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Avaliação de dor do recém-nascido durante punção arterial: estudo observacional analítico

RESUMO

Objetivo:

Avaliar a intensidade de dor durante a punção arterial realizada em recém-nascidos internados em uma unidade de cuidados progressivos neonatais e avaliar a percepção do profissional em relação à dor neonatal.

Métodos:

Estudo observacional analítico, em que foram observadas 62 punções arteriais realizadas em 35 neonatos. Avaliou-se a dor durante a coleta pela escala Premature Infant Pain Profile. Os profissionais responsáveis pela coleta avaliaram a dor pela escala numérica verbal de zero a dez. Os dados foram submetidos à análise estatística descritiva por meio do programa Statistical Package for the Social Science.

Resultados:

Entre os recém-nascidos, 30,6% (n = 19) não tiveram dor ou tiveram dor leve (0 - 6), 24,2% (n = 15) apresentaram dor leve a moderada (7 - 11) e 45,2% (28) dor intensa (12 - 21). Constatou-se que os profissionais identificam a dor durante o procedimento.

Conclusão:

A punção arterial é considerada um procedimento doloroso e pode resultar em dor leve a intensa, sendo necessária a adoção de estratégias sistematizadas de avaliação, possibilitando a intervenção terapêutica adequada.

Descritores:
Dor; Medição da dor; Enfermagem neonatal; Recém-nascido; Punções; Unidades de terapia intensiva neonatal

ABSTRACT

Objective:

To evaluate pain intensity during arterial puncture performed in newborns admitted to a neonatal progressive care unit and to evaluate the perception of health professionals regarding neonatal pain.

Methods:

This was an observational analytical study in which 62 arterial punctures were performed in 35 neonates. Pain was assessed during collection using the Premature Infant Pain Profile scale. The health professionals responsible for collection evaluated pain using a verbal numerical scale ranging from zero to ten. The data were subjected to descriptive statistical analysis using the Statistical Package for the Social Science software.

Results:

Among the newborns, 30.6% (n = 19) had no pain or mild pain (0 - 6), 24.2% (n = 15) had mild to moderate pain (7 - 11) and 45.2% (28) had severe pain (12 - 21). It was found that health professionals identified pain during the procedure.

Conclusion:

Arterial puncture is considered a painful procedure that can result in mild to severe pain. The adoption of systematic evaluation strategies is necessary to enable appropriate therapeutic intervention.

Descritores:
Pain; Pain measurement; Neonatal nursing; Infant, newborn; Punctures; Intensive care units, neonatal

INTRODUÇÃO

Nos últimos anos, os avanços científicos e a incorporação de novas tecnologias no tratamento dos recém-nascidos (RN) internados em unidades de cuidados progressivos neonatais (UCPN) resultaram em maior sobrevida e qualificação do cuidado prestado à essa população. Em decorrência disso, inúmeros procedimentos diagnósticos e terapêuticos são realizados diariamente em RN internados nas UCPN, podendo resultar em experiências classificadas como dolorosas, muito dolorosas ou estressoras.(11 Andreazza MG, Motter AA, Cat ML, Silva RP. Percepção da dor em neonatos pela equipe de enfermagem de unidade de terapia intensiva neonatal. Rev Bras Pesqui Saúde. 2018;19(4):133-9.)

Os elementos funcionais e neuroquímicos necessários para a transmissão do impulso doloroso ao córtex cerebral estão presentes nos RN a termo e nos prematuros.(22 Martins SW, Dias FS, Enumo SR, Paula KM. Pain assessment and control by nurses of a neonatal intensive care unit. Rev Dor. 2013;14(1):21-6.) A dor vivenciada no período neonatal pode resultar em complicações a curto, médio e longo prazo, visto que a condução e a interpretação do processo álgico podem gerar alterações fisiológicas, estruturais e funcionais relacionadas especialmente ao sistema nervoso central dos RN. Dentre os agravos e as complicações clínicas imediatas, estão a hemorragia periventricular e as respostas neurocomportamentais alteradas. Quanto às complicações de longo prazo, podem ocorrer problemas emocionais e de interação social, além do desenvolvimento de psicopatologias na adolescência e na vida adulta.(33 Costa P, Camargo PP, Bueno M, Kimura AF. Dimensionamento da dor durante a instalação do cateter central de inserção periférica em neonatos. Acta Paul Enferm. 2010;23(1):35-40.)

A não verbalização da dor e o processo de acomodação durante a dor persistente são especificidades que dificultam a avaliação da dor de RN. No entanto, a avaliação é essencial ao manejo adequado, sendo realizada nesse grupo etário por meio da identificação de alterações fisiológicas e comportamentais.(44 Balda RC, Guinsburg R. Avaliação e tratamento da dor no período neonatal. Resid Pediatr. 2019; 9(1):43-52.) Assim, a avaliação da dor é necessariamente indireta e demanda profissionais capacitados, além de métodos validados e aplicáveis à prática clínica, para identificação dessa condição clínica. De acordo com uma revisão sistemática, cerca de 65 escalas poderiam ser utilizadas para avaliação da dor e da sedação na infância. Tais escalas passaram por processos de validação e testes de confiabilidade e são constituídas por variáveis fisiológicas e comportamentais, sendo indicadas para utilização em diferentes contextos relacionados à idade e à condição clínica.(44 Balda RC, Guinsburg R. Avaliação e tratamento da dor no período neonatal. Resid Pediatr. 2019; 9(1):43-52.,55 Giordano V, Edobor J, Deindl P, Wildner B, Goeral K, Steinbauer P, et al. Pain and sedation for neonatal and pediatric patients in a preverbal stage of development: a systematic review. JAMA Pediatr. 2019;173(12):1186-97.)

Apesar do grande número de escalas disponíveis, poucas delas foram traduzidas para o português e passaram pelo processo de adaptação cultural para o Brasil. Os instrumentos mais indicados para avaliação da dor de RN em unidades neonatais brasileiras são a Escala de Dor no Recém-Nascido (NIPS - Neonatal Infant Pain Scale), o Sistema de Codificação da Atividade Facial Neonatal (NFCS - Neonatal Facial Coding System), a escala Perfil de Dor no Recém-Nascido Pré-Termo (PIPP - Premature Infant Pain Profile) e sua versão revisada Perfil de Dor do Recém-Nascido Pré-Termo - Revisado.(55 Giordano V, Edobor J, Deindl P, Wildner B, Goeral K, Steinbauer P, et al. Pain and sedation for neonatal and pediatric patients in a preverbal stage of development: a systematic review. JAMA Pediatr. 2019;173(12):1186-97.)

O PIPP é uma escala mista composta de seis indicadores que avaliam o estado de alerta, a frequência cardíaca máxima, a saturação mínima, testa franzida, olhos espremidos e sulco nasolabial aprofundado, de maneira diferenciada de acordo com a idade gestacional, considerando que, quanto menor é a idade gestacional, menores são as alterações comportamentais secundárias à estimulação dolorosa. A pontuação varia de zero a 21 pontos; escores menores ou igual a seis indicam ausência de dor; de sete a 12, dor leve a moderada, e escores superiores a 12 indicam presença de dor moderada a intensa.(66 Harris J, Ramelet AS, van Dijk M, Pokorna P, Wielenga J, Tume L, et al. Clinical recommendations for pain, sedation, withdrawal and delirium assessment in critically ill infants and children: an ESPNIC position statement for healthcare professionals. Intensive Care Medicine. 2016;42(6):972-86.) Na versão revisada, a utilização e a pontuação foram facilitadas para melhorar sua aplicação na prática clínica.(55 Giordano V, Edobor J, Deindl P, Wildner B, Goeral K, Steinbauer P, et al. Pain and sedation for neonatal and pediatric patients in a preverbal stage of development: a systematic review. JAMA Pediatr. 2019;173(12):1186-97.

6 Harris J, Ramelet AS, van Dijk M, Pokorna P, Wielenga J, Tume L, et al. Clinical recommendations for pain, sedation, withdrawal and delirium assessment in critically ill infants and children: an ESPNIC position statement for healthcare professionals. Intensive Care Medicine. 2016;42(6):972-86.
-77 Bueno M, Costa P, Oliveira AA, Cardoso R, Kimura AF. Tradução e adaptação do Premature Infant Pain Profile para a língua portuguesa. Texto Contexto Enferm. 2013;22(1): 29-35.)

É de extrema importância a verificação da real necessidade e da relevância clínica para a tomada de decisão quando uma intervenção dolorosa é proposta, considerando que a não exposição é a única maneira verdadeiramente segura de se evitar a dor. Uma vez confirmada a indicação do procedimento, quando se trata de uma intervenção sabidamente dolorosa, a estratégia terapêutica mais adequada deve ser indicada, e a dor precisa ser avaliada durante e após o procedimento.(88 Committee on Fetus and Newborn and Section on Anesthesiology and Pain Medicine. Prevention and management of procedural pain in the neonate: an update. Pediatrics. 2016;137(2):e20154271.)

A punção arterial é um procedimento doloroso realizado frequentemente nas UCPN e consiste na coleta de material biológico para monitoramento clínico e laboratorial. Apesar dos avanços ocorridos nas últimas duas décadas em relação à avaliação e ao tratamento da dor no período neonatal, a dor decorrente da punção arterial foi pouco investigada entre RN, fato que pode ser evidenciado pela ausência de adoção das recomendações descritas na literatura na prática clínica.(99 Silva TM, Chaves EM, Cardoso MV. Dor sofrida pelo recém-nascido durante a punção arterial. Esc Anna Nery Rev Enferm. 2009;13(4):726-32.

10 Maciel HI, Costa MF, Costa AC, Marcatto JO, Manzo BF, Bueno M. Medidas farmacológicas e não farmacológicas de controle e tratamento da dor em recém-nascidos. Rev Bras Ter Intensiva. 2019;31(1):21-6.

11 Cardoso MV, Melo GM. Música e glicose 25% em prematuros no pré-procedimento da punção arterial: ênfase na mímica facial. Rev Eletrônica Enferm. 2016;18:e1162.
-1212 Melo GM, Cardoso MV. Medidas não farmacológicas em recém-nascidos pré-termo submetidos à punção arterial. Rev Bras Enferm. 2017;70(2):317-25.)

Neste contexto, o presente estudo teve por objetivo avaliar a intensidade de dor durante a punção arterial realizada em recém-nascidos internados em uma unidade de cuidados progressivos neonatais e avaliar a percepção do profissional em relação à dor neonatal.

MÉTODOS

Trata-se de estudo observacional analítico, conduzido em uma UCPN de um hospital público de Belo Horizonte, no período de junho a setembro de 2018. Os critérios de inclusão foram RN internados na UCPN submetidos à punção arterial nos primeiros 28 dias de vida, sem utilização de bloqueadores neuromusculares, opioides e analgésicos nas 48 horas que antecederam à inclusão no estudo. Foram excluídos do estudo RN com diagnóstico conhecido de disfunção neuromuscular. Pacientes que necessitaram de mais duas tentativas de punção tiveram somente as duas primeiras experiências incluídas na análise, considerando o processo de acomodação da dor em situações de dor persistente.

A coleta de dados foi realizada por quatro pesquisadores previamente capacitados em relação à utilização da escala. Foram realizadas avaliações de dez pacientes sob supervisão do coordenador da pesquisa, oportunizando o alinhamento, o esclarecimento de dúvidas e a realização da análise de concordância. Nessa fase, os avaliadores observaram os mesmos pacientes, e, como não foram necessárias alterações no protocolo de pesquisa, as avaliações realizadas nessa etapa foram incluídas na amostra final do estudo.

As coletas foram realizadas nos plantões diurnos, de segunda a sexta-feira, nos horários padronizados para coleta de sangue na UNCP. O instrumento de coleta de dados foi organizado em duas partes, sendo a primeira destinada ao registro de dados sociodemográficos da população (sexo, idade gestacional, peso dias de vida, Apgar, diagnóstico ao nascimento e escolaridade materna) e a segunda ao registro do procedimento (escala de dor antes, durante e depois; frequência cardíaca e saturação de oxigênio e percepção do profissional em relação à experiência dolorosa do RN). Foram analisados os dados das duas primeiras tentativas de coleta de sangue arterial.

O procedimento de punção arterial foi dividido em quatro tempos (T1, T2, T3 e T4), com o objetivo de identificar a dor decorrente da manipulação e da ruptura de integridade da pele, sendo T1 - avaliação no momento basal 5 minutos antes da realização do procedimento; T2 - degermação; T3 - punção e T4 - retorno ao basal 5 minutos após o término do procedimento.

A dor decorrente da punção arterial foi avaliada pelas pesquisadoras usando o PIPP nos quatro tempos do procedimento.(1313 Stevens B, Johnston C, Taddio A, Gibbins S, Yamada J. The premature infant pain profile: evaluation 13 years after development. Clin J Pain. 2010;26(9):813-30.) A avaliação realizada pelos profissionais responsáveis pela coleta foi feita por meio da percepção de dor referida por eles, utilizando uma escala numérica verbal de zero a dez, sendo considerada pelos pesquisadores pontuação de zero a três como dor leve, de quatro a sete para dor moderada e de oito a dez para dor intensa. Os profissionais avaliaram a dor uma única vez, ao final do procedimento.

O protocolo de dor da unidade de estudo contempla a administração de solução oral de glicose a 25% 2 minutos antes do procedimento e contenção facilitada durante a punção arterial para todos os RN.

As variáveis independentes analisadas foram idade gestacional corrigida, peso de nascimento, principais diagnósticos e profissional responsável pela coleta. As variáveis dependentes foram número de punções, tempo de duração do procedimento, avaliação do PIPP nos diferentes tempos do procedimento e percepção de dor referida pelos profissionais por meio da escala numérica verbal.

Os responsáveis pelos pacientes participantes foram orientados quanto à natureza da pesquisa, por meio do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. O estudo seguiu os preceitos éticos, de acordo com a resolução 466/12, e foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa, com anuência da instituição na qual foi desenvolvido, sob o parecer 2.144.864 (CAAE 66157317.9.0000.5149).

Os dados coletados foram inicialmente lançados em planilhas do software Microsoft Excel, versão 2016, e transportados para o programa Statistical Package for the Social Science (SPSS), versão 21.0 para Windows. A concordância interavaliador foi analisada durante o estudo-piloto, por meio do coeficiente Kappa, que demonstrou haver concordância de forte magnitude (K = 0,76) entre os pesquisadores que realizaram a avaliação da dor utilizando o PIPP. As variáveis foram analisadas de forma descritiva, adotando-se medidas de tendência central, como médias, mediana, mínimo, máximo e desvio-padrão, para variáveis numéricas, e frequências absolutas e relativas, para variáveis categóricas. Em seguida, os testes de normalidade Shapiro-Wilk e Kolmogorov-Smirmov foram realizados para investigar a distribuição das variáveis. O resultado revelou que apresentavam distribuição não normal, sendo aplicado nas análises teste não paramétrico. Foi realizado o teste de Wilcoxon para amostras pareadas a fim de comparar a dor nos diferentes tempos do procedimento durante a primeira e a segunda punção. A dor avaliada por meio do PIPP foi correlacionada à percepção de dor referida pelos profissionais, utilizando-se o teste de correlação de Spearman. Foram utilizados os dados da experiência dolorosa no tempo 3 (punção) para realização da correlação, por ter sido a etapa mais dolorosa do procedimento. As forças das correlações foram analisadas considerando que valores entre 0,1 e 0,3 são classificados como de fraca magnitude, entre 0,4 e 0,6 de moderada magnitude e acima de 0,7 de forte magnitude.(1414 Dancey CP, Reidy J. Estatística sem matemática: para psicologia usando SPSS para Windows. 3a. ed. Porto Alegre: Artmed; 2006. 608 p.) Em todas as análises foi considerado nível de significância de 5% (p < 0,05).

RESULTADOS

Os dados demográficos e clínicos dos RN incluídos na pesquisa estão descritos na tabela 1. O profissional responsável pelas punções foi prioritariamente o técnico de laboratório, com 88,7% (n = 55). O número de tentativas de punção para obtenção de sucesso na coleta da amostra variou de uma a sete punções, e a mediana de tempo de duração do procedimento foi de 5 minutos. Durante a punção arterial, a queda de saturação foi observada em 46,8% (n = 29) dos procedimentos observados. Alterações de frequência cardíaca (bradicardia/taquicardia) ocorreram em 58,1% (n = 36) dos procedimentos e, em 56,5% (n = 35) das observações, os RN reagiram com o choro durante e após o procedimento de punção arterial.

Tabela 1
Dados relacionados aos neonatos submetidos às punções arteriais

Em relação à avaliação da dor com a utilização do PIPP, foi identificada ausência de dor em 30,6% (n = 19). Dor leve e moderada foi identificada em 24,2% (n = 15) e dor intensa, em 45,2% (n = 28) das observações.

A comparação da intensidade da dor entre os tempos degermação (T2) e punção (T3) na primeira tentativa demonstrou que a punção é mais dolorosa que a degermação. Quando comparada a intensidade de dor entre a primeira e a segunda tentativa de punção arterial, não foi observada diferença estatisticamente significativa (Tabela 2).

Tabela 2
Comparação da intensidade de dor entre os tempos do procedimento (degermação e punção) e entre a primeira e segunda tentativa de punção

A correlação entre a avaliação da dor por meio do PIPP e a percepção de dor referida pelos profissionais foram diretas, e sua intensidade indicou resultados moderado na primeira punção (rho = 0,533; p < 0,001) e forte na segunda (rho = 0,824; p < 0,001) (Tabela 3).

Tabela 3
Correlação de Spearman entre a avaliação da dor pelos pesquisadores e a percepção de dor descrita pelos profissionais

Quando realizada estratificação dos RN por idade gestacional (28 a 32 semanas, 32 a 36 semanas e acima de 36 semanas), não foi observada diferença estatisticamente significativa na intensidade da dor durante a punção arterial entre os grupos (p < 0,05).

DISCUSSÃO

Recém-nascidos internados em unidades de terapia intensiva neonatais são submetidos a uma grande quantidade de procedimentos dolorosos durante a internação hospitalar, e observam-se muitos obstáculos à implementação de medidas terapêuticas na prática clínica.(1515 Carbajal R, Rousset A, Danan C, Coquery S, Nolent P, Ducrocq S, et al. Epidemiology and treatment of painful procedures in neonates in intensive care units. JAMA. 2008;300(1):60-70.,1616 Field T. Preterm newborn pain research review. Infant Behav Dev. 2017;49:141-50.)

No presente estudo, foi observado que a experiência álgica na população investigada variou de ausente a intensa, dado que demonstra as especificidades da experiência de dor entre os indivíduos, mesmo quando submetidos ao mesmo procedimento. A ausência dor foi registrada por meio do PIPP em cerca de um terço dos procedimentos, dado que pode ser explicado pela adoção de protocolos de controle da dor tais como administração de solução adocicada e contenção facilitada durante a punção arterial. Contudo, observou-se uma expressiva variação na intensidade da dor, o que demonstra a necessidade de uma abordagem individualizada para a realização de um mesmo procedimento. Ressalta-se, ainda, a importância de avaliar criticamente a adoção de protocolos institucionais, visto que estes tendem a propor uniformização das práticas, a despeito das especificidades dos indivíduos. Essa variação em relação à intensidade da dor causada pela punção arterial reforça a importância da adoção de medidas rigorosas de tratamento, bem como da avaliação clínica rigorosa acerca da propriedade da indicação para realização do procedimento.

Pelo fato de a punção arterial ser uma técnica de curta duração, a exposição à manipulação ocorre por curto período, justificando ausência de dor na etapa de dergermação e a presença acentuada de dor durante a punção. Procedimentos que demandam mais manipulação, especialmente na fase de degermação, como a inserção de cateter central por punção periférica e punção lombar, podem ser ainda mais dolorosos em decorrência da manipulação excessiva, o que aponta para o fato de que a interpretação cortical de dor nos RN pode estar relacionada também à manipulação.(1717 Marcatto JO, Tavares EC, Silva YP. Benefícios e limitações da utilização da glicose no tratamento da dor em neonatos: revisão da literatura. Rev Bras Ter Intensiva. 2011;23(2):228-37.,1818 Pinheiro IO, Lima FE, Magalhães FJ, Farias LM, Sherlock MS. Avaliação da dor do recém-nascido através da escala Codificação da Atividade Facial Neonatal durante o exame de gasometria arterial. Rev Dor. 2015;16(3):176-80.) Durante a punção arterial, além de habilidades técnicas e conhecimentos relacionados às condições anatômicas e fisiológicas dos RN, os profissionais envolvidos no cuidado devem ser capazes de perceber as alterações comportamentais e fisiológicas relacionadas à dor.(1919 Valeri BO, Holsti L, Linhares MB. Neonatal pain and developmental outcomes in children born preterm: a systematic review. Clin J Pain. 2015;31(4):355-62.)

A intensidade da dor durante a primeira tentativa de punção foi maior que durante a segunda tentativa. De acordo com estudo de revisão de Valeri et al., a exposição precoce e repetida à dor pode promover alterações neurológicas e impactar nas respostas neurocomportamentais do RN, resultando em limiar de dor reduzido, hiperalgesia e alodinia decorrente do processo de acomodação em casos de dor persistente.(1919 Valeri BO, Holsti L, Linhares MB. Neonatal pain and developmental outcomes in children born preterm: a systematic review. Clin J Pain. 2015;31(4):355-62.) A exposição do RN a dois ou mais procedimentos dolorosos consecutivos pode dificultar a avaliação da experiência álgica nesse grupo etário.(1818 Pinheiro IO, Lima FE, Magalhães FJ, Farias LM, Sherlock MS. Avaliação da dor do recém-nascido através da escala Codificação da Atividade Facial Neonatal durante o exame de gasometria arterial. Rev Dor. 2015;16(3):176-80.) Após sucessivas exposições, espera-se que o RN não responda mais ao estímulo com alterações comportamentais e fisiológicas exacerbadas, o que, necessariamente, não significa ausência de dor.

Por se tratar de um procedimento complexo e que demanda fundamentação teórica de anatomia e fisiologia e considerando a legislação vigente acerca da prática profissional apresentada na resolução nº 390/2011 do Conselho Federal de Enfermagem (Cofen), é indicado que o procedimento seja realizado por profissionais com formação e habilitação técnica. As principais complicações decorrentes da punção arterial são sangramento, hematomas, isquemias periféricas e dor.(2020 Souza N, Carvalho AC, Carvalho WB, Souza RL, Oliveira NF. Complicações da cateterização arterial em crianças. Rev Assoc Med Bras. 2000;46(1):39-46.

21 Querido DL, Christoffel MM, Almeida VS, Esteves AP, Andrade M, Amim Jr J. Fluxograma assistencial para manejo da dor em unidade de terapia intensiva neonatal. Rev Bras Enferm. 2018;71(Supl 3):1360-9.
-2222 Silva RM, Menezes CC, Cardoso LL, França AF. Vivências de famílias de neonatos prematuros hospitalizados em unidade de terapia intensiva neonatal: revisão integrativa. Rev Enferm Centro Oeste Mineiro. 2016;6(2):2258-70.)

Os principais diagnósticos registrados entre os RN inseridos no estudo foram as afecções respiratórias, que fazem com que uma série de intervenções para a manutenção da vida sejam necessárias nesses pacientes. Vários procedimentos dolorosos são realizados em RN internados em UCPN sem analgesia, sendo importante destacar que essa exposição pode resultar em complicações imediatas e tardias, identificadas ainda durante a internação ou apenas durante desenvolvimento da criança.(2323 Bonutti DP, Daré MF, Castral TC, Leite AM, Vici-Maia JA, Scochi CG. Dimensionamento dos procedimentos dolorosos e intervenções para alívio da dor aguda em prematuros. Rev Latinoam Enferm. 2017;25:e2917.)

Estudo realizado com 26 RN internados em uma unidade de terapia intensiva neonatal brasileira comparou os parâmetros fisiológicos dos RN antes e durante o exame de gasometria arterial. Verificou-se que 50% dos RN apresentaram alterações da frequência cardíaca durante o procedimento, e 34,7% alteraram a saturação de oxigênio (SatO2). Entretanto, apesar de serem observadas alterações significativas da frequência cardíaca e SatO2 antes e após o procedimento doloroso, a utilização desses parâmetros isoladamente não é suficiente para avaliar a dor.(1818 Pinheiro IO, Lima FE, Magalhães FJ, Farias LM, Sherlock MS. Avaliação da dor do recém-nascido através da escala Codificação da Atividade Facial Neonatal durante o exame de gasometria arterial. Rev Dor. 2015;16(3):176-80.) Este estudo corrobora nossos achados e reforçam a necessidade de utilização de parâmetros fisiológicos sempre em associação com dados comportamentais no período neonatal.

Em relação ao choro, pesquisa realizada no Brasil avaliou o choro durante a punção venosa. Os pesquisadores descrevem que, dos RN pré-termo (RNPT) investigados que apresentavam sinais sugestivos de ausência de dor, 70% apresentaram resmungos, enquanto 30% dos RN submetidos à venopunção periférica não apresentaram choro.(2424 Santos LM, Pereira MP, Santos LF, Santana RC. Avaliação da dor no recém-nascido prematuro em unidade de terapia intensiva. Rev Bras Enferm. 2012;65(1):27-33.) O choro é uma das manifestações de dor do RN e, apesar de ser um sinal de que algo errado acontece, pode ou não estar relacionado à dor. Diante do exposto, no período neonatal, a avaliação da experiência dolorosa deve acontecer por meio da utilização de métodos mistos, que contemplem indicadores fisiológicos e comportamentais associados.

A correlação entre a avaliação da intensidade da dor obtida por meio do PIPP aplicado pelos pesquisadores e a percepção de dor referida pelos profissionais que realizaram o procedimento demonstrou concordância moderada e direta durante a primeira punção e forte e direta durante a segunda punção. Esse achado aponta que, à medida que a intensidade de dor aumenta, os profissionais também avaliam maior intensidade de dor. Apesar da percepção de dor não ser um dado resultante da aplicação de escala validada, os profissionais são capazes de identificar a experiência dolorosa e, portanto, sabem que a punção arterial gera dor, fato que deveria resultar na adoção de medidas terapêuticas. Um estudo realizado com 57 profissionais que atuavam em uma unidade de terapia intensiva neonatal no interior de São Paulo demonstrou que a maioria era capaz de reconhecer que os RN sentiam dor. Porém, foram identificadas muitas dificuldades em relação à avaliação e ao manejo, o que certamente pode ser a causa de subtratamento na maior parte das unidades neonatais.(2525 Chistoffell MM, Castral TC, Daré MF, Montanholi LL, Scochi CG. Conhecimento dos profissionais de saúde na avaliação e tratamento da dor neonatal. Rev Bras Enferm. 2016;69(3):552-8.) Um trabalho desenvolvido no Brasil com 24 profissionais de saúde que atuavam em unidades neonatais demonstrou que 100% deles reconheciam que os RN eram capazes de sentir dor, e 58,4% não conheciam escalas de avaliação.(2424 Santos LM, Pereira MP, Santos LF, Santana RC. Avaliação da dor no recém-nascido prematuro em unidade de terapia intensiva. Rev Bras Enferm. 2012;65(1):27-33.) A literatura é enfática em recomendar a utilização de métodos validados para avaliação da experiência dolorosa, e existem muitas escalas validadas para avaliação da dor e sedação no período neonatal,(55 Giordano V, Edobor J, Deindl P, Wildner B, Goeral K, Steinbauer P, et al. Pain and sedation for neonatal and pediatric patients in a preverbal stage of development: a systematic review. JAMA Pediatr. 2019;173(12):1186-97.) mas, ainda assim, existem obstáculos à implementação desses instrumentos na prática clínica como ferramentas para tomada de decisão.

Uma das limitações do estudo foi a dificuldade de acompanhamento das coletas de exames, uma vez que muitos eram solicitados em caráter de urgência e coletados em horários diferentes daqueles estabelecidos na rotina da unidade. Considerando a escassez de trabalhos que avaliaram a dor durante a punção arterial, o presente trabalho pode fornecer evidências para que a punção arterial seja reconhecida como procedimento que demanda rigoroso controle da dor.

CONCLUSÃO

Foi possível evidenciar que a punção arterial é um procedimento doloroso, de intensidade que varia de leve a intensa. A dor é reconhecida pelos profissionais e identificada por meio de escalas, as quais, portanto, deveriam ser utilizadas no cotidiano da assistência das unidades de terapia intensiva neonatal como ferramenta para tomada de decisão em relação ao tratamento. O estudo reafirma achados da literatura acerca da importância da identificação de alterações fisiológicas sempre de maneira associada às alterações comportamentais. Recomenda-se que todo procedimento reconhecidamente doloroso seja realizado considerando alguma abordagem terapêutica, e a dor seja avaliada durante e após o procedimento, para que a efetividade do controle da dor seja alcançada. Acredita-se que os resultados desta pesquisa podem contribuir para a implementação de estratégias de controle da dor em recém-nascidos submetidos à punção arterial durante a internação em unidades neonatais, reduzindo as complicações imediatas e tardias decorrentes da realização de procedimentos dolorosos sem abordagem terapêutica adequada.

AGRADECIMENTO

  • Fonte de financiamento dos projetos: Pró-Reitoria de Pesquisa da Universidade Federal de Minas Gerais.

REFERÊNCIAS

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Editado por

Editor responsável: Arnaldo Prata-Barbosa

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Out 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    28 Out 2020
  • Aceito
    27 Fev 2021
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