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O olhar biopsicossocial na Fisioterapia: ferramentas disponíveis para sua operacionalização

As bases conceituais adquiridas pelos profissionais de saúde durante sua formação influenciam as atitudes e os comportamentos da prática clínica. Essa premissa, já defendida 11. Engel GL. The need for a new medical model: a challenge for biomedicine. Science. 1977;196(4286):129-136., pode ser confirmada na observação empírica por muitos fisioterapeutas e profissionais da equipe de saúde. Essas bases conceituais originam modelos em saúde que serão desenvolvidos ao longo do tempo de acordo com o contexto e as bases culturais e materiais de cada época 22. Otani MAP, Barros NF. A Medicina Integrativa e a construção de um novo modelo na saúde. Ciênc. saúde coletiva. 2011;16(3):1801-1811.. O modelo biomédico ainda vigente na Fisioterapia e áreas afins remonta a três ou quatro séculos, em um período em que a medicina ocidental baseia-se no dualismo, que prediz a separação da mente e do corpo, e no reducionismo, no qual se assume que o entendimento das estruturas complexas do corpo pode ser melhor alcançado estudando-as por partes. Nos últimos 50 anos percebeu-se a necessidade de se complementar o modelo biomédico vigente, fundamentado em sinais e sintomas, para um modelo mais amplo, o modelo biopsicossocial, que considera os impactos das manifestações das doenças nas atividades do indivíduo e suas relações sociais em seus ambientes.

A compreensão desses modelos pode ser alcançada ao se conhecer o fundamento histórico no qual foram embasados. O modelo biomédico também tem permeado os registros de informações sobre doenças e vários países se interessaram em conhecer e comparar as doenças que levavam à morte, surgindo a necessidade de uniformizar a linguagem a fim de poder comparar as informações. As tentativas nesse sentido culminaram na primeira Classificação Internacional de Causas de Morte e seu uso foi recomendado internacionalmente 33. Laurenti R, Buchalla CM. O uso em epidemiologia da família de classificações de doenças e problemas relacionados à saúde. Cad. Saúde Pública. 1999;15:687-700.)-(44. Laurenti R, Di Nubila HBV, Quadros AAJ, Conde MTRP, Oliveira ASB. A Classificação Internacional de Doenças, a Família de Classificações Internacionais, a CID-11 e a Síndrome Pós-Poliomielite. Arq. Neuro-Psiquiatr. [Internet]. 2013;71(9A):3-10.. O desenvolvimento dessa classificação permitiu estudos epidemiológicos, contribuindo para o conhecimento, tratamento e prevenção de doenças, e percebeu-se o surgimento de doenças que não acometiam as pessoas anteriormente, bem como as consequências delas. Como a classificação desenvolvida carecia de tais informações, a partir da 6a revisão da Classificação Internacional de Causas de Morte foram inseridos conteúdos referentes às doenças não mortais, motivos de consultas e outros problemas de saúde, dando origem à Classificação Internacional de Doenças (CID) 33. Laurenti R, Buchalla CM. O uso em epidemiologia da família de classificações de doenças e problemas relacionados à saúde. Cad. Saúde Pública. 1999;15:687-700.)-(44. Laurenti R, Di Nubila HBV, Quadros AAJ, Conde MTRP, Oliveira ASB. A Classificação Internacional de Doenças, a Família de Classificações Internacionais, a CID-11 e a Síndrome Pós-Poliomielite. Arq. Neuro-Psiquiatr. [Internet]. 2013;71(9A):3-10.. Portanto, o modelo biomédico respaldado nos registros de informações sobre doenças contribuiu, ao longo do tempo, para a diminuição de doenças infectocontagiosas e para o consequente aumento da expectativa de vida da população. Logo percebeu-se a necessidade de se entender as consequências das doenças e não apenas registrar os quadros clínicos.

Por entender que a doença alterava a capacidade do indivíduo atuar de forma autônoma na sociedade, em 1980, a OMS propôs um modelo no qual as consequências das condições de doença seriam o eixo norteador das ações dos profissionais da saúde. Dessa forma, profissionais identificariam as incapacidades e agiriam no sentido de minimizar seus impactos. Uma nova proposta de classificação denominada International Classification of Impairments, Disability and Handicap (ICIDH), com base em três conceitos centrais: deficiência ou disfunção (impairment), incapacidade (disability) e restrição social (handicap), foi criada para descrever a nova realidade da saúde. Após revisões e adequações foi aprovada, em 2000, a ICIDH-2. Essa versão passou a englobar o modelo biopsicossocial e apresentava uma interação multifatorial entre as dimensões do indivíduo e seu ambiente físico e social.

Em 2001, a OMS publicou o sistema de classificação para o entendimento da funcionalidade e da incapacidade humana, a International Classification of Functioning, Disability and Health (CIF) 55. [WHO] World Health Organization. International Classification of functioning, disability and health. ICF: World Health Organization; 2001.. Essa ampliação passou a englobar, a partir do enfoque biopsicossocial, o estado de saúde do indivíduo a partir de componentes relacionados ao corpo, às atividades e participações e ao ambiente em seu entorno 66. Battistella LR, De Brito CMM. Classificação internacional de funcionalidade (CIF). Acta Fisiátr. 2002;9(2):98-101.. Com intuito de contribuir com a consolidação da CIF no Brasil e considerando a Resolução nº 5.421/2001 da OMS, o Conselho Federal de Fisioterapia e Terapia Ocupacional (COFFITO), por meio da Resolução nº 370, de 06 de novembro de 2009, dispõe sobre a adoção da CIF por Fisioterapeutas e Terapeutas Ocupacionais no âmbito de suas respectivas competências institucionais, utilizando-a como ferramenta clínica, de pesquisa, de políticas sociais e pedagógicas, endossando o modelo biopsicossocial para a área.

No que se refere à Fisioterapia e seus modelos norteadores, observa-se ainda um predomínio da concepção biomédica de saúde na prática clínica e um descompasso em relação à produção científica que já reflete as iniciativas de análise e aplicação do modelo biopsicossocial, e a formação profissional praticada nos cursos de graduação. A Fisioterapia com seu enfoque reabilitador ainda concentra sua atuação, quase que exclusivamente, no controle de danos, buscando a cura de doenças que restringem a locomoção humana, seja reabilitando sequelas ou desenvolvendo a capacidade residual funcional de indivíduos que tiveram lesões irreparáveis de determinadas funções 77. Bispo Júnior JP. Fisioterapia e saúde coletiva: desafios e novas responsabilidades profissionais. Ciênc. saúde coletiva [Internet]. 2010;15(Suppl 1):1627-1636.. A transposição da CIF para a rotina clínica requer a sensibilização dos profissionais em formação e formados, ampliando a abordagem ao paciente.

Na rotina clínica do fisioterapeuta, a avaliação é o locus privilegiado, pois é o momento em que ocorre o encontro com o paciente para coleta de dados de saúde e funcionalidade. Dentre os campos a serem preenchidos, a anamnese, por ser um campo aberto no qual o profissional registra a percepção do paciente referente à sua condição de saúde, configura-se uma fonte rica de informações para nortear a avaliação e acompanhar o desfecho clínico. Essas informações poderão auxiliar na identificação de quais componentes e categorias da CIF têm potencial para nortear o profissional no sentido de melhor expressar a funcionalidade do indivíduo, subsidiando a construção de metas conjuntas para obter uma melhor funcionalidade. Esse enfoque ainda privilegia a saúde vivida, tornando-a um ponto de partida tanto para o delineamento dos próximos itens do exame como para o tratamento e acompanhamento dos desfechos das intervenções fisioterapêuticas na superação das dificuldades numa perspectiva de assistência centrada nas necessidades dos indivíduos.

Referências

  • 1
    Engel GL. The need for a new medical model: a challenge for biomedicine. Science. 1977;196(4286):129-136.
  • 2
    Otani MAP, Barros NF. A Medicina Integrativa e a construção de um novo modelo na saúde. Ciênc. saúde coletiva. 2011;16(3):1801-1811.
  • 3
    Laurenti R, Buchalla CM. O uso em epidemiologia da família de classificações de doenças e problemas relacionados à saúde. Cad. Saúde Pública. 1999;15:687-700.
  • 4
    Laurenti R, Di Nubila HBV, Quadros AAJ, Conde MTRP, Oliveira ASB. A Classificação Internacional de Doenças, a Família de Classificações Internacionais, a CID-11 e a Síndrome Pós-Poliomielite. Arq. Neuro-Psiquiatr. [Internet]. 2013;71(9A):3-10.
  • 5
    [WHO] World Health Organization. International Classification of functioning, disability and health. ICF: World Health Organization; 2001.
  • 6
    Battistella LR, De Brito CMM. Classificação internacional de funcionalidade (CIF). Acta Fisiátr. 2002;9(2):98-101.
  • 7
    Bispo Júnior JP. Fisioterapia e saúde coletiva: desafios e novas responsabilidades profissionais. Ciênc. saúde coletiva [Internet]. 2010;15(Suppl 1):1627-1636.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Out 2018
  • Data do Fascículo
    2018
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