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Predição de choque séptico e hipovolêmico em pacientes de unidade de terapia intensiva com o uso de machine learning

RESUMO

Objetivo:

Criar e validar um modelo de predição de choque séptico ou hipovolêmico a partir de variáveis de fácil obtenção coletadas na admissão de pacientes internados em uma unidade de terapia intensiva.

Métodos:

Estudo de modelagem preditiva com dados de coorte concorrente realizada em um hospital do interior do nordeste brasileiro. Foram incluídos pacientes com 18 anos ou mais sem uso de droga vasoativa no dia da admissão e que foram internados entre novembro de 2020 e julho de 2021. Foram testados os algoritmos de classificação do tipo Decision Tree, Random Forest, AdaBoost, Gradient Boosting e XGBoost para a construção do modelo. O método de validação utilizado foi o k-fold cross validation. As métricas de avaliação utilizadas foram recall, precisão e área sob a curva Receiver Operating Characteristic.

Resultados:

Foram utilizados 720 pacientes para criação e validação do modelo. Os modelos apresentaram alta capacidade preditiva com área sob a curva Receiver Operating Characteristic de 0,979; 0,999; 0,980; 0,998 e 1,00 para os algoritmos de Decision Tree, Random Forest, AdaBoost, Gradient Boosting e XGBoost, respectivamente.

Conclusão:

O modelo preditivo criado e validado apresentou elevada capacidade de predição do choque séptico e hipovolêmico desde o momento da admissão de pacientes na unidade de terapia intensiva.

Descritores:
Aprendizado de máquina; Choque séptico; Choque; Algoritmos; Árvore de decisões; Pacientes internados; Cuidados críticos; Unidades de terapia intensiva

ABSTRACT

Objective:

To create and validate a model for predicting septic or hypovolemic shock from easily obtainable variables collected from patients at admission to an intensive care unit.

Methods:

A predictive modeling study with concurrent cohort data was conducted in a hospital in the interior of northeastern Brazil. Patients aged 18 years or older who were not using vasoactive drugs on the day of admission and were hospitalized from November 2020 to July 2021 were included. The Decision Tree, Random Forest, AdaBoost, Gradient Boosting and XGBoost classification algorithms were tested for use in building the model. The validation method used was k-fold cross validation. The evaluation metrics used were recall, precision and area under the Receiver Operating Characteristic curve.

Results:

A total of 720 patients were used to create and validate the model. The models showed high predictive capacity with areas under the Receiver Operating Characteristic curve of 0.979; 0.999; 0.980; 0.998 and 1.00 for the Decision Tree, Random Forest, AdaBoost, Gradient Boosting and XGBoost algorithms, respectively.

Conclusion:

The predictive model created and validated showed a high ability to predict septic and hypovolemic shock from the time of admission of patients to the intensive care unit.

Keywords:
Machine learning; Shock, septic; Shock; Algorithms; Decision tree; Inpatients; Critical care; Intensive care units

INTRODUÇÃO

A evolução de um paciente para a condição de choque é uma das principais preocupações das equipes de saúde em unidades de terapia intensiva (UTI), por representar uma das causas mais frequentes de óbito nessas unidades.(11 van Wagenberg L, Witteveen E, Wieske L, Horn J. Causes of mortality in ICU-acquired weakness. J Intensive Care Med. 2020;35(3):293-6.) Identificar a condição precocemente e promover o início imediato do tratamento têm sido as medidas mais efetivas para a redução da mortalidade associada ao choque. No entanto, a dinâmica de trabalho nas UTI, em especial quando há taxa de ocupação elevada e um grande número de pacientes graves, pode ser uma barreira para a identificação dos sinais de choque dentro da janela de tempo ideal. Essa dificuldade, frequentemente observada na rotina das UTI, tem sido um dos estímulos ao crescimento expressivo de ferramentas que possam otimizar tempo e recursos, na obtenção de melhores resultados clínicos em pacientes sob cuidados intensivos.(22 Giannini HM, Ginestra JC, Chivers C, Draugelis M, Hanish A, Schweickert WD, et al. A machine learning algorithm to predict severe sepsis and septic shock: development, implementation, and impact on clinical practice. Crit Care Med. 2019;47(11):1485-92.)

O choque séptico pode acometer até 35% dos pacientes internados em UTI, e a mortalidade nesses casos chega a atingir 63%.(33 Vucelić V, Klobučar I, Ðuras-Cuculić B, Gverić Grginić A, Prohaska-Potočnik C, Jajić I, et al. Sepsis and septic shock - an observational study of the incidence, management, and mortality predictors in a medical intensive care unit. Croat Med J. 2020;61(5):429-39.) Além da elevada taxa de óbitos, a ocorrência de choque séptico está associada ao desenvolvimento de sequelas físicas e cognitivas, resultantes do longo tempo de permanência na UTI, assim como à redução da qualidade de vida com constantes internações e ao aumento significativo dos custos em saúde.(44 Cecconi M, Evans L, Levy M, Rhodes A. Sepsis and septic shock. Lancet. 2018;392(10141):75-87.,55 Dupuis C, Bouadma L, Ruckly S, Perozziello A, Van-Gysel D, Mageau A, et al. Sepsis and septic shock in France: incidences, outcomes and costs of care. Ann Intensive Care. 2020;10(1):145.) O choque hipovolêmico, por sua vez, apesar de menor letalidade global, também representa importante causa de óbitos, em especial nas UTI de hospitais que atendem a traumas, com taxa de mortalidade que se aproxima de 19%.(66 Gitz Holler J, Jensen HK, Henriksen DP, Rasmussen LM, Mikkelsen S, Pedersen C, et al. Etiology of shock in the emergency department: a 12-year population-based cohort study. Shock. 2019;51(1):60-7.)

A infusão de fluidos intravenosos e o início rápido da terapia antimicrobiana são considerados efetivos para reduzir o risco de evolução para o choque nos pacientes com risco elevado.(77 Kim RY, Ng AM, Persaud AK, Furmanek SP, Kothari YN, Price JD, et al. Antibiotic timing and outcomes in sepsis. Am J Med Sci. junho de 2018;355(6):524-9.,88 Bonanno LS. Early administration of intravenous fluids in sepsis: pros and cons. Crit Care Nurs Clin North Am. 2018;30(3):323-32.) Em indivíduos com sepse e hipotensão, por exemplo, a infusão de fluidos resulta em melhora na perfusão e aumento da pressão arterial média (PAM),(99 Self WH, Semler MW, Bellomo R, Brown SM, deBoisblanc BP, Exline MC, Ginde AA, Grissom CK, Janz DR, Jones AE, Liu KD, Macdonald SPJ, Miller CD, Park PK, Reineck LA, Rice TW, Steingrub JS, Talmor D, Yealy DM, Douglas IS, Shapiro NI; CLOVERS Protocol Committee and NHLBI Prevention and Early Treatment of Acute Lung Injury (PETAL) Network Investigators. Liberal versus restrictive intravenous fluid therapy for early septic shock: rationale for a randomized trial. Ann Emerg Med. 2018;72(4):457-66.) o que pode reduzir a chance de evolução para o óbito intra-hospitalar em até 2,7% a cada 1% de fluido administrado a mais, desde que a identificação do quadro e o início do tratamento ocorram em tempo hábil.(1010 Sethi M, Owyang CG, Meyers C, Parekh R, Shah KH, Manini AF. Choice of resuscitative fluids and mortality in emergency department patients with sepsis. Am J Emerg Med. 2018;36(4):625-9.) Da mesma forma, o início imediato de antibióticos em caso de sepse reduz significativamente o risco de morte, uma vez que, a cada hora de atraso no início do tratamento, há aumento de 10% na mortalidade.(1111 Peltan ID, Brown SM, Bledsoe JR, Sorensen J, Samore MH, Allen TL, et al. ED door-to-antibiotic time and long-term mortality in sepsis. Chest. 2019;155(5):938-46.) Esses dados demonstram a necessidade de identificação e priorização na vigilância dos pacientes com elevado potencial de evolução para o choque nas UTI, o que pode ser fortemente auxiliado por uma ferramenta de fácil aplicação e com elevada acurácia.

Os modelos preditivos criados a partir de algoritmos de aprendizagem de máquina (machine learning) são utilizados como base para a criação de ferramentas com aplicação crescente na área da saúde.(1212 Doupe P, Faghmous J, Basu S. Machine learning for health services researchers. Value Health. 2019;22(7):808-15.) São usados para predizer diversas condições clinicamente relevantes, inclusive sepse e choque séptico.(1313 Kim J, Chang H, Kim D, Jang DH, Park I, Kim K. Machine learning for prediction of septic shock at initial triage in emergency department. J Crit Care. 2020;55:163-70.) No entanto, os modelos utilizados para predizer choque utilizam grande número de variáveis, geralmente de difícil obtenção, o que pode dificultar sua reprodução em outros cenários.(1313 Kim J, Chang H, Kim D, Jang DH, Park I, Kim K. Machine learning for prediction of septic shock at initial triage in emergency department. J Crit Care. 2020;55:163-70.) Alguns modelos utilizam variáveis mais facilmente coletadas, porém são exclusivos para a predição de choque séptico e com variáveis preditoras coletadas após a admissão do paciente.(1414 Fagerström J, Bång M, Wilhelms D, Chew MS. LiSep LSTM: a machine learning algorithm for early detection of septic shock. Sci Rep. 2019;9(1):15132.) Tais características tornam limitada a aplicação desses modelos na prática clínica diária das UTI, pela falta de praticidade e indisponibilidade dos dados, quando necessário.

Assim, este estudo teve como objetivo criar e validar um modelo de predição de choque séptico ou hipovolêmico com variáveis de fácil obtenção, coletadas na admissão de pacientes internados em UTI.

MÉTODOS

Este foi um estudo de modelagem preditiva realizado com dados de pacientes admitidos na UTI de um hospital localizado na Região Nordeste do Brasil. No momento da pesquisa, a unidade possuía 20 leitos e recebia pacientes com variadas condições clínicas e cirúrgicas. Foram incluídos todos os pacientes com 18 anos ou mais que não estavam em uso de droga vasoativa (DVA) no dia da admissão e foram internados na UTI entre novembro de 2020 e julho de 2021. Pacientes que apresentavam dados incompletos para qualquer uma das variáveis utilizadas no estudo foram excluídos das análises. A coleta de dados nos prontuários foi realizada diariamente, desde a admissão até a saída do paciente da UTI, com o auxílio de um questionário elaborado pela equipe de pesquisa na plataforma KoBoToolbox,(1515 KoBoToolbox. United State: U.S. Digital Millennium; c1998. [cited 2022 Dec 1]. Available from: https://kf.kobotoolbox.org
https://kf.kobotoolbox.org...
) por meio do aplicativo KoCoCollect para Android. Diariamente, era realizada uma auditoria dos dados coletados, de forma a evitar perdas ou erros de coleta ou de lançamento deles.

Variável-alvo

A ocorrência de choque séptico ou hipovolêmico foi avaliada utilizando-se DVA, norepinefrina e/ou vasopressina, em algum momento da internação na UTI. Embora a definição de choque séptico seja o uso de DVA para manutenção da PAM maior que 65mmHg e lactato sérico acima de 2mmol/L,(1616 Shankar-Hari M, Phillips GS, Levy ML, Seymour CW, Liu VX, Deutschman CS, Angus DC, Rubenfeld GD, Singer M; Sepsis Definitions Task Force. Developing a new definition and assessing new clinical criteria for septic shock: for the third international consensus definitions for sepsis and septic shock (Sepsis-3). JAMA. 2016;315(8):775-87.) para este estudo o choque foi avaliado apenas pelo uso de DVA durante a internação. Essa estratégia foi utilizada em razão da ausência dos níveis de lactato para a maioria dos pacientes. Embora exista a possibilidade de superestimar o número de pacientes com choque, a necessidade de DVA é uma condição de alerta que pode ser evitada desde que sinalizada em tempo hábil para a implementação de medidas que possam preveni-la. A variável-alvo foi composta de uma variável dicotômica, com valores sim ou não para o uso de DVA durante o tempo de internação, exceto na admissão.

Preditores

A etapa de mineração das variáveis preditoras foi restrita aos dados disponíveis na data de admissão do paciente na UTI, a qual resultou na identificação de 12 variáveis: “idade”, “presença de infecção”, “uso de tubo orotraqueal”, “uso de sonda vesical de demora”, “uso de cateter venoso central”, “uso de cateter para monitorização de pressão arterial invasiva”, “sedação”, “Simplified Acute Physiology Score III (SAPS)”, “temperatura”, “pressão arterial sistólica”, “comorbidades” e “frequência cardíaca”. As variáveis “temperatura”, “pressão arterial sistólica” e “frequência cardíaca” foram utilizadas no formato de variável contínua, enquanto a variável “SAPS” foi categorizada em ≤ 57 e > 57, de acordo com um estudo brasileiro, no qual o ponto de corte em 57 apresentou melhor sensibilidade e especificidade na predição de mortalidade hospitalar.(1717 Silva Junior M, Malbouisson LM, Nuevo HL, Barbosa LG, Marubayashi LY, Teixeira IC, et al. Applicability of the Simplified Acute Physiology Score (SAPS 3) in Brazilian hospitals. Rev Bras Anestesiol. 2010;60(1):20-31.) Os pacientes com dados faltantes foram excluídos das análises. Optamos por não realizar imputação de dados, uma vez que somente um número pequeno de pacientes apresentou dados faltantes, sem impacto sobre a capacidade preditiva do modelo.

Treinamento e validação do modelo

Para a construção do modelo, os dados foram importados para o software Jupyter Notebook e foram utilizadas as bibliotecas Pandas, Scikit-Learn e Matplotlib da linguagem Python para a criação do modelo. Foram testados os algoritmos de classificação do tipo Decision Tree, Random Forest, AdaBoost, Gradient Boosting e XGBoost, na busca pelo melhor resultado na predição do choque séptico e hipovolêmico. Outros algoritmos como redes neurais artificias e regressão logística foram testados e apresentaram resultados inferiores com precisão e recall menores que 60%, enquanto os algoritmos baseados em árvore apresentaram resultados superiores a 80% nas métricas de avaliação.

Para a validação do modelo, foi utilizado o método k-fold cross validation. Nesse método, o banco foi subdividido em cinco conjuntos de dados. Em cada uma das cinco validações, uma parte diferente do modelo foi escolhida aleatoriamente para representar o grupo de teste, e o restante dos dados fez parte do conjunto de treinamento. As métricas de avaliação final são médias aritméticas dos cincos resultados obtidos ao fim de cada validação. Embora o conjunto de dados não seja desbalanceado, optamos por não utilizar a acurácia, portanto, foram utilizadas as métricas de recall, precisão e área sob a curva (ASC) Receiver Operating Characteristic (ROC) para avaliação do modelo. Essas métricas foram escolhidas com o intuito de diminuir o número de falso-positivos, em vista da gravidade da condição a ser detectada, assim como de falso-negativos, para reduzir possibilidade de alocação inadequada de recursos na UTI.

Este estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal da Bahia, Instituto Multidisciplinar em Saúde - Campus Anísio Teixeira, sob número 38332720.4.0000.5556. A aplicação de Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) foi dispensada já que todas as informações foram coletadas dos prontuários e com o mínimo de riscos aos pacientes.

RESULTADOS

Preencheram os critérios de inclusão do estudo 731 pacientes, dos quais 11 foram excluídos por apresentarem dados faltantes em uma ou mais variáveis preditoras, o que resultou na inclusão de 720 pacientes para as análises. Os dados demográficos e as características gerais da população do estudo estão descritos na tabela 1.

Tabela 1
Características gerais da população de estudo

Entre os modelos comparados, o melhor recall e, desse modo, o menor número de falso-negativos foi observado com os algoritmos Gradient Boosting e XGBoost. As métricas de avaliação dos modelos estão descritas na tabela 2. A ASC-ROC e a matriz de confusão de cada modelo estão apresentadas nas figuras 1 e 2, respectivamente.

Tabela 2
Métricas de avaliação de desempenho dos modelos na predição do choque

Figura 1
Curva Receiver Operating Characteristic dos modelos na predição do choque.

Figura 2
Matriz de confusão de cada modelo avaliado na predição do choque: (A) Decision Tree, (B) Random Forest, (C) XGBoost, (D) AdaBoost e (E) Gradient Boosting.

O modelo com o algoritmo de XGBoost apresentou melhor desempenho quando consideradas as três métricas de avaliação, com uma ASC-ROC de 1,00. As importâncias das variáveis para o modelo preditivo foram medidas por meio do cálculo de média e desvio-padrão da diminuição da impureza em cada árvore gerada, mediante a utilização do atributo feature importances. As variáveis que mais contribuíram para a predição nesse algoritmo foram infecção, cateter urinário, intubação orotraqueal e temperatura; a importância das variáveis para o modelo está descrita na figura 3.

Figura 3
Importância das variáveis para o modelo preditivo.

DISCUSSÃO

A partir de dados de fácil obtenção, nós elaboramos e validamos um modelo de predição que foi capaz de classificar corretamente, ainda na admissão, 99% dos pacientes que evoluiriam para a condição de choque séptico ou hipovolêmico em algum momento durante a estadia na UTI.

A correlação direta entre tempo de início dos sintomas, introdução das ações terapêuticas e mortalidade associada ao choque é um conceito amplamente disseminado entre as equipes de terapia intensiva. Contudo, na rotina de uma UTI não é incomum que exista atraso na identificação dos sinais iniciais de choque e no disparo do conjunto de medidas que pode reduzir a chance de evolução para o óbito. Essa demora pode estar relacionada tanto à sobrecarga de trabalho quanto a falhas no planejamento e na sistematização do cuidado. Consequentemente, a despeito de saber quando e como agir, esse momento ideal para o diagnóstico pode ser perdido. Entre os principais potenciais do nosso modelo de predição do choque está sua possibilidade de aplicação como ferramenta de apoio na organização do processo assistencial na UTI, como na definição do número e do intervalo de visitas da enfermagem ao leito de um paciente, baseado no seu risco de evolução para o choque, assim como na ampliação da vigilância infecciosa, com monitoramento da temperatura, leucograma e proteína C-reativa, além de revisão constante da terapia antimicrobiana, com realização de escalonamento, quando necessário.

A administração de fluidos é uma das principais intervenções para o aumento da perfusão tecidual e redução da evolução para o choque. Essa medida é utilizada não somente para evitar choque séptico, como também o hipovolêmico. Ainda que a definição sobre o melhor fluido a ser utilizado permaneça em discussão, já há evidência suficiente demonstrando que quanto mais precoce a infusão, melhores são os resultados dos pacientes. A fluidoterapia intravenosa em pacientes com sepse, sem choque, foi responsável pelo aumento da PAM e esteve associada a menor tempo de ventilação mecânica e de permanência na UTI.(1818 Leisman DE, Goldman C, Doerfler ME, Masick KD, Dries S, Hamilton E, et al. Patterns and outcomes associated with timeliness of initial crystalloid resuscitation in a prospective sepsis and septic shock cohort. Crit Care Med. 2017;45(10):1596-606.) Assim, a identificação de um paciente com risco de choque parece ser essencial para o início da ressuscitação hídrica que resulta na melhoria dos desfechos dos pacientes e diminui o risco de hipotensão tardia. No entanto, tal conduta deve ser realizada com cautela para que não haja sobrecarga hídrica e prejuízos aos pacientes críticos.(1919 Kuttab HI, Lykins JD, Hughes MD, Wroblewski K, Keast EP, Kukoyi O, et al. Evaluation and predictors of fluid resuscitation in patients with severe sepsis and septic shock. Crit Care Med. 2019;47(11):1582-90.) Portanto, o modelo que validamos no presente estudo pode ser um subsídio valioso para a tomada de decisão da equipe assistencial sobre a hidratação vigorosa de um paciente na UTI, antes mesmo do surgimento dos sinais iniciais de hipotensão ou do choque propriamente dito.

Alguns modelos têm sido propostos para a predição de sepse e choque séptico em UTI. No entanto, esses modelos apresentam limitações de reprodutibilidade, principalmente por sua dependência de um grande conjunto de variáveis. Alguns deles chegam a incluir até 20 variáveis diferentes, das quais algumas são pouco práticas de serem obtidas na rotina usual de uma UTI, como níveis de fibrinogênio.(2020 Wardi G, Carlile M, Holder A, Shashikumar S, Hayden SR, Nemati S. Predicting progression to septic shock in the emergency department using an externally generalizable machine-learning algorithm. Ann Emerg Med. 2021;77(4):395-406.) Dessa forma, o desenvolvimento de um modelo de predição composto de um número reduzido de variáveis, que sejam de fácil obtenção, possibilita sua reprodução em outros hospitais, inclusive aqueles com recursos limitados.

Um modelo preditivo para uso de DVA, que também utiliza variáveis de fácil obtenção, foi desenvolvido recentemente. Contudo, sua predição diz respeito ao uso de vasopressores em até 24 horas após a admissão na UTI, para auxiliar a conduta inicial nesses pacientes, já que os preditores foram sinais vitais que geralmente estão disponíveis antes da admissão na UTI.(2121 Kwak GH, Ling L, Hui P. Predicting the need for vasopressors in the intensive care unit using an attention based deep learning model. Shock. 2021;56(1):73-9.) Embora um percentual significativo dos pacientes necessite de DVA no início da internação, aqueles que apresentam um quadro de choque após as primeiras 48 horas permanecem mais tempo na UTI.(2222 Sakr Y, Jaschinski U, Wittebole X, Szakmany T, Lipman J, Ñamendys-Silva SA, et al. Sepsis in intensive care unit patients: worldwide data from the intensive care over nations audit. Open Forum Infect Dis. 2018;5(12):ofy313.) Portanto, nosso modelo tem o potencial de aplicação mais amplo e a possibilidade de colaborar com a redução do tempo de permanência na UTI.

Recente discussão em relação à utilização de algoritmos de machine learning para a criação de modelos preditivos na área da saúde é sobre a interpretabilidade dessas ferramentas.(2323 Kolyshkina I, Simoff S. Interpretability of Machine Learning Solutions in Public Healthcare: The CRISP-ML Approach. Front Big Data. 2021;4:660206.) Um modelo é considerado interpretável quando seu processo de tomada de decisão é facilmente explicável.(2424 Sagi O, Rokach L. Approximating XGBoost with an interpretable decision tree. Inf Sci. 2021;572:522-42.) O melhor modelo de predição de choque séptico e hipovolêmico em nosso estudo foi alcançado por meio da utilização do algoritmo XGBoost, um algoritmo pouco interpretável. No entanto, as variáveis utilizadas em nosso modelo são conhecidamente associadas ao choque e, portanto, embora o modelo seja de difícil entendimento, o conjunto de variáveis que o compõem torna fácil sua compreensão para o usuário final no processo de tomada de decisão. Essa característica amplia a possibilidade de aplicação prática do modelo validado neste estudo.

Nosso estudo apresenta algumas limitações. Uma delas foi a utilização apenas do uso de DVA para a definição de choque devido à falta dos valores de lactato sérico e, portanto, o número de pacientes com choque pode estar superestimado. Contudo, o uso de DVA já caracteriza um cenário com necessidade de maior monitorização e demanda mais cuidados da equipe de assistência. Outra limitação do nosso estudo é, provavelmente, o número de pacientes incluídos na modelagem. No entanto, por se tratar de uma base de dados alimentada de forma prospectiva, com auditoria constante dos dados coletados, houve número mínimo de perda de informações, o que resultou em variáveis com elevado grau de completude e, consequentemente, redução do potencial de vieses produzido pelo tamanho da população estudada. Da mesma forma, os valores obtidos nas métricas de avaliação sugerem que o número de pacientes não prejudicou o desempenho do modelo. Além do número de pacientes incluídos, por se tratar de um estudo de único centro, não é possível afirmar que nosso modelo possa ser aplicado em outras UTI. Para tanto, será necessário testar sua acurácia em cenários distintos, até que o mesmo possa ser aplicado como ferramenta de apoio à toma da de decisão.

CONCLUSÃO

A criação e a validação de um modelo preditivo baseado em um algoritmo de classificação do tipo XGBoost apresentaram elevada acurácia na predição do choque séptico e hipovolêmico desde momento da admissão de pacientes na unidade de terapia intensiva, a partir de variáveis que podem ser facilmente coletadas. Essa ferramenta tem potencial para aplicação na prática diária das equipes de terapia intensiva, como suporte à organização do processo assistencial, de forma a reduzir a chance de evolução para o choque de pacientes admitidos na unidade de terapia intensiva. Além disso, o modelo pode ser utilizado facilmente para o desenvolvimento de uma aplicação que possa ser acessada pelos profissionais durante a rotina de trabalho.

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Editor responsável: Gilberto Friedman

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Mar 2023
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 2022

Histórico

  • Recebido
    07 Ago 2022
  • Aceito
    19 Nov 2022
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