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O desempenho físico funcional reduzido antes da hospitalização prediz limitações de suporte de vida e mortalidade em pacientes não cirúrgicos de unidade de terapia intensiva

RESUMO

Objetivo:

Avaliar se as escalas de desempenho físico funcional e a pergunta surpresa (“Eu ficaria surpreso se esse paciente morresse em 6 meses?”) predizem limitações de suporte de vida e mortalidade em pacientes críticos não cirúrgicos.

Metódos:

Participaram desta coorte prospectiva 114 pacientes admitidos do serviço de emergência em uma unidade de terapia intensiva. O desempenho físico funcional foi avaliado pelo Palliative Prognostic Score, pela Escala de Desempenho de Karnofsky e pela escala de Atividades de Vida Diária de Katz. Dois intensivistas responderam à pergunta surpresa.

Resultados:

Os escores de desempenho físico funcional propostos foram significativamente menores em pacientes com limitações de suporte de vida e naqueles que vieram a óbito durante a hospitalização. A resposta negativa à pergunta surpresa foi mais frequente no mesmo subgrupo de pacientes. A análise univariada ajustada mostrou aumento da razão de chances para limitações de suporte de vida e morte em relação à escala de Atividades de Vida Diária (1,35 [1,01 - 1,78] e 1,34 [1,0 - 1,79], respectivamente) e uma resposta negativa para a pergunta surpresa (42,35 [11,62 - 154,43] e 47,79 [11,41 - 200,25], respectivamente), com p < 0,05 para todos os resultados.

Conclusão:

Todas as escalas de desempenho físico funcional apresentaram escores mais baixos em não sobreviventes e em pacientes com limitações de suporte de vida. A redução da capacidade funcional prévia à internação e a resposta negativa à pergunta surpresa aumentaram as chances de limitações de suporte de vida e mortalidade em nossa coorte de pacientes não cirúrgicos da unidade de terapia intensiva com entrada no serviço de emergência.

Descritores:
Desempenho físico funcional; Avaliação de Estado de Karnofsky; Atividades de vida diária; Cuidados paliativos; Unidades de terapia intensiva

ABSTRACT

Objective:

To assess whether scales of physical functional performance and the surprise question (“Would I be surprised if this patient died in 6 months?”) predict life support limitations and mortality in critically ill nonsurgical patients.

Methods:

We included 114 patients admitted from the Emergency Department to an intensive care unit in this prospective cohort. Physical functional performance was assessed by the Palliative Prognostic Score, Karnofsky Performance Status, and the Katz Activities of Daily Living scale. Two intensivists responded to the surprise question.

Results:

The proposed physical functional performance scores were significantly lower in patients with life support limitations and those who died during the hospital stay. A negative response to the surprise question was more frequent in the same subset of patients. Adjusted univariable analysis showed an increased odds ratio for life support limitations and death regarding the activities of daily living scale (1.35 [1.01 - 1.78] and 1.34 [1.0 - 1.79], respectively) and a negative response for the surprise question (42.35 [11.62 - 154.43] and 47.79 [11.41 - 200.25], respectively); with a p < 0.05 for all results.

Conclusion:

All physical functional performance scales showed lower scores in nonsurvivors and patients with life support limitations. The activities of daily living score and the surprise question increased the odds of life support limitations and mortality in our cohort of nonsurgical intensive care unit patients admitted from the Emergency Department.

Keywords:
Physical functional performance; Karnofsky Performance Status; Activities of daily living; Palliative care; Intensive care units

INTRODUÇÃO

Nas últimas décadas, os avanços no manejo de pacientes críticos têm contribuído muito para a diminuição da mortalidade na unidade de terapia intensiva (UTI).(11 Haas JS, Teixeira C, Cabral CR, Fleig AH, Freitas AP, Treptow EC, et al. Factors influencing physical functional status in intensive care unit survivors two years after discharge. BMC Anesthesiol. 2013;13:11.) A manutenção do tratamento curativo é relativamente simples para pacientes previamente saudáveis com doença tratável ou curável e que tenham uma chance razoável de sobrevida. No entanto, o aumento da prevalência de doenças crônicas, aliado ao aumento da idade da população, pode piorar significativamente o prognóstico de doenças agudas críticas. Pacientes com baixa probabilidade de sobrevivência com qualidade de vida aceitável podem ser qualificados para a suspensão e/ou retirada de medidas terapêuticas fúteis. Assim, a estimativa de desfechos, além de necessária, é um importante desafio para médicos intensivistas.

Os sistemas de escore têm sido amplamente utilizados para prever a chance de óbito na UTI. Por exemplo, o Simplified Acute Physiology Score 3 (SAPS 3) e a Acute Physiology and Chronic Health Evaluation II (APACHE II) usam dados de parâmetros fisiológicos, diagnóstico de admissão e condições crônicas de saúde para prever a mortalidade na UTI. Originalmente desenvolvida para pacientes com sepse, a Sequential Organ Failure Assessment (SOFA) avalia a gravidade da doença durante a permanência na UTI e também tem sido utilizada como preditor de mortalidade.(22 Lee SH, Kim SJ, Choi YH, Lee JH, Chang JH, Ryu YJ. Clinical outcomes and prognostic factors in patients directly transferred to the intensive care unit from long-term care beds in institutions and hospitals: a retrospective clinical study. BMC Geriatr. 2018;18(1):259.) As comorbidades também são frequentemente associadas a desfechos clinicamente relevantes. O Índice de Comorbidade de Charlson (ICC) tem sido o índice de comorbidade mais amplamente estudado e utilizado na literatura médica, quando a mortalidade é o desfecho de interesse.(33 Bannay A, Chaignot C, Blotière PO, Basson M, Weill A, Ricordeau P, et al. The best use of the Charlson Comorbidity Index with electronic health care database to predict mortality. Med Care.2016;54(2):188-94.) Esses sistemas de escore apresentam algumas desvantagens, como um grande número de variáveis de entrada (que podem levar à ausência de dados), falta de calibração para diferentes populações de UTI e superestimação do risco de óbito.(44 Soares M, Dongelmans DA. Por que não devemos usar o APACHE II como parâmetro para avaliação de desempenho e comparação? Rev Bras Ter Intensiva. 2017;29(3):268-70.,55 Keegan MT, Soares M. O que todo intensivista deveria saber sobre os sistemas de escore prognóstico e mortalidade ajustada ao risco. Rev Bras Ter Intensiva. 2016;28(3):264-9.) Eles também não são projetados para prever limitações de suporte de vida (LSVs) e podem não obter decisões clínicas precisas em pacientes.(66 Detsky ME, Harhay MO, Bayard DF, Delman AM, Buehler AE, Kent SA, et al. Discriminative accuracy of physician and nurse predictions for survival and functional outcomes 6 months after an ICU admission. JAMA. 2017;317(21):2187-95.)

Existem várias escalas de desempenho físico funcional (DFF) úteis para a predição de desfechos em contextos clínicos fora da UTI.(77 Johnson MJ, Bland JM, Davidson PM, Newton PJ, Oxberry SG, Abernethy AP, et al. The relationship between two performance scales: New York Heart Association Classification and Karnofsky Performance Status Scale. J Pain Symptom Manage. 2014;47(3):652-8.) A Escala de Desempenho de Karnofsky (KPS - Karnofsky Performance Status) classifica os pacientes de acordo com o grau de incapacidade funcional e a perda de autonomia. A KPS é amplamente utilizada na oncologia para determinar a capacidade de tolerância de um paciente à quimioterapia. A escala de Atividades de Vida Diária (AVD) de Katz foi originalmente desenvolvida para avaliar o desempenho em atividades de autocuidado em pacientes idosos.(88 Lino VT, Pereira SR, Camacho LA, Ribeiro Filho ST, Buksman S. Adaptação transcultural da Escala de Independência em Atividades da Vida Diária (Escala de Katz). Cad Saúde Pública. 2008;24(1):103-12.,99 Duarte YA, Andrade CL, Lebrão ML. O índex de Katz na avaliação da funcionalidade dos idosos. Rev Esc Enferm USP. 2007;41(2):317-25.) O Palliative Prognostic Score (PaP) foi originalmente desenvolvido para prever a mortalidade em 30 dias de pacientes com tumores sólidos encaminhados a centros de cuidados paliativos.(1010 Scarpi E, Maltoni M, Miceli R, Mariani L, Caraceni A, Amadori D, et al. Survival prediction for terminally ill cancer patients: revision of the Palliative Prognostic Score with incorporation of delirium. Oncologist. 2011;16(12):1793-9.) Além disso, a intuição clínica pode melhorar a precisão de modelos prognósticos objetivos utilizando a pergunta surpresa. Os médicos assistentes foram questionados se ficariam surpresos se o paciente morresse nos próximos 6 meses. Uma resposta negativa (“não, eu não ficaria surpreso”) à pergunta surpresa prevê mortalidade em 6 meses, combinada com escores objetivos.(1111 Gulini JE, Nascimento ER, Moritz RD, Vargas MA, Matte DL, Cabral RP. Predictors of death in an intensive care unit: contribution to the palliative approach. Rev Esc Enferm USP. 2018;52:e03342.,1212 Downar J, Goldman R, Pinto R, Englesakis M, Adhikari NK. The “surprise question” for predicting death in seriously ill patients: a systematic review and meta-analysis. CMAJ. 2017;189(13):E484-E493.)

Neste estudo, tomamos como hipótese que as escalas utilizadas em outras situações clínicas - KPS, AVD, PaP e uma resposta negativa à pergunta surpresa - seriam capazes de predizer a LSV e a mortalidade em pacientes críticos internados em uma UTI médica. Nosso objetivo foi avaliar se as escalas de DFF e a pergunta surpresa (“Eu ficaria surpreso se esse paciente morresse em 6 meses?”) predizem limitações de suporte de vida e mortalidade em pacientes críticos não cirúrgicos.

MÉTODOS

Trata-se de um estudo de coorte prospectivo observacional realizado de agosto de 2018 a fevereiro de 2019 em uma UTI adulta de um hospital universitário público terciário da cidade de Campinas (SP). A UTI era composta de dez leitos dedicados ao atendimento de pacientes não cirúrgicos admitidos no serviço de emergência. A relação técnico de enfermagem/paciente foi de 2/1, a relação enfermeiro/paciente foi de 5/1, e a relação médico/paciente foi de 10/1. Todos os pacientes adultos maiores de 18 anos admitidos na UTI durante o período do estudo foram qualificados para a participação depois de eles ou seus familiares terem assinado o Termo de Consentimento Informado. Um familiar ou responsável assinou o Termo de Consentimento Informado quando o paciente não estava em condições clínicas de fazê-lo de modo independente. Não consentimento de participação no estudo, gestantes (por serem encaminhadas para outra unidade) e pacientes com potenciais dificuldades de acompanhamento, como indígenas e presidiários, foram excluídos do estudo.

O Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Estadual de Campinas, conforme CAAE 87042318.8.0000.5404, aprovou este estudo de coorte prospectivo.

Os dados foram coletados dos prontuários e transferidos para um formulário elaborado exclusivamente para esta pesquisa (Apêndice 1 Apêndice 1 Instrumento de coleta de dados. ). A autora principal realizou as entrevistas com os pacientes (quando possível) e/ou seus familiares ou representantes legais para obter informações sobre a capacidade funcional antes da hospitalização.

O estado funcional do paciente antes da hospitalização foi mensurado por meio de escalas que avaliam o DFF, como KPS e AVD. A KPS é um escore que varia de 0% a 100%, no qual cada queda de dez pontos está relacionada a uma perda específica de autonomia e desempenho, e a AVD é composta de seis questões, incluindo informações sobre ações como se banhar, vestir-se, ir ao banheiro, mover-se de um local ao outro, eliminar fezes e urina e alimentar-se. Um escore mais próximo de seis indica um melhor funcionamento.(88 Lino VT, Pereira SR, Camacho LA, Ribeiro Filho ST, Buksman S. Adaptação transcultural da Escala de Independência em Atividades da Vida Diária (Escala de Katz). Cad Saúde Pública. 2008;24(1):103-12.,99 Duarte YA, Andrade CL, Lebrão ML. O índex de Katz na avaliação da funcionalidade dos idosos. Rev Esc Enferm USP. 2007;41(2):317-25.)

Foi calculado um escore incluindo medidas da condição física dos pacientes em cuidados paliativos (PaP). Esse escore prevê a sobrevida em 30 dias com base na KPS e em cinco outros critérios, como dispneia, anorexia, previsão clínica de sobrevida em semanas, contagem total de leucócitos e porcentagem de linfócitos. Varia de zero a 17,5, com pontuações mais altas predizendo uma menor chance de sobrevida.

O autor principal também consultou dois intensivistas responsáveis pela rotina diária, os quais forneceram informações adicionais, como a decisão sobre LSV durante a permanência na UTI e a resposta à pergunta surpresa. Eles não tiveram acesso aos escores, e as decisões clínicas e éticas foram baseadas em suas experiências clínicas, bem como em discussões em equipes multidisciplinares e discussões diárias com alunos, residentes e professores de medicina da UTI. Os casos mais complexos foram encaminhados para discussão na reunião semanal de bioética clínica, que reuniu a equipe multiprofissional da UTI, alunos de graduação, médicos residentes, professores do Departamento de Bioética e capelães. Nessa reunião, foram analisados os aspectos técnicos (referentes ao manejo médico do paciente), éticos (autonomia do paciente, beneficência, não maleficência) e afetivos (relação do paciente com sua doença, com sua família e amigos). A equipe deliberou e decidiu o curso do plano terapêutico, o qual poderia ser revisto caso o paciente apresentasse alterações relevantes em seu quadro clínico.

As variáveis contínuas são expressas como médias e desvios-padrão ou medianas e percentis, conforme apropriado. Foram utilizados os testes de Mann-Whitney e de Kruskal-Wallis para avaliar as escalas entre as variáveis categóricas. Foi realizada uma análise univariável para as quatro escalas individuais e duas variáveis dependentes: óbito durante a hospitalização e LSV. Posteriormente, os modelos foram ajustados por SAPS 3, ICC e idade. O nível de significância para o estudo foi de 5%. Para a análise estatística, foi utilizado o Statistical Analysis System (SAS) para Windows, versão 9.4 (SAS Institute Inc, 2002-2008, Cary, NC, Estados Unidos). O cálculo do tamanho da amostra foi realizado por meio da calculadora online Raosoft® (http://www.raosoft.com/samplesize.html), com nível de confiança de 95%, margem de erro de 7%, tamanho populacional de 230 (média de pacientes internados para nossa UTI nos 6 meses anteriores ao início do nosso estudo) e distribuição de resposta de 50%. O tamanho da amostra foi estimado em 107 sujeitos.

RESULTADOS

As características clínicas na admissão são mostradas na tabela 1. A maioria dos 114 pacientes participantes era do sexo masculino (59,6%). A média de idade da população estudada foi de 57,6 anos, com mais de 50% dos pacientes acima dos 60 anos. A hipertensão arterial sistêmica foi a comorbidade mais comum (46,5%), e a sepse foi a causa mais comum de internação na UTI (44,7%). Durante a internação na UTI, a maioria dos pacientes esteve em ventilação mecânica. A mortalidade na UTI foi de 32,5%. Considerando os óbitos ocorridos na UTI e os ocorridos na enfermaria, a mortalidade total foi de 50,9%.

Tabela 1
Características dos pacientes e diferenças entre sobreviventes e não sobreviventes

A tabela 1 também mostra as diferenças entre sobreviventes e não sobreviventes em termos de características clínicas, escores da physical functional performance scale (PFP) e pergunta surpresa. Os pacientes que faleceram eram mais velhos e tinham escores PFP piores, além de resposta negativa mais frequente à pergunta surpresa. O mesmo ocorreu nos pacientes com LSV (Tabela 2).

Tabela 2
Características dos pacientes e diferenças entre o tratamento curativo e a limitação do suporte de vida

Embora o tratamento curativo tenha sido a decisão mais frequente, optou-se pela LSV em aproximadamente um terço dos casos. O motivo mais comum para a opção por LSV foi a falta de resposta clínica à terapia agressiva, que ocorreu em 12 pacientes. Entre os outros motivos, estavam doenças crônicas (11 pacientes), falência múltipla de órgãos (oito pacientes) e desfechos neurológicos ruins (sete pacientes). A média de permanência na UTI foi de 14 dias e teve grande variação entre os pacientes. Na reunião de bioética, foi feita a discussão sobre 17 pacientes da nossa coorte.

Os pacientes com LSV tiveram piores pontuações no PaP, na KPS e nas AVD do que aqueles que receberam tratamento curativo. Os pacientes que faleceram apresentaram escores piores nas escalas e eram mais velhos. As características dos pacientes de acordo com o desfecho são apresentadas na tabela 2.

Análises univariáveis e multivariáveis

A tabela 3 mostra os resultados univariáveis e multivariáveis da KPS, da PaP e da AVD e a pergunta surpresa em relação à LSV. Nessa primeira avaliação bruta, todos os escores analisados foram associados à LSV. Na análise multivariável ajustada pelo escore SAPS 3, ICC e idade, o escore de AVD e a pergunta surpresa permaneceram significativamente associados à LSV.

Tabela 3
Limitações de suporte de vida

A mesma avaliação foi realizada quanto à razão de chances (RC) das três escalas de DFF estudadas e a pergunta surpresa para óbito. Além disso, para esse desfecho, a escala de AVD e a pergunta surpresa foram associadas ao óbito durante a hospitalização (Tabela 4).

Tabela 4
Mortalidade hospitalar

DISCUSSÃO

Em nossa análise, buscamos utilizar escalas que reproduzissem uma anamnese mais detalhada quanto ao grau de perda da capacidade funcional relatado. Assim, buscamos incluir dados do histórico funcional prévio do paciente (KPS, AVD e PaP), doenças crônicas (ICC), dados laboratoriais fisiológicos (SAPS 3, APACHE II e SOFA) e a análise subjetiva do médico assistente sobre o prognóstico por meio da pergunta surpresa. Embora tanto os pacientes doentes quanto aqueles com LSV tenham escores de DFF significativamente piores, nossa análise ajustada descobriu que as AVDs e uma resposta negativa à pergunta surpresa estavam relacionadas a maiores chances de ambos os desfechos.

Um estudo seminal europeu incluindo 37 UTIs em 17 países mostrou que as razões mais frequentes para a limitação das terapias curativas foram falta de resposta ao tratamento curativo, danos neurológicos graves, doenças crônicas limitando a qualidade e expectativa de vida e falência múltipla de órgãos. Dessa forma, apesar da pequena quantidade de pacientes em nossa coorte, observamos o mesmo padrão.(1313 Sprung CL, Woodcock T, Sjokvist P, Ricou B, Bulow HH, Lippert A, et al. Reasons, considerations, difficulties and documentation of end-of-life decisions in European intensive care units: the ETHICUS Study. Intensive Care Med. 2008;34(2):271-7.)

Um estudo multicêntrico com adultos maiores de 80 anos internados em UTIs europeias mostrou que quase um terço dos 3.920 pacientes participantes apresentavam importante declínio funcional prévio, avaliado pela escala de AVD menor que quatro. Esse subgrupo de pacientes teve significativamente menos chances de sobreviver após 1 mês de hospitalização.(1414 Guidet B, de Lange DW, Boumendil A, Leaver S, Watson X, Boulanger C, Szczeklik W, Artigas A, Morandi A, Andersen F, Zafeiridis T, Jung C, Moreno R, Walther S, Oeyen S, Schefold JC, Cecconi M, Marsh B, Joannidis M, Nalapko Y, Elhadi M, Fjølner J, Flaatten H; VIP2 study group. The contribution of frailty, cognition, activity of daily life and comorbidities on outcome in acutely admitted patients over 80 years in European ICUs: the VIP2 study. Intensive Care Med. 2020;46(1):57-69.) Em nosso estudo, a maioria dos pacientes apresentou escore de AVD maior que quatro e, mesmo assim, a mortalidade foi significativamente maior quando houve perda de independência em qualquer um dos componentes dessa escala. Nesse sentido, um estudo com 223 pacientes observou que o declínio funcional avaliado por AVD menor que três esteve relacionado a quatro vezes a probabilidade de ter infecção hospitalar, e metade dessas infecções ocorreu em até 12 dias de internação.(1515 Mazière S, Couturier P, Gavazzi G. Gavazzi. Impact of functional status on the onset of nosocomial infections in an acute care for elders unit. J Nutr Health Aging. 2013;17(10):903-7.) Como infecções hospitalares aumentam a mortalidade hospitalar, é possível traçar uma relação de causa e efeito entre declínio funcional, suscetibilidade à sepse e piora do prognóstico. Esse resultado aponta para a necessidade de uma compreensão detalhada das atividades cotidianas, das mais simples às mais complexas. Como observamos que uma diminuição no escore de AVD foi um preditor de LSV e mortalidade hospitalar, tanto nas análises univariadas não ajustadas, quanto nas ajustadas, essa escala parece ser adequada não apenas para reconhecer pacientes com maior chance de óbito durante a internação, como também para cogitar a LSV, principalmente em situações em que o paciente não está respondendo ao tratamento.

Embora a pergunta surpresa seja considerada uma avaliação subjetiva, vários estudos sugerem que ela pode melhorar a acurácia dos índices prognósticos. Uma pesquisa com pacientes internados na UTI médica de um grande centro médico acadêmico mostrou que, quando associada a modelos prognósticos, a resposta negativa à pergunta surpresa mostrou forte discriminação para predizer a mortalidade hospitalar.(1616 Lakin JR, Robinson MG, Obermeyer Z, Powers BW, Block SD, Cunningham R, et al. Prioritizing primary care patients for a communication intervention using the “surprise question”: a prospective cohort study. J Gen Intern Med. 2019;34(8):1467-74.) O mesmo ocorreu quando a pergunta surpresa foi feita a médicos e enfermeiros e cujas respostas foram negativas em diferentes ambientes clínicos, como Atenção Primária, oncologia e clínicas de hemodiálise.(1717 Singh S, Graham Z, Rodriguez A, Lee D, Wenger B, Min SJ, et al. Accuracy of the surprise question on an inpatient oncology service: a multidisciplinary perspective. J Hosp Palliat Nurs. 2019;21(4):300-4.,1818 Da Silva Gane M, Braun A, Stott D, Wellsted D, Farrington K. How robust is the ‘surprise question’ in predicting short-term mortality risk in haemodialysis patients? Nephron Clin Pract. 2013;123(3-4):185-93.)

A explicação pode estar no funcionamento do raciocínio clínico, o qual, segundo a teoria de processos duplos, é composto de dois sistemas. O primeiro, considerado intuitivo, é resultado das experiências do observador e utiliza o reconhecimento de fatores ambientais e relacionados ao paciente, os quais, juntos, constituem padrões que geram respostas automáticas processadas inconscientemente. O segundo, denominado analítico, funciona de modo consciente e ativo. Nesse caso, a avaliação é consciente e baseada em estímulos e constituintes do ambiente e do paciente. No que diz respeito ao raciocínio clínico, esses dois sistemas operam livremente e de modo interdependente e complementar.(1919 Pelaccia T, Tardif J, Triby E, Charlin B. An analysis of clinical reasoning through a recent and comprehensive approach: the dual-process theory. Med Educ Online. 2011;16. https://doi.org/10.3402/meo.v16i0.5890.
https://doi.org/10.3402/meo.v16i0.5890....
) O primeiro sistema pode funcionar como um alarme para algo que não está certo e que pode estar relacionado aos resultados obtidos a partir da pergunta surpresa, ambos com LSV e maior chance de óbito. A pergunta surpresa requer uma resposta categórica imediata (sim ou não), na qual os intensivistas levem em conta sua intuição, baseada em suas experiências anteriores, associada à quantidade de informações disponíveis sobre o paciente (como histórico da doença, motivo da hospitalização e disfunções orgânicas agudas atuais).(2020 Hadique S, Culp S, Sangani RG, Chapman KD, Khan S, Parker JE, et al. Derivation and validation of a prognostic model to predict 6-month mortality in an intensive care unit population. Ann Am Thorac Soc. 2017;14(10):1556-61) Assim, essa informação reforça a interação do primeiro sistema (a resposta imediata à pergunta surpresa) com o segundo (mais analítico, que poderia estar relacionado às escalas de DFF).

Assim, pode-se obter um melhor plano terapêutico individual, incluindo as chances de LSV e óbito. Contudo, apesar de nossos resultados significativos em relação à progressão para LSV e ao aumento do risco de óbito, não defendemos a ideia de usar apenas a pergunta surpresa para a tomada de decisão no cuidado de pacientes críticos. Ela deve servir como um alerta de risco aumentado para esses desfechos.

Nossos resultados sugerem que a pergunta surpresa, juntamente da escala de AVD, poderia não apenas ser incorporada à coleta do histórico clínico com pacientes e familiares, como também servir de inspiração para os médicos aprenderem mais sobre a biografia dos pacientes.

Um ponto forte do nosso estudo é seu desenho prospectivo em uma UTI não cirúrgica, em que a maioria dos pacientes era de idade avançada e com diagnóstico de sepse, um perfil comum em todo o mundo. Outro ponto forte inclui a participação de dois intensivistas com mais de 10 anos de experiência e que atuam na UTI, um pela manhã e outro pela tarde, cada um tendo uma carga horária de 30 horas semanais.

Nosso estudo teve algumas limitações importantes. Primeiro, ele foi realizado em um único centro e com uma quantidade reduzida de pacientes, pois metade da amostra foi excluída por não assinar o termo de consentimento informado. Assim, os resultados podem não se aplicar a outras instituições, e estudos com amostras maiores e períodos de acompanhamento mais longos são necessários para serem clinicamente úteis e cientificamente confiáveis. Segundo, a duração do seguimento foi curta, e não foi possível avaliar os desfechos a longo prazo. Terceiro, apesar de ser a medida de estado funcional mais estudada na literatura, a síndrome da fragilidade não foi avaliada em nossa coorte.

CONCLUSÃO

A redução da capacidade funcional e a resposta negativa à pergunta surpresa, estiveram associadas à limitação terapêutica e ao aumento da chance de óbito durante a hospitalização. Nossos resultados podem auxiliar no desenvolvimento de futuros sistemas de prognóstico e triagem na unidade de terapia intensiva.

Apêndice 1
Instrumento de coleta de dados.

REFERÊNCIAS

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Editado por

Editor responsável: Antônio Paulo Nassar Jr.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    24 Jun 2022
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 2022

Histórico

  • Recebido
    06 Maio 2021
  • Aceito
    13 Nov 2021
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