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Gatilho transfusional de concentrados de hemácias na unidade de terapia intensiva de um hospital universitário

Ao Editor,

A anemia é uma condição patológica de alta prevalência e grande importância nas unidades de terapia intensiva (UTI), pois aumenta a mortalidade em pacientes graves. Dessa forma, a transfusão sanguínea de concentrados de hemácias (CH) é uma prática rotineiramente adotada, mas ainda é discutido o valor da hemoglobina (Hb) pré-transfusional seguro que indique transfusão, porque, apesar de a condição anêmica aumentar o risco de mortalidade, a transfusão sanguínea não é isenta de riscos.(11 Lobo SM, Vieira SR, Knibel MF, Grion CM, Friedman G, Valiatti JL, et al. Anemia e transfusões de concentrados de hemácias em pacientes graves nas UTI brasileiras (pelo FUNDO-AMIB). Rev Bras Ter Intensiva. 2006;18(3):234-41.

2 Hébert PC, Wells G, Blajchman MA, Marshall J, Martin C, Pagliarello G, et al. A multicenter, randomized, controlled clinical trial of transfusion requirements in critical care. Transfusion Requirements in Critical Care Investigators, Canadian Critical Care Trials Group. N Engl J Med. 1999;340(6):409-17.
-33 Vincent JL, Jaschinski U, Wittebole X, Lefrant JY, Jakob SM, Almekhlafi GA, Pellis T, Tripathy S, Rubatto Birri PN, Sakr Y; ICON Investigators. Worldwide audit of blood transfusion practice in critically ill patients. Crit Care. 2018;22(1):102.) Os estudos mais recentes comparando a estratégia transfusional restritiva (Hb < 7g/dL) com uma estratégia transfusional mais liberal (Hb < 10g/dL) concluem que, exceto nos pacientes cirúrgicos e com condições cardíacas, a estratégia restritiva é possivelmente superior a estratégia liberal.(44 Fominskiy E, Putzu A, Monaco F, Scandroglio AM, Karaskov A, Galas FR, et al. Liberal transfusion strategy improves survival in perioperative but not in critically ill patients. A meta-analysis of randomised trials. Br J Anaesth. 2015;115(4):511-9.,55 Hovaguimian F, Myles PS. Restrictive versus liberal transfusion strategy in the perioperative and acute care settings: a context-specific systematic review and meta-analysis of randomized controlled trials. Anesthesiology. 2016;125(1):46-61.)

Visando determinar o gatilho transfusional para CH no Hospital Universitário de Vassouras (HUV), foi realizada análise do banco de dados do Núcleo de Hemoterapia do HUV das transfusões realizadas no período de janeiro de 2014 a julho de 2017.

Dos 611 pacientes que receberam transfusões provenientes da UTI, 326 eram do sexo masculino (53,4%), com idade média de 59,9 anos nesta amostra. O gatilho transfusional para CH da UTI do HUV foi 6,9g/dL. A média de bolsas de CH utilizadas foi de 1,9 unidade por paciente. Para melhor exposição dos resultados, as indicações das transfusões de CH foram classificadas em quatro grupos, conforme mostra a figura 1: paciente cirúrgico (pré e pós-operatório), hemorragia, paciente grave (não cirúrgico e não associado à hemorragia), e com Hb baixa. As principais indicações foram Hb baixa (22,1%), cirurgia cardíaca (10,5%) e sepse/choque séptico (8,7%). A Hb média pré-transfusional nos pacientes submetidos à cirurgia cardíaca foi de 7,8g/dL.

Figura 1
Indicações transfusionais de concentrado de hemácias na unidade de terapia intensiva.

O valor médio da Hb pré-transfusional encontrado (6,9g/dL) foi menor do que o citado em outros estudos internacionais, mas é semelhante ao valor encontrado em estudos de UTI brasileiras. Estudo retrospectivo recente envolvendo 730 UTI de 84 países relatou valor médio de Hb pré-transfusional de 8,3g/dL, variando de 7,8g/dL, em países do Oriente Médio, a 8,9g/dL, no Leste Europeu.(33 Vincent JL, Jaschinski U, Wittebole X, Lefrant JY, Jakob SM, Almekhlafi GA, Pellis T, Tripathy S, Rubatto Birri PN, Sakr Y; ICON Investigators. Worldwide audit of blood transfusion practice in critically ill patients. Crit Care. 2018;22(1):102.) Em relação aos dados disponíveis sobre as UTI brasileiras, estudo prospectivo multicêntrico realizado em 19 UTI encontrou o gatilho transfusional de 7,7g/dL,(11 Lobo SM, Vieira SR, Knibel MF, Grion CM, Friedman G, Valiatti JL, et al. Anemia e transfusões de concentrados de hemácias em pacientes graves nas UTI brasileiras (pelo FUNDO-AMIB). Rev Bras Ter Intensiva. 2006;18(3):234-41.) enquanto outro estudo prospectivo realizado em cinco UTI de um hospital universitário revelou Hb pré-transfusional de 6,9g/dL.(66 Paula IC, Azevedo LC, Falcão LF, Mazza BF, Barros MM, Freitas FG, et al. Perfil transfusional em diferentes tipos de unidades de terapia intensiva. Rev Bras Anestesiol. 2014;64(3):183-9.) Desde o final da década de 1990, estratégias transfusionais restritivas em pacientes graves têm ganhado maior credibilidade, por apresentarem menor taxa de mortalidade, quando comparada a estratégias mais liberais, com exceção de alguns pacientes, como os com condições perioperatórias.(22 Hébert PC, Wells G, Blajchman MA, Marshall J, Martin C, Pagliarello G, et al. A multicenter, randomized, controlled clinical trial of transfusion requirements in critical care. Transfusion Requirements in Critical Care Investigators, Canadian Critical Care Trials Group. N Engl J Med. 1999;340(6):409-17.,44 Fominskiy E, Putzu A, Monaco F, Scandroglio AM, Karaskov A, Galas FR, et al. Liberal transfusion strategy improves survival in perioperative but not in critically ill patients. A meta-analysis of randomised trials. Br J Anaesth. 2015;115(4):511-9.,55 Hovaguimian F, Myles PS. Restrictive versus liberal transfusion strategy in the perioperative and acute care settings: a context-specific systematic review and meta-analysis of randomized controlled trials. Anesthesiology. 2016;125(1):46-61.,77 Chong MA, Krishnan R, Cheng D, Martin J. Should transfusion trigger thresholds differ for critical care versus perioperative patients? A meta-analysis of randomized trials. Crit Care Med. 2018;46(2):252-63.) O paciente com condição cirúrgica tem demanda de oxigênio que difere do paciente grave, pois ele está exposto a diferentes condições, como perda sanguínea relacionada à cirurgia, alterações vasculares devido a efeito anestésico e alterações hídricas.(77 Chong MA, Krishnan R, Cheng D, Martin J. Should transfusion trigger thresholds differ for critical care versus perioperative patients? A meta-analysis of randomized trials. Crit Care Med. 2018;46(2):252-63.) Em sua diretriz sobre transfusão de concentrado de hemácias publicada em 2016, a American Association of Blood Banks (AABB) recomenda a estratégia restritiva (Hb < 7g/dL) para pacientes graves não cirúrgicos e sugere que a transfusão de concentrado de hemácia se baseie no nível de Hb, no contexto clínico e preferências do paciente, e terapias alternativas sejam consideradas.(88 Carson JL, Guyatt G, Heddle NM, Grossman BJ, Cohn CS, Fung MK, et al. Clinical Practice Guidelines From the AABB: Red Blood Cell Transfusion Thresholds and Storage. JAMA. 2016;316(19):2025-35.)

Das principais indicações transfusionais, a cirurgia cardíaca foi a segunda mais prevalente no HUV. O gatilho transfusional dos pacientes submetidos à cirurgia cardíaca foi 7,8g/dL. Apesar de a literatura preconizar a estratégia liberal para transfusão de CH em pacientes cirúrgicos, os pacientes submetidos à cirurgia cardíaca merecem especial atenção. Alguns estudos foram inconclusivos na recomendação da melhor estratégia transfusional para pacientes com comorbidades cardíacas ou que realizaram cirurgia cardíaca.(22 Hébert PC, Wells G, Blajchman MA, Marshall J, Martin C, Pagliarello G, et al. A multicenter, randomized, controlled clinical trial of transfusion requirements in critical care. Transfusion Requirements in Critical Care Investigators, Canadian Critical Care Trials Group. N Engl J Med. 1999;340(6):409-17.,99 Curley GF, Shehata N, Mazer CD, Hare GM, Friedrich JO. Transfusion triggers for guiding RBC transfusion for cardiovascular surgery: a systematic review and meta-analysis. Crit Care Med. 2014;42(12):2611-24.) Entretanto, metanálise recente, envolvendo 8.886 pacientes que realizaram cirurgia cardíaca, mostrou que a estratégia restritiva é tão eficaz e segura quanto a estratégia liberal, pois não foram observadas diferenças na mortalidade em 30 dias e nem na morbidade dos pacientes submetidos a ambas estratégias.(1010 Chen QH, Wang HL, Liu L, Shao J, Yu J, Zheng RQ. Effects of restrictive red blood cell transfusion on the prognoses of adult patients undergoing cardiac surgery: a meta-analysis of randomized controlled trials. Crit Care. 2018;22(1):142.)

Visando diminuir a morbimortalidade dos pacientes graves relacionada às práticas transfusionais, o valor de Hb pré-transfusional é de grande relevância clínica. Neste estudo, conclui-se que o gatilho transfusional de CH na UTI do HUV foi de 6,9g/dL. Este valor segue o padrão restritivo preconizado pela literatura para diminuir a morbimortalidade nos pacientes graves.

REFERÊNCIAS

  • 1
    Lobo SM, Vieira SR, Knibel MF, Grion CM, Friedman G, Valiatti JL, et al. Anemia e transfusões de concentrados de hemácias em pacientes graves nas UTI brasileiras (pelo FUNDO-AMIB). Rev Bras Ter Intensiva. 2006;18(3):234-41.
  • 2
    Hébert PC, Wells G, Blajchman MA, Marshall J, Martin C, Pagliarello G, et al. A multicenter, randomized, controlled clinical trial of transfusion requirements in critical care. Transfusion Requirements in Critical Care Investigators, Canadian Critical Care Trials Group. N Engl J Med. 1999;340(6):409-17.
  • 3
    Vincent JL, Jaschinski U, Wittebole X, Lefrant JY, Jakob SM, Almekhlafi GA, Pellis T, Tripathy S, Rubatto Birri PN, Sakr Y; ICON Investigators. Worldwide audit of blood transfusion practice in critically ill patients. Crit Care. 2018;22(1):102.
  • 4
    Fominskiy E, Putzu A, Monaco F, Scandroglio AM, Karaskov A, Galas FR, et al. Liberal transfusion strategy improves survival in perioperative but not in critically ill patients. A meta-analysis of randomised trials. Br J Anaesth. 2015;115(4):511-9.
  • 5
    Hovaguimian F, Myles PS. Restrictive versus liberal transfusion strategy in the perioperative and acute care settings: a context-specific systematic review and meta-analysis of randomized controlled trials. Anesthesiology. 2016;125(1):46-61.
  • 6
    Paula IC, Azevedo LC, Falcão LF, Mazza BF, Barros MM, Freitas FG, et al. Perfil transfusional em diferentes tipos de unidades de terapia intensiva. Rev Bras Anestesiol. 2014;64(3):183-9.
  • 7
    Chong MA, Krishnan R, Cheng D, Martin J. Should transfusion trigger thresholds differ for critical care versus perioperative patients? A meta-analysis of randomized trials. Crit Care Med. 2018;46(2):252-63.
  • 8
    Carson JL, Guyatt G, Heddle NM, Grossman BJ, Cohn CS, Fung MK, et al. Clinical Practice Guidelines From the AABB: Red Blood Cell Transfusion Thresholds and Storage. JAMA. 2016;316(19):2025-35.
  • 9
    Curley GF, Shehata N, Mazer CD, Hare GM, Friedrich JO. Transfusion triggers for guiding RBC transfusion for cardiovascular surgery: a systematic review and meta-analysis. Crit Care Med. 2014;42(12):2611-24.
  • 10
    Chen QH, Wang HL, Liu L, Shao J, Yu J, Zheng RQ. Effects of restrictive red blood cell transfusion on the prognoses of adult patients undergoing cardiac surgery: a meta-analysis of randomized controlled trials. Crit Care. 2018;22(1):142.

Editado por

Editor responsável: Thiago Costa Lisboa

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Maio 2020
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 2020

Histórico

  • Recebido
    14 Maio 2019
  • Aceito
    05 Ago 2019
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