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Disfunção de múltiplos órgãos causada por corpo estranho no esôfago

RESUMO

Apresentamos o caso de uma paciente de 71 anos de idade admitida à unidade de terapia intensiva clínica em condição de falência de múltiplos órgãos. Após o quarto dia, com aplicação de todas as modalidades de suporte à vida (estímulo com vasopressores, ventilação mecânica, terapia com diálise contínua, terapia com antibióticos de amplo espectro e outras medidas de suporte), dados inespecíficos fornecidos por acompanhante revelaram que a paciente vinha apresentando dificuldade persistente para deglutir líquidos e alimentos sólidos por alguns dias antes da admissão ao hospital. Após a realização de procedimentos adicionais de diagnóstico radiológico e endoscópico, detectou-se a presença de um corpo estranho no esôfago: um fragmento de fio de aço com cerca de 6 cm de comprimento e dobrado ao meio, que havia penetrado a parede do esôfago e se projetava ao nível da sétima vértebra cervical. Conseguimos remover o corpo estranho por via endoscópica sem maiores complicações e, a seguir, estabilizar nossa paciente, com utilização de medidas terapêuticas adicionais, conforme necessário.

Descritores:
Corpos estranhos; Insuficiência de múltiplos órgãos; Mediastinite

ABSTRACT

We present the case of a 71-year-old patient who was admitted to the medical intensive care unit in a state of multiple organ dysfunction. After the fourth day of applying all needed life-saving measures (vasopressor stimulation, mechanical ventilation, continuous dialysis treatment, broad spectrum antibiotic therapy, and other supportive measures), nonspecific heteroanamnestic data revealed that the patient had been having a persistent difficulty in swallowing liquids and food for a few days prior to hospital admission. After performing additional radiological and endoscopic diagnostic procedures, a foreign body was detected; a steel wire that had a length of approximately 6cm and was bent in a half had penetrated the esophagus and was projected into the seventh neckline. We managed to evacuate the foreign body endoscopically without further complications, and we stabilized our patient using additional therapeutic measures as needed.

Keywords:
Foreign bodies; Multiple organ failure; Mediastinitis

INTRODUÇÃO

Na população adulta, a ingestão de corpos estranhos é, em geral, vista em pacientes que abusam da ingestão de álcool, usuários de drogas psicotrópicas e pacientes com transtornos mentais ou sintomatologia bulbar.(11 Cobanoglu U, Yalcinkaya I. Esophageal foreign bodies: analysis of 175 patients. Turkish J Thorac Cardiovasc Surg. 2008;16(4):244-9.) Etiologicamente, materiais oriundos de próteses e pedaços de alimentos não adequadamente mastigados são os mais comuns (carne, ossos e dentes).(22 Ballivet-de-Régloix S, Crambert A, Maurin O, Bonfort G, Marty S, Pons Y. Fishbones in the upper aerodigestive tract: a review of 24 cases of adult patients. Iran J Otorhinolaryngol. 2017;29(93):215-9.) O quadro clínico é, em geral, dramático e imediatamente reconhecível, e dados tanto da anamnese quanto fornecidos por acompanhantes direcionam a abordagem diagnóstica. Segundo diferentes estudos, a frequência de corpos estranhos no sistema digestivo é entre 28 e 68%. Os sintomas mais comumente associados com a ingestão de corpos estranhos são: disfagia, odinofagia, vômitos, dor retroesternal, acúmulo de saliva na boca e sintomas relativos ao trato respiratório.(33 Ashraf O. Foreign body in the esophagus: a review. Sao Paulo Med J. 2006;124(6):346-9.) Os corpos estranhos são mais comumente localizados em um dos três estreitamentos do esôfago: músculo cricofaríngeo, nível da pressão aórtica, ou cárdia.(44 Gandham EJ, Tyagi A, Prabhu K. An unusual cause of cervical radicular pain-foreign body in esophagus. Iran J Otorhinolaryngol. 2018;30(99):237-9.) Acredita-se que a radiografia e a tomografia computadorizada (TC) sejam os procedimentos diagnósticos mais úteis para detecção de corpos estranhos. Angiografia por TC é considerada nos casos em que se suspeita de migração do corpo estranho para o tecido nervoso, enquanto exames de ressonância magnética são contraindicados quando se suspeita de corpo estranho com estrutura metálica.(55 de Lucas EM, Ruiz-Delgado ML, Gárcia-Barón PL, Sádaba P, Pagola MA. Foreign esophageal body impaction: multimodality imaging diagnosis. Emerg Radiol. 2004;10(4):216-7.) A remoção do corpo estranho é crucial, tanto para prevenção de infecções quanto de complicações com risco à vida, como perfuração e mediastinite química. Há poucas opções terapêuticas disponíveis para o manejo de ingestão de corpos estranhos, e sua eleição depende da idade do paciente, do quadro clínico, e do tamanho, formato e localização do corpo estranho. A endoscopia é o método mais comumente utilizado, com a menor taxa de mortalidade. Deve-se considerar que alguns corpos estranhos não podem ser removidos com utilização de endoscopia e podem ocorrer complicações, como lesão dos tecidos circundantes ou migração do corpo estranho, de modo que a cirurgia se torna a única opção terapêutica.(66 Athanassiadi K, Gerazounis M, Metaxas E, Kalantzi N. Management of esophageal foreign bodies: a retrospective review of 400 cases. Eur J Cardiothorac Surg. 2002;21(4):653-6.) Corpos estranhos geralmente migram para os tecidos circundantes, e sua migração nem sempre é causada por tentativa de manipulação ou remoção; ela pode causar infecção, abscesso ou mediastinite necrotizante, complicações muito graves associadas com elevada taxa de mortalidade.(77 Mezzetto L, Treppiedi E, Scorsone L, Giacopuzzi S, Perandini S, Macrì M, et al. Thoracic aortic pseudoaneurysm after esophageal perforation and mediastinitis caused by accidental ingestion of a mutton bone: a case report on staged endoscopic and endovascular treatments. Ann Vasc Surg. 2016;30:307.e15-9.

8 Park IH, Lim HK, Song SW, Lee KH. Perforation of esophagus and subsequent mediastinitis following mussel shell ingestion. J Thorac Dis. 2016;8(8):E693-7.
-99 Lee HJ, Kim HS, Jeon J, Park SH, Lim SU, Jun CH, et al. Endoscopic foreign body removal in the upper gastrointestinal tract: risk factors predicting conversion to surgery. Surg Endosc. 2016;30(1):106-13.)

RELATO DO CASO

Uma paciente com 71 anos de idade foi admitida à unidade de terapia intensiva clínica do Centro Universitário da República Sérvia após 1 dia de tratamento na clínica de medicina interna por nefropatia aguda com acidose metabólica extrema, comprometimento do nível de consciência, instabilidade hemodinâmica e sinais de sepse.

Catorze dias antes da hospitalização atual, a paciente foi examinada por médico em razão de diminuição da diurese e elevação de parâmetros inflamatórios: proteína C-reativa (PCR) 210,8mg/L (faixa de referência: 0 - 5mg/L), contagem de leucócitos de 12,5 × 109/L (faixa de referência: 3,40 - 9,70 × 109/L), níveis séricos de ureia de 13,2 mmol/L (faixa de referência: 2,8 - 7,2mmol/L) e níveis séricos de creatinina de 147 mmol/L (faixa de referência: 45 - 84mmol/L). Foi-lhe prescrito tratamento com antibióticos por 10 dias, após o que ela se sentiu melhor. Durante uma visita programada de retorno ao médico, foi realizada ultrassonografia dos rins e abdome, sem que se detectasse qualquer anormalidade. Os níveis séricos de ureia e creatinina eram, respectivamente, de 18,1mmol/L e 226mmol/L. A paciente tinha história pregressa de diabetes e infarto do miocárdio.

Os níveis dos parâmetros laboratoriais registrados imediatamente após a admissão à UTI foram: ureia 36,6mmol/L (faixa de referência: 2,8 - 7,2mmol/L), creatinina 1.297mmol/L (faixa de referência: 45 - 84mmol/L), potássio 7,5mmol/L (faixa de referência: 3,5 - 5,1mmol/L), e contagem de leucócitos 15,39 x 109/L (faixa de referência: 3,40 - 9,70 x 109/L). A análise de gases arteriais revelou pH 6,909 (faixa de referência: 7,34 - 7,45); pressão parcial de dióxido de carbono (pCO2) 2,82kPa (faixa de referência: 4,27 - 6,0kPa); pressão parcial de oxigênio (pO2) 8,7kPa (faixa de referência: 11,07 - 14,40kPa); saturação de oxigênio (SatO2) 83% (faixa de referência: 95 - 99%); bicarbonato (HCO3-) 4mmol/L (faixa de referência: 21,2 - 27mmol/L) e excesso de base (BE) - 27,7.

Imediatamente após a admissão, deram-se início a medidas de suporte à vida, inclusive intubação e ventilação mecânica controlada, analgesia e sedação contínua, diálise de urgência, ressuscitação com fluidos, estímulo com vasopressores, uso empírico de antibióticos de amplo espectro, terapia com corticosteroides e outras medidas de suporte e sintomáticas.

Em razão da acidose metabólica persistente e profunda instabilidade hemodinâmica, deu-se início à hemofiltração venovenosa contínua, que foi mantida até a estabilização da condição metabólica da paciente. O exame radiológico inicial revelou a presença de um corpo estranho com a densidade de um objeto metálico (radiografia do tórax) (Figura 1), porém não visível na projeção de perfil. Assim, conduziu-se uma TC da região cervical da paciente, que mostrou sombra pré-vertebral de um objeto com densidade metálica (fora do lúmen esofágico) no nível entre a sétima vértebra cervical e a primeira vértebra torácica, porém não foi possível verificar a origem do mesmo (Figura 2).

Figura 1
Radiografia do tórax mostrando corpo estranho.

Figura 2
Tomografia computadorizada da região cervical mostrando sombra pré-vertebral de um objeto com densidade metálica.

A paciente atingiu condição metabólica mais estável nos próximos dias, e foi submetida a desmame dos vasopressores e da ventilação mecânica. Em análise mais detalhada das condições da paciente durante conversa com familiares, chegou ao nosso conhecimento que alguns dias antes do surgimento dos primeiros sintomas a paciente tinha sentido incômodo após almoçar (carne de porco de um churrasco), que a impedia de comer e beber normalmente, o que resultou em elevação dos níveis séricos de ureia e creatinina, e na diminuição do débito urinário e elevação dos parâmetros inflamatórios.

Procedeu-se, então, à imediata repetição do exame radiológico e, com a cooperação de um especialista em otorrinolaringologia, realizou-se uma esofagoscopia com instrumento rígido, sob anestesia geral endotraqueal. Detectou-se um corpo estranho (fio de aço, muito provavelmente parte de um fio utilizado para fixar a carne ao espeto de churrasco) no lume do esôfago, a 20cm do rebordo alveolar da maxila, com a extremidade direita do fio atravessando o lume esofágico em sua região lateral e posterior; a mucosa do esôfago encontrava-se edemaciada, pálida e coberta por depósitos de fibrina.

Após orientação, procedeu-se à remoção completa do lume esofágico de um fio de metal com cerca de 6cm de comprimento (Figura 3). O tratamento adicional incluiu cobertura antibiótica empírica para possível mediastinite em razão de lesão perfurante do esôfago. Após o procedimento, a paciente permaneceu clinicamente estável e, com a intenção de completar sua recuperação, foi transferida para uma unidade de menor complexidade.

Figura 3
Corpo estranho.

DISCUSSÃO

Quando se levam em conta todos os eventos descritos, podemos concluir que o caso descrito não foi específico. O sintoma pelo qual a paciente foi examinada pelo médico de família e, mais tarde, pelo especialista em clínica médica, foi a diminuição do débito urinário, interpretado como sinal de nefropatia diabética. A rápida deterioração da função renal, sepse e disfunção de múltiplos órgãos demandou ações urgentes de um intensivista, em termos de suporte à vida, independentemente da causa etiológica, que só mais tarde foi determinada, em razão de uma informação acidentalmente recebida de um familiar.

O longo período de latência contribuiu para minimização dos sintomas iniciais de disfagia e desconforto. A abordagem diagnóstica deste caso identificou a possível presença de um corpo estranho, contudo sua localização precisa (luminal ou extraluminal) não foi possível. Devido à grande experiência do otorrinolaringologista em procedimentos endoscópicos, o diagnóstico foi confirmado, e tendo sido feita uma avaliação detalhada do posicionamento das partes cortantes do corpo estranho metálico, procedeu-se à sua remoção sem complicações adicionais.

CONCLUSÃO

Apesar de todos os avanços dos procedimentos diagnósticos, os dados de anamnese e os colhidos de acompanhantes são, às vezes, cruciais para o diagnóstico ou identificação do fator etiológico. Neste relato de caso, os sintomas não indicavam a presença de um corpo estranho no esôfago, porém com reconstrução adicional dos eventos, uma relação causal entre ambos pareceu lógica e plausível.

REFERÊNCIAS

  • 1
    Cobanoglu U, Yalcinkaya I. Esophageal foreign bodies: analysis of 175 patients. Turkish J Thorac Cardiovasc Surg. 2008;16(4):244-9.
  • 2
    Ballivet-de-Régloix S, Crambert A, Maurin O, Bonfort G, Marty S, Pons Y. Fishbones in the upper aerodigestive tract: a review of 24 cases of adult patients. Iran J Otorhinolaryngol. 2017;29(93):215-9.
  • 3
    Ashraf O. Foreign body in the esophagus: a review. Sao Paulo Med J. 2006;124(6):346-9.
  • 4
    Gandham EJ, Tyagi A, Prabhu K. An unusual cause of cervical radicular pain-foreign body in esophagus. Iran J Otorhinolaryngol. 2018;30(99):237-9.
  • 5
    de Lucas EM, Ruiz-Delgado ML, Gárcia-Barón PL, Sádaba P, Pagola MA. Foreign esophageal body impaction: multimodality imaging diagnosis. Emerg Radiol. 2004;10(4):216-7.
  • 6
    Athanassiadi K, Gerazounis M, Metaxas E, Kalantzi N. Management of esophageal foreign bodies: a retrospective review of 400 cases. Eur J Cardiothorac Surg. 2002;21(4):653-6.
  • 7
    Mezzetto L, Treppiedi E, Scorsone L, Giacopuzzi S, Perandini S, Macrì M, et al. Thoracic aortic pseudoaneurysm after esophageal perforation and mediastinitis caused by accidental ingestion of a mutton bone: a case report on staged endoscopic and endovascular treatments. Ann Vasc Surg. 2016;30:307.e15-9.
  • 8
    Park IH, Lim HK, Song SW, Lee KH. Perforation of esophagus and subsequent mediastinitis following mussel shell ingestion. J Thorac Dis. 2016;8(8):E693-7.
  • 9
    Lee HJ, Kim HS, Jeon J, Park SH, Lim SU, Jun CH, et al. Endoscopic foreign body removal in the upper gastrointestinal tract: risk factors predicting conversion to surgery. Surg Endosc. 2016;30(1):106-13.

Editado por

Editor responsável: Thiago Costa Lisboa

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Jan 2020
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 2019

Histórico

  • Recebido
    20 Abr 2019
  • Aceito
    11 Jul 2019
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