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Ruptura traumática de músculo papilar da valva tricúspide com forame oval patente adquirido e ruptura atrial direita oculta

RESUMO

O traumatismo cardíaco é comum em acidentes com veículos automotores. Uma mulher com 50 anos de idade foi transportada para nosso hospital após sofrer múltiplos traumatismos em um acidente de automóvel quando dirigia em alta velocidade. Após admissão à unidade de terapia intensiva, uma ultrassonografia cardíaca revelou ruptura traumática de músculo papilar da valva tricúspide e forame oval patente, enquanto se observou, no exame físico, o sinal de Lancisi. Foi realizado tratamento cirúrgico com anuloplastia da valva e fechamento do forame oval patente; durante o ato cirúrgico, diagnosticou-se ruptura oculta do átrio direito.

Descritores:
Valva tricúspide/lesões; Ecocardiografia

ABSTRACT

Cardiac trauma often occurs in motor vehicle accidents. A 50-year-old female driver was transported to our hospital with multiple trauma after a high-speed car accident. After admission to the intensive care unit, cardiac ultrasound examination revealed traumatic tricuspid valve papillary muscle rupture and patent foramen ovale, while Lancisi's sign was noted on physical examination. Surgical treatment was performed with valve annuloplasty and closure of the patent foramen ovale and a covert right atrial defect that was detected intraoperatively.

Keywords:
Tricuspid valve/injuries; Echocardiography

INTRODUÇÃO

O traumatismo cardíaco é mais frequentemente causado por acidentes automotivos. É grande a variedade em termos da severidade do quadro apresentado por estes pacientes, e a mortalidade relacionada permanece elevada, a despeito das melhorias em termos de diagnóstico e tratamento.(11 Gosavi S, Tyroch AH, Mukherjee D. Cardiac trauma. Angiology. 2016;67(10):896-901.)

Este trabalho apresenta um caso de insuficiência tricúspide de etiologia traumática, devida à ruptura de músculo papilar da valva tricúspide, com um concomitante shunt atrial da direita para a esquerda, por meio de um forame oval patente (FOP).

Preparamos este manuscrito em conformidade com as diretrizes CARE.(22 Gagnier JJ, Kienle G, Altman DG, Moher D, Sox H, Riley D; CARE Group. The CARE Guidelines: consensus-based clinical case reporting guideline development. Glob Adv Health Med. 2013;2(5):38-43.)

RELATO DO CASO

Uma mulher caucasiana de 50 anos foi trazida ao pronto-socorro após sofrer acidente em alta velocidade enquanto conduzia seu veículo. Foi necessário realizar procedimentos para removê-la do veículo (duração de 35 minutos). Não havia informações sobre o uso do cinto de segurança. Sua história clínica incluía hipertensão arterial e depressão. Seu tratamento farmacológico incluía nebivolol 5mg uma vez ao dia, lamotrigina 25mg duas vezes ao dia e fluoxetina 25mg uma vez ao dia. Não se mencionaram alergias.

Quando da admissão, a paciente apresentava escore na escala de coma de Glasgow E2/V3/M5 (abertura dos olhos, resposta verbal e resposta motora), frequência cardíaca de 70bpm, pressão arterial de 65×37mmHg, temperatura central de 34ºC, frequência respiratória de 9rpm, saturação de oxigênio (SpO2) de 85% com uso de máscara de oxigênio (fluxo de 15L por minuto), ruídos pulmonares mistos à auscultação, e equimoses em todo o membro superior direito e em ambos os membros inferiores. Mais ainda, observou-se discrepância de comprimento do membro inferior direito com concomitante rotação externa do joelho direito. Notou-se também presença de hálito alcoólico. A equipe de resgate já havia procedido imobilização total da coluna e administração de 1,2L de soluções cristaloides. Seu escore, segundo a Revised Trauma Score, era de 4, e Emergency Trauma Score de 7.

Foi realizada intubação em sequência rápida, e exames adicionais de tomografia computadorizada (TC), angiografia por TC e radiografia revelaram múltiplas fraturas de costela em ambos os lados (quarta à sexta costelas do lado esquerdo, e nona à décima segunda costelas do lado direito), fratura do osso esterno, pequeno pneumotórax à esquerda, contusão pulmonar à direita, contusão de lobo hepático direito, e fratura distal do fêmur direito com envolvimento da articulação do joelho.

Quando da admissão à unidade de terapia intensiva (UTI), o escore da paciente segundo o Acute Physiology and Chronic Health Evaluation (APACHE) II era de 31, e seu escore, segundo o Sequential Organ Failure Assessment (SOFA), era de 11. Uma gasometria arterial revelou acidose mista grave, com pH de 7,22, pressão parcial de oxigênio de 54,2mmHg, pressão parcial de dióxido de carbono de 37,9mmHg, potássio de 3,5mEq/L, sódio de 140mEq/L, bicarbonato de 15mEq/L, excesso de base -11,8, gap iônico (corrigido para albumina) 13,25mmol/L e lactato 10,4mmol/L. Outros exames laboratoriais incluíram hemoglobina 7,8g/dL, leucócitos 13,4k/dL, plaquetas 260k/dL, tempo de tromboplastina parcial ativada 32 segundos, tempo de protrombina 12,2 segundos, creatinina sérica 1,22mg/dL, ureia 34mg/dL, níveis séricos de transaminase glutâmico-oxalacética 342UI/L e transaminase glutâmico-pirúvica 221UI/L, creatinofosfoquinase 2716UI/L e troponina T 327mcg/L. A mensuração da pressão venosa central foi de 7cmH2O, tendo sido observado ingurgitamento da veia jugular direita (sinal de Lancisi). Encontrou-se na ausculta realizada junto à borda inferior esquerda do esterno um sopro holossistólico 2/6 com reforço durante a inspiração. Uma ecocardiografia transtorácica (ETT) revelou sinais de possível lesão da valva tricúspide. Uma ecocardiografia transesofágica (ETE) realizada subsequentemente revelou ruptura traumática de papila muscular da valva tricúspide (Figuras 1A e B). Durante as horas seguintes, observou-se hipóxia dependente de pressão parcial expiratória final (PEEP) de 7 a 4cmH2O, sendo então realizada nova ETE. A injeção de uma microbolha por acesso central revelou FOP, que também foi mostrado com Doppler colorido (Figura 2). A pressão ventricular sistólica direita era de 42 - 44mmHg, embora com função sistólica preservada. Nessa ocasião e durante o restante de sua permanência na UTI, a pressão platô foi inferior a 25mmHg e o volume corrente, menor que 8mL/kg.

Figura 1
Fotografia durante o exame de ecocardiografia transesofágica (plano transverso, visão do eixo longitudinal) revelando refluxo traumático da valva tricúspide.

Figura 2
Fotografia durante um segundo exame de ecocardiografia transesofágica (plano transverso, eixo basal curto) revelando forame oval patente.

A estabilização da paciente foi mantida com ressuscitação hídrica e doses elevadas de vasopressores (noradrenalina 1,1µg/kg/minuto), reaquecimento ativo e reversão do desequilíbrio acidobásico.

Devido à falta de uma unidade de cirurgia cardíaca no hospital, procedeu-se à comunicação com outros hospitais da região. O transporte da paciente para uma unidade de cirurgia cardíaca particular foi realizado 5 dias mais tarde.

Durante a cirurgia, procedeu-se à esternotomia mediana e à instituição de circulação extracorpórea. A valva tricúspide foi exposta por atriotomia direita. Na observação durante a cirurgia, além da ruptura de músculo papilar da valva tricúspide e FOP (1cm), observou-se ruptura oculta de 3cm de comprimento no átrio direito. A correção incluiu anuloplastia da valva tricúspide com anel de Carpentier-Edward de 28cm e folhetos valvares complementares, fechamento do FOP e sutura contínua do defeito no átrio direito. A evolução pós-operatória da paciente foi sem intercorrências, e ela recebeu alta do hospital com escore Glasgow de 7. Um ano mais tarde, a paciente estava completamente recuperada, exceto por um defeito residual no joelho direito.

DISCUSSÃO

A insuficiência traumática da valva tricúspide (ITT) é uma condição relativamente rara. No entanto, nas últimas duas décadas tem sido publicado um aumento na frequência de tais casos, principalmente em razão do uso de melhores procedimentos diagnósticos e da conscientização sobre esta patologia.(33 Sheikhzadeh A, Langbehn AF, Ghabusi P, Hakim C, Wendler G, Tarbiat S. Chronic traumatic tricuspid insufficiency. Clin Cardiol. 1984;7(5):299-306.) Acrescente-se que, como a maioria das pessoas tolera bem uma ITT isolada, a verdadeira incidência da condição é provavelmente subestimada.(44 Gayet C, Pierre B, Delahaye JP, Champsaur G, Andre-Fouet X, Rueff P. Traumatic tricuspid insufficiency. An underdiagnosed disease. Chest. 1987;92(3):429-32.)

A lesão da valva tricúspide pode envolver seus folhetos, cordoalha tendínea ou músculos papilares. A ITT isolada é uma condição considerada rara.(55 Ma WG, Luo GH, Sun HS, Xu JP, Hu SS, Zhu XD. Surgical treatment of traumatic tricuspid insufficiency: experience in 13 cases. Ann Thorac Surg. 2010;90(6):1934-8.) A literatura disponível mostra grande variedade de lesões que acompanham a ITT: ITT com FOP, ITT, FOP e defeito septal atrial ou ventricular, ITT e ruptura da valva mitral etc.(55 Ma WG, Luo GH, Sun HS, Xu JP, Hu SS, Zhu XD. Surgical treatment of traumatic tricuspid insufficiency: experience in 13 cases. Ann Thorac Surg. 2010;90(6):1934-8.,66 Zhang Z, Yin K, Dong L, Sun Y, Guo C, Lin Y, et al. Surgical management of traumatic tricuspid insufficiency. J Card Surg. 2017;32(6):342-6.) Nestes últimos casos, o diagnóstico precoce e a redução do intervalo entre a admissão e cirurgia são pontos-chave do tratamento.

Em nossa paciente, a movimentação comprometida da valva em razão da ruptura de músculo papilar resultou em aumento abrupto da pressão atrial que levou a um shunt da direita para a esquerda por meio do forame oval. Na literatura, tem sido relatado que níveis elevados de PEEP (> 9cmH2O), pressão de platô acima de 26mmHg e proporção de área de ventrículo direito/ventrículo esquerdo acima de 1 são fatores de risco para FOP.(77 Vavlitou A, Minas G, Zannetos S, Kyprianou T, Tsagourias M, Matamis D. Hemodynamic and respiratory factors that influence the opening of patent foramen ovale in mechanically ventilated patients. Hippokratia. 2016;20(3):209-13.) Assim, a ventilação mecânica pode ser outro fator que contribui para o FOP, embora de importância menor. Finalmente, nossa hipótese é que o defeito da parede atrial, que foi detectado durante a cirurgia e registrado como "oculto", não contribuiu de forma substancial para o shunt. A ETT proporciona método seguro e fácil para observar o coração, o mediastino e a maior parte da aorta torácica. Embora o exame com ETT também possa proporcionar informações úteis a respeito de possíveis danos estruturais cardíacos, a ETE é o método de escolha para diagnóstico e seguimento de deterioração clínica aguda.

Lamentavelmente, até o ano de 2018, a experiência com ITT e suas lesões concomitantes se baseiam em relatos de casos e pequenas séries de casos. Um estudo de maior magnitude ou uma revisão sistemática poderão fornecer informações relevantes sobre a estratégia de tratamento destes casos.

CONCLUSÃO

A insuficiência traumática da valva tricúspide é uma condição que necessita de elevado nível de conscientização para que seja precocemente detectada. Lesões concomitantes de outras estruturas cardíacas parecem ser o principal determinante da conduta em cada caso.

REFERÊNCIAS

  • 1
    Gosavi S, Tyroch AH, Mukherjee D. Cardiac trauma. Angiology. 2016;67(10):896-901.
  • 2
    Gagnier JJ, Kienle G, Altman DG, Moher D, Sox H, Riley D; CARE Group. The CARE Guidelines: consensus-based clinical case reporting guideline development. Glob Adv Health Med. 2013;2(5):38-43.
  • 3
    Sheikhzadeh A, Langbehn AF, Ghabusi P, Hakim C, Wendler G, Tarbiat S. Chronic traumatic tricuspid insufficiency. Clin Cardiol. 1984;7(5):299-306.
  • 4
    Gayet C, Pierre B, Delahaye JP, Champsaur G, Andre-Fouet X, Rueff P. Traumatic tricuspid insufficiency. An underdiagnosed disease. Chest. 1987;92(3):429-32.
  • 5
    Ma WG, Luo GH, Sun HS, Xu JP, Hu SS, Zhu XD. Surgical treatment of traumatic tricuspid insufficiency: experience in 13 cases. Ann Thorac Surg. 2010;90(6):1934-8.
  • 6
    Zhang Z, Yin K, Dong L, Sun Y, Guo C, Lin Y, et al. Surgical management of traumatic tricuspid insufficiency. J Card Surg. 2017;32(6):342-6.
  • 7
    Vavlitou A, Minas G, Zannetos S, Kyprianou T, Tsagourias M, Matamis D. Hemodynamic and respiratory factors that influence the opening of patent foramen ovale in mechanically ventilated patients. Hippokratia. 2016;20(3):209-13.

Editado por

Editor responsável: Thiago Costa Lisboa

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Maio 2019
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 2019

Histórico

  • Recebido
    29 Nov 2018
  • Aceito
    14 Jan 2019
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