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Há lugar para visitação de crianças nas unidades de terapia intensiva adulto?

AO EDITOR

“Meu esposo está há mais de 60 dias na UTI e temo que esteja chegando a hora de sua partida. Fui informada da regra de que a visita é permitida a partir de 12 anos, mas nossa filha tem 11. Ela fará 12 anos em 2 semanas, mas não sei se teremos esse tempo para esperar. Posso trazê-la para se despedir?”

Este pedido interrogado na porta de uma unidade de terapia intensiva (UTI) proporciona reflexões e geralmente recai sobre diferentes opiniões e controvérsias. Os hospitais brasileiros recomendam que crianças menores de 12 anos não realizem visitas a pacientes internados, considerando os riscos de transmissão de doenças e acidentes. Também há preocupações quanto a aspectos emocionais envolvidos. O Estatuto da Criança e do Adolescente considera criança a pessoa até 12 anos de idade incompletos.(11 Brasil. Presidência da República. Casa Civil. Subchefia para Assuntos Jurídicos. Lei 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Brasília (DF): Casa Civil; 1990. [citado 2020 Mai 23]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm#) Em UTIs onde o Serviço de Psicologia está inserido na equipe, geralmente os pedidos de entrada de uma criança são endereçados à avaliação psicológica.(22 Borges KM, Genaro LT, Monteiro MC. Visita de crianças em unidade de terapia intensiva. Rev Bras Ter Intensiva. 2010;22(3):300-4.)

Um estudo transversal com 446 enfermeiros norte-americanos de UTIs de adultos analisou suas percepções e práticas em relação à visita infantil. Essa pesquisa mostrou que 67,9% entendiam que as crianças possuíam risco de trauma psíquico ao visitar um adulto na UTI. Sobre as políticas de visitação de crianças, 27,4% sinalizaram que suas UTIs não as possuíam. Análises permitiram inferir que os enfermeiros com Mestrado tinham 1,8 vez mais probabilidade de acreditar que crianças até 5 anos deveriam visitar os pacientes. A chance de os enfermeiros permitirem que crianças visitassem era maior se o paciente fosse o pai da criança ou se estivesse morrendo. Os pesquisados sinalizaram que as UTIs poderiam se beneficiar de especialistas em infância para facilitar a visitação.(33 Desai PP, Flick SL, Knutsson S, Brimhall AS. Practices and perceptions of nurses regarding child visitation in adult intensive care units. Am J Crit Care. 2020;29(3):195-203.)

Há de se considerar que crianças desempenham papéis dentro das famílias, sendo eles filhos, irmãos, sobrinhos, netos entre outros, e continuarão mesmo que tenham familiares em estado crítico. É usual ouvir que “UTI não é lugar de criança”, além de questionamentos sobre como elas irão entender a situação e se comportar ou reagir, caso vejam o paciente.

Ao se afirmar que lugar de criança não é na UTI, a discussão é reduzida à negação da realidade. O questionamento poderia ser no sentido de como posso viabilizar que a UTI permita a despedida entre um filho e um pai? O que cateteres, máquinas de hemodiálise e bombas de infusão têm de mais avassalador do que a morte? Como se pode ajudar uma criança a entender as limitações que enfrentará na família quanto à dependência física e ao adoecimento crônico de sua mãe? O que o afastamento do filho de uma puérpera com síndrome de Guillain-Barré pode representar emocionalmente à paciente e ao bebê?

O entendimento sobre como as crianças elaboram o conceito de adoecimento pode ser inicialmente interpretado sob o ponto de vista do desenvolvimento cognitivo e cultural. No que se refere à cultura, rapidamente é possível exemplificar, ao observar a tela Ciência e Caridade,(44 Picasso P. Ciência e Caridade [óleo sobre tela]. 1897. Barcelona: Museu Picasso.) de 1897, de Pablo Picasso, exposta no Museu Picasso em Barcelona, Espanha (Figura 1). Nessa obra, pode-se inferir uma mulher gravemente enferma, na presença de um médico, uma religiosa e uma criança - talvez filha da doente. Ariès(55 Ariès P. História da morte no ocidente: da idade média aos nossos dias. Rio de Janeiro: Francisco Alves; 1977.) justifica que “não há representação de um quarto de moribundo até o século XVIII sem algumas crianças”.

Figura 1
Pintura “Ciência e Caridade”, 1897, de Pablo Picasso.

Óleo sobre tela, 197 x 249cm. Barcelona; Museu Picasso.


Com a ausência ou a escassez de hospitais, os partos, os tratamentos de doentes e a morte aconteciam em casa. As crianças visualizavam e participavam da realidade exposta como era. Ainda hoje, depara-se com histórias de pessoas que contam a lembrança da morte de suas mães, em casa, durante o parto. Certamente essas falas remetem ao trauma da perda da mãe e da cena vivida. Hoje, com as mortes nos hospitais e nas UTIs, as crianças ficaram protegidas dessas imagens bárbaras, no entanto, a perda ainda existe. O que se pode propor é que existam ponderações sobre os polos em que, culturalmente, a sociedade está imbuída. Saiu-se de uma realidade escancarada para uma exclusão da participação da criança no contexto de ausências e perdas enfrentadas com o adoecimento nas famílias. O que se sugere com esses apontamentos são propostas de diálogo e de formas de elaboração do contexto atual.

Quanto às dúvidas sobre o entendimento da criança sobre a realidade, faz-se necessário compreender particularidades de cada etapa do desenvolvimento. Para bebês com menos de 1 ano, sugere-se fazer contato com o pediatra a respeito de sua condição de saúde e exposição ao ambiente crítico. Crianças entre zero e 2 anos apresentam o conhecimento do mundo exterior por meio dos sentidos e de habilidades motoras. A criança com menos de 2 anos percebe ausências e faltas dos pais ou responsáveis. Crianças entre 3 e 5 anos entendem o mundo sob sua perspectiva individual e egocêntrica. A morte é vista como um fenômeno temporário e reversível. Entre 6 e 9 anos, possuem o pensamento concreto, tendo a noção de irreversibilidade. Podem ser incentivadas a fazer perguntas sobre as visitas. A partir dos 10 anos até a adolescência, compreendem a situação na totalidade em que se encontram, assim como a morte sendo inevitável e universal. Mesmo as crianças menores mais independentes, é preciso apoiá-las e que recebam informações precisas sobre o paciente.(66 Torres WC. A criança diante da morte: desafios. São Paulo: Casa do Psicólogo; 1999.,77 Sunnybrook Health Sciences Centre. Can children visit their loved one in the ICU? [cited 2020 May 23]. Available from: https://sunnybrook.ca/content/?page=navigating-icu-need-to-know-children
https://sunnybrook.ca/content/?page=navi...
)

Sabendo-se disso, a equipe de saúde, ao ser abordada sobre uma solicitação de visitação, deve identificar de quem é o desejo da visita.(22 Borges KM, Genaro LT, Monteiro MC. Visita de crianças em unidade de terapia intensiva. Rev Bras Ter Intensiva. 2010;22(3):300-4.) Conforme a idade, pode ser manifestação da criança, e, assim, será imperativo ter ciência do que foi comunicado a ela pela família sobre a internação do familiar. Na prática rotineira, identificam-se dificuldades nesses aspectos. Há relatos de silêncios e uso de metáforas, no intuito de amenizar o sofrimento. Algumas vezes, identifica-se que o pedido de visita seria uma forma de fazer com que alguém da equipe comunicasse à criança aquilo que está difícil para a família. No entanto, os profissionais não devem assumir a responsabilidade de um diálogo que é das famílias, mas podem auxiliá-los e instrumentalizá-los sobre isso. Também é necessário ter, sempre que possível, a anuência do paciente.

Faz-se fundamental que a equipe da UTI seja consultada, e que seja discutido, de forma multiprofissional, a viabilidade em cada caso. A criança deve estar acompanhada por um responsável com quem possua vínculo afetivo. Sugere-se que esse familiar também reflita como se sentiria com a visita, pois a ele recairão a comunicação e o amparo da criança.

Se for consenso entre todas as partes envolvidas, devem-se viabilizar meios de que a criança seja protegida do entorno da UTI, mantendo o paciente coberto, as cortinas dos pacientes ao redor fechadas ou com as portas do box fechadas se a UTI tiver leitos individualizados. Recomenda-se que a visitação seja breve, por poucos minutos.(66 Torres WC. A criança diante da morte: desafios. São Paulo: Casa do Psicólogo; 1999.) Considera-se a imprevisibilidade do acontecimento de intercorrências, portanto, é necessário que o horário da visita seja um acordo multidisciplinar. Quando possível, pode-se esperar a saída do paciente da terapia intensiva, e a visita pode ser realizada na enfermaria.

A exemplo de uma solicitação de visitação, foi realizada entrevista psicológica com a mãe de uma criança de 7 anos que verbalizou o desejo do filho em ver o pai no seu pós-operatório na UTI. Questionou-se sobre o entendimento da criança e, para isso, foi solicitado pela psicóloga que o menino realizasse um desenho de como imaginaria que seu pai estaria (Figura 2). O menino explicou que o pai estava deitado em sua cama “fazendo remédios na veia”. Ao lado, havia uma mesa, para realizar a refeição, e, do mesmo lado, estavam a enfermeira e o médico. A frente, havia uma televisão e o chefe. Após a visita, foi realizada nova abordagem para avaliar a adequação da realidade imaginada e a vivenciada pelo menino. Ele verbalizou que o pai estava melhor do que pensava, pois o encontrou sentado na poltrona e não mais deitado, como no desenho.

Figura 2
Desenho da criança.

Com autorização.


Preocupações quanto à visitação de crianças são legítimas e evidenciam a necessidade de se estabelecer uma rotina nas UTIs. No contexto de pandemia, onde há restrições mundialmente recomendadas, os riscos são inquestionáveis quanto à circulação de pessoas nos hospitais. Para amenizar o distanciamento entre doentes e as famílias, atualmente, com dispositivos eletrônicos, como computadores e celulares, é possível fazer visitações virtuais por meio de videochamadas. Nesse aspecto, o risco de infecções é controlado, e convém salientar que, independente da modalidade de visitação, os pontos aqui explanados devem continuar sendo considerados quanto às questões que envolvem as crianças, para além de marcos cronológicos.

O que se propõe com essa discussão é a avaliação da possibilidade de visitas com critérios e cuidados. A visitação, quando se conhece o contexto em que ela se dará e se realizada com segurança, poderá ser de importância subjetiva nas famílias, sendo necessária para elaboração de ausências e da falta gerada pelo adoecimento.

REFERÊNCIAS

  • 1
    Brasil. Presidência da República. Casa Civil. Subchefia para Assuntos Jurídicos. Lei 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Brasília (DF): Casa Civil; 1990. [citado 2020 Mai 23]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm#
  • 2
    Borges KM, Genaro LT, Monteiro MC. Visita de crianças em unidade de terapia intensiva. Rev Bras Ter Intensiva. 2010;22(3):300-4.
  • 3
    Desai PP, Flick SL, Knutsson S, Brimhall AS. Practices and perceptions of nurses regarding child visitation in adult intensive care units. Am J Crit Care. 2020;29(3):195-203.
  • 4
    Picasso P. Ciência e Caridade [óleo sobre tela]. 1897. Barcelona: Museu Picasso.
  • 5
    Ariès P. História da morte no ocidente: da idade média aos nossos dias. Rio de Janeiro: Francisco Alves; 1977.
  • 6
    Torres WC. A criança diante da morte: desafios. São Paulo: Casa do Psicólogo; 1999.
  • 7
    Sunnybrook Health Sciences Centre. Can children visit their loved one in the ICU? [cited 2020 May 23]. Available from: https://sunnybrook.ca/content/?page=navigating-icu-need-to-know-children
    » https://sunnybrook.ca/content/?page=navigating-icu-need-to-know-children

Editado por

Editor responsável: Felipe Dal-Pizzol

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Abr 2021
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 2021

Histórico

  • Recebido
    24 Maio 2020
  • Aceito
    30 Maio 2020
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