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Uso da CPAP como alternativa para realização do teste de apneia durante determinação da morte encefálica em pacientes hipoxêmicos. Relato de dois casos

RESUMO

O teste de apneia com desconexão do ventilador mecânico representa riscos durante a determinação da morte encefálica, especialmente em pacientes hipoxêmicos. Descrevemos a realização do teste de apneia sem desconexão do ventilador mecânico em dois pacientes. O primeiro caso é o de um menino de 8 anos, admitido com hipoxemia grave por pneumonia. Apresentou parada cardiorrespiratória, seguida de coma não responsivo por encefalopatia hipóxico-isquêmica. Dois exames clínicos constataram ausência de reflexos de tronco, e o Doppler transcraniano revelou parada circulatória encefálica. Realizaram-se três tentativas de teste de apneia, que foram interrompidas por hipoxemia, sendo então realizado teste de apneia sem desconexão do ventilador mecânico, ajustando a pressão contínua nas vias aéreas em 10cmH2O e fração inspirada de oxigênio em 100%. A saturação de oxigênio manteve-se em 100% por 10 minutos. A gasometria pós-teste foi a seguinte: pH de 6,90, pressão parcial de oxigênio em 284,0mmHg, pressão parcial de dióxido de carbono em 94,0mmHg e saturação de oxigênio em 100%. O segundo caso é de uma mulher de 43 anos, admitida com hemorragia subaracnóidea (Hunt-Hess V e Fisher IV). Dois exames clínicos constataram coma não responsivo e ausência de todos os reflexos de tronco. A cintilografia cerebral evidenciou ausência de captação de radioisótopos no parênquima cerebral. A primeira tentativa do teste de apneia foi interrompida após 5 minutos por hipotermia (34,9oC). Após reaquecimento, o teste de apneia foi repetido sem desconexão do ventilador mecânico, evidenciando-se manutenção do volume residual funcional com tomografia de bioimpedância elétrica. Gasometria pós-teste de apneia apresentava pH em 7,01, pressão parcial de oxigênio em 232,0mmHg, pressão parcial de dióxido de carbono 66,9mmHg e saturação de oxigênio em 99,0%. O teste de apneia sem desconexão do ventilador mecânico permitiu a preservação da oxigenação em ambos os casos. O uso de pressão contínua nas vias aéreas durante o teste de apneia parece ser uma alternativa segura para manter o recrutamento alveolar e a oxigenação durante determinação da morte encefálica.

Descritores:
Apneia; Síndromes da apneia do sono; Morte encefálica; Insuficiência respiratória; Pressão positiva contínua nas vias aéreas; Hipóxia; Impedância elétrica; Tomografia/métodos; Teste de apneia

ABSTRACT

The apnea test, which involves disconnection from the mechanical ventilator, presents risks during the determination of brain death, especially in hypoxemic patients. We describe the performance of the apnea test without disconnection from the mechanical ventilator in two patients. The first case involved an 8-year-old boy admitted with severe hypoxemia due to pneumonia. He presented with cardiorespiratory arrest, followed by unresponsive coma due to hypoxic-ischemic encephalopathy. Two clinical exams revealed the absence of brainstem reflexes, and transcranial Doppler ultrasound revealed brain circulatory arrest. Three attempts were made to perform the apnea test, which were interrupted by hypoxemia; therefore, the apnea test was performed without disconnection from the mechanical ventilator, adjusting the continuous airway pressure to 10cmH2O and the inspired fraction of oxygen to 100%. The oxygen saturation was maintained at 100% for 10 minutes. Posttest blood gas analysis results were as follows: pH, 6.90; partial pressure of oxygen, 284.0mmHg; partial pressure of carbon dioxide, 94.0mmHg; and oxygen saturation, 100%. The second case involved a 43-year-old woman admitted with subarachnoid hemorrhage (Hunt-Hess V and Fisher IV). Two clinical exams revealed unresponsive coma and absence of all brainstem reflexes. Brain scintigraphy showed no radioisotope uptake into the brain parenchyma. The first attempt at the apnea test was stopped after 5 minutes due to hypothermia (34.9°C). After rewarming, the apnea test was repeated without disconnection from the mechanical ventilator, showing maintenance of the functional residual volume with electrical bioimpedance. Posttest blood gas analysis results were as follows: pH, 7.01; partial pressure of oxygen, 232.0mmHg; partial pressure of carbon dioxide, 66.9mmHg; and oxygen saturation, 99.0%. The apnea test without disconnection from the mechanical ventilator allowed the preservation of oxygenation in both cases. The use of continuous airway pressure during the apnea test seems to be a safe alternative in order to maintain alveolar recruitment and oxygenation during brain death determination.

Keywords:
Apnea; Sleep apnea syndromes; Brain death; Respiratory insufficiency; Continuous positive airway pressure; Hypoxia; Electrical impedance; Tomography/methods; Apnea testing

INTRODUÇÃO

A determinação da morte encefálica (ME) requer a constatação de coma não responsivo, ausência de reflexos de tronco encefálico, apneia e exame complementar demonstrando silêncio eletroencefalográfico ou ausência de fluxo sanguíneo intracraniano.(11 Brasil. Conselho Federal de Medicina (CFM). Resolução Nº 2.173 de 23 de novembro de 2017. Define os critérios do diagnóstico de morte encefálica [internet]. [citado 2020 Abr 17]. Disponível em: https://saude.rs.gov.br/upload/arquivos/carga20171205/19140504-resolucao-do-conselho-federal-de-medicina-2173-2017.pdf
https://saude.rs.gov.br/upload/arquivos/...
,22 Wijdicks EF, Varelas PN, Gronseth GS, Greer DM; American Academy of Neurology. Evidence-based guideline update: determining brain death in adults: report of the Quality Standards Subcommittee of the American Academy of Neurology. Neurology. 2010;74(23):1911-8.)

O teste de apneia visa constatar a ausência de movimentos respiratórios mediante a estimulação máxima dos centros respiratórios bulbares, a partir da obtenção de níveis de pressão parcial de dióxido de carbono (PaCO2) superiores a 55mmHg.(11 Brasil. Conselho Federal de Medicina (CFM). Resolução Nº 2.173 de 23 de novembro de 2017. Define os critérios do diagnóstico de morte encefálica [internet]. [citado 2020 Abr 17]. Disponível em: https://saude.rs.gov.br/upload/arquivos/carga20171205/19140504-resolucao-do-conselho-federal-de-medicina-2173-2017.pdf
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) Classicamente, o teste de apneia é realizado com a desconexão do ventilador mecânico (VM), instilando-se 6L/minuto de oxigênio com um cateter posicionado à altura da carina traqueal, ou 12L/minuto por meio de um tubo T conectado ao tubo orotraqueal. Entretanto, a desconexão do VM pode causar hipoxemia e instabilidade hemodinâmica graves.(11 Brasil. Conselho Federal de Medicina (CFM). Resolução Nº 2.173 de 23 de novembro de 2017. Define os critérios do diagnóstico de morte encefálica [internet]. [citado 2020 Abr 17]. Disponível em: https://saude.rs.gov.br/upload/arquivos/carga20171205/19140504-resolucao-do-conselho-federal-de-medicina-2173-2017.pdf
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2 Wijdicks EF, Varelas PN, Gronseth GS, Greer DM; American Academy of Neurology. Evidence-based guideline update: determining brain death in adults: report of the Quality Standards Subcommittee of the American Academy of Neurology. Neurology. 2010;74(23):1911-8.
-33 Wijdicks EF, Rabinstein AA, Manno EM, Atkinson JD. Pronouncing brain death: contemporary practice and safety of the apnea test. Neurology. 2008;71(16):1240-4.)

Mesmo em pacientes com pulmões normais, o teste de apneia com desconexão do VM pode levar a atelectasias e hipoxemia, durante e após o teste. Além disso, a síndrome do desconforto respiratório agudo (SDRA) é frequente em pacientes neurocríticos, e a análise post hoc de um ensaio clínico multicêntrico demonstrou que 26,2% (195/772) dos pacientes com suspeita de ME apresentavam pressão parcial de oxigênio arterial/fração inspirada de oxigênio (PaO2/FiO2) < 200.(44 Guterres CM, Rohden AI, Silva SS, Andrighetto LV, Benck PS, Madalena IC, et al. Novos pré-requisitos gasométricos para o teste de apneia podem dificultar a confirmação da morte encefálica em pacientes hipoxêmicos ou hipercápnicos: análise post-hoc de um ensaio clínico randomizado multicêntrico. Rev Bras Ter Intensiva. 2018;Supl. 1:S23.) Nesses pacientes, as condições respiratórias podem não permitir a desconexão segura do VM pelo tempo suficiente e gerar o aumento necessário da PaCO2 para determinação da ME.(33 Wijdicks EF, Rabinstein AA, Manno EM, Atkinson JD. Pronouncing brain death: contemporary practice and safety of the apnea test. Neurology. 2008;71(16):1240-4.) Além disso, devemos considerar o risco de atelectasias de absorção provocado pela pré-oxigenação com FiO2 de 100%, além da administração de oxigênio puro durante o teste.(55 Nimmagadda U, Salem MR, Crystal GJ. Preoxygenation: physiologic basis, benefits, and potential risks. Anesth Analg. 2017;124(2):507-17.)

A manutenção do recrutamento alveolar durante o teste de apneia com aplicação de pressões contínuas nas vias aéreas (CPAP) pode auxiliar na prevenção da hipoxemia e está associada a valores mais altos de PaO2/FiO2 ao final do teste, quando comparada ao método convencional.(66 Lévesque S, Lessard MR, Nicole PC, Langevin S, LeBlanc F, Lauzier F, et al. Efficacy of a T-piece system and a continuous positive airway pressure system for apnea testing in the diagnosis of brain death. Crit Care Med. 2006;34(8):2213-6.,77 Hubbard JL, Dirks RC, Veneman WL, Davis JW. Novel method of delivery of continuous positive airway pressure for apnea testing during brain death evaluation. Trauma Surg Acute Care Open. 2016;1(1):e000046.)

Alguns raros relatos destacam a possibilidade do uso do CPAP como alternativa segura para realização do teste de apneia.(88 Hocker S, Whalen F, Wijdicks EF. Apnea testing for brain death in severe acute respiratory distress syndrome: a possible solution. Neurocrit Care. 2014;20(2):298-300.

9 Shrestha GS, Shrestha PS, Acharya SP, Sedain G, Bhandari S, Aryal D, et al. Apnea testing with continuous positive airway pressure for the diagnosis of brain death in a patient with poor baseline oxygenation status. Indian J Crit Care Med. 2014;18(5):331-3.

10 Ahlawat A, Carandang R, Heard SO, Muehlschlegel S. The modified apnea test during brain death determination: an alternative in patients with hypoxia. J Intensive Care Med. 2016;31(1):66-9.

11 Carneiro BV, Garcia GH, Isensee LP, Besen BA. Optimization of conditions for apnea testing in a hypoxemic brain dead patient. Rev Bras Ter Intensiva. 2019;31(1):106-10.
-1212 van der Jagt M, Lin MS, Briegel J. Optimizing apnea testing to determine brain death. Intensive Care Med. 2016;42(1):117-8.) Além disso, o uso do CPAP durante o teste de apneia em pacientes com pulmões normais pode auxiliar na estrategia de preservação pulmonar para fins de doação.(1313 Mascia L, Pasero D, Slutsky AS, Arguis MJ, Berardino M, Grasso S, et al. Effect of a lung protective strategy for organ donors on eligibility and availability of lungs for transplantation: a randomized controlled trial. JAMA. 2010;304(23):2620-7.

14 Miñambres E, Coll E, Duerto J, Suberviola B, Mons R, Cifrian JM, et al. Effect of an intensive lung donor management protocol on lung transplantation outcomes. J Heart Lung Transplant. 2014;33(2):178-84.
-1515 Miñambres E, Pérez-Villares JM, Chico-Fernández M, Zabalegui A, Dueñas-Jurado JM, Misis M, et al. Lung donor treatment protocol in brain dead-donors: a multicenter study. J Heart Lung Transplant. 2015;34(6):773-80.)

Com a finalidade de contribuir para a segurança da determinação da ME em pacientes hipoxêmicos, descrevemos dois casos de realização do teste de apneia em CPAP como alternativa para manter o recrutamento alveolar e evitar hipoxemia, quando a desconexão do VM não é segura.

RELATOS DOS CASOS

Caso 1

Menino de 8 anos com síndrome do desconforto respiratório agudo (SDRA) e choque séptico por pneumonia comunitária admitido na unidade de terapia intensiva (UTI) apresentou parada cardiorrespiratória atribuída à hipoxemia. À admissão na UTI, apresentava saturação arterial de oxigênio (SaO2) de 95% com FiO2 de 100% e pressão positiva expiratória final (PEEP) de 10cmH2O, infiltrado pulmonar difuso à radiografia de tórax (Figura 1A) e pressão arterial de 105/60mmHg com noradrenalina a 0,2mcg/kg/minuto. Havia midríase fixa bilateral, e estavam ausentes reflexos córneo palpebral e de tosse. A tomografia computadorizada de crânio evidenciou edema cerebral difuso com sinais de hipertensão intracraniana (Figura 1B). Após 24 horas, constataram-se coma não responsivo, ausência de todos os reflexos de tronco em dois exames clínicos e ausência de fluxo sanguíneo intracraniano por meio de Doppler transcraniano. Restava pendente o teste de apneia, para concluir a determinação da ME.

Figura 1
Exames de imagem. (A) Radiografia de tórax demonstrando infiltrado pulmonar difuso. (B) Tomografia computadorizada de crânio demonstrando edema cerebral.

As tentativas de teste de apneia se deram da seguinte forma: após 10 minutos de pré-oxigenação com FiO2 a 100% e PEEP de 10cmH2O, obteve-se SaO2 em 100%. A pressão arterial era de 104 x 62mmHg, com noradrenalina a 0,16mcg/kg/minuto e vasopressina a 0,0003UI/kg/minuto. O teste de apneia foi iniciado com a desconexão do VM e a instilação de oxigênio a 6L/minuto à altura da carina traqueal. O teste foi interrompido por queda da SaO2 para valores inferiores a 85%. Quatro novas tentativas foram interrompidas por hipoxemia.

Foi realizado teste de apneia sem desconexão do VM após pré-oxigenação com FiO2 a 100% por 10 minutos, quando obtivemos nova gasometria pré-teste: pH em 7,15; PaO2 em 254,0mmHg; PaCO2 em 43,0mmHg; bicarbonato (HCO3) em 14,4mmol/L e SaO2 em 99,0%. O VM foi colocado em modo espontâneo com os seguintes ajustes: FiO2 a 100%, CPAP em 10cmH2O (nível prévio da PEEP) e ventilação reserva desabilitada. A SaO2 manteve-se em 100% durante os 10 minutos de apneia. Houve manutenção de pressão arterial média (PAM) ≥ 65mmHg, sem variação relevante da frequência cardíaca (FC) (Figura 2). O resultado da gasometria pós-teste (pH em 6,90; PaO2 em 284,0mmHg; PaCO2 em 94,0mmHg; HCO3 em 18,4mmol/L; SaO2 em 100%) e a ausência de movimentos respiratórios permitiram determinar a morte do paciente.

Figura 2
Comportamento da frequência cardíaca, pressão arterial média e saturação arterial de oxigênio após desconexão do ventilador mecânico (acima) e instilação de oxigênio a 6L/minuto por meio de cateter à altura da carina traqueal (abaixo). SaO2 - saturação arterial de oxigênio; FC - frequência cardíaca; PAM - pressão arterial média.

Não houve consentimento para doação de órgãos. Restava a retirada do suporte terapêutico artificial para proceder à entrega do corpo aos familiares.

Após a desconexão do VM, foi instalado um cateter à altura da carina traqueal com fluxo de oxigênio a 6L/minuto. Apesar da suplementação do oxigênio, houve queda da SaO2 de 100% para 75% em 30 segundos, 38% em 2 minutos e 32% em 3 minutos de apneia (Figura 2). A parada cardíaca ocorreu 6 minutos após a desconexão.

Caso 2

Mulher de 43 anos foi admitida na UTI com hemorragia subaracnóidea grave. Ao exame clínico, observaram-se coma não responsivo, midríase fixa bilateral e ausência de todos os reflexos de tronco em dois exames clínicos. A cintilografia cerebral evidenciou ausência de captação de radioisótopos no parênquima cerebral. A PaO2/FiO2 era de 234, e não existiam infiltrados pulmonares à radiografia de tórax. Antecedendo o teste de apneia e após 10 minutos de pré-oxigenação com FiO2 a 100%, obteve-se a seguinte gasometria pré-teste: pH em 7,36; PaO2 em 234,0mmHg; PaCO2 em 46,8mmHg; HCO3 em 18,7mmHg e SaO2 em 99,0%.

Tentou-se o teste de apneia com desconexão do VM. No momento da desconexão do VM para o teste convencional com instilação de oxigênio a 6L/minuto ao nível da carina traqueal, a paciente estava monitorizada com tomografia de impedância elétrica torácica. Apesar de cumprir os pré-requisitos fisiológicos ao iniciar o teste de apneia (pressão arterial sistólica - PAS de 113 x 64mmHg; temperatura esofagiana em 35,1oC e SaO2 em 98%), houve queda da temperatura para 34,9o C após 5 minutos da desconexão do VM. O procedimento foi interrompido para iniciar medidas de reaquecimento corporal, incluindo o aquecimento ativo dos gases do VM. A gravação das imagens da tomografia de impedância elétrica identificou diminuição progressiva do volume residual funcional (VRF) (Figura 3A).

Figura 3
Tomografia de impedância elétrica torácica. (A) Diminuição progressiva do volume residual funcional após desconexão do ventilador mecânico para o teste de apneia com instilação de oxigênio a 6L/minuto. (B) Manutenção do volume residual funcional proporcionada pelo teste de apneia sem desconexão do ventilador mecânico e manutenção de pressão contínua nas vias aéreas. VRF - volume residual funcional.

Após o reaquecimento da paciente, optou-se pelo teste de apneia sem desconexão do VM, ajustando o modo espontâneo e mantendo-se CPAP de 10cmH2O, FiO2 em 100% e sensibilidade em -2cmH2O. A gravação da tomografia de bioimpedância elétrica evidenciou a manutenção do VRF (Figura 3B) e da SaO2 em 100% ao longo de 10 minutos, quando foi coletada a gasometria arterial pós-teste: pH em 7,01; PaO2 em 232,0mmHg; PaCO2 em 66,9mmHg; HCO3 em 19,8mmHg e SaO2 em 99,0%. Após o diagnóstico de ME, os familiares autorizaram a doação de órgãos.

Utilizamos a tomografia de impedância elétrica para guiar a titulação da pressão expiratória e encontrarmos o melhor nível de CPAP. O mapa de hiperdistensão e colapso pulmonar demonstrou que o melhor equilíbrio dessas variáveis ocorreu com CPAP de 9,5cmH2O (hiperdistensão de 1% e colapso de 1%) (Figura 4).

Figura 4
Imagens de tomografia de impedância elétrica torácica indicando o percentual de hiperdistensão e de colapso alveolar, de acordo com o nível aplicado de pressão positiva expiratória final/pressão positiva contínua nas vias aéreas. PEEP - pressão positiva expiratória final.

O Consentimento Livre e Esclarecido foi fornecido pelos familiares de ambos os pacientes, e o presente relato foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa de referência (CAAE: 10090919.1.000.5362).

DISCUSSÃO

Os casos relatados ilustram que o teste de apneia sem desconexão do VM em modo espontâneo e com aplicação de CPAP permite a manutenção do VRF e da oxigenação ao longo de todo o teste, mesmo quando há hipoxemia prévia.

A segurança associada ao teste de apneia em CPAP foi bem demonstrada em pacientes com pulmões normais, nos quais se observou queda de 92mmHg na PaO2 após o teste convencional, comparada à redução de apenas 15mmHg na PaO2 após o teste realizado com válvula de CPAP.(55 Nimmagadda U, Salem MR, Crystal GJ. Preoxygenation: physiologic basis, benefits, and potential risks. Anesth Analg. 2017;124(2):507-17.) De modo semelhante, outro estudo constatou PaO2/FiO2 maior em testes de apneia realizados com válvula de CPAP em comparação com o teste convencional (304 versus 250; p = 0,02).(77 Hubbard JL, Dirks RC, Veneman WL, Davis JW. Novel method of delivery of continuous positive airway pressure for apnea testing during brain death evaluation. Trauma Surg Acute Care Open. 2016;1(1):e000046.)

Alguns relatos prévios de teste de apneia em indivíduos com SDRA reforçam a possibilidade da realização desse procedimento na hipoxemia grave com diferentes estratégias.(88 Hocker S, Whalen F, Wijdicks EF. Apnea testing for brain death in severe acute respiratory distress syndrome: a possible solution. Neurocrit Care. 2014;20(2):298-300.

9 Shrestha GS, Shrestha PS, Acharya SP, Sedain G, Bhandari S, Aryal D, et al. Apnea testing with continuous positive airway pressure for the diagnosis of brain death in a patient with poor baseline oxygenation status. Indian J Crit Care Med. 2014;18(5):331-3.

10 Ahlawat A, Carandang R, Heard SO, Muehlschlegel S. The modified apnea test during brain death determination: an alternative in patients with hypoxia. J Intensive Care Med. 2016;31(1):66-9.

11 Carneiro BV, Garcia GH, Isensee LP, Besen BA. Optimization of conditions for apnea testing in a hypoxemic brain dead patient. Rev Bras Ter Intensiva. 2019;31(1):106-10.
-1212 van der Jagt M, Lin MS, Briegel J. Optimizing apnea testing to determine brain death. Intensive Care Med. 2016;42(1):117-8.) Em um paciente ventilado com SDRA, Hocker et al. realizaram teste de apneia com válvula de CPAP ajustada para os 20cmH2O de PEEP usados previamente. O teste foi considerado positivo após constatação de apneia e PaCO2 de 69mmHg ao final de 10 minutos. A SaO2 permaneceu entre 97% e 100%.(88 Hocker S, Whalen F, Wijdicks EF. Apnea testing for brain death in severe acute respiratory distress syndrome: a possible solution. Neurocrit Care. 2014;20(2):298-300.) Em uma paciente com trauma craniencefálico e SDRA por contusão pulmonar, Ahlawat et al reduziram o volume-minuto de modo gradual até alcançar uma PaCO2 de 99mmHg. Depois disso, o paciente foi observado durante 60 segundos em modo CPAP. A ausência de movimentos respiratórios mediante estimulação hipercápnica do centro respiratório permitiu completar o diagnóstico da ME.(1010 Ahlawat A, Carandang R, Heard SO, Muehlschlegel S. The modified apnea test during brain death determination: an alternative in patients with hypoxia. J Intensive Care Med. 2016;31(1):66-9.) Recentemente, foi reportado um caso que evidenciou a possibilidade de realizar o teste de apneia em posição prona e válvula de CPAP acoplada a uma peça em T.(1111 Carneiro BV, Garcia GH, Isensee LP, Besen BA. Optimization of conditions for apnea testing in a hypoxemic brain dead patient. Rev Bras Ter Intensiva. 2019;31(1):106-10.)

A despeito da hipoxemia prévia observada no caso 1, o teste de apneia em CPAP sem desconexão do VM permitiu a conclusão da determinação da ME com segurança (Figura 3), o que não seria possível com a metodologia convencional, que pressupõe a desconexão do ventilador. Com auxílio da tomografia de impedância elétrica utilizada no caso 2, foi possível visualizar o efeito da aplicação do CPAP na preservação do VRF, evidenciada pela manutenção da impedância torácica ao final da expiração (pletismografia torácica com linha de base constante) (Figura 3B). Ao contrário, durante o teste convencional, a linha de base da pletismografia torácica não se mantém, o que indica diminuição do VRF (Figura 3A). É importante destacar que a tomografia de impedância elétrica consiste em aferir a variação de impedância gerada pela entrada e saída do ar dos pulmões, além da variação do conteúdo sanguíneo. Durante a apneia, entretanto, a variação da impedância ocorre integralmente pela variação do conteúdo sanguíneo, sendo impossível avaliar a distribuição da ventilação.(1616 Lima JN, Fontes MS, Szmuszkowicz T, Isola AM, Maciel AT. Electrical impedance tomography monitoring during spontaneous breathing trial: physiological description and potential clinical utility. Acta Anaesthesiol Scand. 2019;63(8):1019-27.)

As trocas gasosas são influenciadas pela FiO2, pela pressão média das vias aéreas e pela relação ventilação/perfusão. A desconexão do VM resulta em redução da pressão das vias aéreas e do VRF, o que explica quedas importantes da oxigenação durante o teste de apneia convencional.(1717 Harris ND, Suggett AJ, Barber DC, Brown BH. Applications of applied potential tomography (APT) in respiratory medicine. Clin Phys Physiol Meas. 1987;8 Suppl A:155-65.) A manutenção do VRF proporcionado pelo CPAP permite a manutenção da superfície de troca gasosa. Assim, mesmo com extensas lesões da membrana alvéolo-capilar e baixa PaO2/FiO2 prévia ao teste, é possível manter a difusão de oxigênio durante a interrupção da ventilação em níveis similares aos observados na ventilação controlada.

Além de oferecer segurança aos indivíduos com insuficiência respiratória hipoxêmica, o teste de apneia com CPAP vem sendo utilizado como parte de uma estratégia de preservação dos pulmões para transplantes, que inclui volume corrente de 6 a 8mL/kg, PEEP entre 8 e 10cmH2O, além de manobras de recrutamento alveolar.(1313 Mascia L, Pasero D, Slutsky AS, Arguis MJ, Berardino M, Grasso S, et al. Effect of a lung protective strategy for organ donors on eligibility and availability of lungs for transplantation: a randomized controlled trial. JAMA. 2010;304(23):2620-7.

14 Miñambres E, Coll E, Duerto J, Suberviola B, Mons R, Cifrian JM, et al. Effect of an intensive lung donor management protocol on lung transplantation outcomes. J Heart Lung Transplant. 2014;33(2):178-84.
-1515 Miñambres E, Pérez-Villares JM, Chico-Fernández M, Zabalegui A, Dueñas-Jurado JM, Misis M, et al. Lung donor treatment protocol in brain dead-donors: a multicenter study. J Heart Lung Transplant. 2015;34(6):773-80.) Apesar de manobras de recrutamento(88 Hocker S, Whalen F, Wijdicks EF. Apnea testing for brain death in severe acute respiratory distress syndrome: a possible solution. Neurocrit Care. 2014;20(2):298-300.,1111 Carneiro BV, Garcia GH, Isensee LP, Besen BA. Optimization of conditions for apnea testing in a hypoxemic brain dead patient. Rev Bras Ter Intensiva. 2019;31(1):106-10.,1313 Mascia L, Pasero D, Slutsky AS, Arguis MJ, Berardino M, Grasso S, et al. Effect of a lung protective strategy for organ donors on eligibility and availability of lungs for transplantation: a randomized controlled trial. JAMA. 2010;304(23):2620-7.

14 Miñambres E, Coll E, Duerto J, Suberviola B, Mons R, Cifrian JM, et al. Effect of an intensive lung donor management protocol on lung transplantation outcomes. J Heart Lung Transplant. 2014;33(2):178-84.
-1515 Miñambres E, Pérez-Villares JM, Chico-Fernández M, Zabalegui A, Dueñas-Jurado JM, Misis M, et al. Lung donor treatment protocol in brain dead-donors: a multicenter study. J Heart Lung Transplant. 2015;34(6):773-80.) serem sugeridas por alguns autores, devemos levar em conta seu potencial de complicações como hipotensão, queda da SaO2, arritmias e barotrauma. Além disso, é provável que a manutenção do VRF promovida pelo CPAP seja suficiente para manutenção da oxigenação.(1010 Ahlawat A, Carandang R, Heard SO, Muehlschlegel S. The modified apnea test during brain death determination: an alternative in patients with hypoxia. J Intensive Care Med. 2016;31(1):66-9.)

CONCLUSÃO

Em pacientes neurocríticos hipoxêmicos com suspeita de morte encefálica, a técnica convencional do teste de apneia pode resultar em hipoxemia grave. A realização do teste de apneia contemplando a aplicação de pressão contínua nas vias aéreas é uma técnica a ser considerada para prevenção de hipoxemia e manutenção dos níveis de segurança durante o procedimento.

REFERÊNCIAS

  • 1
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    » https://saude.rs.gov.br/upload/arquivos/carga20171205/19140504-resolucao-do-conselho-federal-de-medicina-2173-2017.pdf
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Editado por

Editor responsável: Rui Moreno

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    24 Jun 2020
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 2020

Histórico

  • Recebido
    19 Jul 2019
  • Aceito
    02 Dez 2019
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