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Reclaiming Marxs Capital: a refutation of the myth of inconsistency

RESENHA

Eduardo Maldonado Filho

Professor do PPGE e do Departamento de Ciências Econômicas da UFRGS

"Reclaiming Marxs Capital: a refutation of the myth of inconsistency"

Andrew Kliman

Raya Dunayevskaya Series in Marxism and Humanism, 2007

No pós-Segunda Guerra Mundial, o capitalismo experimentou um longo período de grande dinamismo econômico, que foi acompanhado por significativas melhorias no padrão de vida dos trabalhadores e pela diminuição das desigualdades sociais. No entanto, a partir do final dos anos 1960 e início dos anos 1970, as taxas de crescimento dos países capitalistas avançados começam a declinar ao mesmo tempo em que a inflação se acelerava e as políticas macroeconômicas perdiam sua efetividade. A era de prosperidade propiciada pelo capitalismo regulado era substituída pela estagflação dos anos 1970. Com isso, o keynesianismo deixava de ser a teoria geralmente aceita pelos economistas. Pela direita, o monetarismo surgia como a nova alternativa teórica, propondo a desregulamentação dos mercados e que a condução da política macroeconômica fosse centrada no controle da inflação por meio do equilíbrio das contas públicas e do controle da oferta monetária. Pela esquerda, o fim da prosperidade, o aumento do desemprego e da inflação e a intensificação da luta de classe estimulavam a crítica ao capitalismo e o desejo da construção de outra sociedade – a visão de que a construção de "um novo mundo era possível". Nesse contexto de crise do capitalismo e de lutas políticas pela construção de uma sociedade alternativa ao capitalismo, ressurgiu grande interesse pela obra de Marx. Nos cursos de Economia, muitos estudantes demandavam maior pluralidade no ensino e, em particular, que fossem ofertadas disciplinas de economia política (i.e., Marx). Como resultado desse interesse pelo estudo da obra de Marx, uma onda de produção acadêmica sobre os diversos aspectos da análise crítica de Marx veio à tona ao longo dos anos 1970.

O retorno à Marx dos anos 1970 foi bastante frutífero em muitas áreas, mas esse não foi o caso no âmbito da economia. Os estudos acabaram centrando-se na consistência lógica da teoria do valor-trabalho de Marx. Dois temas se destacaram: a "transformação dos valores em preços" e a "lei da tendência declinante da taxa de lucro".

Em relação ao primeiro tema, as contribuições de Samuelson (1971) e de Steedman (1977) foram muito influentes. Mediante a utilização do instrumental matemático da teoria do equilíbrio geral, demonstrava-se, de forma "rigorosa", que não era possível derivar-se logicamente os preços a partir dos valores (quantidade de trabalho materializado nas mercadorias). Com base nessa conclusão, afirmava-se que a teoria econômica de Marx era logicamente inconsistente e, portanto, falsa.

Por outro lado, o teorema de Okishio (1961) teria provado que a "lei da tendência declinante da taxa de lucro", que para Marx se constituía na principal lei da economia política, estava errada. Marx argumentou que o aumento da produtividade do trabalho resultante da introdução de inovações técnicas que economizam o fator trabalho reduz a taxa geral de lucro. O teorema de Okishio demonstraria que isso não era verdade. Aumentos de produtividade, nas condições especificadas por Marx, elevariam (ou manteriam constante) a taxa de lucro de equilíbrio.

Portanto, durante um período de grande efervescência política e ideológica, quando muitos estudantes dos cursos de Ciências Sociais desejam estudar uma teoria econômica que fosse relevante para a compressão da realidade capitalista e para "transformar a realidade", a teoria econômica de Marx era, de fato, descartada, inclusive pela economia política radical, por ser logicamente inconsistente. Como consequência da aceitação desses argumentos críticos, o programa de pesquisa dos novos economistas radicais do início dos anos 1970 centrou-se, principalmente, na tentativa de correção dos supostos erros lógicos da teoria do valor de Marx – abandonando, assim, os estudos com o objetivo de desenvolver essa abordagem teórica, de aplicá-la ao estudo da realidade e como base para a elaboração de programas que levassem a uma "construção de outro mundo". Evidentemente que as supostas demonstrações de que a teoria do valor de Marx era logicamente inconsistente a desqualificavam como uma teoria capaz de explicar as leis que regem o funcionamento do sistema capitalista. Aceitava-se, quando muito, que alguns aspectos ou "insights" da teoria de Marx eram importantes e que poderiam ser incorporados em outras abordagens teóricas, mas não a sua teoria do valor, uma vez que ela não passava pelo teste da consistência interna. Esse entendimento teve também o aval da maioria dos economistas marxistas.

O capitalismo está passando novamente por uma profunda crise econômica mundial e, mais uma vez, a teoria econômica mainstream – ou seja, a "moderna" teoria macroeconômica que substituiu a macroeconomia keynesiana como a abordagem mainstream – foi incapaz de prevê-la. Na verdade, o surgimento dessa crise pegou os economistas mainstream de surpresa. Por exemplo, Lucas (2003) afirmava que, graças à teoria macroeconômica, o capitalismo não estava mais sujeito aos desastres econômicos como o da Grande Depressão, dos anos 1930. Mas a presente e devastadora crítica que a atual crise econômica global representa demonstra, de novo, que a chamada "moderna teoria econômica" não é capaz de explicar as leis que regem o funcionamento do sistema capitalista.

No atual contexto de crise econômica mundial, justamente quando se reabre o debate sobre a economia capitalista e as causas de suas crises periódicas, a teoria do valor de Marx continua sendo vista com muito ceticismo, mesmos nos meios acadêmicos marxistas, já que se aceita que sua inconsistência lógica teria sido comprovada. Ou seja, o consenso gerado pelo debate dos anos 1970 de que a teoria econômica de Marx é internamente inconsistente e, portanto, falsa constituiu-se, ainda nos dias de hoje, num forte entrave a sua utilização, como instrumental analítico, para explicar a atual crise e de apontar alternativas.

Mas cabem os seguintes questionamentos: os críticos realmente demonstraram que a teoria econômica de Marx é logicamente inconsistente? O teorema de Okishio demonstra realmente que a taxa de lucro não declina quando os capitais individuais elevam a produtividade do trabalho mediante a introdução de novas tecnologias? Desde o início da década de 1980, diversos trabalhos têm rediscutido esses temas, demonstrando que, ao contrário do consenso oficial, a teoria de Marx é logicamente consistente. Valendo-se de uma abordagem teórica que mantém a metodologia dinâmica (temporalista) de Marx – conhecida como "Temporal Single System Interpretation" (TSSI) ou Interpretação do Sistema Único Temporal –, demonstrou-se que os alegados erros e as inconsistências lógicas atribuídas a sua teoria desaparecem. Apesar disso, a corrente teórica dominante da economia política radical não tem dado o devido reconhecimento público de que a teoria de Marx pode (e, portanto, deve) ser interpretada de forma a exonerá-la das alegações de ser internamente inconsistente.

A principal motivação de Kliman para escrever o livro objeto desta resenha está justamente em romper essa barreira. Ou seja, o autor tem como seu objetivo principal o de dar conhecimento ao público em geral de que os propalados erros e as inconsistências lógicas da teoria do valor de Marx não passam de um mito. Evidentemente, como o autor mesmo faz questão de salientar, a demonstração de que a teoria econômica de Marx é logicamente consistente não implica que ela seja correta. Mas os resultados obtidos não permitem mais que se continue afirmando o que já se demonstrou ser falso, a saber: que a teoria de Marx é internamente inconsistente.

A controvérsia sobre a teoria do valor de Marx desenvolveu-se, como se sabe, num contexto de grande complexidade matemática e, em parte por consequência disso, acabou restrita a um pequeno grupo de especialistas. Portanto, a tarefa de traduzir para o público acadêmico em geral, de forma rigorosa mas didática, os argumentos envolvidos se constitui num importante desafio. Um dos grandes méritos do livro de Kliman está precisamente em ter conseguido apresentar os argumentos dos participantes de forma que o leitor interessado seja capaz de compreendê-los. Em grande parte, isso se deve ao fato de os argumentos matemáticos serem apresentados sob a forma de exemplos numéricos, e não através de equações. Outro aspecto importante se relaciona com o fato de o autor ter sido capaz de destacar os elementos centrais dos argumentos dos fatores secundários, facilitando a compreensão do leitor, sem que ele se perca nos detalhes técnicos do debate.

Deve-se salientar, no entanto, que Kliman desenvolve toda a sua apresentação dentro dos marcos analíticos utilizados pelos críticos de Marx, não por concordar com esse marco, mas para demonstrar que, mesmo dentro dele, a propalada inconsistência lógica da teoria não se sustenta. Ainda que seja verdade que essa estratégia preserve o foco de sua crítica em relação aos críticos de Marx e que fortaleça seus argumentos, o seu lado negativo, na minha opinião, é que conceitos fundamentais da teoria temporalista de Marx – por exemplo, o conceito de capital industrial – permanecem fora do âmbito do debate sobre a teoria do valor.

O livro objeto desta resenha está organizado em 12 capítulos. Na introdução, Kliman expõe, de forma sucinta e clara, os objetivos e os limites desta publicação e, nos dois capítulos seguintes, o autor apresenta aos leitores não versados no tema os principais aspectos teóricos e um breve histórico da controvérsia sobre a teoria de Marx. Nos capítulos 4, 5 e 6, Kliman mostra, em termos gerais, suas teses centrais em relação à controvérsia sobre a teoria do valor de Marx. Nos capítulos seguintes, o autor aplica as teses centrais da abordagem TSSI aos tópicos específicos. Assim, no capítulo 7, ele revisita o debate sobre o teorema de Okishio e a lei da taxa de lucro declinante de Marx. O "problema da transformação" é tratado nos capítulos 8 e 9. No capítulo seguinte, o autor discute o que se convencionou chamar de "teorema marxiano fundamental" e, no capítulo 10, o autor faz a crítica à defesa empírica da lei do valor de Marx. Finalmente, no capítulo 12, Kliman apresenta o sumário dos argumentos discutidos ao longo do livro e suas conclusões.

Como indicamos acima, as teses centrais defendidas por Kliman desempenham papel fundamental na refutação de que a teoria do valor de Marx seja logicamente inconsistente. Conforme o autor demonstra no livro, as alegações de inconsistência decorrem das seguintes reinterpretações, por parte dos críticos de Marx, da sua teoria do valor:

i. a substituição do caráter temporal do método analítico de Marx pelo método neoclássico de valorização simultânea. Em outras palavras, o método de solução simultânea do sistema de equações faz com que a teoria de Marx pareça ser inconsistente. O abandono do método de valorização simultânea (i.e., a imposição de que os preços unitários dos insumos, ao entrarem no processo de produção, sejam iguais aos preços unitários dos produtos que resultam desse processo de produção), por si só, é quase que suficiente para refutar a tese de que a teoria de Marx é internamente inconsistente;

ii. o abandono da posição de Marx de que os preços se constituem em expressões monetárias do valor em favor da interpretação de que existe um sistema dual de mensuração (os valores medidos em horas de trabalho e os preços medidos em unidades monetárias). Assim, por exemplo, o chamado "problema da transformação", segundo esta reinterpretação, consistiria no mecanismo de transformação dos valores (horas de trabalho) em preços (unidades monetárias). No entanto, aderindo-se à posição de Marx (sistema único), o "problema da transformação" consiste, de fato, na transformação dos preços proporcionais aos valores em preços de produção. A conversão dos valores (horas de trabalho) em unidades monetárias ocorre através da Expressão Monetária do Tempo de Trabalho (ou Monetary Expression of Labor-time, MELT).

A importância dessas diferentes interpretações é crucial, uma vez que a condenação da teoria de Marx como logicamente inconsistente resulta da substituição da abordagem temporal e do sistema único de Marx pela valorização simultânea e do sistema dual entre valores e preços, realizada originalmente por Bortkiewicz (1907). Alternativamente, conforme Kliman demonstra no livro, a adoção da interpretação do sistema único temporal (TSS) é suficiente para eliminar todas as supostas inconsistências quantitativas imputadas à teoria do valor de Marx.

Depois de apresentar as razões básicas que geram as inconsistências quantitativas na teoria do valor-trabalho, o autor aborda as críticas específicas levantadas contra a teoria de Marx. Ao proceder dessa maneira, o autor é capaz de apresentar de forma didática, ainda que detalhada, os argumentos centrais da controvérsia, sem comprometer o rigor analítico.

Como se sabe, uma das críticas centrais à teoria de Marx foi apresentada por Okishio. Segundo Marx, o processo de acumulação de capital, quando acompanhado por inovações técnicas, produz uma tendência declinante da taxa de lucro. O teorema de Okishio, por sua vez, demonstraria que a derivação de Marx está incorreta. Okishio assume inicialmente que, em condições concorrenciais, uma dada empresa introduza uma nova tecnologia na forma prevista por Marx (a saber, a nova técnica eleva a produtividade do trabalho e, simultaneamente, diminui a relação produto-capital). Com isso, a empresa inovadora obtém uma taxa de lucro mais elevada do que a taxa geral de lucro. O que o teorema demonstra é que a adoção dessa nova tecnologia pelas demais empresas, se os salários reais permanecerem constantes, elevará a taxa geral de lucro de equilíbrio ou no máximo ela permanecerá constante. Portanto, ao contrário da dedução realizada por Marx, a introdução de progresso técnico a la Marx não reduz a taxa geral de lucro.

Kliman demonstra, no entanto, que essa conclusão de Okishio não refuta, na verdade, a teoria de Marx. O que o teorema Okishio de fato demonstra é que a introdução de inovações técnicas a la Marx eleva a taxa de lucro de equilíbrio medida em termos físicos (i.e., em termos de valores de uso). Mas essa demonstração nada tem a ver com a teoria do valor trabalho e, além disso, está de acordo com a teoria de Marx. Como se sabe, o que Marx deduz é que, nas circunstâncias descritas acima, a taxa de lucro em termos de valor (ou preços) declina, e, de fato, esse resultado é obtido se adotarmos a interpretação TSS. Conforme demonstrado por Kliman, o fator determinante dos resultados obtidos por Okishio é o uso do método de valorização simultânea dos insumos e produtos. Conforme salienta o autor, o uso do método de valorização simultânea implica substituir a teoria quantitativa do valor-trabalho de Marx (i.e., valor determinado pelo tempo de trabalho) por uma teoria fisicalista (valores de uso) do valor.

Como é de se esperar, o debate sobre o "problema da transformação" ganha destaque no livro, sendo abordado em dois capítulos. Além de descrever os aspectos históricos do debate, Kliman expõe os elementos principais da controvérsia. Aqui também o autor demonstra que a inconsistência lógica da teoria do valor-trabalho só é obtida por decorrência do uso da valorização simultânea e da interpretação de que existe um sistema dual de valores e preços. Mantendo-se fiel ao método temporal e do sistema único de Marx, sua solução é consistente.

A estrutura do livro e a forma e o rigor com que os argumentos da controvérsia são apresentados pelo autor possibilitam que o leitor interessado, mesmo aquele não versado em economia marxista e em matemática, compreenda as questões em debate e, não menos importante, que ele possa formar a própria opinião em relação aos tópicos em debate. Cabe ressaltar, no entanto, que, apesar do esforço bem-sucedido de Kliman em escrever um livro que seja didático, em alguns pontos a complexidade dos argumentos exige esforço por parte do leitor, mas a contrapartida desse esforço de leitura será a efetiva compreensão do porquê os críticos de Marx estão errados em suas alegações. O livro de Kliman se constitui, na minha opinião, na mais importante contribuição à economia política das últimas três décadas e, como tal, sua leitura é altamente recomendada a todos aqueles interessados na obra de Marx.

Finalmente, conforme apontado no início desta resenha, a sua publicação não poderia ocorrer num momento mais oportuno. A crise mundial atual já está impondo uma rediscussão das teorias econômicas e a demonstração de que a teoria de Marx é logicamente consistente e abre espaço para que os novos economistas radicais se dediquem a um programa de pesquisa para o desenvolvimento da teoria de Marx e de sua aplicação na compreensão da realidade, soltando-se assim das amarras impostas pelos críticos de Marx. Esse é o sentido do título do livro de Kliman já que o resultado do debate permite que O Capital de Marx seja recolocado, junto com outras abordagens teóricas, como uma das teorias que expressam as leis que regem o funcionamento do sistema capitalista e, principalmente, para orientar no desenvolvimento de alternativas ao capitalismo.

Artigo recebido em maio de 2009; aprovado em junho de 2009.

E-mail de contado do autor: eduardo.maldonado@ufrgs.br

  • BORTKIEWICZ, L. On the correction of Marxs Fundamental Theoretical Construction in the third volume of Capital. In: SWEEZY, P. M. (ed.). Karl Marx and the Close of his System. New York: A. M. Kelly, 1907 (1949). p. 199-221.
  • LUCAS, Robert E. Jr. Macroeconomic priorities. The American Economic Review, v. 93, n. 1, p. 1-14, Mar. 2003.
  • OKISHIO, Nobuo. Technical changes and the rate of profit. Kobe University Economic Review, n. 7, p. 85-99, 1961.
  • SAMUELSON, Paul A. Understanding the Marxian Notion of Exploitation: A summary of the so-called "transformation problem" between Marxian values and competitive prices. Journal of Economic Literature, v. 9, n. 2, p. 399-431, 1971.
  • STEEDMAN, I. Marx after Sraffa. NBL, London, 1977.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Abr 2010
  • Data do Fascículo
    Fev 2009
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