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Para: Desfechos psicológicos em longo prazo após alta da terapia intensiva

Ao Editor,

Lemos com muito interesse o artigo "Desfechos psicológicos em longo prazo após a alta da terapia intensiva", de Pereira et al. Os autores realizaram estudo de seguimento de pacientes internados na unidade de terapia intensiva (UTI) e avaliaram a prevalência de desfechos de saúde mental a longo prazo, além de possíveis preditores durante a internação.(11 Pereira S, Cavaco S, Fernandes J, Moreira I, Almeida E, Seabra-Pereira F, et al. Long-term psychological outcome after discharge from intensive care. Rev Bras Ter Intensiva. 2018;30(1):28-34.) É inegável a importância da recém-descrita síndrome pós-terapia intensiva,(22 Elliott D, Davidson JE, Harvey MA, Bemis-Dougherty A, Hopkins RO, Iwashyna TJ, et al. Exploring the scope of post-intensive care syndrome therapy and care: engagement of non-critical care providers and survivors in a second stakeholders meeting. Crit Care Med. 2014;42(12):2518-26.) e estudos que foquem em desfechos a longo prazo centrados nos pacientes são muito relevantes.(33 Goldfarb MJ, Bibas L, Bartlett V, Jones H, Khan N. Outcomes of patient- and family-centered care interventions in the ICU: a systematic review and meta-analysis. Crit Care Med. 2017;45(10):1751-61.) No entanto, é necessária cautela ao analisar os resultados apresentados.

Primeiramente, o tamanho da amostra (n = 17) não tem poder para efetuar as inferências apresentadas no estudo. A divulgação de resultados distorcidos gerados a partir de amostras tão pequenas pode impactar na prática clínica. Há que se ter responsabilidade em sua divulgação em revistas cujo público é composto por profissionais que realizam assistência e podem tomar decisões equivocadas a partir de resultados espúrios.

Além disso, a validade interna do estudo está prejudicada devido às perdas de seguimento. A partir da aplicação dos critérios de elegibilidade, 47 pessoas seriam incluídas na amostra. No entanto, foram perdidos 22 pacientes antes da primeira aferição e 8 entre a primeira e a segunda, representando 30 pacientes perdidos, o que corresponde a 63% da amostra. Não há descrição das características destes 22 pacientes e, com um número tão alto, as perdas provavelmente estão associadas ao desfecho e produzem resultados enviesados(44 Rothman KJ, Greenland S, Lash TL. Epidemiologia moderna. 3a. ed. Porto Alegre: Artmed; 2011.) - o que parece ter ocorrido neste estudo dado o achado de que a hipóxia grave reduz a chance de desenvolver déficit cognitivo em longo prazo. Provavelmente pacientes com comprometimento cognitivo mais intenso evoluíram para óbito ou se tornaram dependentes para a rotina diária, compondo as perdas de seguimento.

Apesar do objetivo secundário do estudo ser investigar fatores preditivos, os autores descrevem seus resultados utilizando o termo "fatores de risco". Para investigar este tipo de associação, faz-se necessária a utilização de modelo causal que leve em conta fatores de confundimento, mediadores e colisores. O desenho desta pesquisa não se propõe e nem teria condições de alcançar tal objetivo. A apresentação dos dados desta forma induz o leitor a interpretações equivocadas.

A descrição da análise ficou confusa e a utilização dos testes e modelos estatísticos, inadequada. Não ficou claro se os autores realizaram regressões logísticas bivariadas simples ou uma regressão única com todas as variáveis no modelo. Em ambos os casos, o excesso de testagens favoreceria o aparecimento de associações significativas ao acaso. Além disso, na segunda situação, do ponto de vista da parcimônia estatística, não faria sentido realizar uma modelagem com apenas 17 indivíduos utilizando 11 variáveis de ajuste.

Acreditamos que os métodos desta pesquisa apresentam problemas importantes e produziram resultados distorcidos, tornando sua discussão inadequada. A hipóxia grave tem consequências dramáticas para qualquer paciente em unidade de terapia intensiva,(55 Pandharipande PP, Girard TD, Jackson JC, Morandi A, Thompson JL, Pun BT, Brummel NE, Hughes CG, Vasilevskis EE, Shintani AK, Moons KG, Geevarghese SK, Canonico A, Hopkins RO, Bernard GR, Dittus RS, Ely EW; BRAIN-ICU Study Investigators. Long-term cognitive impairment after critical illness. N Engl J Med. 2013;369(14):1306-16.) e a divulgação de resultados enviesados pode atenuar o olhar atento e cuidadoso da equipe de saúde para esta situação, tendo sérias implicações na prática clínica.

Fernanda Lima-Setta
Unidade de Terapia Intensiva Pediátrica, Instituto Fernandes Figueira - Rio de Janeiro (RJ), Brasil.
Instituto D'Or de Pesquisa e Ensino - Rio de Janeiro (RJ), Brasil.
Daniela Porto Faus
Maternidade Escola, Universidade Federal do Rio de Janeiro - Rio de Janeiro (RJ), Brasil.
Instituto de Medicina Social, Universidade Estadual do Rio de Janeiro - Rio de Janeiro (RJ), Brasil.
Franciely Mario Carrijo Campos
Instituto de Medicina Social, Universidade Estadual do Rio de Janeiro - Rio de Janeiro (RJ), Brasil.
Claudia Reis Miliauskas
Setor de Saúde Ocupacional, Instituto Nacional de Metrologia, Qualidade e Tecnologia - Rio de Janeiro (RJ), Brasil.
Instituto de Medicina Social, Universidade Estadual do Rio de Janeiro - Rio de Janeiro (RJ), Brasil.

REFERÊNCIAS

  • 1
    Pereira S, Cavaco S, Fernandes J, Moreira I, Almeida E, Seabra-Pereira F, et al. Long-term psychological outcome after discharge from intensive care. Rev Bras Ter Intensiva. 2018;30(1):28-34.
  • 2
    Elliott D, Davidson JE, Harvey MA, Bemis-Dougherty A, Hopkins RO, Iwashyna TJ, et al. Exploring the scope of post-intensive care syndrome therapy and care: engagement of non-critical care providers and survivors in a second stakeholders meeting. Crit Care Med. 2014;42(12):2518-26.
  • 3
    Goldfarb MJ, Bibas L, Bartlett V, Jones H, Khan N. Outcomes of patient- and family-centered care interventions in the ICU: a systematic review and meta-analysis. Crit Care Med. 2017;45(10):1751-61.
  • 4
    Rothman KJ, Greenland S, Lash TL. Epidemiologia moderna. 3a. ed. Porto Alegre: Artmed; 2011.
  • 5
    Pandharipande PP, Girard TD, Jackson JC, Morandi A, Thompson JL, Pun BT, Brummel NE, Hughes CG, Vasilevskis EE, Shintani AK, Moons KG, Geevarghese SK, Canonico A, Hopkins RO, Bernard GR, Dittus RS, Ely EW; BRAIN-ICU Study Investigators. Long-term cognitive impairment after critical illness. N Engl J Med. 2013;369(14):1306-16.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Mar 2019
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