9. Erratum in: Ann Intern Med. 2008;149(3):219.) Em metanálises de terapia intensiva, tal fenômeno já foi demonstrado.(1414 Zhang Z, Xu X, Ni H. Small studies may overestimate the effect sizes in critical care meta-analyses: a meta-epidemiological study. Crit Care. 2013;17(1):R2.)

Os estudos de coorte, têm, ao longo do tempo, melhorado a qualidade de informações disponíveis para a tomada de conduta, especialmente no que se refere a pesquisa comparativa de eficácia, podendo enxergar adiante do ensaio clínico, principalmente pelo tempo de acompanhamento dos pacientes, pela maior população estudada e pela melhor análise de desfechos pouco frequentes.(1515 Frakt AB. An observational study goes where randomized clinical trials have not. JAMA. 2015;313(11):1091-2.) Pesquisas observacionais são um complemento importante aos ECR, via de regra mais eficientes na obtenção de respostas e com maior capacidade de generalização.(1616 Seymour CW, Kahn JM. Resolving conflicting comparative effectiveness research in critical care. Crit Care Med. 2012;40(11):3090-2.) Existem diversas ferramentas estatísticas disponíveis para minimizar o impacto do viés de confusão em estudos observacionais, como o pareamento de grupos, a estratificação de amostras, a análise multivariada e o escore de propensão, que devem ser empregados sempre quando factíveis.

  • Editor responsável: Alexandre Biasi Cavalcanti

REFERÊNCIAS

  • 1
    Berwanger O, Suzumura EA, Buehler AM, Oliveira JB. Como avaliar criticamente revisões sistemáticas e metanálises? Rev Bras Ter Intensiva. 2007;19(4):475-80.
  • 2
    Suzumura EA, Oliveira JB, Buehler AM, Carballo M, Berwanger O. Como avaliar criticamente estudos de coorte em terapia intensiva? Rev Bras Ter Intensiva. 2008;20(1):93-8.
  • 3
    Buehler AM, Cavalcanti AB, Suzumura EA, Carballo MT, Berwanger O. Como avaliar criticamente um ensaio clinico de alocação aleatória em terapia intensiva. Rev Bras Ter Intensiva. 2009;21(2):219-25.
  • 4
    Portela MC, Pronovost PJ, Woodcock T, Carter P, Dixon-Woods M. How to study improvement interventions: a brief overview of possible study types. BMJ Qual Saf. 2015;24(5):325-36. Review.
  • 5
    Thiese MS. Observational and interventional study design types; an overview. Biochem Med (Zagreb). 2014;24(2):199-210. Review.
  • 6
    Elmer J, Kahn J. Implementing evidence-based practice in the neuroscience intensive care unit. Crit Care. 2014;18(2):303.
  • 7
    Carson SS. Outcomes research: methods and implications. Semin Respir Crit Care Med. 2010;31(1):3-12. Review.
  • 8
    Nordmann AJ, Kasenda B, Briel M. Meta-analyses: what they can and cannot do. Swiss Med Wkly. 2012;142:w13518.
  • 9
    Goulart BH, Ramsey SD, Parvathaneni U. Observational study designs for comparative effectiveness research: an alternative approach to close evidence gaps in head-and-neck cancer. Int J Radiat Oncol Biol Phys. 2014;88(1):106-14.
  • 10
    Vincent JL. We should abandon randomized controlled trials in the intensive care unit. Crit Care Med. 2010;38(10 Suppl):S534-8.
  • 11
    Harhay MO, Wagner J, Ratcliffe SJ, Bronheim RS, Gopal A, Green S, et al. Outcomes and statistical power in adult critical care randomized trials. Am J Respir Crit Care Med. 2014;189(12):1469-78.
  • 12
    Berlin JA, Golub RM. Meta-analysis as evidence: building a better pyramid. JAMA. 2014;312(6):603-5.
  • 13
    Kjaergard LL, Villumsen J, Gluud C. Reported methodologic quality and discrepancies between large and small randomized trials in meta-analyses. Ann Intern Med. 2001;135(11):982-9. Erratum in: Ann Intern Med. 2008;149(3):219.
  • 14
    Zhang Z, Xu X, Ni H. Small studies may overestimate the effect sizes in critical care meta-analyses: a meta-epidemiological study. Crit Care. 2013;17(1):R2.
  • 15
    Frakt AB. An observational study goes where randomized clinical trials have not. JAMA. 2015;313(11):1091-2.
  • 16
    Seymour CW, Kahn JM. Resolving conflicting comparative effectiveness research in critical care. Crit Care Med. 2012;40(11):3090-2.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Sep 2016

Histórico

  • Recebido
    30 Maio 2016
  • Aceito
    09 Jun 2016
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