Acessibilidade / Reportar erro

Desafios da pandemia de coronavírus para os intensivistas brasileiros: presente e futuro

Comentários

Os primeiros casos da síndrome respiratória grave 2 (SARS-CoV-2) foram relatados no Brasil em fevereiro de 2020. Apesar da ampla extensão do sistema público de saúde brasileiro e de sua impressionante capilaridade, nenhum estado ou município foi poupado da doença pelo coronavírus 2019 (COVID-19). A fase de mitigação da pandemia foi inicialmente eficaz para o achatamento das curvas de casos e as hospitalizações em muitas regiões, com poucas exceções. Porém uma segunda onda atingiu mais de 14 milhões de casos, tendo ultrapassado mais de meio milhão de óbitos. Para que possamos nos preparar para futuros desastres, é necessário compreender o que aconteceu em nosso país e como fazer melhor.

A falta de concordância e coordenação entre os governos federal, estaduais e municipais levou a uma crise de liderança, enquanto a disseminação do vírus alcançava seu nível máximo. Em 1 ano, tivemos quatro ministros da saúde. A crise se caracterizou por falhas na comunicação com o público, falta de uma política efetiva de testes, medidas de contenção insuficientes em locais com iminente colapso do sistema de saúde, a comunidade manifestando incredulidade quanto à severidade da doença e a insistência em medicamentos sem eficácia comprovada. Economia e saúde foram contrapostas como se fossem mutuamente exclusivas. O distanciamento social não foi uma opção para trabalhadores informais, e a assistência financeira para famílias de baixa renda não foi nem próxima às suas reais necessidades. Por toda a pandemia, uma danosa batalha gera polêmicas nas mídias sociais em tudo que se relaciona ao vírus e a aspectos da resposta a ele, e, para piorar, apesar da grande capacidade de nosso programa nacional de imunização, não se deu prioridade à estratégia de aquisição de vacinas.

A variante gama (P1) do SARS-CoV-2 teve origem em Manaus no final de 2020, colocando todo o país em um nível de alerta vermelho, por sua maior transmissibilidade e capacidade de provocar reinfecções.(11 Wang P, Casner RG, Nair MS, Wang M, Yu J, Cerutti G, et al. Increased resistance of SARS-CoV-2 variant P.1 to antibody neutralization. Cell Host Microbe. 2021;29(5):747-751.e4.) Isso levou às cenas internacionalmente conhecidas de enterros coletivos e crises de falta de oxigênio, fazendo necessárias transferências interestaduais de pacientes, que com eles levaram para todo o país a nova variante gama. Dentro de algumas semanas, um colapso simultâneo do sistema de saúde instalou-se na maioria dos estados. No final de março de 2021, a ocupação de leitos em unidade de terapia intensiva (UTI) foi superior a 90% na maioria dos estados. Falta de oxigênio, medicamentos, equipamentos e profissionais de saúde comprometeram os cuidados, não apenas para pacientes com COVID-19, mas também para aqueles que demandavam cuidados por outras condições clínicas.

Em um único dia em março de 2021, o Brasil registrou mais de 100 mil novos casos da doença. Em abril, em um único dia, registraram-se mais de 4.000 óbitos. Além disso, as taxas de mortalidade padronizada para pacientes de UTI pela primeira vez aumentou para 1,18, após ter permanecido abaixo de 1,0 por 3 anos, segundo o Registro Nacional de Terapia Intensiva.(22 Associação de Medicina Intensiva Brasileira (AMIB). AMIB apresenta dados atualizados sobre leitos de UTI no Brasil. [citado 2021 Mai 31]. Disponível em: https://www.amib.org.br/fileadmin/user_upload/amib/2020/abril/28/dados_uti_amib.pdf
https://www.amib.org.br/fileadmin/user_u...
)

O Brasil cumpria as recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS) relativas ao número de leitos de UTI por habitantes, de um a três leitos por 10 mil habitantes. Contudo, tais leitos eram oferecidos no sistema privado de saúde e amplamente alocados em áreas mais desenvolvidas do país, o que levou a importantes défices de recursos nas Regiões Norte e Nordeste.(33 UTIs brasileiras. Registro Nacional de Terapia Intensiva. Evolução da TMP (SMR) e da TURP (SRU) Hospitalares. [citado 2021 Mai 31]. Disponível em: http://www.utisbrasileiras.com.br/uti-adulto/evolucao-do-smr-e-do-sru-hospitalar/
http://www.utisbrasileiras.com.br/uti-ad...
) Para mais de 80% dos nossos cidadãos que dependem do sistema público de saúde, ocorreram défices importantes de leitos em UTI e acesso a cuidados de alta qualidade.

De maio de 2020 a maio de 2021, a disponibilidade de leitos em UTI aumentou em cerca de 150%, de 11.300 para 28.100.(44 Pitombo JP, Valadares J, Baran K, Canofre F, Prestes M, Toledo M, et al. Ofertas de leitos de UTI para Covid cresce 150%, mas hospitais seguem lotados. Folha de São Paulo. 12/05/2021. [citado 2021 Mai 31]. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2021/05/oferta-de-leitos-de-uti-para-covid-cresce-150-mas-hospitais-seguem-lotados.shtml?utm_source=mail&utm_medium=social&utm_campaign=compmail
https://www1.folha.uol.com.br/equilibrio...
) Apesar da impressionante escalada em termos de capacidade, a escassez de equipe qualificada limitou a obtenção de melhores resultados. A ocorrência de burnout entre profissionais na linha de frente foi não apenas extremamente comum, como também prolongada. Em um inquérito conduzido em junho de 2020 com 2.000 profissionais de saúde atuantes na linha de frente, detectou-se que 90% dos participantes percebiam sinais de esgotamento, enquanto em março de 2021 essa marca chegou a 95%. O rápido e excessivo aumento da capacidade, em termos de leitos, sobrecarregou todo o sistema e comprometeu profundamente os desfechos dos pacientes. Como é lógico concluir, um leito de UTI é muito mais do que uma cama e equipamentos, e a falta de recursos humanos especializados contribuiu para a maior letalidade, particularmente na população mais vulnerável e nas regiões com menor capacidade de crescimento.(55 Ranzani OT, Bastos LS, Gelli JG, Marchesi JF, Baião F, Hamacher S, et al. Characterisation of the first 250,000 hospital admissions for COVID-19 in Brazil: a retrospective analysis of nationwide data. Lancet Respir Med. 2021;9(4):407-18.

6 Peres IT, Bastos LS, Gelli JG, Marchesi JF, Dantas LF, Antunes BB, et al. Sociodemographic factors associated with COVID-19 in-hospital mortality in Brazil. Public Health. 2021;192:15-20.
-77 Ribeiro KB, Ribeiro AF, Veras MA, de Castro MC. Social inequalities and COVID-19 mortality in the city of São Paulo, Brazil. Int J Epidemiol. 2021;50(3):732-42.)

Estimamos que 21.200 médicos de outras especialidades se agregaram às UTIs para tratar de pacientes com COVID-19, com poucos ou nenhum intensivista no plantão. O estabelecimento de equipes com "dois níveis" de cuidado aumentaria a capacidade dos profissionais de terapia intensiva para supervisionar os cuidados e otimizar o número de pacientes com assistência de qualidade. Um documento propondo esse modelo de assistência em pirâmide que otimiza a atuação de especialistas em Medicina Intensiva foi enviado pela Associação de Medicina Intensiva Brasileira (AMIB) ao Ministério da Saúde e a todos os governadores. Contudo, esse modelo foi implantado em pouquíssimas UTIs.

Enquanto lutamos para vacinar nossa população, tememos que se inicie uma terceira onda em condições de um sistema de saúde já sobrecarregado. Estamos, no momento, em uma fase de contingência crônica ou crise crônica - dependendo da região. A recuperação pode demandar anos.

No momento, cremos que a medicina intensiva foi finalmente reconhecida como especialidade essencial no Brasil. Deixou de ser uma "especialidade escondida", e seus profissionais foram, finalmente, reconhecidos e valorizados em nosso país. Nossa comunidade científica também alcançou reconhecimento internacional. Porém a lista de futuros desafios é longa. Precisamos nos preparar para cuidar de pacientes com condições pós-COVID-19 em longo prazo e de outros pacientes sem COVID-19, assim como nos preparar para futuras pandemias. É necessário o estabelecimento de um sólido plano de preparação para catástrofes, integrando ações desde o atendimento pré-hospitalar até cuidados hospitalares complexos. São urgentes fortes programas de treinamento especializado para equipes multidisciplinares de terapia intensiva, de forma que haja um plano de carreira mais atrativo para esses profissionais. Mais ainda, a equidade no acesso à terapia intensiva precisa ser um lugar comum.

Finalmente, a resposta à crise sanitária deve envolver todas e cada uma das partes da nação, cada qual coordenando sua esfera de responsabilidade em concordância com a estratégia geral. As decisões clínicas devem ser direcionadas pela ciência. A crise da COVID-19 terminará quando os cidadãos, finalmente, compreenderem que as ações necessárias para trazer um fim a essa pandemia não são apenas as que ocorrem dentro dos hospitais do país, mas nas ações de cada cidadão em suas vidas diárias.

REFERÊNCIAS

  • 1
    Wang P, Casner RG, Nair MS, Wang M, Yu J, Cerutti G, et al. Increased resistance of SARS-CoV-2 variant P.1 to antibody neutralization. Cell Host Microbe. 2021;29(5):747-751.e4.
  • 2
    Associação de Medicina Intensiva Brasileira (AMIB). AMIB apresenta dados atualizados sobre leitos de UTI no Brasil. [citado 2021 Mai 31]. Disponível em: https://www.amib.org.br/fileadmin/user_upload/amib/2020/abril/28/dados_uti_amib.pdf
    » https://www.amib.org.br/fileadmin/user_upload/amib/2020/abril/28/dados_uti_amib.pdf
  • 3
    UTIs brasileiras. Registro Nacional de Terapia Intensiva. Evolução da TMP (SMR) e da TURP (SRU) Hospitalares. [citado 2021 Mai 31]. Disponível em: http://www.utisbrasileiras.com.br/uti-adulto/evolucao-do-smr-e-do-sru-hospitalar/
    » http://www.utisbrasileiras.com.br/uti-adulto/evolucao-do-smr-e-do-sru-hospitalar/
  • 4
    Pitombo JP, Valadares J, Baran K, Canofre F, Prestes M, Toledo M, et al. Ofertas de leitos de UTI para Covid cresce 150%, mas hospitais seguem lotados. Folha de São Paulo. 12/05/2021. [citado 2021 Mai 31]. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2021/05/oferta-de-leitos-de-uti-para-covid-cresce-150-mas-hospitais-seguem-lotados.shtml?utm_source=mail&utm_medium=social&utm_campaign=compmail
    » https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2021/05/oferta-de-leitos-de-uti-para-covid-cresce-150-mas-hospitais-seguem-lotados.shtml?utm_source=mail&utm_medium=social&utm_campaign=compmail
  • 5
    Ranzani OT, Bastos LS, Gelli JG, Marchesi JF, Baião F, Hamacher S, et al. Characterisation of the first 250,000 hospital admissions for COVID-19 in Brazil: a retrospective analysis of nationwide data. Lancet Respir Med. 2021;9(4):407-18.
  • 6
    Peres IT, Bastos LS, Gelli JG, Marchesi JF, Dantas LF, Antunes BB, et al. Sociodemographic factors associated with COVID-19 in-hospital mortality in Brazil. Public Health. 2021;192:15-20.
  • 7
    Ribeiro KB, Ribeiro AF, Veras MA, de Castro MC. Social inequalities and COVID-19 mortality in the city of São Paulo, Brazil. Int J Epidemiol. 2021;50(3):732-42.

Editado por

Editor responsável: Felipe Dal-Pizzol

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Out 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    02 Jun 2021
  • Aceito
    19 Jun 2021
Associação de Medicina Intensiva Brasileira - AMIB Rua Arminda, 93 - Vila Olímpia, CEP 04545-100 - São Paulo - SP - Brasil, Tel.: (11) 5089-2642 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: rbti.artigos@amib.com.br