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Encefalopatia hiperamonêmica associada ao valproato na hemorragia subaracnóidea: um diagnóstico a considerar

RESUMO

Objetivo:

A hemorragia subaracnóidea é uma doença prevalente com alta morbidade e mortalidade. Inúmeras complicações contribuem para a lesão cerebral e desafiam o médico no diagnóstico e tratamento. A encefalopatia hiperamonêmica associada ao valproato é uma entidade rara, subdiagnosticada, grave e importante a ser considerada. Apresentamos o caso de um paciente com hemorragia subaracnóidea que recebeu profilaxia anticonvulsivante com valproato e evoluiu com piora neurológica associada a níveis plasmáticos elevados de amônia e descargas periódicas no eletroencefalograma, sem outras causas identificáveis. A interrupção do tratamento com ácido valproico e a normalização dos níveis plasmáticos de amônia resultaram em melhora do quadro neurológico e eletroencefalográfico.

Descritores:
Ácido valproico; Anticonvulsivantes; Hemorragia subaracnoide; Alta do paciente; Lesões cerebrais; Hiperamonemia; Morbidade

ABSTRACT

Objective:

Subarachnoid hemorrhage is a prevalent disease with high morbidity and mortality. Numerous complications contribute to brain injury and defy the clinical practitioner on diagnosis and management. Valproate-associated hyperammonemic encephalopathy is a rare, underdiagnosed, serious and important entity to consider. We present a case of a patient with subarachnoid hemorrhage who received anticonvulsant prophylaxis with valproate and developed neuroworsening associated with high levels of ammoniemia and periodic discharge electroencephalographic patterns without other identifiable causes. Discontinuing valproic acid treatment and normalization of ammoniemia resulted in improvement in clinical and electroencephalographic neurological status.

Keywords:
Valproic acid; Anticonvulsants; Subarachnoid hemorrhage; Patient discharge; Brain injuries; Hyperammonemia; Morbidity

INTRODUÇÃO

O valproato (VPA) é um fármaco frequentemente utilizado como anticonvulsivante e para transtornos psiquiátricos. Trata-se de um ácido graxo de cadeia curta com metabolismo hepático. Alterações do metabolismo hepático podem levar a um aumento da amônia sérica.(11 Sousa C. Valproic acid-induced hyperammonemic encephalopathy - a potentially fatal adverse drug reaction. Springerplus. 2013;2(1):13.) A encefalopatia hiperamonêmica associada ao VPA (VHE - valproate-associated hyperammonemic encephalopath) é uma condição rara, grave e reversível, sendo ainda a consequência de uma reação idiossincrática ao tratamento agudo ou crônico com VPA.(22 Shah S, Wang R, Vieux U. Valproate-induced hyperammonemic encephalopathy: a case report. J Med Case Rep. 2020;14(1):19.) O eletroencefalograma (EEG) é útil no diagnóstico e apresenta descargas periódicas generalizadas (DPGs), que constitui um padrão frequentemente observado nas encefalopatias tóxicas e/ou metabólicas.(33 Segura-Bruna N, Rodriguez-Campello A, Puente V, Roquer J. Valproate-induced hyperammonemic encephalopathy. Acta Neurol Scand. 2006;114(1):1-7.)

Analisamos o caso de um paciente com hemorragia subaracnóidea aneurismática (HSA) em tratamento anticonvulsivante profilático com VPA, que apresentou deterioração do quadro neurológico durante a internação, tendo sido feito o diagnóstico de VHE. Os mecanismos de toxicidade e farmacocinética do VPA, bem como os aspectos clínicos e laboratoriais do VHE, foram revisados.

RELATO DE CASO

Mulher de 69 anos, com história de hipertensão, diabetes mellitus insulinodependente, cefaleia crônica e tabagista. Referia há 1 semana dor de cabeça, confusão mental e vômitos. O exame no pronto-socorro revelou coma (escala de coma de Glasgow em 5), rigidez de nuca e ausência de alterações pupilares.

A tomografia computadorizada (TC) mostrou HSA difusa, hemorragia intraventricular leve e hidrocefalia (Figura 1A). A angiotomografia computadorizada demostrou aneurisma de artéria carótida interna supraclinoide à direita (Figura 1B). Uma vez admitida na unidade de terapia intensiva (UTI), recebeu tratamento com ventilação mecânica invasiva, ácido tranexâmico, nimodipina e VPA enteral (400mg, três vezes ao dia). Foram realizadas drenagem lombar externa e embolização endovascular do aneurisma, sem evidência de vasoespasmo angiográfico. A TC inicial evidenciou hidrocefalia, sendo feita drenagem ventricular externa.

Figura 1
Estudos de neuroimagem do caso. (A) Tomografia computadorizada de crânio mostrando hemorragia subaracnóidea difusa com hemorragia intraventricular e hidrocefalia; (B) angiotomografia computadorizada mostrando aneurisma de artéria carótida interna supraclinoide direito; (C) ressonância magnética FLAIR e (D) ressonância magnética de difusão sem anormalidades.

Como complicação inicial, a paciente desenvolveu disfunção neurocardiogênica, com eletrocardiograma mostrando alterações difusas da repolarização e troponina elevada (716ng/mL). O ecocardiograma transtorácico demostrou disfunção sistólica (fração de ejeção do ventrículo esquerdo de 35%) e anormalidades regionais da contratilidade parietal, que foram interpretadas como miocardiopatia de estresse. Durante a permanência na UTI, apesar da retirada da sedação, a paciente permaneceu em coma (escala de coma de Glasgow em 5 no sexto dia). As tomografias subsequentes foram negativas para hidrocefalia, lesões isquêmicas ou outras complicações.

As funções hepática, renal e tireoidiana estavam normais, e ela não apresentava distúrbios hidroeletrolíticos. Não foram encontradas complicações extraneurológicas. A drenagem ventricular externa foi removida com culturas estéreis. O Doppler transcraniano foi negativo para vasoespasmo e mostrou índice de pulsatilidade normal. A ressonância magnética não detectou anormalidades (Figura 1C e 1D). O EEG padrão descartou padrões ictais, mas demostrou um padrão de DPGs com predominância frontal, que se caracterizava como um padrão de descarga periódica contínua, com morfologia trifásica e sem flutuação espontânea, como visto em disfunções cerebrais tóxicas e/ou metabólicas (Figura 2A).(44 Lee S, Cheong J, Kim C, Kim JM. Valproic acid-induced hyperammonemic encephalopathy as a cause of neurologic deterioration after unruptured aneurysm surgery. J Korean Neurosurg Soc. 2015;58(2):159-62.) Diante desses achados, a dosagem de VPA foi de 65,3µg/mL (faixa terapêutica de 50 - 100µg/mL), e a dosagem de amônia foi de 160,2µg/mL (faixa normal de 18,7 - 86,0µg/mL). Não se observaram insuficiência hepática ou sangramento gastrintestinal. Em seguida, a administração de VPA foi descontinuada, e foram iniciados o tratamento para hiperamonemia com lactulose e a dieta restrita em proteínas. O nível de amônia diminuiu progressivamente até a normalização (81,7ug/mL), o que foi correlacionado com uma melhora neurológica evidenciada por resposta ao comando no Dia 12.

Figura 2
Eletroencefalografia do caso. (A) Encefalografia padrão no Dia 6; (B) encefalografia padrão no Dia 12.

Os EEGs subsequentes melhoraram progressivamente até o normal (Figura 2B). A paciente necessitou de traqueostomia para retirada da ventilação mecânica e apresentou fístula traqueoesofágica como complicação. Ela evoluiu para óbito 85 dias após a admissão.

DISCUSSÃO

Apesar dos avanços no tratamento, a HSA é uma doença grave, com mortalidade de até 35 a 40%. Apresenta múltiplas complicações neurológicas e sistêmicas, que levam à lesão cerebral secundária.

O VPA é um medicamento seguro e eficaz, usado como profilaxia anticonvulsivante em pacientes com HSA. Ele aumenta as concentrações cerebrais do GABA e produz bloqueio dependente da frequência dos canais de sódio dependentes de voltagem, o que resulta em suas propriedades anticonvulsivantes.(11 Sousa C. Valproic acid-induced hyperammonemic encephalopathy - a potentially fatal adverse drug reaction. Springerplus. 2013;2(1):13.,22 Shah S, Wang R, Vieux U. Valproate-induced hyperammonemic encephalopathy: a case report. J Med Case Rep. 2020;14(1):19.) A maioria dos efeitos colaterais do VPA é leve, transitória e relacionada à dosagem: tontura, incoordenação, diplopia e distúrbios da marcha. Reações graves, como hepatotoxicidade, distúrbios de coagulação, pancreatite, teratogenicidade, síndrome de secreção inapropriada de hormônio antidiurético (SIADH), aplasia de medula óssea, hiponatremia e encefalopatia, são idiossincráticas.(22 Shah S, Wang R, Vieux U. Valproate-induced hyperammonemic encephalopathy: a case report. J Med Case Rep. 2020;14(1):19.)

A VHE é uma complicação rara, mas grave, ligada ao tratamento com VPA. Caracteriza-se por rebaixamento do nível de consciência, défices neurológicos, disfunção cognitiva, vômitos, sonolência, letargia e, nos casos mais graves, convulsões, coma e morte.(22 Shah S, Wang R, Vieux U. Valproate-induced hyperammonemic encephalopathy: a case report. J Med Case Rep. 2020;14(1):19.,33 Segura-Bruna N, Rodriguez-Campello A, Puente V, Roquer J. Valproate-induced hyperammonemic encephalopathy. Acta Neurol Scand. 2006;114(1):1-7.) Três apresentações clínicas foram descritas associadas aos efeitos tóxicos de VPA: níveis séricos de VPA aumentados com amônia normal; encefalopatia com função hepática prejudicada e encefalopatia hiperamonêmica. O laboratório local tinha limite superior normal de 86µg/mL para amônia sérica. Valores maiores resultam em toxicidade, e, se acima de 200µg/mL, podem gerar reações graves, como edema cerebral e herniação.(44 Lee S, Cheong J, Kim C, Kim JM. Valproic acid-induced hyperammonemic encephalopathy as a cause of neurologic deterioration after unruptured aneurysm surgery. J Korean Neurosurg Soc. 2015;58(2):159-62.) Nosso caso é o primeiro descrito em nosso meio, sendo a terceira apresentação clínica de VHE.

Não há consenso sobre o mecanismo pelo qual o VPA gera hiperamonemia. Existem várias teorias, e a falta de investigação sugere um processo multifatorial, que envolve predisposição genética, interações medicamentosas e múltiplos processos bioquímicos, como inibição indireta da oxidação de ácidos graxos, que diminui o N-acetil-glutamato; efeito direto do VPA em neurotransmissores particulares, como a inibição da glutamina sintetase, e toxicidade neuronal direta por aumento nas concentrações de astrócitos intracelulares de glutamato e amônia.(3,4)

Existem vários fatores de risco ligados ao desenvolvimento de VHE: função hepática alterada, deficiência de carnitina e associação com outras drogas, como fenitoína, fenobarbital, carbamazepina e topiramato. Outros fatores de risco descritos e presentes em nossa paciente incluem o início recente da administração de VPA, altas doses, estado hipercatabólico e lesão cerebral prévia, sendo essa última provavelmente o mais relevante em nosso caso. É possível que os níveis tóxicos de VPA estejam relacionados a uma ruptura na barreira hematoencefálica como resultado da HSA encontrada em nossa paciente, apesar das concentrações séricas normais de VPA.(11 Sousa C. Valproic acid-induced hyperammonemic encephalopathy - a potentially fatal adverse drug reaction. Springerplus. 2013;2(1):13.,22 Shah S, Wang R, Vieux U. Valproate-induced hyperammonemic encephalopathy: a case report. J Med Case Rep. 2020;14(1):19.)

A incidência de VHE não é bem documentada. Até 20% dos pacientes em tratamento com VPA podem desenvolver hiperamonemia leve e assintomática. Outra característica dessa desordem é o fato de não existir correlação entre as concentrações de VPA e a amônia, de modo que não há relação entre dosagem/gravidade na VHE, o que significa que alguns pacientes apresentam níveis séricos normais de VPA.(11 Sousa C. Valproic acid-induced hyperammonemic encephalopathy - a potentially fatal adverse drug reaction. Springerplus. 2013;2(1):13.) É necessário ter um alto índice de suspeição para um diagnóstico correto.

O EEG é uma ferramenta utilizada na monitorização à beira do leito não invasiva. Os seguintes padrões de EEG podem ser encontrados nessa desordem: lentificação difusa das frequências de fundo (com predominância de onda teta e delta); atividade delta frontal, intermitente e rítmica; ou descargas epileptiformes periódicas generalizadas com predominância anterior e morfologia trifásica, como visto em nosso caso.(33 Segura-Bruna N, Rodriguez-Campello A, Puente V, Roquer J. Valproate-induced hyperammonemic encephalopathy. Acta Neurol Scand. 2006;114(1):1-7.,55 Kifune A, Kubota F, Shibata N, Akata T, Kikuchi S. Valproic acid-induced hyperammonemic encephalopathy with triphasic waves. Epilepsia. 2000;41(7):909-12.,66 Hirsch LJ, Fong MW, Leitinger M, LaRoche SM, Beniczky S, Abend NS, et al. American Clinical Neurophysiology Society’s Standardized Critical Care EEG Terminology: 2021 Version. J Clin Neurophysiol. 2021;38(1):1-29.) Desde a primeira descrição de ondas trifásicas por Bickford et al., a especificidade diagnóstica das ondas trifásicas continua controversa, embora a maioria dos autores sugira que esse padrão seja mais característico da encefalopatia hepática.(77 Bickford RG, Butt HR. Hepatic coma: the electroencephalographic pattern. J Clin Invest. 1955;34(6):790-9.) Fisch et al. descreveram que as ondas trifásicas que ocorrem na encefalopatia hepática são mais propensas a estarem associadas à lentificação grave do EEG do que em outros distúrbios, embora esse achado por si só não seja suficiente para o diagnóstico diferencial com outras encefalopatias metabólicas.(88 Fisch BJ, Klass DW. The diagnostic specificity of triphasic wave patterns. Electroencephalogr Clin Neurophysiol. 1988;70(1):1-8.) A normalização do padrão de EEG após a retirada da droga é comum e corrobora o diagnóstico, como visto em nosso caso.

Não há tratamento consensual para a VHE. São recomendadas as seguintes medidas: descontinuar o tratamento com VPA; tratar as causas desencadeantes caso existam; iniciar medidas para reduzir os níveis de amônia (restrição da ingestão de proteínas ou uso de dissacarídeos não absorvíveis como a lactulose); administrar antibióticos, como rifaximina, neomicina ou metronidazol, para reduzir o número de bactérias produtoras de amônia; administrar levocarnitina, especificamente durante a intoxicação aguda, devido às interações com o metabolismo do VPA, e, finalmente, iniciar hemodiálise ou diálise peritoneal, quando não houver resposta aos demais tratamentos.(11 Sousa C. Valproic acid-induced hyperammonemic encephalopathy - a potentially fatal adverse drug reaction. Springerplus. 2013;2(1):13.)

O prognóstico da VHE é favorável e sem sequelas; desde que o diagnóstico precoce seja feito, a droga seja descontinuada e os níveis de amônia sejam normalizados.

CONCLUSÃO

O comprometimento neurológico agudo após a hemorragia subaracnóidea aneurismática é muito frequente e constitui um desafio diagnóstico, tanto para clínicos quanto para neurocirurgiões. Uma vez excluídas as causas mais frequentes de lesão cerebral secundária, a encefalopatia hiperamonêmica associada ao valproato deve ser considerada, pois esses pacientes apresentam vários fatores de risco, como estresse neurocirúrgico e doença aguda. Sabendo que a encefalopatia hiperamonêmica associada ao valproato é um diagnóstico de exclusão, é necessário um alto índice de suspeição, juntamente da interpretação adequada do eletroencefalograma pelo neurofisiologista e de dosagem sérica de amônia e valproato. O diagnóstico imediato e a descontinuação precoce da droga podem mudar o curso dessa patologia silenciosa e com risco de vida.

REFERÊNCIAS

  • 1
    Sousa C. Valproic acid-induced hyperammonemic encephalopathy - a potentially fatal adverse drug reaction. Springerplus. 2013;2(1):13.
  • 2
    Shah S, Wang R, Vieux U. Valproate-induced hyperammonemic encephalopathy: a case report. J Med Case Rep. 2020;14(1):19.
  • 3
    Segura-Bruna N, Rodriguez-Campello A, Puente V, Roquer J. Valproate-induced hyperammonemic encephalopathy. Acta Neurol Scand. 2006;114(1):1-7.
  • 4
    Lee S, Cheong J, Kim C, Kim JM. Valproic acid-induced hyperammonemic encephalopathy as a cause of neurologic deterioration after unruptured aneurysm surgery. J Korean Neurosurg Soc. 2015;58(2):159-62.
  • 5
    Kifune A, Kubota F, Shibata N, Akata T, Kikuchi S. Valproic acid-induced hyperammonemic encephalopathy with triphasic waves. Epilepsia. 2000;41(7):909-12.
  • 6
    Hirsch LJ, Fong MW, Leitinger M, LaRoche SM, Beniczky S, Abend NS, et al. American Clinical Neurophysiology Society’s Standardized Critical Care EEG Terminology: 2021 Version. J Clin Neurophysiol. 2021;38(1):1-29.
  • 7
    Bickford RG, Butt HR. Hepatic coma: the electroencephalographic pattern. J Clin Invest. 1955;34(6):790-9.
  • 8
    Fisch BJ, Klass DW. The diagnostic specificity of triphasic wave patterns. Electroencephalogr Clin Neurophysiol. 1988;70(1):1-8.

Editado por

Editor responsável: Viviane Cordeiro Veiga

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Jun 2022
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 2022

Histórico

  • Recebido
    28 Jun 2021
  • Aceito
    14 Ago 2021
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