Acessibilidade / Reportar erro

Síndrome da encefalopatia posterior reversível em paciente com COVID-19 submetida à oxigenação por membrana extracorpórea

RESUMO

Uma mulher com 63 anos de idade compareceu ao pronto-socorro com história aguda de febre, prostração e dispneia. Recebeu diagnóstico de quadro grave da COVID-19 e síndrome do desconforto respiratório agudo. Apesar de suporte clínico intensivo, cumpriu os critérios para ser submetida à oxigenação venovenosa por membrana extracorpórea. No dia 34, após 7 dias de desmame da sedação com evolução positiva de seu quadro neurológico, apresentou uma crise tônico-clônica generalizada limitada, não relacionada com desequilíbrio hidroeletrolítico ou metabólico, que levou à necessidade de investigação diagnóstica. Seus exames de imagem cerebral revelaram síndrome da encefalopatia posterior reversível. Este caso enfatiza a questão das complicações neurológicas em pacientes com COVID-19 grave e a importância do diagnóstico e suporte precoces.

Descritores:
Manifestações neurológicas; Encefalopatias; Infecções por coronavírus; COVID-19; Síndrome do desconforto respiratório agudo; Oxigenação por membrana extracorpórea

ABSTRACT

A 63-year-old woman presented to the emergency department with an acute history of fever, prostration and dyspnea. She was diagnosed with severe COVID-19 acute respiratory distress syndrome and, despite optimized critical care support, met the indications for veno-venous extracorporeal membrane oxygenation. On day 34, after 7 days of wean sedation with a positive evolution of neurologic status, she presented a limited generalized tonic-clonic seizure not related to hydroelectrolytic or metabolic imbalance, which led to a diagnostic investigation; her brain imaging tests showed a posterior reversible encephalopathy syndrome. This case emphasizes the issue of neurological complications in patients with severe COVID-19 infection and the importance of early diagnosis and support.

Keywords:
Neurologic manifestations; Brain diseases; Coronavirus infections; COVID-19; Acute distress syndrome; Extracorporeal membrane oxygenation

INTRODUÇÃO

A doença causada pelo coronavírus 2019 (COVID-19) é uma pandemia surgida em Wuhan, na China, com rápida evolução e para a qual não se identificou, até aqui, qualquer tratamento específico, além dos cuidados de suporte.(11 National Institutes of Health. COVID-19 Treatment Guidelines. Coronavirus Disease 2019 (COVID-19) Treatment Guidelines. [cited 2020 Sep 23]. Available from: https://www.covid19treatmentguidelines.nih.gov/
https://www.covid19treatmentguidelines.n...
) As diretrizes da Extracorporeal Life Support Organization (ELSO) referentes ao uso de oxigenação por membrana extracorpórea (ECMO) em pacientes com COVID-19 recomendam a utilização, em centros especializados, de oxigenação venovenosa por membrana extracorpórea (VV-ECMO) no tratamento da síndrome do desconforto respiratório agudo (SDRA) relacionada à COVID-19.(22 Shekar K, Badulak J, Peek G, Boeken U, Dalton HJ, Arora L, Zakhary B, Ramanathan K, Starr J, Akkanti B, Antonini MV, Ogino MT, Raman L, Barret N, Brodie D, Combes A, Lorusso R, MacLaren G, Müller T, Paden M, Pellegrino V; ELSO Guideline Working Group. Extracorporeal Life Support Organization Coronavirus Disease 2019 Interim Guidelines: A Consensus Document from an International Group of Interdisciplinary Extracorporeal Membrane Oxygenation Providers. ASAIO J. 2020;66(7):707-21.)

As complicações neurológicas vem sendo cada vez mais reconhecidas em pacientes com quadro grave de COVID-19.(33 Ellul MA, Benjamin L, Singh B, Lant S, Michael BD, Easton A, et al. Neurological associations of COVID-19. Lancet Neurol. 2020;19(9):767-83.) Os sintomas neurológicos mais comuns incluem cefaleia, anosmia e ageusia. Outros achados incluem acidente vascular cerebral, comprometimento da consciência, coma, crises epilépticas e encefalopatia.(44 Zubair AS, McAlpine LS, Gardin T, Farhadian S, Kuruvilla DE, Spudich S. Neuropathogenesis and neurologic manifestations of the coronaviruses in the age of coronavirus disease 2019: a review. JAMA Neurol. 2020;77(8):1018-27.) O dano ao sistema nervoso central pode ser provocado diretamente pelo vírus ou por respostas imunes inatas e adaptativas à infecção.

Descrevemos uma paciente com SDRA grave por COVID-19 que foi submetida à VV-ECMO, na qual os exames cerebrais de imagem revelaram uma síndrome da encefalopatia posterior reversível (SEPR).

RELATO DO CASO

Uma mulher de 63 anos, com história pregressa de obesidade e hipertensão arterial, compareceu ao pronto-socorro de um hospital secundário relatando história de 7 dias de febre, tosse seca, hiposmia e mialgia. Na admissão, apresentava-se alerta, com frequência respiratória de 22 ciclos por minuto, pulso de 90 batimentos por minuto e saturação de oxigênio de 90%. Os exames laboratoriais revelaram linfopenia (1,55 x 109) e elevação dos níveis de proteína C-reativa (10,62mg/dL). Foi realizado teste de reação em cadeia de polimerase para COVID-19 por meio de esfregaço nasofaríngeo e da garganta, que se revelou positivo para coronavírus da síndrome respiratória aguda grave 2 (SARS-CoV-2).

A situação evoluiu rapidamente com febre, prostração e piora da dispneia. A gasometria arterial revelou grave insuficiência respiratória, enquanto a radiografia do tórax evidenciou infiltrados pulmonares bilaterais. A paciente foi intubada e submetida à ventilação mecânica, porém sua condição respiratória continuou a se deteriorar, apesar dos melhores cuidados críticos, incluindo ventilação em posição pronada e bloqueio neuromuscular. Seu exame de tomografia computadorizada do tórax, após a intubação, revelou extensas opacificações multifocais bilaterais em vidro moído, sem sinais de embolia pulmonar. As regulagens iniciais do ventilador foram: ventilação controlada por volume com volume corrente de 360mL (6mL/kg de peso corpóreo ideal), frequência respiratória de 14 respirações por minuto, pressão expiratória positiva final (PEEP) de 14cmH2O e complacência estática de 44cmH2O.

No segundo dia de internação, a gasometria arterial mostrou pH de 7,34, pressão parcial de dióxido de carbono (PaCO2) de 53mmHg, pressão parcial de oxigênio (PaO2) de 102mmHg e bicarbonato (HCO3) de 29,7mmol/L, com proporção pressão parcial de oxigênio/fração inspirada de oxigênio (PaO2/FiO2) de 98. Ela cumpria os critérios para indicação de VV-ECMO e foi transferida para a unidade de terapia intensiva (UTI), que dispunha de um programa estabelecido para VV-ECMO. O procedimento foi realizado com segurança, não tendo ocorrido complicações. A análise da gasometria arterial 3 horas após o início da VV-ECMO mostrou pH de 7,386, PaCO2 de 43mmHg, PaO2de 94,3mmHg e HCO3de 25,4mmol/L, sem qualquer variação abruta da PaCO2. Tiveram início a nutrição e a reabilitação precoces após a introdução da VV-ECMO. No 14º dia de internação, a paciente desenvolveu pneumonia associada ao ventilador causada por Pseudomonas aeruginosa, sendo submetida a 7 dias de antibioticoterapia com ceftazidima e vancomicina, com resposta favorável. No 20º dia de internação, sua radiografia do tórax e a complacência melhoraram, e a paciente foi retirada da VV-ECMO com sucesso após 455 horas de suporte, sendo traqueostomizada 7 dias depois. A paciente manteve boa função renal durante toda a internação.

No 34º dia de internação, após 7 dias de desmame da sedação com evolução positiva de seu quadro neurológico, ocorreu uma crise epiléptica generalizada limitada, que levou à investigação diagnóstica.

Investigação

Os exames laboratoriais de sangue revelaram diminuição dos níveis de proteína C-reativa (6,11mg/dL), procalcitonina (0,07ng/mL), fibrinogênio (307ng/mL) e ferritina (2.802ng/mL), porém houve aumento nos níveis de dímero-D (18.021ng/mL) e interleucina 6 (10,4pg/mL) no dia que antecedeu o desenvolvimento dos sintomas. Nenhum dos fármacos administrados à paciente foi associado com a SEPR, isto é, fármacos imunossupressores, imunomoduladores e quimioterápicos.

Realizou-se ressonância magnética (RM) do cérebro, e as imagens de recuperação de inversão atenuada por fluidos (FLAIR) demonstraram hiperintensidade simétrica e confluente, afetando a substância branca justa e subcortical, principalmente em suas regiões occipital e parietais, porém também acometendo a região frontal, a temporal e a cerebelar esquerda. Os núcleos cinzentos profundos foram preservados, não ocorrendo presença de qualquer área com restrição da marcação pelo contraste. Imagens ponderadas em suscetibilidade mostraram múltiplas micro-hemorragias puntiformes, afetando a substância branca superficial e profunda, porém poupando relativamente a área com hiperintensidade em FLAIR. As micro-hemorragias puntiformes envolveram predominantemente a substância branca justacortical e o corpo caloso (especialmente joelho e esplênio). Além disso, havia três hemorragias subagudas com menos de 1cm nas cápsulas externas, com hiperintensidade em T1 (Figura 1).

A amostra de líquido cefalorraquidiano mostrou-se negativa para SARS-CoV-2 e apresentava níveis de proteínas (31mg/dL), glicose (74mg/dL) e lactato (1,89mmol/L) dentro dos limites da normalidade.

Desfecho

A paciente teve recuperação quase total dos défices neurológicos, apesar de miopatia da doença crítica, e recebeu alta após 44 dias no hospital, sendo encaminhada a um hospital secundário para reabilitação, tendo praticamente voltado à sua condição mental prévia.

DISCUSSÃO

Segundo as diretrizes provisórias formuladas pela ELSO, a ECMO deve ser considerada terapia de resgate em pacientes com COVID-19 com hipoxemia refratária e piora da hipercapnia, a despeito do uso ideal de terapias tradicionais, particularmente ventilação protetora, posição prona e PEEP elevada.(22 Shekar K, Badulak J, Peek G, Boeken U, Dalton HJ, Arora L, Zakhary B, Ramanathan K, Starr J, Akkanti B, Antonini MV, Ogino MT, Raman L, Barret N, Brodie D, Combes A, Lorusso R, MacLaren G, Müller T, Paden M, Pellegrino V; ELSO Guideline Working Group. Extracorporeal Life Support Organization Coronavirus Disease 2019 Interim Guidelines: A Consensus Document from an International Group of Interdisciplinary Extracorporeal Membrane Oxygenation Providers. ASAIO J. 2020;66(7):707-21.) A ECMO vem sendo utilizada como terapia de resgate em pacientes com lesão pulmonar grave secundária à COVID-19, porém se associa a complicações, como lesões neurológicas, que podem dar causa a significantes morbidade e mortalidade. Embora as complicações neurológicas mais frequentemente relacionadas à ECMO sejam hemorragia cerebral e acidente vascular cerebral isquêmico,(55 Nasr DM, Rabinstein AA. Neurologic complications of extracorporeal membrane oxygenation. J Clin Neurol. 2015;11(4):383-9.) ao que sabemos, este é o primeiro relato de paciente com COVID-19 e uso de ECMO com quadro de SEPR.

Figura 1
Imagens axiais ponderadas em suscetibilidade mostram numerosos focos de micro-hemorragia puntiforme na substância branca profunda e subcortical, particularmente na cápsula interna e no corpo caloso.

As imagens de recuperação de inversão atenuada por fluidos demonstraram hiperintensidade simétrica e confluente, afetando a substância branca justa e subcortical, principalmente suas regiões occipital e parietais. Observaram-se também três hemorragias subagudas com menos de 1cm nas cápsulas externas nas imagens de recuperação de inversão atenuada por fluidos e hiperintensidade em T1.


Na verdade, os achados de RM aqui descritos são altamente sugestivos de SEPR e indicam disfunção da autorregulação vascular cerebral e disfunção endotelial. Embora a paciente também tenha passado por um longo período de intubação, com flutuações da pressão arterial, isto é, pressões arteriais médias entre 95mmHg e 130mmHg, a disfunção endotelial secundária à COVID-19 também pode ter contribuído para a SEPR. O fluxo sanguíneo cerebral e a autorregulação também podem ser afetados durante a VV-ECMO, inclusive apresentando alterações abruptas da PaO2 e da PaCO2 no início da ECMO.(66 Kazmi SO, Sivakumar S, Karakitsos D, Alharthy A, Lazaridis C. Cerebral pathophysiology in extracorporeal membrane oxygenation: pitfalls in daily clinical management. Crit Care Res Pract. 2018;2018:3237810.) A presença de SARS-CoV-2 na microcirculação cerebral lenta pode facilitar a interação da proteína spike do vírus com os receptores da enzima conversora da angiotensina 2 (ACE2), dando início a um ciclo de brotamento viral, comprometendo a autorregulação e aumentando o risco de ruptura capilar.(77 Wu Y, Xu X, Chen Z, Duan J, Hashimoto K, Yang L, et al. Nervous system involvement after infection with COVID-19 and other coronaviruses. Brain Behav Immun. 2020;87:18-22.) Coerentemente, as micro-hemorragias na substância branca podem reforçar esse processo ou, alternativamente, ser também relacionadas à hipóxia, que é comum em pacientes tratados com ECMO e se traduz em leucoencefalopatia pós-hipóxia.

CONCLUSÃO

Nossa paciente teve recuperação com controle clínico e reabilitação, de forma coerente com os resultados clínicos favoráveis descritos na maioria dos casos de síndrome da encefalopatia posterior reversível na COVID-19.

REFERÊNCIAS

  • 1
    National Institutes of Health. COVID-19 Treatment Guidelines. Coronavirus Disease 2019 (COVID-19) Treatment Guidelines. [cited 2020 Sep 23]. Available from: https://www.covid19treatmentguidelines.nih.gov/
    » https://www.covid19treatmentguidelines.nih.gov/
  • 2
    Shekar K, Badulak J, Peek G, Boeken U, Dalton HJ, Arora L, Zakhary B, Ramanathan K, Starr J, Akkanti B, Antonini MV, Ogino MT, Raman L, Barret N, Brodie D, Combes A, Lorusso R, MacLaren G, Müller T, Paden M, Pellegrino V; ELSO Guideline Working Group. Extracorporeal Life Support Organization Coronavirus Disease 2019 Interim Guidelines: A Consensus Document from an International Group of Interdisciplinary Extracorporeal Membrane Oxygenation Providers. ASAIO J. 2020;66(7):707-21.
  • 3
    Ellul MA, Benjamin L, Singh B, Lant S, Michael BD, Easton A, et al. Neurological associations of COVID-19. Lancet Neurol. 2020;19(9):767-83.
  • 4
    Zubair AS, McAlpine LS, Gardin T, Farhadian S, Kuruvilla DE, Spudich S. Neuropathogenesis and neurologic manifestations of the coronaviruses in the age of coronavirus disease 2019: a review. JAMA Neurol. 2020;77(8):1018-27.
  • 5
    Nasr DM, Rabinstein AA. Neurologic complications of extracorporeal membrane oxygenation. J Clin Neurol. 2015;11(4):383-9.
  • 6
    Kazmi SO, Sivakumar S, Karakitsos D, Alharthy A, Lazaridis C. Cerebral pathophysiology in extracorporeal membrane oxygenation: pitfalls in daily clinical management. Crit Care Res Pract. 2018;2018:3237810.
  • 7
    Wu Y, Xu X, Chen Z, Duan J, Hashimoto K, Yang L, et al. Nervous system involvement after infection with COVID-19 and other coronaviruses. Brain Behav Immun. 2020;87:18-22.

Editado por

Responsible editor: Viviane Cordeiro Veiga

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Out 2021
  • Data do Fascículo
    Jul-Sep 2021

Histórico

  • Recebido
    19 Mar 2021
  • Aceito
    30 Maio 2021
Associação de Medicina Intensiva Brasileira - AMIB Rua Arminda, 93 - Vila Olímpia, CEP 04545-100 - São Paulo - SP - Brasil, Tel.: (11) 5089-2642 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: rbti.artigos@amib.com.br