Acessibilidade / Reportar erro

Pequenos passos além da análise comparativa

"A análise comparativa é como acender a luz!

Sem comparação e transparência, estamos no escuro."

Esta citação parafraseada do ex-presidente do Institute of Healthcare Improvement , Donald Berwick, esclarece, de forma eloquente, que precisamos nos comparar para melhorar os desfechos de nossos pacientes. Em nossa opinião, este é apenas o primeiro passo para a melhora da qualidade.

Em muitos países, existem registros de qualidade das unidades de terapia intensiva (UTI) para fins de análise comparativa.(11 Rowan KM, Kerr JH, Major E, McPherson K, Short A, Vessey MP. Intensive Care Society's Acute Physiology and Chronic Health Evaluation (APACHE II) study in Britain and Ireland: a prospective, multicenter, cohort study comparing two methods for predicting outcome for adult intensive care patients. Crit Care Med. 1994;22(9):1392-401.,22 van de Klundert N, Holman R, Dongelmans DA, de Keizer NF. Data Resource Profile: the Dutch National Intensive Care Evaluation (NICE) Registry of Admissions to Adult Intensive Care Units. Int J Epidemiol. 2015;44(6):1850-1850h.) O primeiro passo para melhora da qualidade dos cuidados inicia-se com a mensuração e a comparação das estruturas de cuidados, de seus processos e indicadores de desfecho com os de outras UTI. Acender a luz. Este processo identifica as estruturas de cuidado, os processos ou os subgrupos de pacientes nos quais o resultado não é tão bom quanto na média da população de pacientes de UTI incluída na comparação. Este é um dado para a "fase Planejar" do ciclo Planejar-Fazer-Verificar-Agir (PDCA -Plan-Do-Check-Act ). Obviamente, muitas outras questões, além das diferenças na qualidade do cuidado, podem explanar tais diferenças entre UTI.(33 van Dishoeck AM, Lingsma HF, Mackenbach JP, Steyerberg EW. Random variation and rankability of hospitals using outcome indicators. BMJ Qual Saf. 2011;20(10):869-74.) Variações entre os indicadores podem ser provocadas pela qualidade dos dados, por diferenças na mescla de casos, pelo acaso (amostras pequenas), e por fatores residuais de confusão. Logo, o primeiro passo é verificar a qualidade dos dados. Todas as UTI participantes da comparação estão, de fato, comparando as mesmas variáveis, ou utilizam definições ou métodos de registro diferentes? Caso não concordemos a respeito do que estamos comparando, a análise comparativa é inútil.

Assumamos que tais diferenças sejam consideradas reais, e não parte de problemas com a qualidade dos dados, diferenças entre as mesclas de casos ou fruto do acaso. O passo seguinte é identificar os pontos fracos e as soluções para o processo terapêutico (a "fase do Fazer" do ciclo PDCA). Muitas UTI consideram esta como a parte mais difícil na melhora dos cuidados. Frequentemente, não sabem por onde começar, e as desculpas surgem: "Temos feito isto por anos, então não pode estar errado"; "A solução também não é perfeita"; "Não temos dinheiro"; "Estamos muito ocupados" etc.

Na verdade, a identificação dos processos que podem ser melhorados e ter um impacto na qualidade dos cuidados é uma das fases mais difíceis na melhora da qualidade. Para superar esta barreira, um registro de qualidade deve dar apoio às UTI, para implantar melhorias ao oferecer uma "caixa de ferramentas" com possíveis ações. Esta "caixa de ferramentas" deve incluir uma lista de possíveis gargalos derivados de avaliações do processo, acompanhada de um conjunto de sugestões, preferivelmente com base em evidência, para a realização de mudanças concretas.(44 Roos-Blom MJ, Dongelmans D, Arbous MS, de Jonge E, de Keizer N. How to Assist intensive care units in improving healthcare quality. development of actionable quality indicators on blood use. Stud Health Technol Inform. 2015;210:429-33.)

Outra advertência é que as ambições podem ser demasiadamente altas: "Seremos a melhor UTI do país, com a menor taxa padronizada de mortalidade!". Embora esta ambição seja desejável, o alvo não é muito "acionável", de forma que as ações corretivas tornam-se pouco factíveis. Muitos dos indicadores de qualidade hoje disponíveis não são passíveis de acionamento e, assim, não são úteis. Entretanto, apesar do fato de que indicadores acionáveis vêm com soluções incorporadas resumidas em uma "caixa de ferramentas", sua implantação no mundo real é problemática e, particularmente, obrigar equipes médicas multidisciplinares a adotá-las permanece um desafio.(55 Shojania KG, Grimshaw JM. Evidence-based quality improvement: the state of the science. Health Aff (Millwood). 2005;24(1):138-50.)

Uma vez identificado e implantado um potencial desenvolvimento de um processo clínico, sua eficácia deve ser verificada (a "fase da Verificação" do ciclo PDCA). Dependendo dos resultados, devem se formular novas ações ou objetivos (Figura 1).

Figura 1
Ciclo Planejar-Fazer-Verificar-Agir para melhora da qualidade na unidade de terapia intensiva.

Hb - hemoglobina; Vt - volume corrente; EPR - registros eletrônicos do paciente.


Exemplos de indicadores acionáveis

Um típico exemplo de "indicador acionável" pode ser o uso de antibióticos na UTI. O uso desnecessário de antibióticos de amplo espectro por períodos prolongados se relaciona com o surgimento e seleção de bactérias resistentes, as internações prolongadas e o aumento dos custos. A redução do tempo mediano de duração da antibioticoterapia na UTI para 5 dias é viável.(66 de Jong E, van Oers JA, Beishuizen A, Vos P, Vermeijden WJ, Haas LE, et al. Efficacy and safety of procalcitonin guidance in reducing the duration of antibiotic treatment in critically ill patients: a randomised, controlled, open-label trial. Lancet Infect Dis. 2016;16(7):819-27.) Tal redução na duração da terapia antibiótica pode ser obtida pela implantação de uma cessação dos antibióticos guiada por biomarcadores, ou por reduções graduais da duração do tratamento antibiótico, em comparação com outras unidades (análise comparativa). Se sua prática atual ou protocolo exigem 10 dias de antibióticos para pneumonia grave adquirida na comunidade, e a evidência é favorável ao uso por 5 a 7 dias, o próximo passo é diminuir a duração da antibioticoterapia para 7 dias e verificar seus desfechos. Exemplos de potenciais melhorias mencionadas na caixa de ferramentas são a atualização ou a criação de um protocolo, alertas em seus registros eletrônicos dos pacientes, ou a prescrição médica por meio de computador sempre que se prescrever o uso de antibióticos por mais do que 7 dias. Caso a mortalidade, o número de dias em uso de ventilador e o tempo de permanência na UTI permaneçam inalterados, pode-se, a seguir, obter uma redução da duração da antibioticoterapia (para 5 dias). Enquanto isso, a UTI aprende que não é necessário temer períodos mais curtos de antibioticoterapia.

Outro exemplo de um "indicador acionável" é o uso de hemoderivados.(44 Roos-Blom MJ, Dongelmans D, Arbous MS, de Jonge E, de Keizer N. How to Assist intensive care units in improving healthcare quality. development of actionable quality indicators on blood use. Stud Health Technol Inform. 2015;210:429-33.) Muitos médicos se sentem desconfortáveis quando a contagem de hemoglobina cai e desejam submeter o paciente a transfusões. As publicações mostram desfechos similares com uma política de transfusões mais restritiva, quando comparada a uma política liberal de transfusões.(77 Carson JL, Stanworth SJ, Roubinian N, Fergusson DA, Triulzi D, Doree C, et al. Transfusion thresholds and other strategies for guiding allogeneic red blood cell transfusion. Cochrane Database Syst Rev. 2016;10:CD002042. Review.,88 Holst LB, Haase N, Wetterslev J, Wernerman J, Guttormsen AB, Karlsson S, Johansson PI, Aneman A, Vang ML, Winding R, Nebrich L, Nibro HL, Rasmussen BS, Lauridsen JR, Nielsen JS, Oldner A, Pettilä V, Cronhjort MB, Andersen LH, Pedersen UG, Reiter N, Wiis J, White JO, Russell L, Thornberg KJ, Hjortrup PB, Müller RG, Møller MH, Steensen M, Tjäder I, Kilsand K, Odeberg-Wernerman S, Sjøbø B, Bundgaard H, Thyø MA, Lodahl D, Mærkedahl R, Albeck C, Illum D, Kruse M, Winkel P, Perner A; TRISS Trial Group.; Scandinavian Critical Care Trials Group. Lower versus higher hemoglobin threshold for transfusion in septic shock. N Engl J Med. 2014;371(15):1381-91.) A comparação da necessidade mediana de transfusões em sua UTI com a de outras unidades incluídas em uma análise comparativa pode identificar pacientes para os quais sua UTI poderia implantar uma política de transfusões mais restritiva, sem comprometer os resultados.(44 Roos-Blom MJ, Dongelmans D, Arbous MS, de Jonge E, de Keizer N. How to Assist intensive care units in improving healthcare quality. development of actionable quality indicators on blood use. Stud Health Technol Inform. 2015;210:429-33.)

Um terceiro exemplo de um "indicador acionável" é o uso de uma estratégia de ventilação com baixo volume corrente. Todos sabemos que ventilar nossos pacientes com um volume corrente de 6mL/kg de peso ideal reduz a duração da ventilação mecânica e melhora os resultados, porém a adesão a estes alvos é baixa.(99 Kalhan R, Mikkelsen M, Dedhiya P, Christie J, Gaughan C, Lanken PN, et al. Underuse of lung protective ventilation: analysis of potential factors to explain physician behavior. Crit Care Med. 2006;34(2):300-6.

10 Kalb T, Raikhelkar J, Meyer S, Ntimba F, Thuli J, Gorman MJ, et al. A multicenter population-based effectiveness study of teleintensive care unit-directed ventilator rounds demonstrating improved adherence to a protective lung strategy, decreased ventilator duration, and decreased intensive care unit mortality. J Crit Care. 2014;29(4):691.e7-14.
-1111 Weiss CH, Baker DW, Weiner S, Bechel M, Ragland M, Rademaker A, et al. Low tidal volume ventilation use in acute respiratory distress syndrome. Crit Care Med. 2016;44(8):1515-22.) No entanto, ventilação com baixo volume corrente é verdadeiramente um indicador acionável com um objetivo muito claro. Se sua UTI não atinge o alvo de ventilação com baixo volume corrente no subgrupo de pacientes com síndrome da angústia respiratória aguda, a "caixa de ferramentas" deve ajudar a obter potenciais melhoras. A aplicação destes próximos passos na melhora da qualidade representa a "fase do Fazer" do ciclo PDCA.

A ideia geral na melhora da qualidade é não implantar todas as melhoras de uma vez, mas fazê-lo aos poucos. Dê um (pequeno) passo por vez e compare seu efeito com o padrão de comparação (nacional). Se funcionar, dê o próximo passo. Melhora da qualidade... faça isto, um passinho por vez.

  • Editor responsável: Jorge Ibrain Figueira Salluh

REFERÊNCIAS

  • 1
    Rowan KM, Kerr JH, Major E, McPherson K, Short A, Vessey MP. Intensive Care Society's Acute Physiology and Chronic Health Evaluation (APACHE II) study in Britain and Ireland: a prospective, multicenter, cohort study comparing two methods for predicting outcome for adult intensive care patients. Crit Care Med. 1994;22(9):1392-401.
  • 2
    van de Klundert N, Holman R, Dongelmans DA, de Keizer NF. Data Resource Profile: the Dutch National Intensive Care Evaluation (NICE) Registry of Admissions to Adult Intensive Care Units. Int J Epidemiol. 2015;44(6):1850-1850h.
  • 3
    van Dishoeck AM, Lingsma HF, Mackenbach JP, Steyerberg EW. Random variation and rankability of hospitals using outcome indicators. BMJ Qual Saf. 2011;20(10):869-74.
  • 4
    Roos-Blom MJ, Dongelmans D, Arbous MS, de Jonge E, de Keizer N. How to Assist intensive care units in improving healthcare quality. development of actionable quality indicators on blood use. Stud Health Technol Inform. 2015;210:429-33.
  • 5
    Shojania KG, Grimshaw JM. Evidence-based quality improvement: the state of the science. Health Aff (Millwood). 2005;24(1):138-50.
  • 6
    de Jong E, van Oers JA, Beishuizen A, Vos P, Vermeijden WJ, Haas LE, et al. Efficacy and safety of procalcitonin guidance in reducing the duration of antibiotic treatment in critically ill patients: a randomised, controlled, open-label trial. Lancet Infect Dis. 2016;16(7):819-27.
  • 7
    Carson JL, Stanworth SJ, Roubinian N, Fergusson DA, Triulzi D, Doree C, et al. Transfusion thresholds and other strategies for guiding allogeneic red blood cell transfusion. Cochrane Database Syst Rev. 2016;10:CD002042. Review.
  • 8
    Holst LB, Haase N, Wetterslev J, Wernerman J, Guttormsen AB, Karlsson S, Johansson PI, Aneman A, Vang ML, Winding R, Nebrich L, Nibro HL, Rasmussen BS, Lauridsen JR, Nielsen JS, Oldner A, Pettilä V, Cronhjort MB, Andersen LH, Pedersen UG, Reiter N, Wiis J, White JO, Russell L, Thornberg KJ, Hjortrup PB, Müller RG, Møller MH, Steensen M, Tjäder I, Kilsand K, Odeberg-Wernerman S, Sjøbø B, Bundgaard H, Thyø MA, Lodahl D, Mærkedahl R, Albeck C, Illum D, Kruse M, Winkel P, Perner A; TRISS Trial Group.; Scandinavian Critical Care Trials Group. Lower versus higher hemoglobin threshold for transfusion in septic shock. N Engl J Med. 2014;371(15):1381-91.
  • 9
    Kalhan R, Mikkelsen M, Dedhiya P, Christie J, Gaughan C, Lanken PN, et al. Underuse of lung protective ventilation: analysis of potential factors to explain physician behavior. Crit Care Med. 2006;34(2):300-6.
  • 10
    Kalb T, Raikhelkar J, Meyer S, Ntimba F, Thuli J, Gorman MJ, et al. A multicenter population-based effectiveness study of teleintensive care unit-directed ventilator rounds demonstrating improved adherence to a protective lung strategy, decreased ventilator duration, and decreased intensive care unit mortality. J Crit Care. 2014;29(4):691.e7-14.
  • 11
    Weiss CH, Baker DW, Weiner S, Bechel M, Ragland M, Rademaker A, et al. Low tidal volume ventilation use in acute respiratory distress syndrome. Crit Care Med. 2016;44(8):1515-22.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Apr-Jun 2017

Histórico

  • Recebido
    20 Jan 2017
  • Aceito
    02 Fev 2017
Associação de Medicina Intensiva Brasileira - AMIB Rua Arminda, 93 - Vila Olímpia, CEP 04545-100 - São Paulo - SP - Brasil, Tel.: (11) 5089-2642 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: rbti.artigos@amib.com.br