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Variabilidade da área de músculo reto femoral e associação com desfechos clínicos em pacientes criticamente enfermos: estudo de coorte prospectivo

Ao Editor,

A fraqueza muscular é uma complicação bastante comum em pacientes criticamente enfermos, havendo perda da massa muscular ao longo da internação em unidade de terapia intensiva (UTI), que é potencializada pela magnitude das falências orgânicas apresentadas e associada à elevada morbidade a longo prazo.(11 Muscaritoli M, Lucia S, Molfino A. Sarcopenia in critically ill patients: the new pandemia. Minerva Anestesiol. 2013;79(7):771-7.,22 Puthucheary Z, Rawal J, McPhail M, Connolly B, Ratnayake G, Chan P, et al. Acute skeletal muscle wasting in critical illness. JAMA. 2013;310(15):1591-600.) A ecografia de músculo reto femoral (MRF) surge como ferramenta prática na monitorização da sarcopenia à beira do leito, de fácil execução e aplicabilidade,(33 Toledo DO, Silva DC, Santos DM, Freitas BJ, Dib R, Cordioli RL, et al. Bedside ultrasound is a practical measurement tool for assessing muscle mass. Rev Bras Ter Intensiva. 2017;29(4):476-80.) porém ainda com papel incerto na monitorização de pacientes criticamente enfermos. O objetivo principal do estudo foi avaliar as variações de área do MRF ao longo da internação em UTI. Os objetivos secundários foram associar a variabilidade da área do MRF com a mortalidade em UTI e hospitalar; correlacionar as medidas de área do MRF com o Sequential Organ Failure Assessment (SOFA) a cada dia de mensuração; avaliar a variação da área conforme o risco nutricional do paciente baseado no escore Nutrition Risk in Critical Ill (NUTRIC).

Realizamos um estudo de coorte, prospectivo e unicêntrico, em UTI clínico-cirúrgica de 59 leitos. Foram avaliados pacientes maiores de 18 anos com disfunção aguda que motivassem internação na UTI e com expectativa mínima de permanência na unidade de 3 dias. Foram excluídos pacientes submetidos a cuidados paliativos exclusivos, com expectativa de internação em UTI menor que 3 dias, com risco de óbito iminente, amputados em quem não fosse possível a mensuração. A ecografia de MRF (Sonosite M-Turbo®, Sonosite Fuji Film, Bothell, EUA) foi realizada por meio de metodologia previamente descrita.(44 Mourtzakis M, Parry S, Connolly B, Puthucheary Z. Skeletal muscle ultrasound in critical care: a tool in need of translation. Ann Am Thorac Soc. 2017;14(10):1495-503.) Realizamos mensurações no primeiro (A1), terceiro (A3) e décimo (A10) dias de internação em UTI, por dois avaliadores previamente treinados. Foram revisadas variáveis clínicas, comorbidades, Simplified Acute Physiology Score (SAPS 3), SOFA e NUTRIC. O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Grupo Hospitalar Conceição (62104416.1.0000.5530). Foi aplicado um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) aos participantes da pesquisa ou ao seu responsável legal. Associações entre variáveis categóricas foram testadas com teste do qui quadrado. Para comparação de variáveis contínuas entre grupos, foi utilizado o teste t de Student ou o teste de Mann-Whitney. A diferença entre as áreas nos diferentes intervalos de tempo foi analisada por meio do teste de Wilcoxon-signed rank com correção de Bonferroni. A correlação entre a variabilidade do SOFA e a variabilidade da área nos diferentes intervalos foi avaliada pelo teste de correlação de Pearson. Assumimos erro alfa de 5%.

Foram incluídos 69 pacientes, com 31 (44%) apresentando também a medida do décimo dia. A amostra foi composta, em sua maioria, por mulheres (60%), com 75% da população apresentando risco nutricional alto pelo escore NUTRIC e 71% de portadores de sepse. A pontuação média no SAPS 3 foi de 73,2 pontos, e o SOFA na admissão foi de 8,8 (± 3,6) pontos. O tempo médio de internação na UTI foi de 15,5 dias e o hospitalar, de 40,5 dias. A taxa de mortalidade na UTI foi de 44,9% e a hospitalar, de 55%. Houve redução na área do MRF durante a internação na UTI, de modo estatisticamente significativo − A1 com 1,74 (1,38 - 2,29); A3 com 1,6 (1,31 - 2,28) e A10 com 1,05 (1,05 - 1,81); p < 0,0001 −, havendo diferença entre A1 e A10 (p < 0,0001) e A3 e A10 (p < 0,005), mas não entre A1 e A3 (p não ajustado = 0,25) (Figura 1). O delta A1-A3 não se correlacionou com a variação do SOFA mensurado nos mesmos dias, com coeficiente de Pearson da ordem de 0,07 (p = 0,35). A variabilidade entre A1 e A3 não foi diferente entre os grupos de alto e baixo risco nutricional pelo NUTRIC (-2,51 ± 19,82, no grupo alto, e -4,55 ± 20,03, no grupo de baixo risco; p = 0,231). A variabilidade entre o A1 e A10 também não foi diferente entre os grupos (-8,27 ± 20,83, no grupo alto, e -14,94 ± 39,39, no grupo de baixo risco; p = 0,478). Estabelecemos um ponto de corte de 10% de redução na área de MRF como clinicamente relevante, e pacientes com redução ≥ 10% não tiveram SAPS 3 na admissão maior que pacientes com redução < 10%, tanto entre A1 - A3 (74 ± 13 versus 71 ± 16; p = 0,40) como entre A3 - A10 (78 ± 16 versus 78 ± 13; p = 0,77). Neste ponto de corte de perda de área, o SOFA da admissão também não diferiu entre A1 - A3 (8 ± 4 versus 9 ± 3, com p = 0,14, nos grupos com perda ≥ 10% da área e nos demais pacientes) como também entre A3 - A10 (8 ± 3 versus 10 ± 3, com p = 0,25, nos grupos com perda ≥ 10% da área e nos demais pacientes). Outros desfechos estão descritos na tabela 1.

Figura 1
Variação da área e do Sequential Organ Failure Assessment durante a internação em unidade de terapia intensiva. SOFA - Sequential Organ Failure Assessment; A1 - área de músculo reto femoral no primeiro dia de mensuração; A3 - área de músculo reto femoral no terceiro dia de mensuração; A10 - área de músculo reto femoral no décimo dia de mensuração. * p < 0,0001 entre A1 e A10; † p < 0,005 entre A3 e A10.

Tabela 1
Correlação entre área de músculo reto femoral e desfechos clinicamente relevantes

A despeito de encontrarmos uma redução significativa na área de MRF, ela não se associou a mudanças em desfechos clinicamente relevantes, ao contrário de outros estudos previamente reportados, também de caráter unicêntrico. Isso pode ser parcialmente justificado pelo fato de que nossa população apresentou perfil de gravidade maior, quando avaliada pelo SAPS 3 e pelo SOFA.(22 Puthucheary Z, Rawal J, McPhail M, Connolly B, Ratnayake G, Chan P, et al. Acute skeletal muscle wasting in critical illness. JAMA. 2013;310(15):1591-600.,55 Hadda V, Kumar R, Khilnani GC, Kalaivani M, Madan K, Tiwari P, et al. Trends of loss of peripheral muscle thickness on ultrasonography and its relationship with outcomes among patients with sepsis. J Intensive Care. 2018;6:81.) Além disto, nossa amostra foi composta por pacientes com elevada prevalência de risco nutricional elevado. Nesses cenários clínicos, a variabilidade do MRF ainda não foi adequadamente estudada, logo, não temos como inferir que essa variável tenha o mesmo comportamento de uma população menos grave ou com baixo risco nutricional, a despeito de pacientes com alto risco nutricional não terem apresentado maior perda muscular. Pacientes com perda muscular mais acentuada (≥ 10%) apresentaram a mesma gravidade na admissão à UTI que os demais pacientes. Embora a perda muscular possa estar associada a uma maior atividade inflamatória e esta, por sua vez, a uma maior gravidade do paciente já na admissão na UTI,(11 Muscaritoli M, Lucia S, Molfino A. Sarcopenia in critically ill patients: the new pandemia. Minerva Anestesiol. 2013;79(7):771-7.) nós não encontramos tal relação em nossa amostra, entre gravidade inicial (medida pelo SAPS 3) e maior intensidade de perda muscular. Portanto, a avaliação global da musculatura esquelética e, em específico, a variabilidade de área de MRF devem ser mais amplamente estudadas nos mais distintos cenários de doença crítica, preferencialmente por estudos multicêntricos de maior tamanho amostral, com mensurações quali e quantitativas, estabelecendo-se seu papel na monitorização e no prognóstico durante a evolução da doença crítica.

REFERÊNCIAS

  • 1
    Muscaritoli M, Lucia S, Molfino A. Sarcopenia in critically ill patients: the new pandemia. Minerva Anestesiol. 2013;79(7):771-7.
  • 2
    Puthucheary Z, Rawal J, McPhail M, Connolly B, Ratnayake G, Chan P, et al. Acute skeletal muscle wasting in critical illness. JAMA. 2013;310(15):1591-600.
  • 3
    Toledo DO, Silva DC, Santos DM, Freitas BJ, Dib R, Cordioli RL, et al. Bedside ultrasound is a practical measurement tool for assessing muscle mass. Rev Bras Ter Intensiva. 2017;29(4):476-80.
  • 4
    Mourtzakis M, Parry S, Connolly B, Puthucheary Z. Skeletal muscle ultrasound in critical care: a tool in need of translation. Ann Am Thorac Soc. 2017;14(10):1495-503.
  • 5
    Hadda V, Kumar R, Khilnani GC, Kalaivani M, Madan K, Tiwari P, et al. Trends of loss of peripheral muscle thickness on ultrasonography and its relationship with outcomes among patients with sepsis. J Intensive Care. 2018;6:81.

Editado por

Editor responsável: Gilberto Friedman

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Maio 2020
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 2020

Histórico

  • Recebido
    04 Mar 2019
  • Aceito
    11 Jul 2019
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