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O "Outubro" de Marx

Marx's "October"

Resumos

Este artigo discute um momento decisivo da crítica da economia política desenvolvida por Marx. Trata-se da escolha, algo abrupta, do conceito de mercadoria, como ponto de partida do livro Contribuição à Crítica da Economia Política, de 1859. Sabe-se que até poucos meses de entregar seu texto para o editor Marx pensava iniciar seu livro com um capítulo sobre o valor, à semelhança do que fizera Ricardo em seus Princípios. As implicações teóricas e metodológicas desta escolha são hoje bastante conhecidas. Este texto busca situar as circunstâncias e significados do conceito de mercadoria na obra de Marx.

marxismo; o conceito de mercadoria; crítica da economia política


This article examines a decisive moment in the critique of political economy developed by Marx, which is the somewhat abrupt choice of the concept of merchandise as a starting point for the book Contribution to a Critique of Political Economy, of 1859. It is known that up until a few months before he delivered his text to the publisher, Marx thought about beginning his book with a chapter on value, similar to what Ricardo had done in his Principles. The theoretical and methodological implications of this choice are well known today. This text seeks to situate the circumstances and meanings of the concept of merchandise in Marx's work.

Marxism; concept of merchandise; critique of political economy


ESTANTE DE ECONOMIA POLÍTICA

O "Outubro" de Marx

Marx's "October"

João Antonio de Paula

Professor do CEDEPLAR/FACE/UFMG

RESUMO

Este artigo discute um momento decisivo da crítica da economia política desenvolvida por Marx. Trata-se da escolha, algo abrupta, do conceito de mercadoria, como ponto de partida do livro Contribuição à Crítica da Economia Política, de 1859. Sabe-se que até poucos meses de entregar seu texto para o editor Marx pensava iniciar seu livro com um capítulo sobre o valor, à semelhança do que fizera Ricardo em seus Princípios. As implicações teóricas e metodológicas desta escolha são hoje bastante conhecidas. Este texto busca situar as circunstâncias e significados do conceito de mercadoria na obra de Marx.

Palavras-chave: marxismo, o conceito de mercadoria, crítica da economia política.

Classificação JEL B40

ABSTRACT

This article examines a decisive moment in the critique of political economy developed by Marx, which is the somewhat abrupt choice of the concept of merchandise as a starting point for the book Contribution to a Critique of Political Economy, of 1859. It is known that up until a few months before he delivered his text to the publisher, Marx thought about beginning his book with a chapter on value, similar to what Ricardo had done in his Principles. The theoretical and methodological implications of this choice are well known today. This text seeks to situate the circumstances and meanings of the concept of merchandise in Marx's work.

Key words: Marxism, concept of merchandise, critique of political economy.

JEL Classification B40

Até quase às vésperas da publicação do livro Contribuição à crítica da economia política, em 1859, que é a primeira manifestação sistemática da crítica da economia política, Marx ainda planejava iniciar sua obra com um capítulo sobre o "Valor", como Ricardo o fizera em seu "Principles".

Esse fato está longe de ser irrisório sobretudo, se se levar em conta que, em 1858, Marx já se acreditava habilitado para apresentar sua "crítica da economia política", isto é, uma obra que efetivamente "superaria" a longa e gloriosa trajetória daquela disciplina. Trata-se, nesse sentido, de surpreender o momento da história da construção da obra de Marx em que ele "descobriu" a chave da abóbada, a peça que possibilitava o travamento e a solidez da monumental estrutura.

Muitos estudiosos da obra de Marx destacaram a importância do capítulo inicial de O capital, o capítulo sobre a mercadoria, para a efetiva materialização da "exposição" dialética da "crítica da economia política". Há, nesse capítulo, a apresentação da "totalidade" das manifestações da realidade capitalista tal como essa pode "aparecer" num primeiro movimento de totalização conceitual, cujo âmbito abarca a mercadoria tomada em sua imediaticidade fenomênica, como produto do trabalho humano concreto, como objeto dotado de utilidade, que, apesar de sua irredutível especificidade como valor de uso, ainda assim é trocado, isto é, igualado a outros valores de uso, pela superveniência da dimensão trabalho abstrato contida em todo trabalho social.

De fato, tanto a primeira seção do Livro I de O capital, seus três primeiros capítulos, quanto o primeiro capítulo, quanto a primeira oração do capítulo inicial, perfazem, cada um no seu nível de abstração, tanto mais alto quanto mais inicial a abordagem, o conjunto do movimento do capital como "totalidade simples", que se põe, inicialmente, como mercadoria, no processo de circulação, que vai dar origem ao dinheiro, o qual é a manifestação mais genérica da riqueza capitalista, a forma mais "universal" que o capital pode assumir no âmbito da troca de mercadorias.

Com efeito, todas as manifestações da "forma" mercadoria estão postas desde ocapítuloinicial de O capital. A mercadoria apresenta-se, sucessivamente, como forma simples, fortuita, e singular do valor; como forma extensiva do valor; como forma geral do valor; como forma dinheiro; e como forma preço do valor, prefigurando, por meio dessas metamorfoses conceituais, o movimento real da mercadoria no âmbito da circulação das mercadorias, isto é, antes que se ponham, em todas as suas mediações, as manifestações concretas da mercadoria que vai se tornar capital.

É vertiginoso o ritmo e a amplitude conceitual da primeira oração de O capital: nas cinco linhas, 36 palavras, a súmula, rigorosa de uma longa exposição, que vai se desdobrar em três livros, em 2.580 páginas: a "odisséia da mercadoria", o inventário de suas formas e metamorfoses até sua plena realização como capital e seus disruptivos desdobramentos.

Como no início da Odisséia, de Homero, em poucas linhas, a extraordinária aventura do herói e de seus companheiros:

As aventuras do herói engenhoso, que, após saquear a sagrada fortaleza de Tróia, errou por tantíssimos lugares vendo as cidades e conhecendo o pensamento de tantos povos e, no mar, sofreu tantas angústias no coração, tentando preservar a vida e o repatriamento de seus companheiros [...]

(Homero, 1997, p. 9).

Para lembrar Moses Finley, é preciso ver o mundo do Odisseu como, de alguma forma, o nosso mundo, mundo em que se substituíram os fados e as suscetibilidades de deuses caprichosos, pelos também implacáveis desígnios do capital, que se se impôs como deus profano e mesquinho.

É certo que essa propriedade de sintetizar num único gesto rápido e abrangente todo um mundo não é exclusividade da epopéia. É isso que também nos dão, por exemplo, Kafka e Tolstoi. Em Metamorfose, lê-se:

Quando Gregor Samsa despertou, certa manhã, de um sonho agitado, viu que se transformara, em sua cama, numa espécie monstruosa de inseto

(Kafka, 1969, p. 13).

E nessa frase insinua-se, mais que a estranheza, a terrível presença de um mundo capaz de transformar o homem em inseto. Em Ana Karênina, de Tolstoi, a primeira frase do romance é a síntese de uma moral desencantada: "Todos os gêneros de felicidade se assemelham, mas cada infortúnio tem o seu caráter particular".

Grandes livros, a epopéia homérica, a novela de Kafka, o romance de Tolstoi, são impensáveis sem as suas frases iniciais. É esse também o caso da primeira frase de O capital. E, no entanto, a "descoberta" do significado metodologicamente indispensável da mercadoria como ponto de partida do capital só se deu, de fato, quando Marx já havia "descoberto" todo o essencial de sua "crítica da economia política". Esse fato, ao lado de reafirmar as diferenças entre "o modo de investigação" e "o modo de apresentação" do conhecimento, do ponto de vista dialético, também sublinha a importância da reconstituição do processo de elaboração da "crítica da economia política".

Não é o caso aqui de falar-se em surgimento inesperado da categoria "mercadoria" na obra de Marx. Com efeito, o que é preciso reconhecer é o fato de que a "crítica da economia política" não se apresentou completa e acabada de uma vez por todas, senão que se processou por etapas marcadas pela operação de "superação" das categorias da Economia Política: da rejeição à aceitação da teoria do valor-trabalho; a criação do conceito de "força-de-trabalho" e a sua distinção do conceito de "trabalho"; a criação do conceito de mais-valia; a criação do conceito de modo de produção; a "superação" da teoria do valor-trabalho pela criação da teoria da forma do valor e do fetichismo da mercadoria (Mandel, 1968; Rubel, 1970; Rowthorn, 1972; Rubin, 1974; Coutinho, 1997; Rosdolsky, 2001).

Ainda que dando respostas diferentes à problemática do valor, ainda que movido por perspectiva radicalmente distinta da de Ricardo, do ponto de vista político e ideológico, o projeto teórico de Marx, mesmo depois do crucial ajuste de contas com o conjunto da "Economia Política" representado pelos "Grundrisse", redigidos entre 1857 e 1858, ainda continuava referenciado ao que os grandes clássicos, Adam Smith e David Ricardo em destaque, haviam consignado. Se a ruptura com o universo conceitual da "Economia Política" já se processara, se Marx já podia denominar suaobrade"críticadaeconomiapolítica", num sentido dialeticamente rigoroso, essa "crítica" ainda não superara, inteiramente, as marcas da "forma" como a Economia Política clássica apresentara o conteúdo dessa disciplina.

Para lembrar uma diferenciação básica, para o discurso dialético, trata-se de surpreender em Marx, até 1858, a incompletude do projeto da "exposição" (Darstellung) da "crítica da economia política", em descompasso com a realização da "crítica da economia política" do ponto de vista de seu conteúdo, do desvelamento de sua estrutura, dinâmica e contradições, que, desde os Grundrisse, já é possível tomar como, no essencial, realizada. Isto é, os Grundrisse são o termo do esforço de apropriação crítica do conteúdo da "Economia Política", iniciado por Marx em Paris, em 1844. O material dos Grundrisse, publicado como livro em 1939, dá conta da "superação" (aufhebung) da trama conceitual característica da "Economia Política", mediante uma operação em que, num mesmo movimento crítico, há conservação do núcleo racional de certas categorias, posto que dotadas de universalidade; há abandono de outras categorias, porque irremediavelmente aistóricas e comprometidas com a ordem burguesa; há o melhoramento de algumas outras categorias, aperfeiçoadas em capacidade heurística; e, finalmente, há a invenção de categorias e questões novas pelo influxo da pesquisa orientada pela dialética, tal como Marx a transfigurou.

Neste texto, surpreende-se o momento em que se dá a complementação da "crítica da economia política" representado pela adoção de um "método de exposição" que respeitou as exigências do discurso dialético, isto é, que é

a explicitação racional imanente do próprio objeto e a exigência de só nela incluir aquilo que foi adequadamente compreendido

(Mümller, 1982, p. 17).

Esse momento-chave e roteiro da "exposição" da "crítica da economia política" está sintetizado na escolha da categoria "mercadoria" como "ponto de partida", necessário e rigoroso, tanto da Contribuição à crítica da Economia Política, de 1859, quanto de O capital, em 1867.

Chamou-se a esse momento, ao momento-chave da escolha da "mercadoria" como ponto de partida da exposição da crítica da economia política, o "Outubro" de Marx, numa metáfora que remete ao também decisivamente disruptivo representado pelo "outubro vermelho" da Revolução Russa. Para insistir na metáfora, diga-se que a escolha da "mercadoria" como ponto de partida da exposição da crítica da economia política significa afirmar que a superação do capitalismo e suas mazelas passa pela superação da "mercadoria" e das suas condições de produção e reprodução, isto é, pela superação do capital e de todas as implicações de seu domínio sobre a vida econômica, política, social e cultural.

1_ A mercadoria e a Odisséia

Foi o filósofo tcheco Karel Kosik quem nos deu a bela imagem da "mercadoria" como "ersatz" do Odisseu da epopéia homérica. Diz Kosik que tanto Marx quanto Hegel, antes dele, foram tributários de uma época cultural que tomou a "odisséia" como motivo simbólico, que influenciou a filosofia, a literatura e a ciência. Diz Kosik:

Este motivo próprio da época da obra literária, filosófica e científica é a 'odisséia'. O sujeito (o indivíduo, a consciência individual, o espírito, a coletividade) deve

andar em peregrinação

pelo mundo e conhecer o mundo para conhecer a si mesmo. O conhecimento do sujeito só é possível na base da atividade do próprio sujeito sobre o mundo; o sujeito só conhece o mundo na proporção em que nele intervém ativamente, e só conhece a si mesmo mediante uma ativa transformação do mundo

(Kosik, 1976, p. 165).

Essa metáfora que aproxima a "mercadoria" do Odisseu homérico tem um significativo rendimento conceitual. Tanto quanto o herói da Guerra de Tróia, a "mercadoria" perambula pelo mundo e nessa peregrinação transforma, pela experiência, e enriquece o mundo que toca, resultando daí, que, ao final da jornada, tanto o herói quanto o mundo estejam alterados, irreconhecíveis quando comparados com o que eram no início da jornada. E, no entanto, deformados, metamorfoseados, eles, a mercadoria e o Odisseu, são os mesmos que iniciaram o périplo, apesar de agora apresentarem-se transformados, seja como o forasteiro maltrapilho que chega a Itaca, mas que ainda é Ulisses, seja como O capital, que não é, apesar de seu fastígio, senão "coleção de mercadorias".

Lembre-se, mais um pouco, da Odisséia. Ela registra os dez anos posteriores ao fim da Guerra de Tróia, que também durara dez anos, em que o herói, Ulisses, vaga pelo mundo como condenação por sua ofensa ao deus Posseídon. Diz Finley:

Havendo ofendido ao deus Posseídon, teve que vagar por outros dez anos antes de ser resgatado, em grande parte por intervenção de Palas Atena, e de poder voltar à Itaca. Foi esta segunda década que deixou seu povo perplexo. Ninguém em toda Hélade sabia o que havia acontecido ao Odisseu, se havia morrido em sua viagem de regresso de Tróia, se estava vivo em algum lugar do mundo exterior. Esta incerteza estabeleceu a base do segundo tema do poema, a história dos pretendentes

(Finley, 1961, p. 56).

Há outra implicação conceitual importante decorrente da utilização da metáfora da Odisséia para apreender a "exposição" da crítica da economia política. Ulisses incógnito e irreconhecível em sua própria casa, depois dos longos anos de ausência, envelhecido e enriquecido de experiências, só é, afinal, reconhecido por uma cicatriz. Erich Auerbach relata assim a passagem:

Os leitores da

Odisséia

lembram da bem preparada e emocionante cena do canto XIX, na qual a velha ama Euricléia reconhece Ulisses, que regressa à sua casa, e de quem tinha sido nutriz, por uma cicatriz na coxa. O forasteiro tinha-se granjeado a benevolência de Penélope; segundo o seu desejo, ela ordena à governanta que lhe lave os pés, segundo é usual nas velhas estórias, como primeiro dever de hospitalidade para com o viandante fatigado.

[...] Logo que a anciã apalpa a cicatriz, ela deixa cair o pé na bacia, com alegre sobressalto; a água transborda, ela quer prorromper em júbilo; com silenciosas palavras de lisonja e ameaça Ulisses a contém; ela cobra ânimo e oprime o movimento. Penélope, cuja atenção tinha sido desviada do acontecimento, aliás, pela previdência de Atenéia, nada percebeu (Auerbach, 1971, p. 1).

O que se quer apontar aqui é que o reconhecimento de Ulisses, o que permite que ele seja reconhecido, ou seja, sua identidade, sua íntima e indescartável natureza, não está em sua aparência, em seu aspecto fenomênico imediato. De fato, a essência do herói, sua verdadeira essência, só é possível ser vislumbrada pelo que nele é defeito, deformação: a cicatriz que o singulariza.

Na exposição da crítica da economia política, é preciso reconhecer o mesmo movimento. O "Capital", termo da odisséia da categoria mercadoria, apresenta-se, à primeira vista, como tendo muitas outras dimensões que a de simples mercadoria prosaica e banal. E, no entanto, o capital, poderoso senhor do mundo burguês, não é mais que mercadoria, mercadoria que se multiplicou, que foi acumulado. O capital, como Ulisses, só revela sua natureza essencial, sua identidade efetiva, pela irrupção de uma modalidade específica de precariedade. No caso do capital, essa deformidade decorre de sua insopitável busca da acumulação, de sua incontornável avidez compulsória pelo lucro, de que resultam a superprodução de mercadorias, a superacumulação, a crise, a qual é, assim, o equivalente funcional da "cicatriz de Ulisses", a presentificação de sua inescapável condição de "coisa", que por algum tempo é capaz de transcender sua inerte condição e como que adquirir vida, multiplicar-se como valor e como riqueza, por absorver trabalho, por ser trabalho humano coagulado, sob a forma de mercadoria, mas, que, no entanto, não pode assegurar para sempre seu conteúdo valor, seja porque a concorrência entre os capitais força uma permanente desvalorização das mercadorias, seja porque essa mesma insofreável concorrência leva à superprodução de valores de uso, que, assim acrescidos, não podem ser sancionados pela base real de valorização, que é dada pela dimensão valor de troca, ou valor propriamente dito.

Foi também Karel Kosik quem mostrou as consonâncias entre o tema da "odisséia" referido tanto ao "romance de formação", seja em sua vertente francesa, como Emílio, de Rousseau, seja em suas manifestações alemãs, com Goethe e Novalis, quanto às obras no campo filosófico e científico como a Fenomenologia do Espírito, de Hegel, e O Capital, de Marx (Kosik, 1976, 166).

Kosik diz que terá sido Josiah Royce, em texto de 1919 - "Lectures on Modern Idealism"- o primeiro a apontar a conexão entre a Fenomenologia do Espírito de Hegel e o "Bildungsroman alemão" (Kosik, 1976, p. 166). Antes disso, no início do século XIX, Pushkin, o grande poeta russo, diz Georg Lukács, já estabelecera a relação entre a literatura de Goethe e a literatura da antiguidade clássica. Pushkin disse ser "o Fausto a Ilíada da vida moderna", no sentido em que, diz Lukács:

Transcende os marcos do 'pequeno mundo' da tragédia de Margarida e chega ao 'grande mundo' de domínio da vida pelo homem moderno

(Lukács, [s. d.], p. 69-70).

Mesmo Novalis (Georg Friedrich von Hardenberg), um dos grandes nomes inauguradores do romantismo alemão, que reprovava seus compatriotas do período iluminista por seus excessos cerebrinos, reconhece em alguns deles uma característica decisiva:

Poucos artistas existentes entre nós, tão únicos, tão extraordinários, que, com segurança, podemos contar que entre nós são criadas as obras artísticas mais brilhantes, pois enquanto enérgica universalidade nenhuma nação pode competir conosco

(Novalis, 1984, p. 129).

É esta "enérgica universalidade" o que anima tanto a obra de Goethe quanto a de Novalis quanto a de Hegel, para tomar três grandes autores que, tendo sido contemporâneos (Goethe - 1749-1832; Hegel - 1770-1831; Novalis - 1772-1801), realizaram obras em muito diversas do ponto de vista de suas motivações e conteúdos, ainda que igualmente exemplares em buscar fazer da vida intelectual um testemunho do desejo de melhoramento da humanidade.

Não será equívoco ver a mais exemplar manifestação daquela "enérgica universalidade", no campo da literatura, na trilogia de Wilhelm Meister, de Goethe. O primeiro livro A missão teatral de Wilhelm Meister, também conhecido como Ur-Meister, foi escrito entre 1777 e 1785, e só publicado em 1911; o segundo, Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister, foi publicado entre 1795 e 1796; o terceiro, Os anos de peregrinação de Wilhelm Meister, foi publicado entre 1827 e 1829. Nos três livros, em particular no segundo, que é o, formalmente, mais bem acabado, estão interligadas todas as grandes questões de sua época. Para dizer com Márcio Suzuki:

O romance não é, na verdade, a narrativa da vida de uma única personagem, mas de uma 'individualidade plural', e nisso reside a genialidade de

Wilhelm Meister:

[...] A individualidade construída pelo romancista não é uma pálida imagem do criador, mas a coesão orgânica interna de um caráter plural: [...]

(Suzuki, 1998, p. 114).

Esse caráter plural do personagem, que, sendo uno, é capaz de abrigar o múltiplo, faz da "forma romance" a epopéia possível de um tempo marcado pela alienação absoluta, a alienação imposta pela divisão do trabalho e pela truncada sociabilidade capitalista.

Friedrich Schelegel (1772-1829), outro grande nome do romantismo alemão, filósofo, crítico e romancista, também destacou, no Wilhelm Meister, de Goethe, a capacidade do escritor de construir uma individualidade, que se fraciona, que se divide em várias pessoas, e assim capacita-se a representar o mundo em sua multiplicidade (Schlegel, 1994, p. 144). Ou como disse Márcio Suzuki:

O romance é por isso a forma mais adequada para a

Darstellung

da dupla série da reflexão: o indivíduo pelejando concretamente na vida, espelhando em si um mundo inteiro se une ao narrador onisciente e distante num todo orgânico

(Suzuki, 1998, p. 115).

O ciclo de Wilhelm Meister marcou uma geração, ensejou "réplicas" como a de Novalis e seu Heinrich von Ofterdingen, "romance de formação", que restou incompleto, foi publicado postumamente, em 1802. Motivou tradução filosófica, que levou ainda mais longe aquela enérgica universalidade, que é a Fenomenologia do Espírito, de Hegel, publicada em 1807, e que é "o romance de formação" da consciência: "A viagem da consciência natural que atinge à verdadeira ciência" ou a "viagem da alma que atravessa a série das suas formas como uma série de etapas", a fim de que, "com plena experiência de si mesma", possa alcançar o "conhecimento daquilo que ela é por si mesma" [...] (Hegel, apud Kosik, 1976, p. 166).

Sabe-se que o Heinrich von Ofterdingen, de Novalis, é a resposta do romantismo ao "romance de formação" classicista de Goethe, que teria desvalorizado a poesia, ao privilegiar, quase que exclusivamente, os grandes problemas políticos e sociais da época. O herói de Novalis, um trovador do século XIII, que vivia na corte de Frederico II, é também um odisseu, um homem que viaja, vive, experimenta. Mas, ao contrário da Wilhelm Meister, cuja peregrinação e aprendizagem têm um sentido público e civil, trata-se da busca do aperfeiçoamento teatral com o propósito de educação nacional e universal, o herói de Novalis persegue o inefável, a mística "flor azul", essência do poético, manifestação de um ideal irredutível à razão luminosa e diurna de Goethe.

É como parte dessa mesma matriz, que gerou Wilhelm Meister, de Goethe, que nasceu a Fenomenologia do Espírito, de Hegel. Essa matriz, esse solo ideológico, político e cultural é o mesmo que nutriu a Revolução Francesa e sua profunda influência sobre o pensamento alemão. Diz Lukács:

O velho Hegel, o mesmo cujas palavras sobre a vitória inevitável da prosa capitalista acabamos de escutar, diz o seguinte sobre o período da Revolução Francesa: 'Trata-se de uma magnífica aurora. Todos os seres cogitantes celebraram esta época. Naquele tempo reinava uma sublime emoção, um entusiasmo do espírito estremeceu o mundo como se houvesse chegado o momento da verdadeira reconciliação entre o divino e o mundo'

(Lukács, 1972, p. 61).

A Revolução Francesa permitiu que se vislumbrasse um mundo redimível. É essa a motivação, a força imantadora que fez luzir a razão, que, ousando se pôr no mundo e a tudo revelar, abriu caminho para a postulação da plena emancipação humana. Nesse sentido, vejam-se tanto os "romances de formação", como a Fenomenologia do Espírito, de Hegel, como os sinais da abertura de uma nova jornada da humanidade, auspiciosa porque liberta das amarras do Antigo Regime. A Fenomenologia, nova odisséia, faz da consciência o herói peregrinador, que, experimentando o mundo, o revela, transforma-o, transformando-se também nessa mesma interação. Diz Lukács:

Na

Fenomenologia,

Hegel expõe o processo através do qual a consciência do homem surge da interação entre suas aptidões internas e o mundo ambiente, o qual foi em parte gerado por sua própria atividade, em parte dado por natureza; além disso, expõe como a consciência - após inter-relações análogas mas do tipo mais elevado - se desenvolve até chegar à autoconsciência; e mostra também como, desse desenvolvimento do homem, deriva o espírito enquanto princípio determinante do caráter essencial do gênero humano

(Lukács, 1979, p. 31).

Reconhecer "afinidades eletivas" entre A Odisséia, os "romances de formação" e a Fenomenologia do Espírito não parece oferecer dificuldades maiores. Mais desafiante é incluir nessa série, como faz Karel Kosik, olivro O capital como compartilhando o mesmo universo espiritual daquelas outras obras, todas elas "odisséias singulares". Na epopéia homérica, o herói em sua "volta" para casa perlabora um caminho, que é como uma enciclopédia da antiguidade clássica, um inventário daquela "bela totalidade" em que o sujeito e o mundo pareciam condenados à perfeita fusão. Nos "romances de formação", o sujeito, herói prosaico em sua presentificação burguesa, educa-se para criar e recriar o mundo. O Emílio, de Rousseau, o Wilhelm Meister, são a postulação da possibilidade de um mundo efetivamente humanizado. A Fenomenologia do Espírito é a epopéia da "enérgica universalidade" posta como sujeito -

como processo de 'formação' (cultura ou

Bildung

) do sujeito para a ciência. E entende-se que a descrição desse processo deva referir-se necessariamente às exigências significativas daquela cultura que, segundo Hegel, fez da ciência ou da filosofia a forma

rectrix

ou a

enteléquia

da sua história: a cultura do Ocidente

(Vaz, 1992, p. 11).

Kosik nos convida a pensar O capital como uma odisséia:

A odisséia da

praxis

histórica concreta, a qual passa de seu elementar

produto

de trabalho através de uma série de formas reais, nas quais a atividade prático-espiritual dos homens é objetivada e fixada na produção, e termina a sua peregrinação não com o conhecimento daquilo que ela é por si mesma, mas com o a ação prático

-revolucionária

que se

fundamenta

neste conhecimento

(Kosik, 1976, p. 166).

Nessa nova epopéia é, sobretudo, surpreendente a escolha do sujeito, do herói encarregado de desvelar o mundo. Num mundo, o do pleno domínio do capital, em que tudo foi coisificado, em que as coisas parecem personalizadas e as pessoas coisificadas, neste mundo de "perfeita venalidade e de total manipulabilidade", como o caracterizou Kosik, a forma possível de reprodução categorial deste mundo é a que convoca um sujeito impessoal, a mercadoria, e que acompanha e descreve todo o itinerário de sua presentificação no mundo:

A mercadoria, que a princípio se manifesta como objeto exterior ou como coisa banal, desempenha na economia capitalista a função de sujeito mistificado e mistificador, cujo movimento real cria o sistema capitalista. Quer o sujeito real deste movimento seja o valor ou a mercadoria, o fato é que os três volumes teóricos da obra de Marx acompanham a 'odisséia' deste sujeito, ou seja, descrevem a estrutura do mundo (economia) capitalista tal como o seu movimento real a cria

(Kosik, 1976, p. 164-165).

Essa questão, a possibilidade de afirmar a legitimidade heurística da mercadoria como ponto de partida de O capital remete, então, a uma exigência de ordem lógica-conceitual forte, é isso que se vai fazer em seguida.

2_ A questão do ponto de partida da ciência

Esta questão, a do ponto de partida legítimo, isto é, não arbitrário ou tautológico, da ciência, da filosofia, foi a que Hegel se propôs resolver para afirmar a superioridade de seu "sistema filosófico" em relação aos que o precederam, em particular com relação ao criticismo kantiano, que reivindicava ter encerrado, definitivamente, a longa vigência da metafísica.

A resposta de Hegel é escandalosamente simples e potente. Com efeito, Hegel dirá que a solução de Kant para cancelar a metafísica ao negar a possibilidade de conhecimento da "coisa-em-si" baseava-se em operação que acabava por pressupor algo que explodiria, de imediato, a fortaleza lógica que Kant imaginara ter construído.

Kant construiu seu "sistema" como crítica, seja da tradição metafísica, seja do racionalismo cartesiano, seja do empiricismo humano. É bastante forte a influência de Hume sobre o pensamento de Kant. Menos óbvia, mas não menos importante, é a presença de Rousseau entre as fontes formadoras do criticismo kantiano. Contudo, é em Rousseau que Kant vai buscar o tempero que o capacitará a ir além da "pura reflexão", da investigação que se comprazia com a pura especulação. Diz Kant citado por Cassirer:

Eu mesmo sou, por inclinação, um pesquisador. Sinto uma grande sede de conhecimento e a afanosa inquietude de seguir adiante, e qualquer progresso produz em mim uma grande satisfação.

Houve um tempo em que acreditava que tudo isto podia constituir a honra da humanidade

e em que se desprezava a plebe ignorante.

Porém Rousseau livrou-me do meu erro.

Aquela quimérica superioridade desapareceu; eu aprendi a honrar o homem e considerar-me-ia muito abaixo de qualquer operário se não acreditasse que os esforços do pensamento podem dar um valor aos demais e contribuir para restaurar os direitos da humanidade.

A missão da filosofia já não consiste, agora, em enriquecer ao homem com um tesouro enganoso de saber especulativo, senão em circunscrever-lhe a órbita de seu destino moral e necessário (Kant apud Cassirer e Cassirer, 1956, p. 558 e 559, v. 2).

O projeto "crítico" de Kant desdobrou-se na tríade: "crítica da Razão Pura", "crítica da Razão Prática" e "crítica do Juízo", que configuram respectivamente: uma epistemologia, uma ética e uma estética.

Para Kant, tratava-se na "crítica da Razão Pura" de buscar estabelecer as condições de possibilidade do conhecimento a partir da depuração de todos os pressupostos que não fossem perfeitamente legítimos, no sentido de que imunes tanto ao solipsismo cartesiano quanto aos impasses lógicos do empiricismo de Hume. Levadas às últimas conseqüências as exigências humeanas, que pretendem livrar o pensamento de todo o engano das falsas pressuposições, acaba por estabelecer a "crença"como único e efetivo fundamento da filosofia.

Kant buscou fundar sua crítica com base em pressupostos perfeitamente legítimos, irretorquíveis e incontrastáveis, que ele chamou de juízos sintéticos a priori, que "não são conceitos empíricos, derivados de experiências externas", senão que intuições que antecedem, no sujeito, a qualquer representação. Diz Hegel citando Kant: "Pois, para relacionar minhas sensações com algo exterior a mim, pressuponho o espaço". Em termos parecidos fala Kant do tempo:

Para poder representar algo externo em distintos lugares ou tempos, é necessário que preceda à representação do espaço e do tempo; dito de outro modo, esta representação não pode tomar-se da experiência, senão que a experiência só é possível por meio desta representação pré-estabelecida.

Isto é,

o tempo e o espaço que poderiam aparecer como o objetivo, posto que o modo particular de realizá-lo corresponde já de pronto ao sentimento subjetivo, não são nada empíricos, senão que a consciência tem já, nela mesma, o espaço e o tempo (Kant apud Hegel e Hegel, 1977, p. 425-426, v. 3).

Estabelecidos os pontos de partida necessários e irretorquíveis, o espaço e o tempo, Kant julgou ter cancelado todas as escórias da velha metafísica, convocando como suporte de sua filosofia crítica a magnífica ciência newtoniana, única a autorizar, legitimamente, a operação com as categorias tempo e espaço.

Foi exatamente nesse ponto que Kant reputavaabasedeseu sistema, aconvocação da ciência newtoniana, que Hegel viu falha comprometedora. Disse Hegel: "Kant quer afastar a metafísica, para isto mobilizou a ciência, a matemática, a física". Ora, tanto a matemática, quanto a física, quanto qualquer ciência, é certo, pressupõem alguma filosofia, alguma concepção de mundo, mesmo quando essa não é explicitada, sugerida, mesmo quando não se tem consciência de sua incancelável presença, mesmo quando se a rejeita. De tal modo, que a operação crítica kantiana que buscou interditar a metafísica, pela convocação da ciência, ao fazê-lo acabou por reintroduzir a metafísica em condição ainda mais problemática porque de modo clandestino e inconsciente.

A solução desse impasse, o modo necessário legítimo e não arbitrário de exposição da ciência, diz Hegel, é tomar como ponto de partida a totalidade, o todo tal como aparecer num primeiro momento, como abstração, como pura universalidade, como totalidade simples, a qual mediante um complexo de mediações, mediante a peregrinação do conceito, mediante o ingente trabalho do conceito, desdobrar-se-á em particularidade e, finalmente, em singularidade, no concreto universal. Eis o caminho da consciência, o caminho do conceito, o caminho da filosofia:

A consciência, ao abrir caminho rumo à sua verdadeira existência, vai atingir um ponto onde se despojará de sua aparência: a de estar presa a algo estranho, que é só para ela, e que é como um outro. Aqui a aparência se torna igual à essência, de modo que sua exposição coincide exatamente com esse ponto da ciência autêntica do espírito. E, finalmente, ao apreender sua verdadeira essência, a consciência mesmo designará a natureza do próprio saber absoluto

(Hegel, 1992, p. 73).

Na Ciência da Lógica, Hegel estabelece as condições para o começo da ciência. Diz ele:

Dito conceito, por si mesmo, é tão simples, que este começo, como tal, não precisa nenhuma preparação, nem introdução mais ampla. [...]

(Hegel, 1968, p. 72).

E, no entanto, esse conceito, esse ponto de partida, simples, singelo, deve ser capaz de conter todas as determinações essenciais do ser, tal como essas determinações podem aparecer no momento em que o ser é pura consciência imediata em-si, que ainda não saiu de si para se apresentar como consciência-fora-de-si, e que ainda espera a realização da odisséia do conceito, que é quando a consciência-fora-de-si reconhece-se como momento alienado da consciência, que para realizar-se tem que sair de si mesma, pôr-se no mundo, como natureza e história, para nessa condição e mediante a explicitação de suas intrínsecas possibilidades desalienar-se, descobrir-se capaz de reintegrar-se, reintegração queéarealização do saber absoluto.

Muitos autores consignaram, e o próprio Marx o registrou em carta, o quanto lhe fora útil a retomada da Lógica de Hegel no processo de redação de O capital. Mais que um detalhe, essa questão, a importância da forma dialética de exposição de O capital, é crucial, definindo, de fato, tanto a diferença específica do projeto marxiano com relação às outras teorias, quanto o alcance e desdobramentos de seu pensamento.

Neste texto, argumenta-se que a escolha da mercadoria como ponto de partida de O capital é o momento-chave, efetivamente, consolidador do específico da exposição dialética da crítica da economia política. Kosik aponta com clareza as condições que a mercadoria tem que satisfazer para ser o ponto de partida necessário da "odisséia", que é O capital. Diz Kosik:

A mercadoria pôde servir de ponto de partida da exposição científica porque já se conhecia o capitalismo no seu conjunto. Do ponto de vista metodológico isto significa o descobrimento de uma conexão dialética entre um elemento e a totalidade, entre um embrião não desenvolvido e o sistema desenvolvido e o sistema desenvolvido e um funcionamento

(Kosik, 1976, p. 164).

O capital tem sido visto como reposição do tema da "odisséia", como "ersatz" de um "romance de formação". Cessam aqui as analogias. Ao fim e ao cabo, enquanto na "odisséia" e nos "romances de formação" o tema da jornada é o apaziguamento do herói, sua reconciliação consigo mesmo em O capital, não há possibilidade de solução que não seja a destruição não só do "herói problemático", a mercadoria, e de todas as formas de sua presentificação (valor, dinheiro, capital), bem como das instituições que o engendram e lhe dão suporte: o Estado burguês, a propriedade privada, as classes sociais, a divisão do trabalho e o trabalho alienado.

À "descoberta-eleição", por Marx, da mercadoria como ponto de partida da exposição da crítica da economia política vai chamar-se, aqui, "Outubro" de Marx.

3_ O "Outubro" de Marx

Em 1850, já morando em Londres, Marx retomou seus estudos de economia política. Em 1851, teve início a colaboração sistemática de Marx e Engels para jornais dos Estados Unidos, em particular, o New York Daily Tribune, e o Die Revolution, editado em alemão, em Nova York, por Joseph Widemeyer, onde Marx publicou, por exemplo, O 18 Brumário de Luis Bonaparte. Obrigado, a partir de 1851, por dever de ofício, a acompanhar os acontecimentos econômicos e políticos, além de suas responsabilidades e tarefas como dirigente político, Marx fez dessas exigências a matéria-prima de uma tarefa intelectual enciclopédica, cujo resultado é a crítica da economia política, entendida como movimento de superação da ordem social capitalista em sua totalidade.

Como jornalista, responsável por cobrir aspectos da vida política e econômica nãosódaEuropa, Marx foiobrigadoa uma rotina de trabalho, de coleta e análise de dados, que o mantiveram atualizado sobre as principais questões do seu tempo. Suas constantes visitas ao Museu Britânico e à sua notável biblioteca armaram-no para a tarefa ciclópica de realizar uma segunda "crítica da economia política", que ele iniciara em 1847, com Miséria da Filosofia, Trabalho assalariado e capital, e que depois de exaustivos estudos ele se apressou em concluir, "antes do dilúvio", que é como ele antevia que seria a "crise econômica iniciada em 1857". Diz Rosdolsky:

É relevante lembrar que a decisão de redigir os

Grundrisse

e a pressa febril com que a tarefa foi cumprida (o enorme manuscrito foi concluído em nove meses, entre julho de 1857 e março de 1858) decorreram especialmente do advento da crise econômica de 1857. Tal crise encheu de esperanças o 'partido dos dois homens na Inglaterra', como Gustav Mayer, biógrafo de Engels, denominara os dois amigos. Era natural que 'antes do dilúvio' - ou seja, antes do começo da esperada revolução européia - Marx quisesse colocar no papel pelo menos os traços fundamentais de sua teoria

(Rosdolsky, 2001, p. 25).

O resultado desse trabalho é o livro Grundrisse der Kritik des Politischen Oekonomie (Fundamentos da Crítica da Economia Política), cuja primeira edição teve início em 1939.

A importância dos Grundrisse para uma justa compreensão do significado da "crítica da economia política" de Marx foi estabelecida por Rosdolsky, que afirmou a existência de dois momentos na construção da "crítica da economia política", uma primeira fase, de 1844 e 1846, e a segunda fase, representada pelas obras de 1847/49 (Miséria da Filosofia; Trabalho assalariado e capital e Manifesto comunista), em que:

Já (se) revela toda a estatura de Marx, um investigador independente, original em economia, consciente ao mesmo tempo de sua proximidade e de sua profunda oposição à economia clássica. Em alguns temas ele ainda não superara as concepções de Ricardo, que mais tarde reconheceria como errôneas ou parciais, como por exemplo a teoria do dinheiro ou a da renda da terra. Tampouco tinha elaborado, nessa época, sua teoria específica sobre o lucro. Mesmo assim, 'em torno de 1848 estavam traçadas as linhas fundamentais da teoria da mais valia, pedra angular de sua doutrina econômica. Restava a tarefa de desenvolver a teoria em detalhes, processo que podemos acompanhar nos

Grundrisse' (Rosdolsky, 2001, p. 21-22).

Para Rosdolsky, desde maio ou junho de 1851, Marx já se sentia autorizado a redigir sua "crítica da economia política" (Rosdolsky, 2001, p. 22), tarefa a que ele se dedicou, a partir daí, mas cujos resultados se perderam, restando, afinal, apenas o texto dos Grundrisse que foi redigido a partir de julho de 1857.

As obras de economia política de Marx, elaboradas entre 1847/49, foram caracterizadas por Maurício Coutinho como de "transição" e caracterizavam-se ainda, no fundamental, pela ausência da noção de capital, que viria a desempenhar o papel central na pluramente constituída crítica marxiana (Coutinho, 1997 p. 41). Tem razão Maurício Coutinho tanto em enfatizar a centralidade da categoria capital para a crítica da economia política quanto em apontar as diversas dimensões do conceito de capital: a) como gerado pelo trabalho e como antítese deste; b) como determinado historicamente; c) como "adiantamento" e como valor; d) como processo de produção de valor excedente mediante a exploração do trabalho; e) como sujeito (Coutinho, 1997, p. 47-53).

Será nos Grundrisse que essas diversas manifestações do capital, efetivamente, apresentar-se-ão plenas de significados permitindo o desenvolvimento conceitual de outras dimensões do capital que se é força expansiva, valor que se autovaloriza, é também força destrutiva, que, ao realizar-se, cria as condições para a sua desaparição, pela "dissolução do modo de produção e da forma de sociedade baseada no valor da troca". Nas palavras de Marcos Muller, na apresentação do livro de Jorge Grespan - O negativo do capital -,

o conceito de crise é inerente ao conceito de capital e deriva da sua estrutura contraditória, de modo que ele se constitui correlativamente à determinação progressiva e às formas de manifestação da contradição imanente do capital

(Müller, 1998, p. 14-15).

Em março de 1858, Marx encerrou a redação dos Grundrisse. Estão postos ali os "fundamentos" da "crítica da economia política", seus elementos principais. Mais que isso, os Grundrisse, que não foram redigidos para publicação imediata, permitem-se avançar temas que demandariam estudos e desdobramentos conceituais posteriores como os referentes aos "limites históricos da lei do valor":

Conforme o plano original de Marx, o último livro de sua obra deveria investigar os fatores que prenunciam a 'superação do que existe' e impulsionam o 'surgimento de uma nova forma histórica'. Deveria compor-se da transição ao socialismo...

(Rosdolsky, 2001, p. 345).

Os Grundrisse constituem a primeira exposição de conjunto da "crítica da economia política", a primeira em que Marx demonstrou ter se apropriado, dialeticamente, de todo o material produzido pela economia política clássica superando-a, sendo a marca distintiva dessa superação a centralidade e a reconceptualização, que Marx impõe ao conceito de capital. É certo que o conceito de capital já aparecera antes na obra de Marx, desde 1847, no Trabalho assalariado e capital, Marx já antevira o conceito de mais-valia. Diz Mandel:

É em

Trabalho Assalariado e Capital

que Marx pressentiu pela primeira vez o essencial de sua teoria da mais-valia, sem utilizar esse termo e sem exprimir-se de maneira precisa. O Capital... se conserva e aumenta por sua troca com o trabalho vivo... O operário recebe meios de subsistência em troca de seu trabalho, mas o capitalista, em troca de seus meios de subsistência, recebe trabalho; a atividade produtiva do operário não somente destitui o que ele consome, mas dá ao trabalho acumulado um valor maior do que aquele que ele possuía antes

(Mandel, 1968, p. 56).

Essa "intuição" do conceito de mais-valia se dá num contexto em que a diferenciação conceitual, decisiva, entre trabalho e força de trabalho ainda não foi estabelecida, sendo nesse sentido, o modo possível de expressar a mais-valia a partir de uma base conceitual ainda não de todo especificamente marxiana.

Os Grundrisse representam, nesse sentido, o locus de materialização da crítica da economia política na medida em que é o locus da materialização dos conceitos especificamente marxianos de capital e mais-valia.

Em 11 de março de 1858, Marx escreve a Lassalle dando conta do plano de redação de sua "Economia Política" como chamava, às vezes, seu trabalho, que deveria incluir seis livros. Em 2 de abril de 1858, em carta a Engels, ele precisa o conteúdo dos seis livros que seriam:1) Do capital; 2) Propriedade da terra; 3) Trabalho assalariado; 4) Estado; 5) Comércio internacional; 6) Mercado mundial. Sendo que o livro O capital dividir-se-ia em quatro partes: a) capital em geral; b) concorrência; c) o crédito e d) o capital por ações. O plano de redação estabelecia que o material seria publicado em fascículos, sendo o primeiro - "o capital em geral", subdividido em 1) "Valor"; 2) "Dinheiro"; 3) "Capital". Esse plano de redação foi alterado, resultando de fato na publicação de um primeiro fascículo - publicado em 1859, que é a Contribuição àCrítica da Economia Política, que continha o material referente ao valor e ao dinheiro, e na redação de um segundo fascículo, que acabou não sendo publicado, ficando inédito, constituindo-se nos cadernos de I a V enfeixados sob o título geral de Manuscritos de 1861-63, num total de 23 cadernos, que incluem o material que foi publicado por Kantsky com o título de Teorias da Mais-Valia (Cadernos de VI a XV e XVIII) e um conjunto de textos (Cadernos XVI e XVII, XXIX, XX, XXI, XXII e XXIII), que foram utilizados por Marx e por Engels para a redação e edição dos Livros I, II e III de O capital (Marx/Engels, 1974c, p. 76-81; Marx, 1979).

Tendo publicado a Contribuição à Crítica da Economia Política, em 1859, Marx ficou o ano de 1860 inteiramente absorvido na tarefa de se defender das acusações caluniosas de Karl Vogt, que, se prosperassem, trariam sérios prejuízos para o partido de Marx e Engels. Em 1861 retoma a sua "crítica da economia política" em um esforço sistemático e abrangente que incluirá mesmo uma "história crítica do pensamento econômico" a partir de sua decisiva descoberta, que é o conceito de mais-valia, que funciona como parâmetro de aferição dos conteúdos efetivamente científico-racionais da economia política. Que Marx, entre 1861 e 1863, se disponha a elaborar uma "história crítica do pensamento econômico" é a prova, se ainda restasse dúvida, de que ele considerava, em 1861-63, completa sua teoria, sua "crítica da economia política", capacitando-o a confrontar-se com o melhor da economia política clássica de um ponto de vista superior, porque, tendo absorvido o que do racional e científico esse pensamento produziu, rejeitou o que merecia ser rejeitado desse pensamento, ao mesmo tempo que introduziu um ponto de vista, categorias e perspectivas radicalmente novos. É esse, por exemplo, o caso da Teoria do Valor, destacado por Izaak Rubin, em que Marx não só dá respostas mais adequadas, teoricamente superiores, às dimensões substância e medida do valor, quanto inventa uma problemática nova, especificamente marxiana, que é a referente à forma do valor (Rubin, 1974).

Em 4 de outubro de 1864, numa carta a Kliengs, Marx diz que esteve doente durante o período de 1863/64, o que o impediu de terminar o livro O capital:

Agora espero terminá-lo, ao fim de uns tantos meses e, acertar, no plano teórico, um golpe na burguesia que ela jamais poderá responder

(Marx/Engels 1974c, p. 113).

De fato, o livro em questão foi publicado em 1867, o Livro I de O capital, mas não trouxe apenas o referente ao capítulo sobre o capital, projetado para ser o segundo fascículo da Crítica da Economia Política, publicada em 1859. Este novo O capital, cujo plano Marx estabeleceu em carta a Kugelmann, em 13 de outubro de 1866, ficou assim:

Livro I. Processo de Produção do Capital; Livro II. Processo de Circulação do Capital. Livro III. Formas do Processo de Conjunto. Livro IV. Contribuição à História da Teoria [...] Acredito ser necessário começar

ab ovo

no primeiro livro, isto é, resumir

em um

só capítulo o referente à mercadoria e ao dinheiro de minha primeira obra editada por Duncker

(Contribuição à Crítica da Economia Política) (Marx/Engels, 1974c, p. 120).

Resuma-se, então, o que importa para este texto: com a Contribuição à crítica da Economia Política, de 1859, Marx completou sua "segunda navegação", deu-se a transição da "Revolução de Fevereiro" para a "Revolução de Outubro".

Assume-se aqui que há um momento, identificável factualmente, em que Marx, definitivamente, completou o que faltava para a exposição do específico de seu pensamento, de sua "crítica da economia política", num movimento conceitual que, enlaçando o conjunto da exposição, lhe dá o sentido sistêmico rigoroso, que lhe confere elegância e consistência. A excelência do itinerário conceitual construído por Marx apresenta-se, exemplarmente, na primeira frase, tanto da Contribuição à crítica da Economia Política, de 1859, quanto do Livro I de O capital, de 1867, que estabelecem as condições de legitimidade do ponto de partida dos dois livros, que é a análise da mercadoria. É preciso, nesse caso fortemente, levar a sério o quanto ele continuou valorizando a exposição dialética, que ele aprendeu de Hegel e "superou", e as estritas exigências que o método dialético impõe quanto "ao ponto de partida", quanto às "condições de possibilidade" da exposição dialética que obriga a que "o ponto de partida da ciência" sendo simples e imediato, prescindindo de qualquer preparação ou introdução, seja ele próprio "totalidade" tal como essa pode ser apreendida imediatamente, antes que se lhe solicite, que se manifestem suas diversas possibilidades, que, estando presentes desde o início, em germe, só podem manifestar-se na medida da extrinsecação de seus conteúdos, como uma planta que:

não se perde numa transformação indefinida. Do seu germe, em que todavia se não distingue nada, sai uma multiplicidade, que no entanto já lá estava, inteiramente contida, se não de modo desenvolvido, pelo menos implícito e idealmente

(Hegel, 1974, p. 342).

São essas estritas exigências de rigor expositivo que Marx se impôs na redação de O capital, e que ele resolveu pela escolha da mercadoria, como ponto de partida de O capital, na medida em que a mercadoria, como a semente que prefigura a planta, é o capital tomado em sua forma elementar de existência. Diz Marx na Contribuição à crítica da Economia Política:

À primeira vista, a riqueza burguesa aparece como uma enorme acumulação de mercadorias, e a mercadoria isolada como seu modo de ser elementar

(Marx, 1974a, p. 141).

Em O capital, Livro I, a questão reaparece ainda mais desenvolvida:

A riqueza das sociedades onde rege a produção capitalista configura-se em 'imensa acumulação de mercadorias', e a mercadoria, isoladamente considerada, é a forma elementar dessa riqueza. Por isso, nossa investigação começa com a análise da mercadoria

(Marx, 1968, p. 41).

Em texto de 1882, considerado por muitos como o testamento intelectual de Marx - Glosas Marginais ao "Tratado de Economia Política" de Adolph Wagner -, ele é enfático ao dizer:

O senhor Wagner esquece também que para mim não são sujeitos nem o

'valor'

nem o

'valor da troca'

, senão que é somente a

mercadoria (Marx, 1977, p. 171).

Seria ocioso trazer aqui toda uma abundante comprovação da centralidade da categoria mercadoria na "crítica da economia política" de Marx. É exatamente por estar ciente da centralidade do conceito de mercadoria na "crítica da economia política" de Marx, que é desconcertante descobrir que só é quase às vésperas da publicação da Contribuição à crítica da Economia Política, que Marx faz da "mercadoria" o ponto de partida de sua "crítica". Isto é, tendo iniciado sua crítica à economia política em 1847, Marx manteve parte do vocabulário típico dessa corrente, mesmo tendo rompido e superado o essencial de suas teses e conteúdos, como é o caso da construção do conceito de mais-valia que ele, embrionariamente, já desenvolvera nos anos 1847/48. No entanto, para quem se apóia em certas lições centrais de Hegel, como aquela que manda não separar forma de conteúdo, não é irrelevante constatar a tardia incorporação do conceito de mercadoria como ponto de partida da "crítica da economia política".

Com efeito, manter o valor, como Marx o fez até 1858, como ponto de partida da crítica é ainda não ter finalizado a definitiva superação da economia política clássica, é ainda se manter, no campo de uma "duplicidade de poderes", o poder de Smith e Ricardo confrontado pelo novo poder da teoria da mais-valia, numa situação ambivalente em que, por um lado a teoria já está, no essencial, desenvolvida, mas ainda continuava a ser exposta de um modo impróprio para uma perspectiva teórica, que se baseia na idéia de que, se há algo novo a ser dito, este novo deve ser expresso a partir de uma forma nova. No específico do que se discute aqui, a questão foi posta com exatidão por Marcos Lutz Muller:

Dialética significa n'

O Capital

primeiramente e, também, predominantemente, o método/modo de 'exposição' crítica das categorias da economia política, o método de 'desenvolvimento do conceito de capital' a partir do valor, presente na mercadoria, enquanto ela é a categoria elementar da produção capitalista que contém o 'germe' das categorias mais complexas

(Müller, 1982, p. 19-20).

É possível acompanhar o itinerário da construção da crítica da economia política de Marx por meio de sua correspondência. Assim, em carta para Engels, de 2 de abril de 1858, depois da redação dos Grundrisse, que foram redigidos entre julho de 1857 e março de 1858, referindo-se ao seu plano de redação de sua "Economia Política", Marx toma o valor como ponto de partida da primeira seção do capital, O Capital em geral, "O Valor - reduzido pura e simplesmente a quantidade de trabalho, o tempo como medida do trabalho" (Marx/Engels, 1974c, p. 77). Colocar a questão nesses termos, expor sua "Crítica da Economia Política" desse modo, significa não ter rompido ainda com o modo como a economia política clássica expunha os seus resultados. A correspondência de Marx sobre temas econômicos registra o envio de cartas em 9 de abril de 1858, para Engels; em 31 de maio de 1858, também para Engels; em 12 de novembro de 1858, para Lassalle. É nesta última carta que Marx explicita algo decisivo para o que se está argumentando aqui. Explicando a Lassalle as razões do atraso no envio dos originais de Contribuição à crítica da Economia Política, Marx alega, depois de falar das agruras de sua saúde precária e de suas dificuldades de sobrevivência material, diz:

Porém, a verdadeira razão é a seguinte: a matéria a tinha diante de mim, tudo se reduzia a uma questão de

forma

(grifo meu J.A.P.). Em tudo o que escrevia ficava manifesto em meu estilo minha enfermidade de fígado. E tenho duas razões para não tolerar que motivos de ordem médica venham estropiar esta obra:

1. É o resultado de quinze anos de trabalho e, conseqüentemente, o fruto do melhor período de minha vida.

2. Apresenta, pela primeira vez, CIENTIFICAMENTE, um ponto de vista importante sobre as relações sociais. Devo, pois, a nosso partido não depreciar a causa com um estilo deslustrado e falso, que é reflexo de um fígado doente. Não aspiro a elegância da exposição, senão só a escrever em meu estilo habitual, o que me tem sido impossível durante os meses de sofrimento, ao menos sobre este tema... (Marx/Engels, 1974c, p. 82-83).

Nessa carta a referência à forma e a discussão que se segue, que está centrada no estilo da exposição, parece circunscrever a questão a uma dimensão limitada e banal da problemática da forma. Contudo, na carta seguinte de Marx, para Engels, em 29 de novembro de 1858, ele diz:

Minha mulher está copiando de novo o manuscrito, que não poderá sair antes do fim do mês. As razões do atraso são: grandes períodos de indisposição física, situação que terminou agora com o inverno. Demasiados problemas domésticos e econômicos. Finalmente: a primeira parte resultou mais importante devido a que, dos dois primeiros capítulos o primeiro

(AMERCADORIA),

não estava escrito em absoluto no projeto inicial, e o segundo

(O DINHEIRO,

ou

A CIRCULAÇÃO SIMPLES)

não estava escrito mais que em esquemas muito breves que depois foram tratados com mais detalhes do que eu pensara no princípio...

(Marx/Engels, 1974c, p. 83).

É nessa carta de 29 de novembro de 1858 que aparece, pela primeira vez, a Mercadoria como ponto de partida da "Crítica da economia política". Tal inovação na exposição, a substituição do VALOR pela MERCADORIA é mais que uma questão de estilo, de forma no sentido trivial do uso da palavra. É uma REVOLUÇÃO, é, de fato, o "Outubro" de Marx, a definitiva complementação de sua superação da economia política clássica. Começar com a MERCADORIA significa não só superar os termos da exposição de Adam Smith e Ricardo, do melhor da economia política, como colocar a superação da forma mercadoria, do capitalismo, enfim, como objetivo indescartável da crítica da economia política, do pensamento e da prática do marxismo.

Começar a "crítica da economia política" pela mercadoria, significa, de fato, uma revolução conceitual que terá decisivas implicações teóricas, políticas, ideológicas e culturais. A escolha da mercadoria como ponto de partida de O capital é, na verdade, um giro ontológico, que resultará em importantes requalificações do marxismo.

Começar com a mercadoria, reconhecer nela o valor da sociabilidade capitalista, reconhecer nela a manifestação exemplar e inescapável do deletério, despótico e alienante da ordem social capitalista, é apontar para a incontornável necessidade de superação do mundo da mercadoria, como condição para a emancipação humana. Com efeito, ao fazer da mercadoria a força regente da sociedade capitalista e ao reconhecer essa força regente como a matriz geradora das iniqüidades características da ordem social capitalista, Marx afasta qualquer possibilidade de conciliação e de acomodação à ordem burguesa, fazendo da superação do mundo das mercadorias a pré-condição para a construção do mundo como efetiva morada do homem humanizado.

Nesse sentido, a centralidade atribuída por Marx à necessidade de superação do mundo das mercadorias, como pré-condição do projeto emancipatório, é a mais contundente crítica tanto aos críticos quanto aos supostos adeptos de Marx que fizeram de sua obra e de suas propostas uma sorte de "teoria da modernização". É isto que José Guilherme Merquior identificou na visão de Ernest Gellner sobre o marxismo:

O que a ética protestante foi o marxismo seria hoje, isto é, um movimento social perfeitamente ascético e até repressivo que conduz de uma maneira até brutal determinada forma de modernização social rápida, uma determinada forma de industrialização forçada e acelerada e assim por diante

(Merquior, 1981, p. 13).

Marx não é o teórico da modernização, não buscou reformar ou construir o capitalismo onde ele não estava. Seus compromissos com a revolução socialista eram absolutamente incontornáveis, e essa radicalidade se manifesta, exemplarmente, em toda as dimensões da vida social. Trata-se de denunciar a mercadoria não só por suas implicações econômicas, mas de reconhecer o quanto sua lógica e suas exigências colonizaram deleteriamente a vida social, a vida política e a vida cultural, transformadas em reinos da venalidade e da manipulabilidade, da mentira e da impostura, da opressão e da miséria, da exploração e da destruição.

Artigo recebido em fevereiro de 2008; aprovado em abril de 2008.

E-mail de contato do autor: jpaula@cedeplar.ufmg.br

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Nov 2008
  • Data do Fascículo
    Ago 2008

Histórico

  • Aceito
    Abr 2008
  • Recebido
    Fev 2008
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