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Sobrecarga de fluidos em pacientes com choque séptico e depuração de lactato como alvo terapêutico: um estudo de coorte retrospectiva

RESUMO

Objetivo:

Avaliar se a sobrecarga de fluidos na terapia hídrica é fator prognóstico para pacientes com choque séptico quando ajustada para os alvos de depuração de lactato.

Métodos:

Este estudo envolveu uma coorte retrospectiva e foi conduzido em um hospital de cuidados nível IV localizado em Bogotá, na Colômbia. Foi organizada uma coorte de pacientes com choque séptico, e suas características e balanço hídrico foram documentados. Os pacientes foram estratificados por níveis de exposição segundo a magnitude da sobrecarga de fluidos por peso corporal após 24 horas de terapia. A mortalidade foi determinada aos 30 dias, e foi desenvolvido um modelo de regressão logística incondicional com ajuste para fatores de confusão. A significância estatística foi estabelecida com nível de p ≤ 0,05.

Resultados:

Foram 213 pacientes com choque séptico e, após o tratamento, 60,8% deles tiveram depuração de lactato acima de 50%. Dentre os pacientes 97 (46%) desenvolveram sobrecarga de fluidos ≥ 5%, e apenas 30 (13%) desenvolveram sobrecarga ≥ 10%. Pacientes com sobrecarga de fluidos ≥ 5% receberam, em média, 6.227mL de soluções cristaloides (DP ± 5.838mL) em 24 horas, enquanto os não expostos receberam 3.978mL (DP ± 3.728mL), com p = 0.000. Os pacientes que desenvolveram sobrecarga de fluidos foram mais frequentemente tratados com ventilação mecânica (70,7% versus 50,8%; p = 0,003), albumina (74,7% versus 55,2%; p = 0,003) e corticosteroides (53,5% versus 35,0%; p = 0,006) do que os que não desenvolveram sobrecarga de fluidos. Em análise multivariada, o balanço acumulado de fluidos não se associou com mortalidade (RC 1,03; IC95% 0,89 - 1,20).

Conclusão:

Após ajuste para severidade da condição e depuração adequada de lactato, a ocorrência de balanço hídrico positivo não se associou com aumento da mortalidade nessa coorte latino-americana de pacientes sépticos.

Descritores:
Hidratação; Edema; Choque séptico; Ressuscitação; Ácido lático; Mortalidade

ABSTRACT

Objective:

To assess whether fluid overload in fluid therapy is a prognostic factor for patients with septic shock when adjusted for lactate clearance goals.

Methods:

This was a retrospective cohort study conducted at a level IV care hospital in Bogotá, Colombia. A cohort of patients with septic shock was assembled. Their characteristics and fluid balance were documented. The patients were stratified by exposure levels according to the magnitude of fluid overload by body weight after 24 hours of therapy. Mortality was determined at 30 days, and an unconditional logistic regression model was created, adjusting for confounders. The statistical significance was established at p ≤ 0.05.

Results:

There were 213 patients with septic shock, and 60.8% had a lactate clearance ≥ 50% after treatment. Ninety-seven (46%) patients developed fluid overload ≥ 5%, and only 30 (13%) developed overload ≥ 10%. Patients exhibiting fluid overload ≥ 5% received an average of 6227mL of crystalloids (SD ± 5838mL) in 24 hours, compared to 3978mL (SD ± 3728mL) among unexposed patients (p = 0.000). The patients who developed fluid overload were treated with mechanical ventilation (70.7% versus 50.8%) (p = 0.003), albumin (74.7% versus 55.2%) (p = 0.003) and corticosteroids (53.5% versus 35.0%) (p = 0.006) more frequently than those who did not develop fluid overload. In the multivariable analysis, cumulative fluid balance was not associated with mortality (OR 1.03; 95%CI 0.89 - 1.20).

Conclusions:

Adjusting for the severity of the condition and adequate lactate clearance, cumulative fluid balance was not associated with increased mortality in this Latin American cohort of septic patients.

Keywords:
Fluid therapy; Edema; Shock, septic; Resuscitation; Lactic acid; Mortality

INTRODUÇÃO

A sepse é uma das síndromes clínicas que mais frequentemente enfrentamos na medicina intensiva. Dentre os pacientes admitidos às unidades de terapia intensiva (UTIs) gerais em todo o mundo, em média 20% deles têm a sepse como causa de admissão.(11 Kempker JA, Martin GS. The Changing Epidemiology and Definitions of Sepsis. Clin Chest Med. 2016;37(2):165-79.

2 Gotts JE, Matthay MA. Sepsis: pathophysiology and clinical management. BMJ. 2016;353:i1585.

3 Dias FS. Sepsis definitions. Rev Bras Ter Intensiva. 2017;29(4):520-1.

4 Balk RA. Systemic inflammatory response syndrome (SIRS): where did it come from and is it still relevant today? Virulence. 2014;5(1):20-6.
-55 Opal SM. The evolution of the understanding of sepsis, infection, and the host response: a brief history. Crit Care Clin. 2009;25(4):637-63, vii.) Sepse é uma resposta inflamatória não homeostática a uma infecção, que acaba em danos a órgãos. Mais ainda, a progressão para o desenvolvimento de choque séptico é, em geral, muito séria, com mortalidade de cerca de 40%.(55 Opal SM. The evolution of the understanding of sepsis, infection, and the host response: a brief history. Crit Care Clin. 2009;25(4):637-63, vii.

6 Mayr FB, Yende S, Angus DC. Epidemiology of severe sepsis. Virulence. 2014;5(1):4-11.

7 Brun-Buisson C. The epidemiology of the systemic inflammatory response. Intensive Care Med. 2000;26 Suppl 1:S64-74.

8 Horeczko T, Green JP, Panacek EA. Epidemiology of the Systemic Inflammatory Response Syndrome (SIRS) in the emergency department. West J Emerg Med. 2014;15(3):329-36.
-99 Ortíz G, Dueñas C, Rodríguez F, Barrera L, de La Rosa G, Dennis R, et al. Epidemiology of sepsis in Colombian intensive care units. Biomedica. 2014;34(1):40-7.) Desde 1991 foram estabelecidas em todo o mundo estratégias globais para a gerar diretrizes de prática clínica que tornem possível melhorar os resultados na detecção e no tratamento desta condição. A mais conhecida campanha é denominada Sobrevivendo à Sepse, que, em sua última edição, salienta a necessidade de detecção precoce, controle do foco de infecção, administração dos antibióticos corretos e terapia precoce guiada por metas (TGM).(1010 Singer M, Deutschman CS, Seymour CW, Shankar-Hari M, Annane D, Bauer M, et al. The Third International Consensus Definitions for Sepsis and Septic Shock (Sepsis-3). JAMA. 2016;315(8):801-10.,1111 Rhodes A, Evans LE, Alhazzani W, Levy MM, Antonelli M, Ferrer R, et al. Surviving Sepsis Campaign: International Guidelines for Management of Sepsis and Septic Shock: 2016. Intensive Care Med. 2017;43(3):304-77.) Esta ressuscitação inicial é essencialmente baseada na administração de fluidos cristaloides isotônicos, que é a abordagem com maior nível de evidência.(1111 Rhodes A, Evans LE, Alhazzani W, Levy MM, Antonelli M, Ferrer R, et al. Surviving Sepsis Campaign: International Guidelines for Management of Sepsis and Septic Shock: 2016. Intensive Care Med. 2017;43(3):304-77.,1212 Cawcutt KA, Peters SG. Severe sepsis and septic shock: clinical overview and update on management. Mayo Clin Proc. 2014;89(11):1572-8.) Desde então, a administração de fluidos se tornou universal, razão pela qual a recomendação é utilizar 30mL/kg nos primeiros 90 minutos e, a seguir, conforme necessário, com base na presunção de resposta aos fluidos.(1313 Marik P, Bellomo R. A rational approach to fluid therapy in sepsis. Br J Anaesth. 2016;116(3):339-49.) O problema com a administração de fluidos como primeira medida de ressuscitação é que seu efeito é errático, imprevisível e de vida muito curta. Isto significa que apenas 50% dos pacientes verdadeiramente respondem à administração de fluidos, e, assim, com elevada frequência, pacientes com sepse desenvolvem sobrecarga de fluidos.(1414 Siddiqui S. Not "surviving sepsis" in the developing countries. J Indian Med Assoc. 2007;105(4):221.,1515 Poeze M, Solberg BC, Greve JW, Ramsay G. Monitoring global volume-related hemodynamic or regional variables after initial resuscitation: What is a better predictor of outcome in critically ill septic patients? Crit Care Med. 2005;33(11):2494-500.)

A sobrecarga de fluidos em pacientes com choque séptico é quase um achado universal; 70% dos pacientes submetidos a estratégias como TGM a apresentam dentro das primeiras 24 horas, e quase metade destes pacientes ainda tem esta sobrecarga no terceiro dia.(1616 O'Connor ME, Prowle JR. Fluid overload. Crit Care Clin. 2015;31(4):803-21.,1717 Marik PE. Iatrogenic salt water drowning and the hazards of a high central venous pressure. Ann Intensive Care. 2014;4:21.) O desenvolvimento de sobrecarga de fluidos é multifatorial e depende não apenas da administração frequente de fluidos, mas também da presença de lesão renal aguda e da de extravasamento vascular associado com a resposta inflamatória na sepse. Estudos observacionais e análises post hoc de ensaios clínicos hoje mostram uma associação com aumento das taxas de mortalidade à medida que aumenta a sobrecarga de fluidos.(1818 Kelm DJ, Perrin JT, Cartin-Ceba R, Gajic O, Schenck L, Kennedy CC. Fluid overload in patients with severe sepsis and septic shock treated with early goal-directed therapy is associated with increased acute need for fluid-related medical interventions and hospital death. Shock. 2015;43(1):68-73.,1919 Boyd JH, Forbes J, Nakada TA, Walley KR, Russell JA. Fluid resuscitation in septic shock: a positive fluid balance and elevated central venous pressure are associated with increased mortality. Crit Care Med. 2011;39(2):259-65.) Contudo, isto não é prova de um relacionamento causal. Na verdade, os pacientes mais criticamente doentes são os que têm maior probabilidade de receber mais fluidos durante o tratamento, assim como são os que mais frequentemente não tem objetivos terapêuticos.

Nosso estudo tem como objetivo avaliar a associação entre a quantidade de fluidos para ressuscitação nas primeiras 24 horas do choque séptico e a ocorrência de óbito, com ajuste para a presença de fatores de confusão muito importantes, como a severidade da condição, e o atingimento dos alvos terapêuticos, como depuração apropriada de lactato.

MÉTODOS

O Hospital Universitario San Ignacio é de nível IV e se localiza na cidade de Bogotá, Colômbia, servindo ao sistema de seguro social para a população colombiana. A UTI deste hospital dispõe de 25 leitos e continuamente admite pacientes com patologias importantes, inclusive sepse. Com base nestes dados, exploramos os registros de pacientes admitidos em 2016, no qual se identificaram aqueles com diagnóstico de sepse. Os critérios de inclusão para a coorte foram idade mínima de 18 anos e diagnóstico de choque séptico com base na definição do Third International Consensus Definitions for Sepsis and Septic Shock (SEPSIS 3) quando da admissão à UTI.(1010 Singer M, Deutschman CS, Seymour CW, Shankar-Hari M, Annane D, Bauer M, et al. The Third International Consensus Definitions for Sepsis and Septic Shock (Sepsis-3). JAMA. 2016;315(8):801-10.) Os critérios de exclusão foram: mulheres grávidas ou mulheres no período perinatal, pacientes em choque cardiogênico, limitação terapêutica quando da admissão à unidade, erros na história clínica, diagnóstico confirmado de cirrose hepática com classificação de Child-Pugh B ou C em razão de histórico familiar, ou choque por traumatismo espinhal recente, ou pacientes em choque que morreram dentro das primeiras 24 horas após a admissão. O protocolo do estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética da Pontificia Universidad Javeriana, que foi o centro coordenador.

Mensuração da exposição

O nível de exposição foi determinado por meio da revisão dos registros referentes aos fluidos administrados e eliminados, com base no diagnóstico de choque séptico. Os pacientes foram estratificados em vários níveis de exposição, para o que levamos em conta os fluidos administrados dentro de 24 horas e o balanço resultante da soma algébrica dos fluidos administrados menos os eliminados. Inicialmente, os pacientes com retenção de fluidos > 5% de seu peso corporal foram considerados expostos à sobrecarga de fluidos. Indivíduos com balanços menores foram considerados não expostos. Entretanto, considerando que a literatura não é clara com relação ao melhor ponto de corte para a presença de sobrecarga de fluidos, avaliamos também pontos de corte de 7,5% e 10% do peso corporal.(2020 Malbrain ML, Marik PE, Witters I, Cordemans C, Kirkpatrick AW, Roberts DJ, et al. Fluid overload, de-resuscitation, and outcomes in critically ill or injured patients: a systematic review with suggestions for clinical practice. Anaesthesiol Intensive Ther. 2014;46(5):361-80.,2121 Sakr Y, Rubatto Birri PN, Kotfis K, Nanchal R, Shah B, Kluge S, Schroeder ME, Marshall JC, Vincent JL; Intensive Care Over Nations Investigators. Higher fluid balance increases the risk of death from sepsis: results from a large international audit. Crit Care Med. 2017;45(3):386-94.) As soluções cristaloides, administradas em conjunto com componentes do sangue e plasma, foram levadas em conta para avaliar o volume de fluidos para ressuscitação.

Resultado e definições

O resultado primário foi medido aos 30 dias como óbito por todas as causas de admissão. O diagnóstico de choque séptico se baseou nos critérios definidos pelo SEPSIS 3.(11 Kempker JA, Martin GS. The Changing Epidemiology and Definitions of Sepsis. Clin Chest Med. 2016;37(2):165-79.,33 Dias FS. Sepsis definitions. Rev Bras Ter Intensiva. 2017;29(4):520-1.) Pacientes com infecção comprovada ou provável, que tenham utilizado suporte com vasopressores para manter pressão arterial média ≥ 65mmHg e níveis de lactato ≥ 2,0 foram considerados em choque séptico. Choque cardiogênico foi considerado critério de exclusão, sendo definido como presença de pressão arterial sistólica < 90mmHg por mais de 30 minutos ou necessidade de utilizar suporte com vasopressores para manter valores normais, mais a presença de congestão pulmonar devida a elevadas pressões de enchimento e sinais de hipoperfusão ou lesão de órgãos.(2222 Shah P, Cowger JA. Cardiogenic shock. Crit Care Clin. 2014;30(3):391-412.) Não se utilizou a estratégia TGM para estabelecer o atingimento dos alvos terapêuticos. Não há presentemente evidência suficiente sobre a equivalência de outras medidas terapêuticas gerais.(2323 ProCESS Investigators, Yealy DM, Kellum JA, Huang DT, Barnato AE, Weissfeld LA, Pike F, et al. A randomized trial of protocol-based care for early septic shock. N Engl J Med. 2014;370(18):1683-93.,2424 ARISE Investigators; ANZICS Clinical Trials Group, Peake SL, Delaney A, Bailey M, Bellomo R, Cameron PA, Cooper DJ, et al. Goal-directed resuscitation for patients with early septic shock. N Engl J Med. 2014;371(16):1496-506.) Por esta razão, pacientes capazes de atingir e manter pressão arterial média ≥ 65mmHg, saturação arterial ≥ 90% e débito urinário ≥ 0,5mL/kg/hora nas primeiras 6 horas foram considerados dentro dos alvos. Além disto, ter nível arterial ou venoso central de lactato < 2mmol/L ou redução de pelo menos 50% de seu valor inicial dentro das primeiras 12 a 24 horas de tratamento foi considerado atingimento de alvo.

Análise estatística

Com nível de significância de 0,05, erro beta de 0,2 e mortalidade prevista de 30% em pacientes sem sobrecarga de fluidos, com uma razão das chances (RC) alvo de 2,5, o tamanho mínimo da amostra foi estimado com utilização da fórmula de Kelsey em 180 pacientes.(2525 Kelsey JL, Whittemore AS, Evans AS, Thompson WD. Methods in observational epidemiology. 2nd ed. New York: Oxford University Press; 1996.) Foram previstos 60 óbitos, com mortalidade de 30%. Por esta razão, pelo menos seis variáveis foram ajustadas para aplicação de regressão logística.(2626 Rothman KJ, Greenland S, Lash TL. Modern Epidemiology. 3rd ed. Philadelphia, PA: Lippincott Williams & Wilkins; 2012.) A base de dados foi construída com utilização do pacote Excel 2016, enquanto a análise foi conduzida com utilização do programa STATA 12.0. Os pacientes foram divididos entre expostos e não expostos. Para cada um dos grupos, foi fornecida uma descrição das variáveis clínicas. As variáveis qualitativas são sumarizadas como percentagens, e as variáveis quantitativas são sumarizadas como médias, medianas com amplitudes interquartis (IQR) e desvios padrão (DP).(2727 Whitley E, Ball J. Statistics review 3: hypothesis testing and P values. Crit Care. 2002;6(3):222-5. Erratum in: Crit Care. 2003;7(1):15.) As comparações entre os grupos foram realizadas com utilização do teste t de Student ou teste da soma dos pontos (rank sum) de Wilcoxon, dependendo da normalidade. Os testes qui-quadrado( )ou exato de Fisher foram utilizados para variáveis qualitativas, segundo os valores previstos. O nível de significância foi determinado como um teste bicaudal com valor de p ≤ 0,05.(2626 Rothman KJ, Greenland S, Lash TL. Modern Epidemiology. 3rd ed. Philadelphia, PA: Lippincott Williams & Wilkins; 2012.,2727 Whitley E, Ball J. Statistics review 3: hypothesis testing and P values. Crit Care. 2002;6(3):222-5. Erratum in: Crit Care. 2003;7(1):15.) A análise multivariada foi conduzida por meio da construção de uma regressão logística incondicional. As variáveis foram selecionadas por meio do método de seleção com propósito (Hosmer & Lesmeshow, 2008). O delineamento do modelo inicial incluiu todas as variáveis e o conjunto de interações multiplicativas. O modelo final, ou de efeito principal, foi obtido de uma estratégia de modelagem regressiva (backward). Excluíram-se as variáveis com fraca associação com o resultado (p ≤ 0,20) com utilização do teste de Wald.(2828 Ali Z, Bhaskar SB. Basic statistical tools in research and data analysis. Indian J Anaesth. 2016;60(9):662-9. Erratum in: Indian J Anaesth. 2016;60(10 ):790.,2929 Kleinbaum DG, Klein M. Logistic regression: a self-learning text. 3rd ed. New York: Springer; 2010.) A presença de fatores de confusão foi considerada em modificações da RC acima de 20%.

RESULTADOS

Durante o período compreendido entre 1° de dezembro de 2015 e 30 de dezembro de 2016, 1.300 pacientes adultos foram admitidos à UTI. Destes, 333 (25,6%) foram admitidos para tratamento com diagnóstico primário de choque. Dentre os pacientes com diagnóstico de choque, 238 (71%) cumpriram os critérios de choque séptico, 54 (16%) os para choque hipovolêmico, 29 (8%) de choque cardiogênico e 8 (2%) de choque obstrutivo. Todos os pacientes com diagnóstico de choque séptico foram incluídos na coorte, e não houve perdas durante o seguimento. Entretanto, 25 (10,5%) foram excluídos por diversas razões, sendo a mais frequente a ocorrência de mortalidade precoce, dentro das primeiras 24 horas após o início do tratamento. Os detalhes da construção da coorte e as demais causas de exclusão são mostradas pela figura 1.

Figura 1
Inscrições no estudo e montagem da coorte. UTI - unidade de terapia intensiva.

A coorte final foi constituída por 213 pacientes, dos quais 131 (61%) eram do sexo masculino; a média de idade foi de 58 anos (DP ± 17,1) e o peso corporal médio foi de 61,9kg (DP ± 12,5). Com relação à origem do paciente para admissão, 161 (75%) vieram do pronto-socorro, e o tempo médio de tratamento nas salas de ressuscitação foi de 14 horas (DP ± 11,7). A comorbidade mais frequente na coorte foi câncer em 73 (34%) pacientes, seguido de hipertensão arterial sistêmica em 71 (33%) pacientes e diabetes mellitus em 36 (17%) indivíduos. Com relação às causas do choque séptico, 129 (60%) pacientes tiveram culturas positivas, e os focos mais frequentes de infecção foram o abdome, com 57 (26,7%) casos, seguido dos pulmões, com 55 (25,8%) casos, 44 (20,6%) casos de bacteremia e 21 (14,5%) de infecção urinária. Com relação à severidade da condição, o Sequential Organ Faiulure Assessment (SOFA) mediano por ocasião da admissão foi de 9 (IQR 7 - 12); 128 (60%) dos pacientes receberam ventilação mecânica, 37 (17%) terapia de substituição renal contínua e 137 (64%) fluidos coloidais (albumina, 20%). Com relação à terapia com fluidos, o volume médio de fluidos para ressuscitação utilizado nas primeiras 6 horas de tratamento foi 30,8mL/kg (DP ± 19,9), e o volume médio de fluidos recebidos em 24 horas foi de 82,7mL/kg (DP ± 34,1). Em termos de atingimento dos alvos terapêuticos, 60% da coorte atingiu depuração do lactato ≥ 50% dentro de 24 horas de tratamento. Como resultado do processo terapêutico, 46% desenvolveram sobrecarga de fluidos ≥ 5% de seu peso corpóreo em 24 horas, enquanto apenas 13% dos pacientes desenvolveram sobrecarga de fluidos ≥ 10%. A taxa de mortalidade aos 30 dias foi de 44%, envolvendo 94 indivíduos (intervalo de confiança de 95% - IC95% 37 - 50).

Com base na sobrecarga de fluidos ≥ 5% do peso corporal dentro de 24 horas, 114 indivíduos foram estratificados como pacientes não expostos, e 99 como pacientes expostos. A percentagem de pacientes masculinos expostos foi de 63%, em comparação com 59% dos não expostos; a média de idade dos pacientes expostos foi 60,1 anos, em comparação com 57,6 entre pacientes não expostos; e o peso corporal médio entre os pacientes expostos foi de 62,9kg, em comparação com 60,7kg entre os não expostos. Não se encontraram diferenças estatisticamente significantes nas comorbidades por ocasião da admissão. Entretanto, a percentagem de indivíduos com hipertensão arterial sistêmica foi surpreendentemente mais alta, com 37,7% entre os pacientes não expostos versus 28,2% entre os não expostos. Com relação aos exames laboratoriais realizados por ocasião da admissão, não se observaram diferenças clinicamente relevantes na concentração de hemoglobina ou na contagem de plaquetas. Foram encontradas diferenças, em termos de níveis de creatinina, com 1,69mg/dL entre os pacientes não expostos em comparação com 2,32mg/dL entre os expostos, e níveis iniciais de lactato, com 2,8mmol/L entre os pacientes não expostos em comparação com 4,0mmol/L entre os expostos (essas diferenças foram estatisticamente significantes, com p < 0,05). Com relação aos marcadores de severidade, o SOFA mediano, por ocasião da admissão, foi de 10 nos pacientes expostos, enquanto nos pacientes não expostos foi de 8. A tabela 1 apresenta um resumo de todas as características comparativas.

Tabela 1
Comparação das características clínicas e sociodemográficas entre pacientes expostos e não expostos

Com relação ao tratamento, os pacientes não expostos foram, em média, ressuscitados com 24,2mL/kg (DP ± 14,3 ml/kg) nas primeiras 6 horas, em comparação com 38,4mL/kg (DP ± 22,3mL/kg) nos expostos. Igualmente, o balanço médio em 24 horas foi positivo, com 1.620mL (DP ± 931mL) entre os pacientes não expostos, em comparação com 5.111mL (DP ± 2.087mL) entre os expostos (Figura 2). Além disto, 67,5% dos pacientes não expostos obtiveram depuração de lactato ≥ 50% dentro de 24 horas, em comparação com 57,0% dos expostos. Indivíduos com sobrecarga de fluidos foram mais frequentemente tratados com ventilação mecânica (70,7% versus 50,8%), receberam tratamento com albumina 20% mais frequentemente (74,7% versus 55,2%), tiveram tendência à maior necessidade de terapia de substituição renal (22,2% versus 13,1%) e seus níveis de mortalidade foram mais altos, com 54,5% em comparação a 35,0% entre os pacientes não expostos (p = 0,004).

Figura 2
Comparação dos resultados da terapia com fluidos entre pacientes expostos e não expostos. T0 - T6H - primeiras 6 horas de tratamento; T7 - T24H - tratamento entre 7 e 24 horas.

Finalmente, a análise bruta relativa à ocorrência de óbito e ao balanço acumulado medido em litros dentro de 24 horas inicialmente mostrou associação positiva, com RC de 1,19 (IC95% 1,05 - 1,35). Contudo, após ajuste para fatores de confusão, esta associação não foi estatisticamente significante, com RC ajustada de 1,03 (IC95% 0,89 - 1,20). Na análise multivariada, as variáveis que predisseram de forma significante a ocorrência de óbito foram históricos de câncer, com RC ajustada de 1,92 (IC95% 1,007 - 3,69), e SOFA, com RC ajustada de 1,14 (IC95% 1,04 - 1,26). A obtenção da depuração necessária de lactato foi fator de proteção, com RC ajustada de 0,24 (IC95% 0,12 - 0,45). Quando se utilizaram pontos de corte relacionados à ocorrência de sobrecarga de fluidos de 5,0%, 7,5% e 10%, não foram encontradas associações significantes com a ocorrência de óbito após ajustes para os índices de severidade, comorbidades ou obtenção da depuração adequada de lactato (Figura 3).

Figura 3
Regressão logística avaliando o relacionamento entre sobrecarga de volume e o desenvolvimento de óbito. RC - razão de chance. *O modelo final ajustado para presença de câncer, Sequential Organ Failure Assessment e atingimento dos alvos de ressuscitação.

DISCUSSÃO

A sobrecarga de fluidos em pacientes críticos é um fenômeno multifatorial que resulta da interação de fatores que incluem a síndrome de extravasamento capilar, a administração comum de fluidos como base da terapia de ressuscitação e a retenção hidrossalina associada com a frequente ocorrência de lesão renal.(1616 O'Connor ME, Prowle JR. Fluid overload. Crit Care Clin. 2015;31(4):803-21.) Esta sobrecarga é considerada deletéria e frequentemente associada com taxas maiores de mortalidade, assim como mais procedimentos invasivos.(1616 O'Connor ME, Prowle JR. Fluid overload. Crit Care Clin. 2015;31(4):803-21.,2020 Malbrain ML, Marik PE, Witters I, Cordemans C, Kirkpatrick AW, Roberts DJ, et al. Fluid overload, de-resuscitation, and outcomes in critically ill or injured patients: a systematic review with suggestions for clinical practice. Anaesthesiol Intensive Ther. 2014;46(5):361-80.) Mais ainda, as condições da perfusão tissular e circulação na presença de edema são tornadas muito mais complexas e podem perpetuar a disfunção circulatória, além de piora da função de órgãos.(3030 Martin GS. Sepsis, severe sepsis and septic shock: changes in incidence, pathogens and outcomes. Expert Rev Anti Infect Ther. 2012;10(6):701-6.,3131 Russell JA, Rush B, Boyd J. Pathophysiology of septic shock. Crit Care Clin. 2018;34(1):43-61.) Contudo, é claro que o risco de sobrecarga de fluidos também aumenta à medida que o paciente piora e não atinge os alvos de tratamento, o que, por sua vez, associa-se com taxas mais elevadas de mortalidade.(3232 Rivers E, Nguyen B, Havstad S, Ressler J, Muzzin A, Knoblich B, Peterson E, Tomlanovich M; Early Goal-Directed Therapy Collaborative Group. Early goal-directed therapy in the treatment of severe sepsis and septic shock. N Engl J Med. 2001;345(19):1368-77.,3333 Jiang LB, Zhang M, Jiang SY, Ma YF. Early goal-directed resuscitation for patients with severe sepsis and septic shock: a meta-analysis and trial sequential analysis. Scand J Trauma Resusc Emerg Med. 2016;24:23.) Por esta razão, a sobrecarga de fluidos parece ser um marcador de severidade e não necessariamente um fator independente de mau prognóstico. O relacionamento entre a severidade da condição e a ocorrência de sobrecarga de fluidos é muito mais consistente na literatura,(3434 Sánchez M, Jiménez-Lendínez M, Cidoncha M, Asensio MJ, Herrerot E, Collado A, et al. Comparison of fluid compartments and fluid responsiveness in septic and non-septic patients. Anaesth Intensive Care. 2011;39(6):1022-9.) e nosso estudo mostra, mais uma vez, que estes indivíduos são pacientes mais graves. Em nossa coorte, pacientes com sobrecarga de fluidos mostraram um espectro mais amplo de severidade do que pacientes sem sobrecarga de fluidos em razão de fatores como seu nível de creatinina (2,32mg/dL versus 1,69mg/dL; p = 0,040), seus níveis de lactato por ocasião da admissão (4,0mmol/L versus 2,8mmol/L; p = 0,001) e seu SOFA (mediana 10 versus 8; p = 0,005).

Quando se avalia o relacionamento entre o balanço acumulado de fluidos e a mortalidade, não encontramos qualquer relacionamento em nossa coorte após ajustar para fatores importantes, como severidade da condição e atingimento dos alvos do tratamento (RC ajustada 1,03; IC95% 0,89 - 1,20), ou quando utilizamos pontos de corte para a sobrecarga de volume, como 5%, 7,5% e 10% do peso corporal (Figura 3). Além disto, os únicos fatores que puderam predizer independentemente a ocorrência de óbito foram aumento do SOFA (RC ajustada 1,14; IC95% 1,04 - 1,26), histórico de câncer (RC ajustada 1,92; IC95% 1,007 - 3,69) e atingimento de um alvo terapêutico na depuração de lactato como fator protetor (RC 0,24; IC95% 0,12 - 0,45). Em nossa opinião, estes achados dão suporte ao fato de que pacientes com doença mais grave com frequência desenvolvem sobrecarga de fluidos. Entretanto, se os esforços terapêuticos forem capazes de levar o indivíduo ao atingimento dos alvos do tratamento, a sobrecarga de fluidos não parece ser significante na predição de mortalidade. A sobrevivência do paciente, em última instância, depende do balanço entre a severidade de sua condição e o atingimento dos alvos terapêuticos, no qual, nesse caso, a obtenção da redução dos níveis de lactato em mais de 50% em 24 horas é um grande fator de proteção. Isto não necessariamente justifica o uso liberal da terapêutica com fluidos, uma vez que é claro que estes pacientes demandam mais dias sob ventilação mecânica e tratamentos invasivos.(3535 National Heart, Lung, and Blood Institute Acute Respiratory Distress Syndrome (ARDS) Clinical Trials Network, Wiedemann HP, Wheeler AP, Bernard GR, Thompson BT, Hayden D, deBoisblanc B, et al. Comparison of two fluid-management strategies in acute lung injury. N Engl J Med. 2006;354(24):2564-75.,3636 Grams ME, Estrella MM, Coresh J, Brower RG, Liu KD, National Heart, Lung, and Blood Institute Acute Respiratory Distress Syndrome Network. Fluid balance, diuretic use, and mortality in acute kidney injury. Clin J Am Soc Nephrol. 2011;6(5):966-73.) Contudo, estes resultados mostram que a terapia deve sempre ser ajustada às reais necessidades terapêuticas, como o atingimento dos alvos de ressuscitação. Na verdade, recente estudo a respeito da incorporação de um conjunto de medidas terapêuticas na sepse demonstrou que a aplicação de uma medida simples, como identificação precoce do foco e rápida administração de antibióticos mais a administração rápida de 30mL/kg de cristaloides, é efetiva e se associa com redução da mortalidade, e não se associa com resultados adversos, mesmo em pacientes com histórico de insuficiência cardíaca.(3737 Liu VX, Morehouse JW, Marelich GP, Soule J, Russell T, Skeath M, et al. Multicenter implementation of a treatment bundle for patients with sepsis and intermediate lactate values. Am J Respir Crit Care Med. 2016;193(11):1264-70.) Isto salienta que a administração precoce apropriada de fluidos é provavelmente justificada, porém é necessário identificar rapidamente os pacientes que não respondem ao volume e, portanto, não obterão benefícios adicionais com o tratamento. Na verdade, em nossa coorte, a maior sobrecarga de fluidos em pacientes aconteceu após as primeiras 6 horas de tratamento (Figura 2), o que também traz à discussão se os líquidos utilizados no tratamento após a fase de ressuscitação estão, de fato, contribuindo para que se atinjam os alvos terapêuticos, ou apenas representam a administração continuada de soluções desnecessárias.

Na literatura os resultados são coerentes com o que se encontrou em nosso estudo. Se considerarmos estudos de coorte, existe uma concordância de que os pacientes com sobrecarga de fluidos são aqueles com enfermidades mais graves.(2121 Sakr Y, Rubatto Birri PN, Kotfis K, Nanchal R, Shah B, Kluge S, Schroeder ME, Marshall JC, Vincent JL; Intensive Care Over Nations Investigators. Higher fluid balance increases the risk of death from sepsis: results from a large international audit. Crit Care Med. 2017;45(3):386-94.,3636 Grams ME, Estrella MM, Coresh J, Brower RG, Liu KD, National Heart, Lung, and Blood Institute Acute Respiratory Distress Syndrome Network. Fluid balance, diuretic use, and mortality in acute kidney injury. Clin J Am Soc Nephrol. 2011;6(5):966-73.,3838 Levick JR, Michel CC. Microvascular fluid exchange and the revised Starling principle. Cardiovasc Res. 2010;87(2):198-210.) No estudo conduzido por Kelm et al.,(1818 Kelm DJ, Perrin JT, Cartin-Ceba R, Gajic O, Schenck L, Kennedy CC. Fluid overload in patients with severe sepsis and septic shock treated with early goal-directed therapy is associated with increased acute need for fluid-related medical interventions and hospital death. Shock. 2015;43(1):68-73.) que incluiu pacientes sépticos com utilização de uma definição clínica de presença de edema, pacientes com sobrecarga de fluidos foram mais frequentemente afetados por nefropatia crônica e tiveram índices mais altos de mortalidade do que os pacientes sem sobrecarga de fluidos. No estudo conduzido por Sakr et al.,(2121 Sakr Y, Rubatto Birri PN, Kotfis K, Nanchal R, Shah B, Kluge S, Schroeder ME, Marshall JC, Vincent JL; Intensive Care Over Nations Investigators. Higher fluid balance increases the risk of death from sepsis: results from a large international audit. Crit Care Med. 2017;45(3):386-94.) que também incluiu apenas pacientes sépticos e utilizou diferentes pontos de corte para sobrecarga de fluidos com base em quartis de balanço hídrico dentro de 24 horas, o SOFA aumentou para cada aumento no quartil de retenção hídrica. Igualmente, outros estudos mostram tendência à maior severidade nos pacientes que sofrem de sobrecarga de fluidos.(3636 Grams ME, Estrella MM, Coresh J, Brower RG, Liu KD, National Heart, Lung, and Blood Institute Acute Respiratory Distress Syndrome Network. Fluid balance, diuretic use, and mortality in acute kidney injury. Clin J Am Soc Nephrol. 2011;6(5):966-73.,3939 Alsous F, Khamiees M, DeGirolamo A, Amoateng-Adjepong Y, Manthous CA. Negative fluid balance predicts survival in patients with septic shock: a retrospective pilot study. Chest. 2000;117(6):1749-54.) Entretanto, estabelecer se a sobrecarga de fluidos é um fator independente de prognóstico é uma tarefa muito mais complexa (e, em relação a isto, tivemos resultados difíceis de interpretar), e os estudos observacionais têm suas deficiências. Primeiramente, com relação à definição de sobrecarga de fluidos, encontramos alguns estudos com definições baseadas em achados clínicos, outros estudos com definições com base em pontos de corte em diferentes momentos da evolução e, finalmente, estudos que compararam apenas os quartis mais altos de balanço com os mais restritivos.(2121 Sakr Y, Rubatto Birri PN, Kotfis K, Nanchal R, Shah B, Kluge S, Schroeder ME, Marshall JC, Vincent JL; Intensive Care Over Nations Investigators. Higher fluid balance increases the risk of death from sepsis: results from a large international audit. Crit Care Med. 2017;45(3):386-94.) Quando se consideram pesquisas específicas com foco no choque séptico, o trabalho conduzido por Kelm et al.(1818 Kelm DJ, Perrin JT, Cartin-Ceba R, Gajic O, Schenck L, Kennedy CC. Fluid overload in patients with severe sepsis and septic shock treated with early goal-directed therapy is associated with increased acute need for fluid-related medical interventions and hospital death. Shock. 2015;43(1):68-73.) demonstrou que a sobrecarga foi independentemente capaz de predizer a mortalidade entre pacientes sépticos (RC ajustada de 2,2; IC95% 1,31 - 4,09), porém não foi capaz de esclarecer se a definição de sobrecarga de fluidos utilizada classificaria bem os pacientes em razão de níveis mais elevados de retenção hídrica. Na verdade, não se observaram diferenças no balanço entre pacientes com e sem sobrecarga de fluidos para os dias 1 e 3 de tratamento. Em contraste, o trabalho conduzido por Sakr et al.,(2121 Sakr Y, Rubatto Birri PN, Kotfis K, Nanchal R, Shah B, Kluge S, Schroeder ME, Marshall JC, Vincent JL; Intensive Care Over Nations Investigators. Higher fluid balance increases the risk of death from sepsis: results from a large international audit. Crit Care Med. 2017;45(3):386-94.) que classificou os pacientes por quartis de balanço em 24 horas, não conseguiu demonstrar a associação com a ocorrência de óbito quando se fizeram ajustes quanto ao grau de severidade (RC ajustada de 1,07; IC95% 0,76 - 1,51). Uma revisão sistemática da literatura publicada em 2014, a respeito de tópicos que incluem todos os tipos de pacientes críticos, mostrou que terapias restritivas com fluidos se associaram com taxas menores de mortalidade (RC de 0,42; IC95% 0,32 - 0,55).(2020 Malbrain ML, Marik PE, Witters I, Cordemans C, Kirkpatrick AW, Roberts DJ, et al. Fluid overload, de-resuscitation, and outcomes in critically ill or injured patients: a systematic review with suggestions for clinical practice. Anaesthesiol Intensive Ther. 2014;46(5):361-80.) Contudo, esta foi uma revisão de qualidade muito ruim, uma vez que combinou pacientes de ensaios clínicos randomizados com os de estudos observacionais, inclusive uma série de casos, o que torna impossível controlar quanto à presença de desequilíbrios entre os grupos e mostrou um grau muito alto de heterogeneidade (I(2 )= 86%). Afinal, temos apenas o grande ensaio clínico randomizado, que teve como alvo comparar as modalidades de terapia com fluido restritiva e liberal no processo terapêutico. Este ensaio foi conduzido com pacientes que tinham diagnóstico de síndrome do desconforto respiratório agudo (SDRA), dentre os quais cerca de 60% eram sépticos.(3535 National Heart, Lung, and Blood Institute Acute Respiratory Distress Syndrome (ARDS) Clinical Trials Network, Wiedemann HP, Wheeler AP, Bernard GR, Thompson BT, Hayden D, deBoisblanc B, et al. Comparison of two fluid-management strategies in acute lung injury. N Engl J Med. 2006;354(24):2564-75.) Embora pacientes com a abordagem restritiva tenham atingido balanço negativo no dia 7 em comparação com um balanço médio positivo de quase 7L no grupo controle, não houve diferença entre os grupos em termos de mortalidade. Esta é, até aqui, a evidência mais forte para dar suporte ao fato de que a sobrecarga de fluidos não é necessariamente associada com níveis mais altos de mortalidade. Mais uma vez, isto não dá apoio para o uso rotineiro de estratégias restritivas de fluidos, o que pode ser até mesmo danoso se os pacientes não receberem quantidades apropriadas de líquidos nas primeiras horas de ressuscitação. Trabalhos como o de Leisman et al. demonstram que pacientes com nefropatia e cardiopatia crônicas recebem muito menos fluidos nas fases iniciais da ressuscitação (120 minutos) e mesmo em estágios muito mais tardios, o que é tipicamente associado com resultados piores.(4040 Leisman DE, Goldman C, Doerfler ME, Masick KD, Dries S, Hamilton E, et al. Patterns and outcomes associated with timeliness of initial crystalloid resuscitation in a prospective sepsis and septic shock cohort. Crit Care Med. 2017;45(10):1596-606.,4141 Garzotto F, Ostermann M, Martín-Langerwerf D, Sánchez-Sánchez M, Teng J, Robert R, Marinho A, Herrera-Gutierrez ME, Mao HJ, Benavente D, Kipnis E, Lorenzin A, Marcelli D, Tetta C, Ronco C; DoReMIFA study group. The Dose Response Multicentre Investigation on Fluid Assessment (DoReMIFA) in critically ill patients. Crit Care. 2016;20(1):196.)

Nosso trabalho tem alguns pontos fortes: trata-se de um estudo de coorte, que foi primariamente delineado para buscar uma associação; os pacientes foram selecionados consecutivamente, o estudo seguiu as definições do SEPSIS 3, e, em particular, é um dos primeiros a promover ajustes quanto a fatores de confusão na obtenção dos alvos terapêuticos, como a depuração de lactato. Nosso trabalho também tem seus pontos fracos: os pacientes foram recrutados de forma retrospectiva, o que aumenta a probabilidade de viés de mensuração; o estudo foi conduzido em um único centro e não foi possível avaliar especificamente os alvos da TGM dentro de 6 horas de tratamento (falta de mensuração da saturação venosa ou da pressão venosa central dentro das 6 horas). Acreditamos que pode haver viés na mensuração do peso corporal dos pacientes, já que a qualidade dos registros em muitos dos casos tornou impossível verificar a forma como os pacientes foram pesados. Finalmente, o uso de pontos de corte arbitrários na definição da sobrecarga de volume também tornou a precisão do cálculo das RC inadequada, para o que seria necessária uma amostra de grande tamanho. Em virtude do acima exposto, cremos que ainda é necessário que se conduzam muito mais pesquisas a respeito deste assunto, sendo necessário um estudo clínico randomizado que avalie diretamente os resultados do uso de estratégias restritivas de fluidos em pacientes com choque séptico. Até o momento, a evidência é mais forte em relação a resultados, como o número de dias sob ventilação mecânica e necessidade de terapia de substituição renal, o que não é menos importante.(1616 O'Connor ME, Prowle JR. Fluid overload. Crit Care Clin. 2015;31(4):803-21.,2020 Malbrain ML, Marik PE, Witters I, Cordemans C, Kirkpatrick AW, Roberts DJ, et al. Fluid overload, de-resuscitation, and outcomes in critically ill or injured patients: a systematic review with suggestions for clinical practice. Anaesthesiol Intensive Ther. 2014;46(5):361-80.) Entretanto, com relação à predição de mortalidade como fator independente, cremos que a sobrecarga de fluidos é apenas mais um marcador da severidade da condição clínica do paciente, e a administração de fluidos deve ser equilibrada, favorecendo ressuscitação precoce sem restrições a 30mL/kg e, após as primeiras 3 horas, estabelecer a real resposta dos pacientes ao volume.

CONCLUSÃO

Após ajustes quanto à severidade clínica e à depuração adequada de lactato, o balanço hídrico acumulado não se associou com aumento da mortalidade nesta coorte de pacientes latino-americanos com sepse.

AGRADECIMENTOS

Os autores agradecem ao Hospital Universitario San Ignacio de Bogotá, por sua assistência e seu suporte

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Editado por

Editor responsável: Gilberto Friedman

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Maio 2020
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 2020

Histórico

  • Recebido
    20 Maio 2019
  • Aceito
    19 Nov 2019
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