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Características e desfechos em curto prazo de pacientes com câncer esofágico em admissões não planejadas a unidades de terapia intensiva: um estudo de coorte retrospectiva

RESUMO

Objetivo:

Mostrar o quadro clínico e os desfechos de uma coorte de pacientes críticos com câncer esofágico.

Métodos:

Conduzimos um estudo multicêntrico retrospectivo que incluiu pacientes com câncer esofágico admitidos a unidades de terapia intensiva em razão de doença aguda entre setembro de 2009 e dezembro de 2017. Colhemos os dados demográficos e as características clínicas de todos os pacientes incluídos, assim como as medidas de suporte a órgãos e os desfechos no hospital. Realizamos uma análise de regressão logística para identificar os fatores associados de forma independente com mortalidade hospitalar.

Resultados:

Dentre os 226 pacientes incluídos no estudo, 131 (58,0%) faleceram antes de receber alta hospitalar. O carcinoma espinocelular foi mais frequente do que o adenocarcinoma, e 124 (54,9%) pacientes tinham câncer metastático. As principais razões para admissão foram sepse/choque séptico e insuficiência respiratória aguda. Uso de ventilação mecânica (RC = 6,18; IC95% 2,86 - 13,35) e doença metastática (RC = 7,10; IC95% 3,35 - 15,05) tiveram associação independente com mortalidade hospitalar.

Conclusão:

Nesta coorte de pacientes com câncer esofágico admitidos à unidades de terapia intensiva em razão de doença aguda, a taxa de mortalidade hospitalar foi muito elevada. A necessidade de utilizar ventilação mecânica invasiva e a presença de doença metastática foram fatores independentes de prognóstico e devem ser levados em conta nas discussões a respeito dos desfechos destes pacientes em curto prazo.

Descritores:
Cuidados críticos; Resultados de cuidados críticos; Neoplasias esofágicas; Respiração artificial; Mortalidade; Prognóstico; Epidemiologia

ABSTRACT

Objective:

To depict the clinical presentation and outcomes of a cohort of critically ill patients with esophageal cancer.

Methods:

We carried out a multicenter retrospective study that included patients with esophageal cancer admitted to intensive care units with acute illness between September 2009 and December 2017. We collected the demographic and clinical characteristics of all included patients, as well as organ-support measures and hospital outcomes. We performed logistic regression analysis to identify independent factors associated with in-hospital mortality.

Results:

Of 226 patients included in the study, 131 (58.0%) patients died before hospital discharge. Squamous cell carcinoma was more frequent than adenocarcinoma, and 124 (54.9%) patients had metastatic cancer. The main reasons for admission were sepsis/septic shock and acute respiratory failure. Mechanical ventilation (OR = 6.18; 95%CI 2.86 - 13.35) and metastatic disease (OR = 7.10; 95%CI 3.35 - 15.05) were independently associated with in-hospital mortality.

Conclusion:

In this cohort of patients with esophageal cancer admitted to intensive care units with acute illness, the in-hospital mortality rate was very high. The requirement for invasive mechanical ventilation and metastatic disease were independent prognostic factors and should be considered in discussions about the short-term outcomes of these patients.

Keywords:
Critical care; Critical care outcomes; Esophageal neoplasms; Respiration, artificial; Mortality; Prognosis; Epidemiology

INTRODUÇÃO

O câncer esofágico é um dos cânceres mais comuns em todo o mundo. Sua taxa de sobrevivência após 5 anos, embora ainda baixa, melhorou consideravelmente nos últimos tempos.(11 Allemani C, Matsuda T, Di Carlo V, Harewood R, Matz M, Niksic M, Bonaventure A, Valkov M, Johnson CJ, Estève J, Ogunbiyi OJ, Azevedo E Silva G, Chen WQ, Eser S, Engholm G, Stiller CA, Monnereau A, Woods RR, Visser O, Lim GH, Aitken J, Weir HK, Coleman MP; CONCORD Working Group. Global surveillance of trends in cancer survival 2000-14 (CONCORD-3): analysis of individual records for 37 513 025 patients diagnosed with one of 18 cancers from 322 population-based registries in 71 countries. Lancet. 2018;391(10125):1023-75.,22 DeSantis CE, Lin CC, Mariotto AB, Siegel RL, Stein KD, Kramer JL, et al. Cancer treatment and survivorship statistics, 2014. CA Cancer J Clin. 2014;64(4):252-71.) O tratamento envolve tipicamente quimioterapia, radioterapia e cirurgia ampla, sendo todas estas modalidades associadas a complicações graves. As complicações pós-operatórias e clínicas se associam com maior mortalidade nos pacientes com câncer esofágico.(33 Rutegard M, Lagergren P, Rouvelas I, Mason R, Lagergren J. Surgical complications and long-term survival after esophagectomy for cancer in a nationwide Swedish cohort study. Eur J Surg Oncol. 2012;38(7):555-61.

4 Raymond DP, Seder CW, Wright CD, Magee MJ, Kosinski AS, Cassivi SD, et al. Predictors of Major Morbidity or Mortality After Resection for Esophageal Cancer: A Society of Thoracic Surgeons General Thoracic Surgery Database Risk Adjustment Model. Ann Thorac Surg. 2016;102(1):207-14.
-55 Chin JH, Moon YJ, Jo JY, Han YA, Kim HR, Lee EH, et al. Association between Postoperatively Developed Atrial Fibrillation and Long-Term Mortality after Esophagectomy in Esophageal Cancer Patients: An Observational Study. PLoS One. 2016;11(5):e0154931.)

Admissões à unidade de terapia intensiva (UTI) são comuns em pacientes com câncer. Embora muitos estudos tenham examinado os padrões epidemiológicos e desfechos em pacientes críticos com câncer,(66 Soares M, Caruso P, Silva E, Teles JM, Lobo SM, Friedman G, Dal Pizzol F, Mello PV, Bozza FA, Silva UV, Torelly AP, Knibel MF, Rezende E, Netto JJ, Piras C, Castro A, Ferreira BS, Réa-Neto A, Olmedo PB, Salluh JI; Brazilian Research in Intensive Care Network (BRICNet). Characteristics and outcomes of patients with cancer requiring admission to intensive care units: a prospective multicenter study. Crit Care Med. 2010;38(1):9-15.

7 Puxty K, McLoone P, Quasim T, Kinsella J, Morrison D. Survival in solid cancer patients following intensive care unit admission. Intensive Care Med. 2014;40(10):1409-28.
-88 Ostermann M, Ferrando-Vivas P, Gore C, Power S, Harrison D. Characteristics and Outcome of Cancer Patients Admitted to the ICU in England, Wales, and Northern Ireland and National Trends Between 1997 and 2013. Crit Care Med. 2017;45(10):1668-76.) poucos avaliaram se tipos específicos de câncer têm quadros clínicos e desfechos diferentes. Por exemplo, embora o estadiamento do câncer e a presença de complicações não tenham sido associados com a mortalidade em curto prazo na maioria dos estudos realizados em pacientes críticos,(77 Puxty K, McLoone P, Quasim T, Kinsella J, Morrison D. Survival in solid cancer patients following intensive care unit admission. Intensive Care Med. 2014;40(10):1409-28.) o estágio da doença já foi bem identificado como um fator prognóstico em pacientes com câncer pulmonar avançado(99 Barth C, Soares M, Toffart AC, Timsit JF, Burghi G, Irrazabal C, Pattison N, Tobar E, Almeida BF, Silva UV, Azevedo LC, Rabbat A, Lamer C, Parrot A, Souza-Dantas VC, Wallet F, Blot F, Bourdin G, Piras C, Delemazure J, Durand M, Salluh J, Azoulay E, Lemiale V; Lung Cancer in Critical Care (LUCCA) Study Investigators. Characteristics and outcome of patients with newly diagnosed advanced or metastatic lung cancer admitted to intensive care units (ICUs). Ann Intensive Care. 2018;8(1):80.) e câncer de cabeça e pescoço.(1010 Soares M, Salluh JI, Toscano L, Dias FL. Outcomes and prognostic factors in patients with head and neck cancer and severe acute illnesses. Intensive Care Med. 2007;33(11):2009-13.)

Mais de um quarto de todos os pacientes com câncer esofágico são admitidos à UTI durante os primeiros 2 anos após o diagnóstico.(1111 Bos MM, Verburg IW, Dumaij I, Stouthard J, Nortier JW, Richel D, et al. Intensive care admission of cancer patients: a comparative analysis. Cancer Med. 2015;4(7):966-76.) Contudo, a maioria dos estudos com esses pacientes examinou apenas os desfechos após cirurgia de esofagectomia.(33 Rutegard M, Lagergren P, Rouvelas I, Mason R, Lagergren J. Surgical complications and long-term survival after esophagectomy for cancer in a nationwide Swedish cohort study. Eur J Surg Oncol. 2012;38(7):555-61.,44 Raymond DP, Seder CW, Wright CD, Magee MJ, Kosinski AS, Cassivi SD, et al. Predictors of Major Morbidity or Mortality After Resection for Esophageal Cancer: A Society of Thoracic Surgeons General Thoracic Surgery Database Risk Adjustment Model. Ann Thorac Surg. 2016;102(1):207-14.) Assim, pouco se sabe a respeito das características e dos desfechos em pacientes com câncer esofágico em admissões não planejadas à UTI em razão de doença aguda.

Os objetivos deste estudo foram apresentar o quadro clínico e os desfechos de uma coorte de pacientes críticos com câncer esofágico e identificar os fatores de risco associados com mortalidade hospitalar destes pacientes.

MÉTODOS

Para este estudo de coorte retrospectiva, examinamos os registros clínicos de pacientes com câncer esofágico que foram admitidos a quatro UTIs brasileiras entre setembro de 2009 e dezembro de 2017. Três dos hospitais eram centros dedicados ao tratamento do câncer (A.C. Camargo Cancer Center, em São Paulo, Hospital de Câncer de Barretos, na cidade de Barretos, e Hospital de Câncer do Maranhão “Dr. Tarquínio Lopes Filho”, em São Luís, sendo os dois primeiros no estado de São Paulo e o último no Maranhão) e um era um hospital geral com um alto volume de pacientes com câncer (Hospital Moinhos de Vento, em Porto Alegre, no estado do Rio Grande do Sul). O estudo foi aprovado pelos Comitês de Ética de todos os centros participantes. Em razão da natureza observacional e retrospectiva do estudo, foi dispensada a necessidade de se obter a assinatura de um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Seguimos as diretrizes STROBE (STrengthening the Reporting of OBservational studies in Epidemiology) para relato de ensaios observacionais.(1212 von Elm E, Altman DG, Egger M, Pocock SJ, Gotzsche PC, Vandenbroucke JP; STROBE Initiative. The Strengthening the Reporting of Observational Studies in Epidemiology (STROBE) statement: guidelines for reporting observational studies. J Clin Epidemiol. 2008;61(4):344-9.)

Os critérios de inclusão para este estudo foram: diagnóstico confirmado de câncer esofágico, idade maior ou igual a 18 anos, e admissão por motivos clínicos ou cirurgia de urgência. Apenas se levou em conta a primeira admissão. Excluímos os pacientes admitidos para cirurgia eletiva e os transferidos para outros hospitais antes da alta.

Colhemos os dados clínicos obtidos quando da admissão e os dados referentes aos desfechos clínicos por ocasião da alta do hospital, a partir dos prontuários eletrônicos dos pacientes. Colemos idade e sexo, Simplified Acute Physiology Score (SAPS) 3, escore Sequential Organ Failure Assessment (SOFA), índice de comorbidade de Charlson (ICC), condição de performance segundo o Eastern Cooperative Oncology Group (ECOG), tipo histológico (adenocarcinoma ou carcinoma espinocelular), estadiamento do câncer, origem do paciente e razão para a admissão, dados estes que foram obtidos quando da admissão. Colhemos também os seguintes dados referentes ao período de permanência na UTI e no hospital: complicações relacionadas ao câncer (massa tumoral, sangramento, estenose e fístulas), delirium, suporte a órgãos durante a permanência na UTI (vasopressores, ventilação mecânica e terapia de substituição renal), e tempo de permanência na UTI e no hospital. Como os pontos oriundos das características do tumor têm impacto no cálculo do ICC, relatamos uma versão modificada desse índice, a qual não leva em conta os pontos relativos às características do câncer. O desfecho primário do estudo foi a mortalidade hospitalar.

Análise estatística

As variáveis contínuas são apresentadas como medianas e intervalo interquartil, e as variáveis categóricas são apresentadas como números absolutos e percentagens. Conduziu-se uma análise univariada para comparar os dados dos pacientes que sobreviveram com os dos que faleceram durante o tempo de hospitalização, com utilização do método de Mann-Whitney ou o teste do qui-quadrado, conforme apropriado. Nesta análise univariada não realizamos ajustes para comparações múltiplas.

Nosso objetivo para a condução da análise de regressão logística foi identificar variáveis independentes de prognóstico entre sete variáveis definidas a priori (ICC modificado, condição de performance categorizada como ECOG 0 - 1 versus ECOG 2 - 4, doença metastática - câncer estágio IV -, ocorrência de delirium, necessidade de ventilação mecânica, uso de vasopressor e terapia de substituição renal durante a permanência na UTI). Primeiramente, avaliamos a colinearidade pela mensuração do fator de inflação da variância (VIF - variation inflation factor). Consideramos um VIF acima de 2 como diagnóstico de multicolinearidade. No caso de um achado de multicolinearidade, incluímos apenas a variável mais relevante do ponto de vista clínico. Não ocorreu ausência de dados relativos aos desfechos, porém ocorreram ausências de dados relativos à condição do câncer (e, consequentemente, ICC) em quatro pacientes e sobre a condição de performance em dois. Não realizamos imputação para dados faltantes e demos prosseguimento à análise completa dos casos. Procedemos ao cálculo da razão de propensão (razão de chances - RC) e do intervalo de confiança de 95% (IC95%) para cada variável incluída no modelo. A calibração do modelo foi avaliada por meio de estatística com utilização do teste de qualidade do ajuste (goodness-of-fit) de Hosmer-Lemeshow. Um valor de p > 0,05 para este teste foi considerado como indicativo de boa calibração. Todos os dados foram analisados com utilização do pacote Statistical Package for Social Science (SPSS, IBM Corporation, Armonk, NY, USA), versão 21.

RESULTADOS

Este estudo incluiu 226 pacientes com câncer esofágico admitidos a uma UTI entre setembro de 2009 e dezembro de 2017 (Figura 1). A tabela 1 mostra as características dos pacientes. O carcinoma espinocelular foi mais frequente do que o adenocarcinoma, e a maior parte dos pacientes tinha câncer avançado. Os pacientes foram admitidos predominantemente a partir do pronto-socorro e das enfermarias, e as principais razões para admissão foram sepse/choque séptico e insuficiência respiratória aguda. Foram comuns complicações relacionadas ao câncer.

Figura 1
Fluxograma do estudo. UTI - unidade de terapia intensiva.

Tabela 1
Características dos pacientes com câncer esofágico admitidos a unidades de terapia intensiva em razão de doença aguda, segundo a condição vital, por ocasião da alta do hospital

No total, 131 (58,0%) pacientes morreram antes de receber alta hospitalar. Os pacientes que faleceram tinham SAPS 3 e SOFA mais elevados na admissão, cargas de comorbidade maiores, mais doença metastática e mais necessidade de utilização de ventilação mecânica e vasopressores.

Não ocorreu qualquer multicolinearidade entre as variáveis escolhidas (Tabela 2). Ventilação mecânica (RC = 6,18; IC95% 2,86 - 13,35) e doença metastática (RC = 7,10; IC95% 3,35 - 15,05) tiveram associação independente com mortalidade hospitalar (Tabela 3). O modelo foi considerado bem calibrado (Hosmer-Lemeshow = 7,33; p = 0,50).

Tabela 2
Variação do índice de inflação das variáveis selecionadas para inclusão no modelo de regressão logística
Tabela 3
Resultados da regressão logística para fatores de risco associados de forma independente com mortalidade no hospital

DISCUSSÃO

O presente estudo demonstrou que os pacientes com câncer esofágico admitidos à UTI por doença aguda se encontravam gravemente enfermos e tiveram elevada taxa de mortalidade hospitalar. Ventilação mecânica e doença metastática se associaram de forma independente com mortalidade hospitalar.

Embora muitos estudos tenham examinado as características e os desfechos de pacientes críticos com cânceres sólidos(77 Puxty K, McLoone P, Quasim T, Kinsella J, Morrison D. Survival in solid cancer patients following intensive care unit admission. Intensive Care Med. 2014;40(10):1409-28.) e pacientes com câncer esofágico admitidos à UTI após esofagectomia eletiva,(33 Rutegard M, Lagergren P, Rouvelas I, Mason R, Lagergren J. Surgical complications and long-term survival after esophagectomy for cancer in a nationwide Swedish cohort study. Eur J Surg Oncol. 2012;38(7):555-61.,44 Raymond DP, Seder CW, Wright CD, Magee MJ, Kosinski AS, Cassivi SD, et al. Predictors of Major Morbidity or Mortality After Resection for Esophageal Cancer: A Society of Thoracic Surgeons General Thoracic Surgery Database Risk Adjustment Model. Ann Thorac Surg. 2016;102(1):207-14.) até onde sabemos nenhum estudo já realizado se focalizou nos pacientes com câncer esofágico admitidos por doença aguda. Em nossa coorte, esses pacientes tiveram taxa de mortalidade mais alta do que pacientes com doença crítica e câncer sólido em geral.(77 Puxty K, McLoone P, Quasim T, Kinsella J, Morrison D. Survival in solid cancer patients following intensive care unit admission. Intensive Care Med. 2014;40(10):1409-28.) Nossos resultados são comparáveis com os relatados para pacientes com câncer avançado de pulmão(99 Barth C, Soares M, Toffart AC, Timsit JF, Burghi G, Irrazabal C, Pattison N, Tobar E, Almeida BF, Silva UV, Azevedo LC, Rabbat A, Lamer C, Parrot A, Souza-Dantas VC, Wallet F, Blot F, Bourdin G, Piras C, Delemazure J, Durand M, Salluh J, Azoulay E, Lemiale V; Lung Cancer in Critical Care (LUCCA) Study Investigators. Characteristics and outcome of patients with newly diagnosed advanced or metastatic lung cancer admitted to intensive care units (ICUs). Ann Intensive Care. 2018;8(1):80.) e aqueles com câncer de cabeça e pescoço(1010 Soares M, Salluh JI, Toscano L, Dias FL. Outcomes and prognostic factors in patients with head and neck cancer and severe acute illnesses. Intensive Care Med. 2007;33(11):2009-13.) admitidos à UTIs por doença aguda. Em um estudo holandês de desfechos em curto e longo prazo de pacientes admitidos à UTI com diferentes tipos de câncer, o câncer esofágico se associou com taxa de sobrevivência aos 30 dias de 93%.(1111 Bos MM, Verburg IW, Dumaij I, Stouthard J, Nortier JW, Richel D, et al. Intensive care admission of cancer patients: a comparative analysis. Cancer Med. 2015;4(7):966-76.) Contudo, os autores não diferenciaram entre pacientes admitidos por razões eletiva ou não eletivas. Mais de um quarto dos pacientes com câncer esofágico nesta coorte foram admitidos à UTI durante o acompanhamento, e muitos podem ter sido selecionados com perspectivas terapêuticas favoráveis.(1111 Bos MM, Verburg IW, Dumaij I, Stouthard J, Nortier JW, Richel D, et al. Intensive care admission of cancer patients: a comparative analysis. Cancer Med. 2015;4(7):966-76.) Em outro estudo da mesma coorte, câncer do trato gastrintestinal superior se associou de forma independente com mortalidade hospitalar em pacientes com admissões não planejadas.(1313 Bos MM, de Keizer NF, Meynaar IA, Bakhshi-Raiez F, de Jonge E. Outcomes of cancer patients after unplanned admission to general intensive care units. Acta Oncol. 2012;51(7):897-905.) Estes resultados concordam com os de outros estudos que sugerem que a admissão por doença aguda se associa com mortalidade 50% - 70% maior do que admissão para cirurgia eletiva em pacientes com câncer.(88 Ostermann M, Ferrando-Vivas P, Gore C, Power S, Harrison D. Characteristics and Outcome of Cancer Patients Admitted to the ICU in England, Wales, and Northern Ireland and National Trends Between 1997 and 2013. Crit Care Med. 2017;45(10):1668-76.,1414 Soares M, Toffart AC, Timsit JF, Burghi G, Irrazábal C, Pattison N, Tobar E, Almeida BFC, Silva UVA, Azevedo LCP, Rabbat A, Lamer C, Parrot A, Souza-Dantas VC, Wallet F, Blot F, Bourdin G, Piras C, Delemazure J, Durand M, Tejera D, Salluh JIF, Azoulay E; Lung Cancer in Critical Care (LUCCA) Study Investigators. Intensive care in patients with lung cancer: a multinational study. Ann Oncol. 2014;25(9):1829-35.)

A ventilação mecânica é um fator de risco bem conhecido para mortalidade em pacientes com câncer. A maioria dos estudos incluiu uma revisão sistemática que examinou o prognóstico de pacientes admitidos à UTI com câncer sólido revelou que necessidade de ventilação mecânica se associou com taxas mais elevadas de mortalidade.(77 Puxty K, McLoone P, Quasim T, Kinsella J, Morrison D. Survival in solid cancer patients following intensive care unit admission. Intensive Care Med. 2014;40(10):1409-28.) Em um estudo brasileiro, 25% de todos os pacientes com câncer admitidos a UTIs necessitaram de ventilação mecânica invasiva, e sua taxa de mortalidade hospitalar foi de 73%.(1515 Azevedo LC, Caruso P, Silva UV, Torelly AP, Silva E, Rezende E, Netto JJ, Piras C, Lobo SMA, Knibel MF, Teles JM, Lima RA, Ferreira BS, Friedman G, Rea-Neto A, Dal-Pizzol F, Bozza FA, Salluh JIF, Soares M; Brazilian Research in Intensive Care Network (BRICNet). Outcomes for patients with cancer admitted to the ICU requiring ventilatory support: results from a prospective multicenter study. Chest. 2014;146(2):257-66.) Em nosso estudo, 44% dos pacientes necessitaram de ventilação mecânica durante sua permanência na UTI, e sua taxa de mortalidade hospitalar foi de 76%. Assim como ocorre com pacientes portadores de outros tipos de câncer, a necessidade de ventilação mecânica é um marcador de prognóstico sombrio em pacientes com câncer esofágico.

Por outro lado, as características do câncer por si só não se associam de forma consistente com prognósticos em curto prazo piores. Na revisão sistemática conduzida por Puxty et al.,(77 Puxty K, McLoone P, Quasim T, Kinsella J, Morrison D. Survival in solid cancer patients following intensive care unit admission. Intensive Care Med. 2014;40(10):1409-28.) os achados de uma minoria de estudos sugerem que câncer avançado ou metastático se associou com maior mortalidade na UTI, nos hospital e em 30 dias. Entretanto, doença metastática se associou de forma independente com mortalidade em curto prazo em pacientes com câncer pulmonar avançado(99 Barth C, Soares M, Toffart AC, Timsit JF, Burghi G, Irrazabal C, Pattison N, Tobar E, Almeida BF, Silva UV, Azevedo LC, Rabbat A, Lamer C, Parrot A, Souza-Dantas VC, Wallet F, Blot F, Bourdin G, Piras C, Delemazure J, Durand M, Salluh J, Azoulay E, Lemiale V; Lung Cancer in Critical Care (LUCCA) Study Investigators. Characteristics and outcome of patients with newly diagnosed advanced or metastatic lung cancer admitted to intensive care units (ICUs). Ann Intensive Care. 2018;8(1):80.) e naqueles com câncer de cabeça e pescoço.(1010 Soares M, Salluh JI, Toscano L, Dias FL. Outcomes and prognostic factors in patients with head and neck cancer and severe acute illnesses. Intensive Care Med. 2007;33(11):2009-13.) Parece ser também um marcador de gravidade em pacientes admitidos à UTI com câncer esofágico.

Nosso estudo tem algumas limitações importantes. Primeiramente, trata-se de um estudo de coorte retrospectiva, de forma que não se pôde obter nenhuma inferência causal. Adicionalmente, este estudo foi propenso a viés secundário à coleta dos dados. Em segundo lugar, apesar de ser um estudo multicêntrico, ele só incluiu hospitais brasileiros com elevado volume de pacientes com câncer. Assim, nossos resultados podem não ser amplamente generalizáveis. Em terceiro lugar, nós não tivemos acesso a dados referentes a decisões de limitar o suporte, que podem ter influenciado na taxa de mortalidade para estes doentes graves. E, importante, desde que os pacientes falecidos tiveram tempos medianos de permanência na UTI e no hospital de apenas 3 dias, é possível que tenham ocorrido decisões de limitar medidas de suporte à vida precocemente durante a permanência na unidade, levando em consideração algumas características específicas dos indivíduos, como doença metastática e, assim, isto pode ter levado a um viés para uma profecia autorrealizada.

CONCLUSÃO

Nesta coorte de pacientes com câncer esofágico admitidos a unidades de terapia intensiva com doença aguda, a taxa de mortalidade hospitalar foi muito alta. A necessidade de utilizar ventilação mecânica e a presença de doença metastática foram fatores independentes de prognóstico e devem ser levados em conta nas discussões sobre prognóstico de curto prazo de pacientes com câncer esofágico que sejam admitidos à unidade de terapia intensiva com doença aguda.

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Editado por

Editor responsável: Márcio Soares

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Jul 2020
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 2020

Histórico

  • Recebido
    07 Out 2019
  • Aceito
    09 Dez 2019
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