Acessibilidade / Reportar erro

Síndrome de Kounis. A propósito de um caso clínico

RESUMO

A síndrome de Kounis, enquanto síndrome coronária aguda, ocorre em um contexto de reação de hipersensibilidade, alergia ou anafilaxia, e subdivide-se em três tipos: o espasmo coronário em artérias normais, a instabilidade de placas em artérias coronárias ateroscleróticas e a trombose de stent coronário. Apresenta-se o caso de uma doente de 73 anos que, após administração de amoxicilina/ácido clavulânico, entra em parada cardiorrespiratória, com evidência de supradesnivelamento do segmento ST-T em eletrocardiograma. Realiza coronariografia com ausência de lesões obstrutivas, verificando-se resolução espontânea das alterações eletrocardiográficas. Revisão da anamnese com a família documenta alergia prévia à penicilina. O doseamento de triptase foi fortemente positivo. Foi admitida provável síndrome de Kounis tipo 2, com boa evolução clínica posterior.

Descritores:
Alergia; Beta-lactâmicas; Síndrome coronariana aguda; Síndrome de Kounis

ABSTRACT

Kounis syndrome, while an acute coronary syndrome, occurs in the context of a hypersensitivity reaction, allergies, or anaphylaxis and is subdivided into three types: coronary spasm in normal arteries, instability of plaques in atherosclerotic coronary arteries, and thrombosis of coronary stents. Herein, the case of a 73-year-old patient who, after administration of amoxicillin/clavulanic acid, went into cardiorespiratory arrest with evidence of ST-T segment elevation on electrocardiogram is reported. Coronarography revealed no obstructive lesions, and spontaneous resolution of electrocardiographic abnormalities was observed. A review of anamnesis with the family revealed a previous allergy to penicillin. The tryptase dosage was strongly positive. Kounis syndrome type 2 was diagnosed, and the clinical outcome was good.

Keywords:
Allergy; Beta-lactams; Acute coronary syndrome; Kounis syndrome

INTRODUÇÃO

O primeiro relato de síndrome coronária aguda em contexto de alergia foi descrito em 1950 por Pfistero em um homem de 49 anos, após tratamento durante 4 dias com antibiótico betalactâmico.(11 Pfister CW, Plice SG. Acute myocardial infarction during a prolonged allergic reaction to penicillin. Am Heart J. 1950;40(6):945-7.) Em 1991, Kounis descreveu pela primeira vez a “síndrome da angina alérgica”, caraterizada por dor torácica e reação alérgica cutânea, acompanhada por achados clínicos e laboratoriais clássicos de enfarte do miocárdio, causada por mediadores inflamatórios libertados durante a reação alérgica.(22 Maragkoudakis S, Hamilos M, Kallergis E, Vardas P. Type 2 Kounis syndrome in an allergic woman: An uncommon presentation of acute coronary syndrome. J Cardiol Cases. 2013;8(6):176-178.

3 Biteker M. Current understanding of Kounis syndrome. Expert Rev Clin Immunol. 2010;6(5):777-88.
-44 Kounis NG. Kounis syndrome (allergic angina and allergic myocardial infarction): a natural paradigm? Int J Cardiol. 2006;110(1):7-14.)A síndrome de Kounis subdivide-se em três tipos: o tipo 1 é resultante de espasmo coronário em artérias coronárias normais; o tipo 2, por espasmo ou rutura de placa, em artérias coronárias com aterosclerose prévia; no tipo 3, a reação de hipersensibilidade conduz a trombose de um stent farmacológico previamente implantado.(55 Akyel A, Murat SN, Cay S, Kurtul A, Ocek AH, Cankurt T. Late drug eluting stent thrombosis due to acemetacine: type III Kounis syndrome: Kounis syndrome due to acemetacine. Int J Cardiol. 2012;155(3):461-2.)

CASO CLÍNICO

Sexo feminino, 73 anos, leucodérmica, com antecedentes pessoais conhecidos de hipertensão arterial, diabetes mellitus tipo 2 insulinotratada, dislipidemia e doença cerebrovascular. Doente negou alergias medicamentosas conhecidas. Recorreu ao serviço de urgência por tosse produtiva com expectoração purulenta e febre (38,1ºC) com 5 dias de evolução. Analiticamente com aumento dos parâmetros inflamatórios e, radiologicamente, com condensação do lobo inferior esquerdo, a favorecer o diagnóstico de pneumonia adquirida na comunidade. Foi-lhe prescrita amoxicilina/ácido clavulânico, sendo a primeira administração por via endovenosa, no serviço de urgência. Aproximadamente 1 minuto após ingestão do fármaco, apresentou rash cutâneo generalizado e alteração do estado de consciência, com saturação periférica de oxigênio, em ar ambiente, de 67%; pressão arterial 87×50mmHg; e frequência cardíaca de 110bpm. Foi medicada com clemastina 2mg e hidrocortisona 200mg, com evolução desfavorável para parada cardiorrespiratória, com posterior recuperação de pulso após Suporte Avançado de Vida, necessidade de entubação orotraqueal e ventilação mecânica invasiva. Eletrocardiograma com evidência de supradesnivelamento do segmento ST no território inferior (Figura 1). Realizou coronariografia urgente, que revelou doença aterosclerótica difusa, com ausência de lesões obstrutivas (Figura 2). Verificou-se ainda, na sala de hemodinâmica, a resolução espontânea do supradesnivelamento do segmento ST-T. Analiticamente, apresentava-se com pico de troponina I 2,046µg/L, creatinoquinase (CK) total 647U/L e CK-MB 55U/L. Após contato, a família mencionou alergia prévia à penicilina, que a doente desconhecia. Doseamento da triptase nas primeiras 6 horas após o choque: 132ng/mL (fortemente positivo). Foi admitida provável síndrome de Kounis tipo 2 em contexto de toma de amoxicilina/ácido clavulânico. Doente permaneceu 29 horas sob ventilação mecânica, com boa evolução clínica posterior. Teve alta com indicação para evitar antibióticos betalactâmicos e foi referenciada à consulta de imunoalergologia.

Figura 1
Eletrocardiograma realizado imediatamente após a administração do fármaco, com supradesnivelamento do segmento ST no território inferior.

Figura 2
Coronariografia revelou doença aterosclerótica difusa, sem lesões obstrutivas.

DISCUSSÃO

A alergia aos antibióticos betalactâmicos é a causa mais comum de reações adversas medicamentosas mediadas por mecanismos imunológicos específicos.(66 Torres MJ, Blanca M, Fernandez J, Romano A, Weck A, Aberer W, Brockow K, Pichler WJ, Demoly P; ENDA; EAACI Interest Group on Drug Hypersensitivity. Diagnosis of immediate allergic reactions to beta-lactam antibiotics. Allergy. 2003;58(10):961-72.) Essa é a alergia medicamentosa mais frequentemente reportada, com prevalência a variar entre 5% e 10%. Estudos recentes mostram que 95% dos doentes com história de alergia à penicilina não são, na realidade, alérgicos.(77 Solensky R. Allergy to ß-lactam antibiotics. J Allergy Clin Immunol. 2012;130(6):1442-2.e5.)A anafilaxia, reação alérgica IgE medida (tipo TH2), ocorre por meio de uma exposição a alérgenos específicos, que induzem a uma reação alérgica coordenada, com libertação de mediadores agudos de resposta inflamatória. Os mastócitos são as principais células envolvidas nas reações alérgicas, presentes na camada íntima das artérias coronárias e nas placas ateroscleróticas. Eles, perante um insulto alérgico, liberam mediadores endógenos, como histamina, triptase, leucotrienos e citocinas.(88 Ariza A, Mayorga C, Fernandez TD, Barbero N, Martín-Serrano A, Pérez-Sala D, et al. Hypersensitivity reactions to ß-lactams: relevance of hapten-protein conjugates. J Investig Allergol Clin Immunol. 2015;25(1):12-25.) Perante um quadro de dor torácica súbita, associado a sintomas de alergia ou anafilaxia, a possibilidade de síndrome de Kounis deve ser sempre considerada.(99 Ridella M, Bagdure S, Nugent K, Cevik C. Kounis syndrome following beta-lactam antibiotic use: review of literature. Inflamm Allergy Drug Targets. 2009;8(1):11-6.) Níveis séricos elevados de triptase documentam a ativação de mastócitos, apoiando o diagnóstico de anafilaxia, embora valores negativos não o excluam.(1010 República Portuguesa. Serviço Nacional de Saúde. Norma nº 014/2012 de 16/12/2012 atualizada a 18/12/2014. Anafilaxia: Abordagem clínica. Disponível em: https://www.1.Norma no 014/2012 de 16/12/2012 atualizada a 18/12/2014.dgs.pt/directrizes-da-dgs/normas-e-circulares-normativas/norma-n-0142012-de-16122012.aspx
https://www.1.Norma no 014/2012 de 16/12...
) A abordagem ao doente com síndrome coronária aguda, em contexto de reação alérgica, deve não só ser dirigida ao evento coronário, mas também à reação alérgica que o induz.(1111 Kounis NG. Kounis syndrome: an update on epidemiology, pathogenesis, diagnosis and therapeutic management. Clin Chem Lab Med. 2016;54(10):1545-59.) Uma vez que o vasoespasmo é o mecanismo primário, os nitratos e os bloqueadores dos canais de cálcio devem ser considerados como terapia de primeira linha.(22 Maragkoudakis S, Hamilos M, Kallergis E, Vardas P. Type 2 Kounis syndrome in an allergic woman: An uncommon presentation of acute coronary syndrome. J Cardiol Cases. 2013;8(6):176-178.) Os corticosteroides são agentes seguros e desempenham papel importante no tratamento de reações alérgicas e na síndrome coronária aguda alérgica, apesar de estarem associados, em alguns casos, a aneurismas cardíacos e rutura da parede ventricular.(1212 Gázquez V, Dalmau G, Gaig P, Gómez C, Navarro S, Mercé J. Kounis syndrome: report of 5 cases. J Investig Allergol Clin Immunol. 2010;20(2):162-5.)A adrenalina é a base do tratamento da anafilaxia, no entanto, sua utilização na síndrome de Kounis pode agravar a isquemia e induzir vasoespasmo coronário e taquidisritmia.(22 Maragkoudakis S, Hamilos M, Kallergis E, Vardas P. Type 2 Kounis syndrome in an allergic woman: An uncommon presentation of acute coronary syndrome. J Cardiol Cases. 2013;8(6):176-178.) A utilização de ácido acetilsalicílico e heparinas é controversa, por seu elevado poder alérgico.(1313 Kounis NG, Kouni SN, Koutsojannis CM. Myocardial infarction after aspirin treatment, and Kounis syndrome. J R Soc Med. 2005;98(6):296.)

CONCLUSÃO

A síndrome de Kounis provavelmente não é uma doença incomum, mas subdiagnosticada. É uma síndrome coronária aguda complexa, cuja fisiopatologia ainda não se encontra totalmente conhecida. O tratamento atempado melhora o prognóstico e deve ser dirigido à reação de hipersensibilidade e ao evento coronário. Mais estudos são necessários para estabelecer como segura a utilização de adrenalina nestes doentes.

REFERÊNCIAS

  • 1
    Pfister CW, Plice SG. Acute myocardial infarction during a prolonged allergic reaction to penicillin. Am Heart J. 1950;40(6):945-7.
  • 2
    Maragkoudakis S, Hamilos M, Kallergis E, Vardas P. Type 2 Kounis syndrome in an allergic woman: An uncommon presentation of acute coronary syndrome. J Cardiol Cases. 2013;8(6):176-178.
  • 3
    Biteker M. Current understanding of Kounis syndrome. Expert Rev Clin Immunol. 2010;6(5):777-88.
  • 4
    Kounis NG. Kounis syndrome (allergic angina and allergic myocardial infarction): a natural paradigm? Int J Cardiol. 2006;110(1):7-14.
  • 5
    Akyel A, Murat SN, Cay S, Kurtul A, Ocek AH, Cankurt T. Late drug eluting stent thrombosis due to acemetacine: type III Kounis syndrome: Kounis syndrome due to acemetacine. Int J Cardiol. 2012;155(3):461-2.
  • 6
    Torres MJ, Blanca M, Fernandez J, Romano A, Weck A, Aberer W, Brockow K, Pichler WJ, Demoly P; ENDA; EAACI Interest Group on Drug Hypersensitivity. Diagnosis of immediate allergic reactions to beta-lactam antibiotics. Allergy. 2003;58(10):961-72.
  • 7
    Solensky R. Allergy to ß-lactam antibiotics. J Allergy Clin Immunol. 2012;130(6):1442-2.e5.
  • 8
    Ariza A, Mayorga C, Fernandez TD, Barbero N, Martín-Serrano A, Pérez-Sala D, et al. Hypersensitivity reactions to ß-lactams: relevance of hapten-protein conjugates. J Investig Allergol Clin Immunol. 2015;25(1):12-25.
  • 9
    Ridella M, Bagdure S, Nugent K, Cevik C. Kounis syndrome following beta-lactam antibiotic use: review of literature. Inflamm Allergy Drug Targets. 2009;8(1):11-6.
  • 10
    República Portuguesa. Serviço Nacional de Saúde. Norma nº 014/2012 de 16/12/2012 atualizada a 18/12/2014. Anafilaxia: Abordagem clínica. Disponível em: https://www.1.Norma no 014/2012 de 16/12/2012 atualizada a 18/12/2014.dgs.pt/directrizes-da-dgs/normas-e-circulares-normativas/norma-n-0142012-de-16122012.aspx
    » https://www.1.Norma no 014/2012 de 16/12/2012 atualizada a 18/12/2014.dgs.pt/directrizes-da-dgs/normas-e-circulares-normativas/norma-n-0142012-de-16122012.aspx
  • 11
    Kounis NG. Kounis syndrome: an update on epidemiology, pathogenesis, diagnosis and therapeutic management. Clin Chem Lab Med. 2016;54(10):1545-59.
  • 12
    Gázquez V, Dalmau G, Gaig P, Gómez C, Navarro S, Mercé J. Kounis syndrome: report of 5 cases. J Investig Allergol Clin Immunol. 2010;20(2):162-5.
  • 13
    Kounis NG, Kouni SN, Koutsojannis CM. Myocardial infarction after aspirin treatment, and Kounis syndrome. J R Soc Med. 2005;98(6):296.

Editado por

Editor responsável: Thiago Costa Lisboa

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Maio 2020
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 2020

Histórico

  • Recebido
    16 Jun 2019
  • Aceito
    05 Ago 2019
Associação de Medicina Intensiva Brasileira - AMIB Rua Arminda, 93 - Vila Olímpia, CEP 04545-100 - São Paulo - SP - Brasil, Tel.: (11) 5089-2642 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: rbti.artigos@amib.com.br