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Impacto da COVID-19 grave na qualidade de vida relacionada com a saúde e a incapacidade: uma perspectiva de follow-up a curto-prazo

RESUMO

Objetivo:

Avaliar a qualidade de vida relacionada com a saúde e a incapacidade no primeiro mês após a alta para domicílio de todos os sobreviventes de COVID-19 grave internados por mais de 24 horas no Serviço de Medicina Intensiva.

Metódos:

Estudo realizado no Serviço de Medicina Intensiva do Centro Hospitalar Universitário São João, entre 8 de outubro de 2020 e 16 de fevereiro de 2021. Aproximadamente 1 mês após a alta para domicílio, uma enfermeira com experiência em medicina intensiva realizou uma consulta telefônica a 99 sobreviventes, aplicando os questionários EuroQol Five-Dimensional Five-Level e World Health Disability Assessment Schedule 2.0 - 12 itens.

Resultados:

A média de idade da população estudada foi de 63 ± 12 anos, e 32,5% foram submetidos à ventilação mecânica invasiva. O Simplified Acute Physiology Score médio foi de 35 ± 14, e o Índice de Comorbilidades de Charlson foi de 3 ± 2. O tempo de internamento em medicina intensiva e no hospital foi de 13 ± 22 e 22 ± 25 dias, respectivamente. A média da Escala Visual Analógica da EuroQol foi de 65% (± 21), sendo que apenas 35,3% dos sobreviventes não apresentaram ou tiveram problemas ligeiros para realizar suas atividades habituais, a maioria com algum grau de dor/desconforto e ansiedade/depressão. O World Health Disability Assessment Schedule 2.0 - 12 itens, mostrou incapacidade marcada em retomar o trabalho habitual ou atividades comunitárias e na mobilidade. O uso de ambas as ferramentas sugeriu que o estado de saúde dos sobreviventes seria pior do que a sua percepção.

Conclusão:

A identificação precoce de sequelas pode ajudar a definir fluxos e prioridades para a reabilitação e reinserção após a COVID-19 grave.

Descritores:
COVID-19; Infecções por coronavírus; Betacoronavírus; SARS-CoV-2; Cuidados críticos; Qualidade de vida; Avaliação da incapacidade; Alta do paciente; Reabilitação

ABSTRACT

Objective:

To assess early postdischarge health-related quality of life and disability of all survivors of critical COVID-19 admitted for more than 24 hours to na intensive care unit..

Methods:

Study carried out at the Intensive Care Medicine Department of Centro Hospitalar Universitário São João from 8th October 2020 to 16th February 2021. Approximately 1 month after hospital discharge, an intensive care-trained nurse performed a telephone consultation with 99 survivors already at home applying the EuroQol Five-Dimensional Five-Level questionnaire and the 12-item World Health Organization Disability Assessment Schedule 2.0.

Results:

The mean age of the population studied was 63 ± 12 years, and 32.5% were submitted to invasive mechanical ventilation. Their mean Simplified Acute Physiologic Score was 35 ± 14, and the Charlson Comorbidity Index was 3 ± 2. Intensive care medicine and hospital lengths of stay were 13 ± 22 and 22 ± 25 days, respectively. The mean EuroQol Visual Analog Scale was 65% (± 21), and only 35.3% had no or slight problems performing their usual activities, most having some degree of pain/discomfort and anxiety/depression. The 12-item World Health Organization Disability Assessment Schedule 2.0 showed marked impairments in terms of reassuring usual work or community activities and mobility. The use of both tools suggested that their health status was worse than their perception of it.

Conclusion:

This early identification of sequelae may help define flows and priorities for rehabilitation and reinsertion after critical COVID-19.

Keywords:
COVID-19; Coronavirus infections; Betacoronavirus; SARS-CoV-2; Critical care; Quality of life; Disability evaluation; Patient discharge; Rehabilitation

INTRODUÇÃO

Nas últimas décadas, a reintegração na comunidade dos sobreviventes de doenças críticas com bons padrões de qualidade de vida tem sido considerada globalmente a medida de resultado mais importante.

Os avanços na medicina intensiva resultaram em um número crescente de sobreviventes após condições que ameaçam a vida, levando mais indivíduos a desenvolver sequelas a longo prazo importantes.(11 Colbenson GA, Johnson A, Wilson ME. Post-intensive care syndrome: impact, prevention, and management. Breathe (Sheff). 2019;15(2):98-101.) Essa situação afeta não apenas os sobreviventes, mas também suas famílias e entes queridos, possivelmente acarretando uma diminuição da qualidade de vida relacionada à saúde (QVRS).(22 Rawal G, Yadav S, Kumar R. Post-intensive care syndrome: an overview. J Transl Int Med. 2017;5(2):90-2.,33 Rousseau AF, Prescott HC, Brett SJ, Weiss B, Azoulay E, Creteur J, et al. Longterm outcomes after critical illness: recent insights. Crit Care. 2021;25(1):108.)

Em 2010, as sequelas após doença crítica foram definidas como Síndrome Pós-Internamento em Cuidados Intensivos (SPICI), “Society of Critical Care Medicine coined the term Post Intensive Care Syndrome (PICS) to describe new and persistent declines in physical, cognitive, and mental health functioning that follow an ICU stay and for which other causes, such as traumatic brain injury (TBI) or cerebrovascular accident (CVA), have been excluded”.(44 Smith S, Rahman O. Post Intensive Care Syndrome. 2021 Jul 29. In: StatPearls. Treasure Island (FL): StatPearls Publishing; 2022 Jan-. PMID: 32644390.)

Embora não haja consenso sobre o momento ideal para iniciar um programa de acompanhamento, quanto mais cedo os doentes em risco ou com sintomas relacionados com SPICI puderem ser identificados, mais os processos de reabilitação e reintegração poderão ser maximizados.(55 Iannaccone S, Castellazzi P, Tettamanti A, Houdayer E, Brugliera L, de Blasio F, et al. Role of rehabilitation department for adult individuals with COVID-19: the experience of the San Raffaele Hospital of Milan. Arch Phys Med Rehabil. 2020;101(9):1656-61.) Além disso, as diretrizes do National Institute for Health and Care Excellence (NICE) preconizam um programa que acompanha o sobrevivente em todas as fases da doença, defendendo as vantagens da detecção precoce e do encaminhamento das suas necessidades.(66 National Institute for Health and Care Excellence (NICE). Reabilitation after critical illness in adults. Quality standard. United Kingdom; 2017 [cited 2022 Feb 22]. Available from: https://www.nice.org.uk/guidance/qs158/resources/rehabilitation-after-critical-illness-in-adults-pdf-75545546693317
https://www.nice.org.uk/guidance/qs158/r...
)

Os sobreviventes da doença pelo coronavírus 2019 (COVID-19) grave são potenciais candidatos a desenvolver SPICI possivelmente relacionada com as características da própria doença ou com o tipo de tratamento intensivo necessário - por exemplo, sedação profunda e longo tempo de internamento-, o que pode influenciar negativamente a sua qualidade de vida.(77 Fernandes J, Fontes L, Coimbra I, Paiva JA. Health-related quality of life in survivors of severe COVID-19 of a university hospital in Northern Portugal. Acta Med Port. 2021;34(9):601-7.,88 Jaffri A, Jaffri UA. Post-intensive care syndrome and COVID-19: crisis after a crisis? Heart Lung. 2020;49(6):883-4.)

Em Portugal, após uma primeira onda de COVID-19 em março e abril de 2020, ocorreu uma devastadora segunda onda, com início em outubro de 2020. A resposta à esmagadora primeira onda permitiu ao nosso Serviço de Medicina Intensiva (SMI) utilizar a curva de aprendizagem para melhorar a resposta à segunda onda - ou seja, estruturando um processo específico de acompanhamento após a alta hospitalar de sobreviventes de COVID-19 grave. O processo de acompanhamento incluiu uma consulta de enfermagem telefônica aproximadamente 1 mês após a alta para domicílio e uma consulta médica 3, 6 e 12 meses depois, com desenvolvimento de fluxos de referenciação facilitadores para outras consultas - nomeadamente: reabilitação, psiquiatria e urologia.

Este estudo teve como objetivo avaliar, aproximadamente 1 mês após alta hospitalar, a QVRS, saúde e incapacidade de cada sobrevivente de COVID-19 grave internado no nosso SMI > 24 horas e com alta para domicílio.

MÉTODOS

Este estudo retrospectivo descritivo incluiu todos os sobreviventes de COVID-19 internados no SMI do Centro Hospitalar Universitário São João (CHUSJ) após 8 de outubro de 2020, com alta hospitalar efetiva até 1 de março de 2021 e permanência no SMI superior a 24 horas. Este projeto foi aprovado pela Comissão de Ética do CHUSJ (autorização número 271/21).

Os critérios de inclusão foram: adultos internados no SMI por infecção pelo coronavírus da síndrome respiratória aguda grave 2 (SARS-CoV-2) por um período superior a 24 horas entre 8 de outubro de 2020 e 16 de fevereiro de 2021 e alta hospitalar até 1 de março de 2021.

Os critérios de exclusão foram: tempo de permanência no SMI inferior a 24 horas e internamento em instituições de apoio social ou outros hospitais públicos ou privados.

No primeiro mês após a alta hospitalar, uma enfermeira com experiência em medicina intensiva realizou uma consulta telefônica com todos os sobreviventes para avaliar a QVRS, saúde e incapacidade. Todas as consultas foram realizadas pela mesma enfermeira, com longa experiência em acompanhamento de sobreviventes de doença crítica, utilizando as mesmas escalas e seguindo as instruções de aplicação bem como as versões portuguesas validadas pelos autores originais, aconselhando e gerindo os problemas em colaboração com a equipa multidisciplinar da consulta de follow-up do SMI.

Para avaliar a QVRS, saúde e incapacidade, aplicamos instrumentos amplamente utilizados para avaliar a autopercepção dos sobreviventes, como o questionário EuroQol Five-Dimensional Five-Level (EQ-5D-5L) e o World Health Disability Assessment Schedule 2.0 - 12 Itens (WHODAS 2.0),(99 Hodgson CL, Udy AA, Bailey M, Barrett J, Bellomo R, Bucknall T, et al. The impact of disability in survivors of critical illness. Intensive Care Med. 2017;43(7):992-1001.,1010 Denehy L, Hough CL. Critical illness, disability, and the road home. Intensive Care Med. 2017;43(12):1881-3.) que avalia o estado de saúde e a incapacidade.

O EQ-5D-5L e a Escala Visual Analógica da EuroQol foram aplicados para avaliar a qualidade de vida,(1111 EuroQol Research Foundation (EQ-5D). EQ-5D-5L User Guide. Netherlands; 2019 [cited 2022 Feb 22]. Available from: https://euroqol.org/publications/user-guides
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) e o WHODAS 2.0-12 itens(1212 Castro SS, Leite CF, eds. Avaliação de Saúde e Deficiência: Manual do WHO Disability Assessment Schedule.WHODAS 2.0. Minas Gerais: Organização Mundial da Saúde/Universidade Federal do Triângulo Mineiro; 2015 [citado 2022 Fev 22]. Disponível em: https://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/43974/9788562599514_por.pdf;jsessionid=DBE026AD143432F7E8BFBE9F85805B14?sequence=19
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,1313 Moreira A, Alvarelhão J, Silva AG, Costa RD, Queirós A. Validation of a Portuguese version of WHODAS 2.0 - 12 items in people aged 55 or more. Rev Port de Saúde Pública. 2015;33(2):179-82.) foi usado para avaliar a saúde e incapacidade.

Cada questão do WHODAS 2.0 - 12 itens é incluida em cada um dos seis domínios diferentes de avaliação de incapacidade, conforme descrito por Federici et al.,(1414 Federici S, Bracalenti M, Meloni F, Luciano JV. World Health Organization disability assessment schedule 2.0: an international systematic review. Disabil Rehabil. 2017;39(23):2347-80.) “A 12-item version consisting of two items from each domain (Understanding and communicating, Items 3 and 6; Getting around, Items 1 and 7; Self-care, Items 8 and 9; Getting Along with People, Items 10 and 11; Life activities, Items 2 and 12; Participation in society, Items 4 and 5)”. Os 12 itens do WHODAS 2.0 permitem avaliação mais objetiva da incapacidade.

O contato telefônico foi realizado entre 13 de novembro de 2020 e 1 de março de 2021. A avaliação foi realizada diretamente com o sobrevivente ou, na impossibilidade, com os familiares mais próximos, servindo de intermediários nas suas respostas. Apenas em 12 casos (12,1%), o familiar mais próximo serviu como intermediário. As informações recolhidas na consulta de enfermagem por telefone foram registradas no processo clínico eletrônico do doente utilizando o sistema informático utilizado no serviço (B-ICU.CARE©). Um ficheiro Excel foi utilizado pela equipa para facilitar a análise estatística. Todos os sobreviventes avaliados foram posteriormente reavaliados em consulta médica, e a avaliação de enfermagem por telefone priorizou o agendamento da mesma.

RESULTADOS

Foram internados entre 8 de outubro de 2020 e 16 de fevereiro de 2021, 194 doentes com COVID-19 grave. Entre os 126 sobreviventes com alta até 1 março de 2021, 111 tiveram alta para domicílio. Foram incluídos neste estudo 99 sobreviventes. O motivo da não inclusão dos outros 12 doentes é apresentado na figura 1, e suas características demográficas e clínicas estão detalhadas na tabela 1.

Figura 1
Diagrama dos doentes internados em medicina intensiva com COVID-19 selecionados para o estudo.

SMI - Serviço de Medicina Intensiva; CHUSJ - Centro Hospitalar Universitário São João.


Tabela 1
Características dos sobreviventes da segunda onda da COVID-19 grave

As avaliações da qualidade de vida por meio do EQ5D-5L são mostradas na tabela 2. Em resumo, as cinco dimensões avaliadas foram: mobilidade (a maioria da nossa população relatou não ter problemas para caminhar, 38,4%, ou problemas ligeiros, 34,3%); autocuidado (a maioria - 63,7% - referiu não ter problemas para se lavar ou vestir); atividades habituais (22,2% referiram não ter problemas para realizar suas atividades habituais; 25,3% tiveram problemas moderados e 30,3% não conseguiam realizar essas atividades); dor/desconforto (43,4% relataram não ter dor ou desconforto); ansiedade/depressão (35,4% consideram não ter ansiedade ou depressão e 32,3% ansiedade ou depressão leve).

Tabela 2
Questionário de cinco níveis e cinco dimensões da EuroQol

A resposta à pergunta “quão boa ou má está a sua saúde hoje?” em uma escala de zero a cem (EQ-5D-VAS) alcançou uma média de 65% (± 21).

Os 12 itens do WHODAS 2.0 avaliavam seis domínios de saúde e incapacidade, e os dados referentes a esta população estão expressos na tabela 3. Em resumo, os diferentes domínios foram os seguintes:

Tabela 3
World Health Organization Disability Assessment Schedule 2.0 12 itens

Domínio 1 (cognição): 72,8% não tiveram a oportunidade de aprender uma nova tarefa, e 85,9% não tiveram dificuldade em concentrar-se em uma tarefa por 10 minutos.

Domínio 2 (mobilidade): 39,5% dos sobreviventes não tinham dificuldade em ficar em pé por períodos de 30 minutos, enquanto 24,2% tinham extrema dificuldade ou não conseguiram realizar essa tarefa. Quando questionados sobre a caminhada de 1km ou distância equivalente, 57,6% a classificaram como difícil, extremamente difícil ou impossível.

Domínio 3 (autocuidado): 59,7% dos sobreviventes não tinham dificuldade para se lavar, e 58,6% não tinham dificuldade para se vestir.

Domínio 4 (relacionamento interpessoal): 76,7% consideraram não ter dificuldade em lidar com pessoas que não conheciam, e 80,8% referiram não ter dificuldade em manter uma amizade.

Domínio 5 (atividades da vida): 33,2% não tinham dificuldade em cuidar das responsabilidades domésticas, mas 27,3% relataram que essa tarefa era difícil ou impossível. Em relação à realização de atividades habituais no trabalho/escola, 35,4% referiram extrema dificuldade ou impossibilidade em realizar, e 58,6% dos sobreviventes não souberam responder por estarem reformados ou desempregados no momento da admissão hospitalar.

Domínio 6 (participação): 57,6% afirmaram ser difícil, extremamente difícil ou impossível participar das atividades da comunidade, e 27,3% nem tentaram retornar a essas rotinas. Quando questionados sobre o quanto foram afetados emocionalmente pelos seus problemas de saúde, 22,2% referiram dificuldade moderada, 33,2% dificuldade grave e 19,3% dificuldade extrema.

Em relação ao trabalho/atividades laborais, 27 doentes ainda estavam de licença médica (27,2%), sete (7,1%) retomaram o trabalho, 52 (52,5%) estavam reformados antes do internamento, nove (9,1%) sobreviventes estavam desempregados antes de serem internados e continuavam sem trabalho, e quatro (4,1%) perderam o emprego ou foram despedidos após internamento.

DISCUSSÃO

Um mês depois da alta hospitalar subsequente ao internamento por COVID-19 grave que levou à admissão em medina intensiva por mais de 24 horas, a maioria dos sobreviventes apresentou dificuldades que afetaram substancialmente sua qualidade de vida.

O EQ-5D-VAS teve uma classificação média final de 65% em uma escala de zero a cem, e essa informação pode ser usada como medida quantitativa do estado de saúde, percebido pelos sobreviventes.(1111 EuroQol Research Foundation (EQ-5D). EQ-5D-5L User Guide. Netherlands; 2019 [cited 2022 Feb 22]. Available from: https://euroqol.org/publications/user-guides
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) A dimensão mais afetada na QVRS foi “atividades habituais”, que incluem atividades cotidianas, como regresso ao trabalho ou escola ou realização de tarefas domésticas e hábitos de lazer. Dos sobreviventes, 25% relataram dor ou desconforto moderados, graves ou extremos, e 32,3% referiram ansiedade ou depressão moderada, grave ou extrema. Carenzo et al.(1515 Carenzo L, Protti A, Dalla Corte F, Aceto R, Iapichino G, Milani A, Santini A, Chiurazzi C, Ferrari M, Heffler E, Angelini C, Aghemo A, Ciccarelli M, Chiti A, Iwashyna TJ, Herridge MS, Cecconi M; Humanitas COVID-19 Task Force. Short-term health-related quality of life, physical function and psychological consequences of severe COVID-19. Ann Intensive Care. 2021;11(1):91.) avaliaram sobreviventes da COVID-19 grave 2 meses após a alta usando a mesma ferramenta para medir a QVRS (EQ-5D-5L). Os resultados foram semelhantes aos nossos, exceto na dimensão “atividades habituais”, na qual encontraram um percentual menor de sobreviventes com incapacidade significativa.

A avaliação de saúde e incapacidade utilizando WHODAS 2.0-12 itens mostrou que os sobreviventes apresentaram problemas significativos nas seguintes áreas: mobilidade - a maioria não consegue andar 1km e um quarto não consegue ficar em pé por meia hora; atividades de vida - menos de metade não teve dificuldades em realizar tarefas domésticas e apenas 6% retomaram sem dificuldades extremas às suas atividades laborais/ escolares; participação - a maioria não conseguia participar de atividades comunitárias e foi significativamente afetada emocionalmente por seus problemas de saúde.

Nenhuma consistência clara foi encontrada entre os resultados obtidos usando cada uma das duas ferramentas. A avaliação por meio do WHODAS 2.0 - 12 itens sugere sequelas mais graves do que aquelas baseadas no EQ-5D-5L. A razão pode estar relacionada ao fato de que o WHODAS 2.0 - 12 itens pergunta o que uma pessoa “faz” em um determinado domínio, enquanto o EQ-5D5L pergunta o que a pessoa “sente” naquele domínio.(1212 Castro SS, Leite CF, eds. Avaliação de Saúde e Deficiência: Manual do WHO Disability Assessment Schedule.WHODAS 2.0. Minas Gerais: Organização Mundial da Saúde/Universidade Federal do Triângulo Mineiro; 2015 [citado 2022 Fev 22]. Disponível em: https://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/43974/9788562599514_por.pdf;jsessionid=DBE026AD143432F7E8BFBE9F85805B14?sequence=19
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) Portanto, os sobreviventes afirmaram que se sentiram melhor do que os resultados da incapacidade obtidos por perguntas específicas e práticas demonstraram. De acordo com algumas publicações,(1616 Biehl M, Sese D. Post-intensive care syndrome and COVID-19 - Implications post pandemic. Cleve Clin J Med. 2020 Aug 5.) a qualidade de vida real costuma ser mais consistente com a avaliação da incapacidade, a qual os doentes tendem a subestimar. Os doentes reconheceram que estavam extremamente doentes muito recentemente e sobreviveram, e que eles e suas famílias estavam preparados para problemas de saúde ainda piores. Assim, sua percepção do estado de saúde atual leva a classificações mais elevadas de qualidade de vida. Com base nos achados deste estudo, recomendamos a aplicação de ambos os instrumentos para uma avaliação completa do estado do sobrevivente.

No entanto, os dois questionários foram aplicados em um contexto pandêmico que influenciou a participação em atividades fora de casa e a socialização com grandes grupos de pessoas. Portanto, o impacto contextual significativo nos resultados obtidos deve ser reconhecido e enfatizado. Esse contexto torna ainda mais importante a identificação precoce da SPICI entre os sobreviventes da COVID-19 grave, permitindo a definição de um percurso de cuidados para a reabilitação física e social.(55 Iannaccone S, Castellazzi P, Tettamanti A, Houdayer E, Brugliera L, de Blasio F, et al. Role of rehabilitation department for adult individuals with COVID-19: the experience of the San Raffaele Hospital of Milan. Arch Phys Med Rehabil. 2020;101(9):1656-61.) Reconhecemos que 1 mês após a alta hospitalar é muito cedo para realmente perceber o impacto a longo prazo da COVID-19 grave na qualidade de vida e na incapacidade dos pacientes. No entanto, esse período é provavelmente o ideal para identificar as principais sequelas e definir uma estratégia personalizada que possa diminuir seu impacto e acelerar a reabilitação e reinserção familiar e social. Portanto, o que poderia ser considerado uma limitação deste estudo é também, em nossa opinião, sua principal força e originalidade.

Os sobreviventes relataram sentir-se melhor do que mostraram os resultados da avaliação de saúde e incapacidade, indicando que a autopercepção de qualidade de vida é superior ao que as métricas de avaliação objetiva mostram. A razão para isso pode estar relacionada com as suas expectativas. As consultas telefônicas revelaram que os sobreviventes e seus familiares estavam preparados para uma pior condição de saúde, o que pode ter contribuído para suas classificações de qualidade de vida mais elevadas em relação ao seu estado de saúde real. Assim, acreditamos que ambas as ferramentas de avaliação devem ser aplicadas para maximizar o diagnóstico de qualidade de vida após a COVID-19 grave.

A consistência da população (tratada no mesmo Serviço de Medicina Intensiva), o momento da avaliação e o profissional de saúde avaliador (o mesmo enfermeiro intensivista com experiência em acompanhamento de doente crítico) são pontos fortes deste estudo. No entanto, existem várias limitações. A avaliação de “regresso ao cotidiano no trabalho/escola” muitas vezes não se aplicava, pois 58,6% dos sobreviventes eram reformados ou estavam desempregados no momento da admissão hospitalar. A pergunta sobre “aprender uma nova tarefa” também recebeu muitas respostas “não se aplica”, provavelmente pelo curto período de tempo decorrido desde a alta, justificando a falta de oportunidades para aprender e desenvolver novas tarefas. Adicionalmente, o contexto pandêmico influenciou as oportunidades de participação em atividades ao ar livre e de encontro com familiares e amigos.

CONCLUSÃO

Este estudo, o primeiro a avaliar sobreviventes da COVID-19 grave logo no primeiro mês após a alta para domicílio, mostrou que esses doentes apresentam sequelas significativas resultantes da doença e do seu tratamento intensivo. Além disso, o uso de mais de uma ferramenta padronizada e validada para avaliar a qualidade de vida e incapacidade auxilia na identificação e no diagnóstico do estado de saúde do sobrevivente. Por fim, uma consulta de enfermagem precoce, como parte de um processo de acompanhamento holístico, pode fornecer aconselhamento e definir fluxos e prioridades para consultas médicas e tratamentos específicos, com possível impacto na reabilitação e na reinserção.

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Editado por

Editor responsável: Irene Aragão

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    24 Jun 2022
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 2022

Histórico

  • Recebido
    15 Maio 2021
  • Aceito
    06 Nov 2021
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