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O debate sobre a redução do déficit fiscal no Brasil: uma crítica pós-keynesiana

The debate over the reduction of the fiscal deficit in Brazil: a post-Keynisian critique

Resumos

O artigo analisa o debate sobre a redução do déficit fiscal brasileiro com base em uma perspectiva pós-keynesiana. Após resumir as conclusões das controvérsias sobre o papel da moeda e do Estado que constituem a base dos desacordos quanto à política fiscal e à política monetária e, consequentemente, sobre as prescrições de zeragem do déficit fiscal, o artigo ilustra esse debate com estimativas de modelos de Vetores Autorregressivos (VAR), dando razão ao lado heterodoxo da controvérsia.

pós-keynesianismo; política fiscal; política monetária


The article analyses the debate over fiscal deficit reduction in Brazil from a post-Keynesian perspective. After an overview of the conclusions about the role of money and of the State that are the basis of the controversies about fiscal policy, monetary policy and the consequent prescribed manner of reducing fiscal deficits, the article illustrates this debate with estimates of VAR models, and agrees with the heterodox side of the controversy.

Post-Keynesianism; fiscal policy; monetary policy


ECONOMIA E SOCIEDADE BRASILEIRAS

O debate sobre a redução do déficit fiscal no Brasil: uma crítica pós-keynesiana

Mariana de Lourdes Moreira LopesI; Maria de Lourdes Rollemberg MolloII

IAnalista de Finanças da Secretaria do Tesouro Nacional

IIProfessora da Universidade de Brasília

RESUMO

O artigo analisa o debate sobre a redução do déficit fiscal brasileiro com base em uma perspectiva pós-keynesiana. Após resumir as conclusões das controvérsias sobre o papel da moeda e do Estado que constituem a base dos desacordos quanto à política fiscal e à política monetária e, consequentemente, sobre as prescrições de zeragem do déficit fiscal, o artigo ilustra esse debate com estimativas de modelos de Vetores Autorregressivos (VAR), dando razão ao lado heterodoxo da controvérsia.

Palavras-chave: pós-keynesianismo, política fiscal, política monetária.

Classificação JEL: E12, E62, E63.

ABSTRACT

The article analyses the debate over fiscal deficit reduction in Brazil from a post-Keynesian perspective. After an overview of the conclusions about the role of money and of the State that are the basis of the controversies about fiscal policy, monetary policy and the consequent prescribed manner of reducing fiscal deficits, the article illustrates this debate with estimates of VAR models, and agrees with the heterodox side of the controversy.

Key words: Post-Keynesianism, fiscal policy, monetary policy.

JEL Classification: E12, E62, E63.

1_ Introdução

O debate sobre a redução e zeragem do déficit nominal no Brasil vem dividindo opiniões. Sabemos que o déficit nominal nada mais é do que o resultado da soma algébrica entre déficit ou superávit primário do governo e as despesas com juros. Do lado ortodoxo (Giambiagi e Além, 2000; Fávero e Giavazzi, 2002; Delfim Netto e Giambiagi, 2005), temos os que acham que a redução do déficit nominal deve se fazer por aumento do superávit primário, enquanto do lado heterodoxo (Bresser-Pereira e Nakano, 2002; Gobetti e Amado, 2008; Hermann, 2006), que ela deve ser obtida a partir do corte de juros.

As razões para as divergências são, porém, grandes, uma vez que decorrem de controvérsias teóricas profundas sobre os papéis da moeda e do Estado na economia e de consequências ligadas à preferência em termos de políticas monetária ou fiscal. A discordância fundamental não está, portanto, na obtenção de equilíbrio fiscal, que é partilhada por ortodoxos e heterodoxos, mas na forma de obtenção desse.

Este artigo procurará entrar nesse debate. Para tanto, o item resume as principais conclusões sobre o papel do Estado e da moeda, situando o que estamos chamando de 'ortodoxia' e 'heterodoxia', de forma a entender as prescrições de cada grupo para a zeragem do déficit nominal. Em seguida, no item 2, ilustra-se o debate com base em estimativas com a metodologia de Vetores Auto-Regressivos (VAR). As considerações finais destacam as principais conclusões do artigo.

2_ Papel do Estado, moeda e as prescrições para zeragem do déficit nominal no Brasil

As discussões sobre a zeragem do déficit nominal no Brasil reproduzem o debate sobre o papel econômico do Estado e sobre a concepção de moeda, dividindo o que estamos chamando de 'ortodoxia' e 'heterodoxia' econômicas. Entendemos, aqui, tal como em Mollo (2004), a ortodoxia como formada pelos que aceitam a lei de Say e a Teoria Quantitativa da Moeda em curto ou em longo prazos, o que é negado em qualquer período pelos heterodoxos. Essa definição implica que os primeiros percebem o Estado como pouco necessário, uma vez que os mercados são os melhores reguladores econômicos, ou até ineficientes, porque podem, via inflação, por exemplo, distorcer o sistema de preços. Ao contrário, para os heterodoxos, o Estado tem papel importante como regulador dos mercados. A percepção do papel do Estado é o que conduz a maior ou menor crença não apenas na política fiscal, mas também no seu caráter mais ou menos discricionário, já que ele substitui ou afeta o sistema de preços relativos que regula os mercados.

Quanto à moeda, para os ortodoxos ela é neutra em curto ou em longo prazos, ou seja, não afeta a economia real, mas apenas o nível geral de preços, e é exógena, isto é, pode e deve ser controlada pela autoridade monetária. Assim, cabe à política monetária, prioritariamente, zelar pela estabilidade de preços. Para os heterodoxos, a moeda não é neutra, podendo, ao contrário, inibir investimento, crescimento e emprego, a depender da preferência pela liquidez do público e dos bancos. Essa preferência pela liquidez, ao restringir o crédito, impede a satisfação do motivo financiamento (finance) de demanda de moeda, inviabilizando a decisão de investir, e, ao estimular o encurtamento dos prazos das aplicações dos poupadores, cria problema para a consolidação (funding) dos investimentos. Com isso, o crescimento do emprego e da renda se retrai. Assim, cabe também à política monetária um papel no crescimento, inibindo a preferência pela liquidez e evitando que as taxas de juros elevadas impeçam o crescimento econômico.

No que se refere à política fiscal, superávits primários maiores, para os ortodoxos, significam que o governo controlará seus gastos e conterá o seu viés inflacionário, levando o mercado a confiar na sua capacidade de pagamento da dívida e, por isso, exigirá menores taxas de juros para a sua rolagem. Dessa forma, a mesma ortodoxia que pede superávit primário para, via redução dos gastos públicos, conter a inflação de demanda, prescreve também superávit primário maior para, via aumento de credibilidade, reduzir taxas de juros, reduzindo o déficit nominal. Dizem eles:

A condição necessária para a redução da taxa de juros não é desejá-la como ato de 'vontade', mas produzi-la pela redução monotônica da relação dívida/PIB. Trata-se de um problema aritmético. Qual o superávit primário necessário para reduzir a relação dívida/PIB? (Delfim Netto e Giambiagi, 2005, p. 90).

A ideia é que

superávits progressivos que, no horizonte de quatro ou cinco anos, produzam um déficit nominal zero, antecipariam uma forte redução na estrutura a termo das taxas de juros e reduziria fortemente a relação dívida líquida/PIB (Delfim Netto, 2005, p. 8-9).

Como regra, maiores taxas reais de juros implicam aumento do estoque real da dívida. Para o pensamento ortodoxo, como essas maiores taxas provêm da elevação do risco-país, e esse é resultado da falta de credibilidade na manutenção do equilíbrio fiscal, maiores superávits primários permitem redução na taxa de juros e controle do estoque da dívida. Nesse pensamento, portanto, o superávit fiscal seria o responsável pela redução na relação dívida/PIB. Giambiagi e Além (2000, p. 201, grifo nosso), por exemplo, afirmam categoricamente que:

É claro que sempre é possível argumentar que uma mesma queda deste [déficit público] pode ser obtida com maior redução de juros e menor sacrifício primário [...] Em um primeiro momento, porém, antes de ser conquistada a confiança dos detentores de títulos no sentido de que o governo é solvente, a forma natural de manter o interesse dos credores do governo em rolar a dívida é ter uma taxa de juros atraente a ponto de evitar que a insuficiência dessa rolagem afete a emissão monetária – gerando pressões sobre o mercado de ativos e sobre os preços.

A prescrição heterodoxa, ao contrário, sugere o caminho inverso, decorrente até da própria definição de déficit nominal. Se ele é resultado dos juros que não conseguem ser pagos com a economia que o governo faz em outras áreas – que nada mais é do que o superávit primário –, por que não baixar a própria taxa de juros e obter o mesmo resultado? Quando os juros baixam, a dívida diminui, e o PIB cresce impulsionado pelo crédito mais barato que estimula não só o consumo, mas também os investimentos. Quando os juros da dívida pública caem, eles desestimulam aplicações de curto prazo, liberando parte da poupança disponível para o funding dos investimentos de média e longa maturação. Com o crescimento do PIB, aumenta a arrecadação do governo, e, a partir daí, pode-se dar o aumento do superávit primário.

Dizem eles, então, que

[...] uma plataforma heterodoxa também pode ter como uma de suas metas a redução da dívida pública, mas não nos marcos da atual política fiscal, que objetiva apenas a redução do endividamento líquido e sanciona a taxa de juros definida pelo Banco Central. É impossível qualquer pretensão de zerar o déficit fiscal no Brasil, mesmo que restrito ao orçamento corrente, enquanto o custo dos juros também não for drasticamente reduzido (Gobetti e Amado, 2008, p. 23).

Sendo assim, ao contrário do pensamento ortodoxo, o superávit primário seria consequência natural dessa cadeia de eventos positivos, e não condição para a zeragem do déficit nominal. A origem da divergência, claro, é o papel que o Estado deve cumprir na concepção póskeynesiana (Davidson, 1991 e Carvalho, 1999). Como destaca Kregel, o elemento fundamental da política fiscal é o gasto público, especialmente em investimentos, e não necessariamente o déficit, uma vez que 'the stabilization of investiment was Keynes' primary policy goal' (Kregel, 1985, p. 33).

A atual discussão entre economistas ortodoxos e heterodoxos gira, assim, em torno da necessidade, ou não, de se manter um superávit primário elevado para se obter queda na relação dívida/ PIB e da pertinência, ou não, de se manter elevadas taxas de juros quando o objetivo é reduzir o déficit nominal.

Além disso, a estabilização da dívida pública como proporção do PIB não depende apenas do superávit primário, mas, na realidade, da combinação entre superávit primário, crescimento do produto e taxa real de juros. Sendo assim, a dívida pública como proporção do PIB poderia ser reduzida com maior crescimento e, consequentemente, maior arrecadação. Nesse caso, o superávit primário poderia até se manter, reduzindo o déficit nominal, não porque ele aumentou, mas porque os juros caíram.

Com o baixo crescimento econômico verificado nos últimos anos, não há espaço de forma permanente para aumentos sucessivos de superávits primários que – se diga de passagem – a partir de 1999 o Estado vem cumprindo com folga.

Nas palavras de Hermann (2002, p. 43):

[...] A variável rebelde tem sido o montante das despesas financeiras do governo, que insiste em fugir das previsões e dos cálculos que orientam a fixação de metas para o superávit primário, bem como suas previsões periódicas.

O receituário heterodoxo defende, pois, ao contrário da ortodoxia, que o caminho virtuoso para o controle da relação dívida/PIB não é o aumento 'ex ante' do superávit primário do governo, mas, sim, o aumento 'ex post' promovido pelo crescimento econômico. Isso é possível através de política direcionada a taxas reduzidas de juros. Desta maneira, o esforço de realizar superávit primário cai muito rapidamente, além de reanimar as decisões de investimento privado, tal como prescrevia Keynes, e reorganizar o padrão de financiamento e desenvolvimento da economia.

O Brasil tem hoje um dos maiores superávits primários do mundo, com uma economia que é das que crescem menos. Essa é uma situação contrária à prescrita por Keynes, para quem a política fiscal tinha papel importante a cumprir no estímulo ao crescimento. A esse respeito, é importante notar ainda que uma taxa de juros alta sobre os títulos públicos atrai recursos que de outra forma seriam destinados a aplicação em médio e longo prazos, dificultando a consolidação dos investimentos de média e longa maturação (Hermann, 2003).

Para os heterodoxos, a taxa de juros é alta no Brasil porque é usada como instrumento de política para obtenção de vários objetivos (Bresser-Pereira e Nakano, 2002 e Sicsú, 2003). A taxa de juros é determinada pelo Banco Central, que a conduz de acordo com alguns objetivos, e alguns desses objetivos sempre fizeram com que a taxa de juros no Brasil estivesse acima do seu patamar de equilíbrio. Assim, quando o Banco Central fixa a taxa de juros, tomando como dada a taxa de inflação, fixa-se também a taxa de juros real. Quando, por sua vez, existem objetivos que não somente a inflação, o Banco Central altera a taxa de juros real com a intenção de alcançar as demais metas. A taxa de juros é usada até para sinalizar que a dívida poderá ser paga com mais facilidade (Sicsú e Vidotto, 2007). Os heterodoxos propõem que a taxa de juros caia por meio de controle de capitais (Oreiro, Sicsú e De Paula, 2003; Carvalho e Sicsú, 2004) que torne a política monetária doméstica independente.

Enorme, portanto, é a discordância quanto à política de juros no Brasil. Para os ortodoxos, a taxa de juros deve se manter alta para controlar a inflação, tanto por meio da operacionalização da regra de Taylor (1998) quanto via apreciação da moeda, com a atração de capitais externos que desvalorizam o dólar. Para os heterodoxos, na regra de Taylor, a taxa de juros alta mostra-se contraproducente, porque, como a moeda não é neutra, ela afeta negativamente, como já vimos, a capacidade produtiva da economia (produto potencial), bem como a produção (Lopes e Mollo, 2009). Assim, inibe a oferta tanto ou mais do que a demanda – vista pelos ortodoxos como causa da inflação – e impede até mesmo a solução mais definitiva do processo inflacionário em médio e longo prazos, porque inibe o aumento da capacidade de produção efetiva. Pior, provoca um custo social elevado ao restringir crescimento e emprego.

No que se refere, portanto, à política fiscal, para os ortodoxos é o superávit primário que precisa antes de tudo crescer, a fim de garantir credibilidade e, assim, queda da taxa de juros e redução do déficit nominal. Para os heterodoxos, ao contrário, a taxa de juros deveria ser baixa para reduzir o déficit nominal sem exigir grandes superávits. Com isso, por meio de estímulos aos investimentos e investimentos públicos, o produto e o emprego cresceriam, elevando, por sua vez, a própria arrecadação, o que tornaria o processo sustentável ao longo do tempo.

Ao pedirem aumento do superávit primário, os ortodoxos (Giambiagi e Além, 2000 e Delfim Netto, 2005) solicitam redução do papel ativo do Estado na política fiscal, que, segundo eles, ao provocar aumento da dívida, representa pressão inflacionária. Reproduzem, assim, as conclusões ortodoxas de dominância fiscal da política monetária (Sargent eWallace, 1981), e da teoria fiscal do nível de preços (Woodford, 1998).

Ao contrário, a percepção heterodoxa (Bresser-Pereira e Nakano, 2002; Hermann, 2003; Oreiro, Sicsú e De Paula, 2003) entende que a taxa de juros pressiona a dívida pública e impede que ela caia mais facilmente. São, portanto, as altas taxas de juros da política monetária que precisam cair para garantir a redução do déficit nominal, havendo, então, dominância monetária da política fiscal, e não o contrário, como pensa a ortodoxia.

3_ Uma ilustração do caso brasileiro no debate sobre a zeragem do déficit fiscal

De forma a testar a correlação entre as variáveis discutidas anteriormente e ilustrar o debate, utilizaremos a metodologia dos Vetores Auto-Regressivos (VAR). Os modelos de Vetores Auto-Regressivos (VAR) são comumente usados para estimação de sistemas inter-relacionados de séries temporais e análise de impactos dinâmicos de choques. O VAR nada mais é que um conjunto de equações em que as variáveis endógenas são colocadas como funções das próprias defasagens. Uma vez que se garanta a estacionariedade dessas variáveis endógenas (por meio de testes de raiz unitária), as estimativas dos parâmetros do modelo VAR1 1 O modelo VAR estimado é conhecido como 'modelo VAR na forma reduzida'. Esse modelo deriva de um mais geral conhecido como 'modelo VAR estrutural'. A priori, como o modelo VAR na forma reduzida possui menos parâmetros que o VAR estrutural, não seria possível a identificação exata deste segundo por meio das estimativas dos parâmetros do primeiro modelo. Neste caso, dizemos que o modelo VAR estrutural é superidentificado, e sua identificação exata só é possível quando se impõem restrições sobre um subgrupo de seus parâmetros estruturais. podem ser consistentemente calculadas mediante o método de Mínimos Quadrados Ordinários (MQO) (Stock e Watson, 2001).

O uso de tal metodologia é uma forma de se estimar a relação dinâmica entre variáveis endógenas sem a imposição, a priori, de fortes restrições. Uma vantagem da abordagem é não ter que decidir quais as variáveis são endógenas ou exógenas, uma vez que todas as variáveis são tomadas como endógenas (Davidson e Mackinnon, 1993).

Os instrumentais estatísticos dessa metodologia, em particular os testes de causalidade de Granger, a análise da decomposição da variância dos erros de previsão de uma variável e as funções impulso-resposta,2 2 Para recuperar os valores dos choques estruturais e, assim, calcular a decomposição das variâncias e as funções impulso-resposta, utilizamos o processo de decomposição de Cholesky. O ordenamento que definimos para a decomposição baseou-se em nosso conhecimento de teoria econômica. Desta maneira, ordenamos as variáveis 'da mais endógena para a mais exógena'. são particularmente interessantes para analisar a correlação. A causalidade no sentido de Granger indica que o processo estocástico gerador de uma variável explicada Y depende do processo estocástico gerador de uma determinada variável X. Neste caso, dizemos que 'X Granger-causa Y'. Empiricamente, no modelo VAR, o teste de causalidade de Granger é implementado testando-se a significância estatística conjunta dos coeficientes associados às defasagens de X na equação de Y. Se esses coeficientes forem estatisticamente conjuntamente significantes, então podemos dizer que 'X Granger-causa Y', ou seja, que as defasagens da variável X explicam o comportamento contemporâneo da variável Y.3 3 As hipóteses nulas, de ausência de causalidade do tipo Granger, são hipóteses de ausência de correlação temporal entre as variáveis analisadas e são geralmente rejeitadas com probabilidade inferiores a 10% (valor fixado nesta pesquisa).

A análise de decomposição de variância, por sua vez, permite verificar qual é a participação relativa das variáveis do modelo na explicação da variância do erro de previsão de uma variável específica analisada no modelo. Valendo-se da análise da decomposição da variância dos erros de previsão, é possível determinar quais variáveis são mais importantes para explicar o comportamento da variável analisada.

As funções impulso-resposta possibilitam verificar a resposta ao longo do tempo de determinada variável a choques ocorridos em outras variáveis do modelo. Normalizamos a magnitude dos choques estruturais em determinada variável em um desvio-padrão e verificamos tanto os seus efeitos acumulados ao longo do tempo quanto seus efeitos período-a-período sobre as outras variáveis do sistema.4 4 Quanto mais distantes de zero estiverem os intervalos de confiança das respostas aos impulsos, mais significativos são considerados os impactos.

O propósito é analisar a existência de correlação entre as variáveis 'Dívida Líquida do Setor Público', 'PIB', 'Resultado Nominal', 'Resultado Primário', 'EMBI Brasil' e 'Taxa de Juros Selic', de forma a discutir o argumento ortodoxo sobre a zeragem do déficit nominal em contraposição ao argumento heterodoxo.

Vale lembrar que a ortodoxia defende a tese de que um aumento no superávit primário elevaria a credibilidade do país, que proporcionaria redução das taxas de juros, e, consequentemente, da relação dívida/PIB e do déficit nominal. Nessa concepção, a redução de gastos do governo, via aumento do superávit primário, diminui a demanda agregada da economia, o que ajuda a controlar a inflação.

No entanto, o que queremos examinar, com base no argumento de Keynes, é que essa causalidade está invertida, uma vez que o mesmo resultado poderia ser alcançado com uma redução da taxa de juros, que proporcionaria aumento do PIB, e, então, da arrecadação. O aumento da arrecadação poderia se traduzir em aumento do superávit, e isso proporcionaria queda no déficit nominal pelos dois lados: queda da taxa de juros e aumento do superávit primário, com as vantagens vistas pelos pós-keynesianos de estímulos ao crescimento e ao emprego.

A descrição das variáveis a serem utilizadas na estimativa está relatada no Quadro 1, a seguir. Todas as variáveis têm periodicidade mensal, de janeiro de 1999 a julho de 2008. As séries das variáveis 'PIB', 'Resultado Nominal', 'Resultado Primário' e 'Dívida Líquida do Setor Público' foram consideradas em termos reais, corrigidas pelo Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), e acumuladas em 12 meses, de forma a resolver possíveis problemas de sazonalidade.


Para averiguar a estacionariedade das séries deste estudo, foram realizados os testes de raiz unitária (testes ADF – Augmented Dickey Fuller).

Como se pode ver no Quadro 1, todas as séries estudadas revelaram-se não estacionárias quando avaliadas no nível, mas mostraram-se estacionárias em primeira diferença. Ou seja, elas são integradas de primeira ordem, e o modelo deve ser estimado com as variáveis em primeira diferença. O passo seguinte foi a seleção da ordem do modelo referente às seis variáveis aqui destacadas. Para tanto, utilizou-se o procedimento padrão de estimação de um modelo mais geral e a redução do número de defasagens desse. Baseando-se nos mesmos critérios de seleção utilizados anteriormente, determina-se o número de defasagens utilizadas no modelo. Os valores dos critérios de informação estão relatados na Tabela 1.

O critério de Hannan-Quin (HQ) indica apenas uma defasagem, enquanto o critério FPE indica três defasagens. No entanto, a maioria dos critérios (LR, AIC e SC) assinala que o uso de oito defasagens no modelo é o mais adequado e, por isso, optamos por usar esse número de defasagens na estimação do VAR.

Após estimarmos o VAR, passamos à interpretação dos seus resultados por meio do teste de causalidade de Granger, da análise da decomposição da variância do erro de previsão e das funções de impulso-resposta para cada variável considerada no modelo.

a. EMBI

O resultado do teste de causalidade de Granger indica que a dívida causa, no sentido de Granger, o EMBI (vide Tabela 3), mostrando que o endividamento público afeta a avaliação externa da economia brasileira. Esse resultado, além do fato de as variáveis 'Resultado Nominal' e 'Resultado Primário' causarem, no sentido de Granger, o EMBI, dá razão inicial à ortodoxia, uma vez que indica relação entre o prêmio de risco país e a capacidade do governo de pagamento de dívidas.

Observe-se, porém, que o EMBI é apenas um dos fatores que formam a taxa de juros, e essa própria taxa de juros, como veremos em seguida, não é afetada pelo resultado primário.

A análise da decomposição da variância dos erros de previsão do EMBI (Tabela 4) reforça os resultados do teste de causalidade.

b. Taxa de juros (SELIC)

A Tabela 5, a seguir, mostra os resultados do teste de causalidade de Granger para a taxa Selic. Podemos verificar o fato de o resultado primário não causar, no sentido de Granger, a taxa Selic, apesar da influência significativa do EMBI e da dívida sobre ela. Assim, os ortodoxos têm razão ao chamar a atenção para a relação entre credibilidade do governo e o risco Brasil, tal como avaliado pelo mercado. Mas a ortodoxia não tem razão ao prescrever aumento do superávit primário para baixar a taxa de juros e reduzir o déficit fiscal. Esse resultado tira a importância do resultado primário na determinação da taxa de juros.

De fato, a não rejeição da hipótese nula de que o superávit primário não Granger-causa a Selic torna discutível a causalidade proposta no argumento ortodoxo. Sabemos que o teste de causalidade de Granger é apenas um indicador de precedência temporal, não permitindo que se afirme positivamente a relação de causalidade entre as duas variáveis. Aqui, porém, a probabilidade de 49,6% (maior que 10%) de não rejeitar a hipótese nula põe em dúvida a existência de correlação entre as variáveis, negando o argumento ortodoxo de que o superávit deve necessariamente aumentar para afetar negativamente a taxa de juros.

Observe-se, a esse respeito, que uma taxa de juros alta por si mesma indica risco, o que deveria ser um argumento para reduzi-la e assim melhorar as perspectivas de pagamento ou solvência diretamente. De fato, nas Tabelas 3 e 4, essa relação se mostrou importante.

Já analisando a decomposição da variância dos erros de previsão da taxa de juros Selic (Tabela 6), observa-se que essa não sofre influência do PIB.5 5 Este resultado é oposto àquele encontrado no trabalho de Gomes e Holland (2003), em que os autores afirmam que ' a variância da mesma (taxa de juros Selic) sofre influência do PIB, o que pode ser traduzido como uma preocupação inicial das autoridades monetárias com o crescimento econômico do país'. Por outro lado, sofre influência significativa da dívida e do EMBI, resultados corroborados pelo teste de causalidade de Granger.

c. Dívida (DLSP)

Percebe-se, pela Tabela 7, a seguir, que a taxa de juros causa, no sentido de Granger, a dívida. Em termos econômicos, esse resultado já era esperado, porque parte considerável da composição da dívida brasileira, ao longo dos últimos anos, era indexada pela taxa de juros Selic. Além disso, como boa parte da parcela restante era indexada à taxa de câmbio, em períodos de crise, que levavam à desvalorização da moeda brasileira, a DLSP também aumentava, tanto via estoque de dívida indexada ao câmbio quanto pelo estoque indexado à taxa Selic (que subia para conter as pressões inflacionárias ocasionadas pelo repasse cambial). O superávit primário e o EMBI também causam, no sentido de Granger, a DLSP: por si só, o primeiro realmente deveria afetar a DLSP, uma vez que foi adotado no Brasil para controlar a trajetória da dívida; já a causalidade que encontramos entre EMBI e DLSP pode ser explicada pela forte correlação entre EMBI e taxa de câmbio.

Com base na análise de decomposição da variância dos erros de previsão da DLSP (Tabela 8), notamos que a taxa de juros Selic responde por 20,1% da variância do erro de previsão da DLSP, ao passo que o superávit primário e o EMBI são responsáveis, respectivamente, por 8,36% e 13,38% dessa variância, confirmando os resultados obtidos nos testes de causalidade de Granger.

d. Resultado Nominal

A Tabela 9 mostra os resultados do teste de causalidade de Granger para o resultado nominal. Podemos observar que o resultado primário causa, no sentido de Granger, o resultado nominal. Tal resultado já era esperado, uma vez que o Resultado Nominal, recordamos, é o resultado da soma algébrica entre o resultado primário e o pagamento de juros. Com relação à divida, ela também causa, no sentido de Granger, o Resultado Nominal, isso porque um crescimento mais forte da DLSP em períodos passados exige esforço fiscal maior hoje, via aumento do superávit primário, para que a trajetória da dívida não se torne explosiva, o que resulta em aumento do Resultado Nominal.

Os resultados da Tabela 10 confirmam a importância da DLSP e do resultado primário na decomposição da variância dos erros de previsão do resultado nominal, com participação de 27,82% e 10,8%, respectivamente. Observe-se que a taxa de juros Selic também tem participação importante na decomposição da variância do erro de previsão do resultado nominal (15,56%), ainda que, pelo teste de causalidade de Granger, a relação entre taxa de juros Selic e resultado nominal só possa ser aceita a um nível de significância de 13%.

e. Resultado Primário

Analisando a Tabela 11 e considerando um nível de significância de 10%, observamos que nenhuma variável Granger causa o resultado primário. Aqui, precisamos ressaltar que, a priori, uma vez que a meta de resultado primário é definida em termos de porcentagem do PIB, pode parecer estranho que o teste de causalidade de Granger não tenha acusado relação entre as variáveis. Todavia, devemos ter em mente que a meta é definida para o ano, enquanto nossos dados são mensais. Logo, é possível que não haja realmente correlação entre o resultado primário mensal e o PIB mensal, ainda que possamos esperar que tal correlação apareça em uma análise com dados anuais.

f. PIB

Uma vez que o teste de causalidade de Granger indicou que o resultado primário não é explicado pelas outras variáveis do modelo, não foi necessário calcular a decomposição da variância dos erros de previsão dessa variável.

Com relação ao PIB, pelo teste de causalidade de Granger, a variável taxa de juros Selic foi a única que se mostrou relevante, conforme observamos na Tabela 12. A análise da decomposição da variância dos erros de previsão do PIB mostra que a taxa de juros Selic explica em torno de 21% da variância do erro de previsão do PIB após 12 meses, o que reforça a relação entre taxa de juros e crescimento econômico. Analisemos agora a Tabela 13.

É curioso observar que, embora essa causalidade pareça óbvia, no trabalho de Gomes e Holland (2003, p. 12), os autores afirmam que 'a variância do crescimento econômico do país não sofre influência significativa de nenhuma variável'.6 6 O trabalho desses autores estima um VAR para as variáveis Taxa de Juros Selic, PIB, IPCA, Taxa de Câmbio Nominal e Dívida Líquida do Setor Público (% PIB) para o período entre janeiro de 1999 e maio de 2003.

Em relação às funções de impulso-resposta, foi enunciado no capítulo 2 que essas traçam os efeitos futuros das variáveis na presença de choques correntes. Neste exercício, consideramos choques apenas sobre o resultado primário, visto que o objetivo aqui é discutir a proposta ortodoxa de aumento do superávit primário para garantir redução de juros, em oposição à proposta pós-keynesiana de queda da taxa de juros para reduzir déficit fiscal, via aumento do PIB e, consequentemente, da arrecadação.

Pela análise das funções de impulso-resposta, observamos que choques no resultado primário têm efeitos temporários, de curto prazo, sobre a dívida, o resultado nominal e o EMBI, mas não têm impacto sobre a taxa de juros Selic (Gráfico 1).


Assim, mais uma vez não encontramos relação entre o resultado primário e a Selic, o que confirma o resultado do teste de causalidade de Granger e não corrobora a ideia ortodoxa de que o resultado primário deve aumentar porque isso terá impactos positivos na queda da taxa de juros e, com isso, proporcionar a zeragem do déficit nominal.

O Gráfico 2, que mostra os impactos acumulados sobre as variáveis como consequência de um choque no resultado primário, evidencia que, mesmo no longo prazo, o impacto sobre a taxa de juros Selic não é estatisticamente diferente de zero.


De forma a refletir sobre o argumento pós-keynesiano de redução da taxa de juros para zerar o déficit nominal, ilustraremos alguns resultados provenientes de novas estimações, envolvendo agora variáveis relevantes para Keynes, tais como o gasto público e a arrecadação.

Vale lembrar que Keynes propôs o uso dos gastos e receitas do governo como meio de influenciar, positivamente, o nível de atividade econômica (produção e emprego) nas economias de mercado. Para Keynes, o elemento fundamental da política fiscal é o gasto público, e seu objetivo deveria ser o de evitar a deficiência de demanda efetiva. Uma política fiscal baseada em déficits seria recomendada apenas de forma transitória para garantir um programa de longo prazo em investimentos ou em situações de recessão já em curso, quando a arrecadação fica comprometida, e a necessidade de execução de investimentos públicos pode superar a disponibilidade de fundos próprios do governo.

Mais que isso, a sustentabilidade das contas públicas estaria garantida em longo prazo, uma vez que o investimento e o crescimento, estimulados pelo gasto público e pela redução da taxa de juros, levariam a aumento da arrecadação.

Assim, estimamos um VAR, envolvendo as variáveis relevantes para Keynes: 'taxa de juros 'Selic', 'PIB', 'resultado nominal', 'arrecadação' e 'gastos'. As variáveis 'Selic', 'PIB' e 'resultado nominal' têm as mesmas descrições já citadas anteriormente. A descrição das variáveis 'arrecadação' e 'gastos' está relatada a seguir. Todas as variáveis têm periodicidade mensal, de janeiro de 1999 a julho de 2008 (Quadro 2).


O procedimento padrão para a estimação é o mesmo seguido anteriormente. Primeiro, realizamos os testes ADF para verificar a estacionariedade das séries. As duas séries consideradas se revelaram estacionárias em primeira diferença, ou seja, revelaram-se integradas de primeira ordem.

Para testar o argumento keynesiano, estimamos primeiramente um VAR com as variáveis 'taxa de juros Selic', 'PIB', 'resultado nominal' e 'gastos', sem incluir a variável 'arrecadação'. Isso se justifica porque o gasto e a arrecadação são fortemente correlacionados, podendo comprometer os resultados da estimação. Em seguida, na Tabela 14, repetimos a estimação trocando a variável 'gastos' pela variável 'arrecadação'.

O próximo passo foi a seleção do melhor modelo VAR referente às quatro variáveis já destacadas. Com base nos critérios de informação computados, a Tabela 15 indica que o melhor modelo é aquele com apenas uma defasagem.

Após a definição do número de defasagens do VAR, passamos agora à análise das variáveis.

a. PIB

Pelas Tabelas 16 e 17, observamos que o PIB sofre influência da taxa de juros Selic e dos gastos, confirmando o argumento keynesiano da importância do gasto público como propulsor do crescimento econômico. Esse resultado torna discutível, por exemplo, argumentos como o de crowding-out, que neutraliza o impacto dos gastos públicos sobre os investimentos, ao reduzirem o investimento privado.

b. Gastos

A análise dos gastos revela que o PIB causa no sentido de Granger esta variável, conforme observamos pela Tabela 18. Tal resultado é corroborado pela decomposição da variância dos erros de previsão da variável gastos (Tabela 19).

c. Resultado Nominal

No que se refere ao resultado nominal, a única variável que se mostrou significativa, pelo teste de causalidade de Granger (Tabela 20), foi a taxa de juros Selic. A análise da decomposição da variância dos erros de previsão do resultado nominal mostra que a participação da taxa de juros Selic nesta decomposição é pouco expressiva (3,20%), após 12 meses.

d. Taxa de juros (SELIC)

Em relação à taxa de juros Selic, a única variável que se mostrou relevante no teste de causalidade de Granger foi o PIB (Tabela 22). O mesmo resultado foi corroborado pela análise da decomposição da variância dos erros de previsão (Tabela 23). Observa-se que a variância do erro de previsão dessa sofre influência do PIB em cerca de 18%. Gomes e Holland (2003) encontraram esse mesmo resultado, mas com uma participação do PIB menos expressiva (4,2%, após 10 meses).

Para a análise das funções de impulso-resposta, consideramos choques nos gastos e na taxa de juros. Nota-se que choques nos gastos têm impactos significativos e duradouros sobre o PIB, tal como prescrevia Keynes, conforme podemos observar nos Gráficos 3 e 4.



Com relação à taxa de juros, similarmente ao teste de causalidade de Granger e à análise de decomposição da variância dos erros de previsão, os resultados das análises das funções impulso-resposta revelam que choques na taxa de juros acarretam efeitos negativos significativos e duradouros sobre o PIB, conforme Gráficos 5 e 6, tornando discutíveis as elevadas taxas de juros que vêm sendo praticadas no Brasil na condução da política monetária via regra de Taylor. O resultado nominal também responde a choques na taxa de juros.



Finalmente, podemos agora apresentar os resultados relacionados ao modelo que inclui a variável 'arrecadação'.

Novamente computamos as estatísticas para a seleção do melhor modelo VAR, referente às quatro variáveis analisadas. Com base nos critérios de seleção (Tabela 24), o melhor modelo é aquele com três defasagens.

A correlação, já esperada, entre PIB e arrecadação pode ser observada com base nos resultados do teste de causalidade de Granger, da decomposição da variância dos erros de previsão e da função impulso-resposta. Observa-se que o PIB causa no sentido de Granger a arrecadação (Tabela 25). Já a Tabela 26 revela que o PIB é responsável por 11,20% da variância do erro de previsão da arrecadação, após 12 períodos.

A função impulso-resposta confirma esse resultado, mostrando um impacto significativo sobre a arrecadação, como resposta a um choque no PIB, tanto no curto prazo quanto no longo prazo, como mostram os Gráficos 7 e 8.



A julgar por esses testes usados aqui apenas em caráter ilustrativo, as conclusões pós-keynesianas se destacam, com respostas acentuadas da taxa de juros e dos gastos sobre o PIB e deste sobre a arrecadação, permitindo o financiamento dos gastos anteriores.

4_Considerações finais

O privilégio da política monetária sobre a política fiscal, caro à ortodoxia, foi concebido dentro de um arcabouço teórico, no qual a moeda é neutra – no curto ou no longo prazo –, e por isso a política monetária deve ser regida por uma regra clara para cumprir compromisso de 'disciplina monetária', em qualquer caso eliminando a discricionariedade da política. Isso porque os defensores de regras acreditam que a política monetária não é um instrumento que pode estimular o investimento e, consequentemente, reduzir o desemprego, de forma duradoura.

Sendo assim, não há nenhuma vantagem em financiar gastos do governo por meio de aumentos de oferta monetária ou aumento da dívida pública – já que a moeda é neutra e por isso não consegue afetar variáveis reais. Além disso, creem que a política fiscal dificulta o controle ou até causa inflação. Finalmente, a inflação provocada afeta preços relativos, distorcendo-os, comprometendo a eficiência do mercado a qual esses autores conferem à economia. A prioridade é, então, o controle de preços, porque a inflação distorce os preços relativos, e é justamente o sistema de preços que é o melhor regulador.

Nossa crítica relacionou-se à perda do braço fiscal do Estado nas políticas ortodoxas dominantes da atualidade. Uma vez que na concepção pós-keynesiana a economia é banhada pela incerteza, o Estado assume um permanente papel na alavancagem da demanda agregada, ou influenciando as expectativas dos empresários ou como agente participante diretamente na atividade de produção. Somente o Estado é capaz de reduzir a incerteza presente na economia graças ao seu poder centralizador de informações, mobilizador de recursos e influenciador da demanda efetiva.

Para Keynes, o elemento fundamental da política fiscal é o gasto público, e o objetivo da política fiscal deveria ser o de evitar a deficiência de demanda efetiva. Uma política fiscal baseada em déficits seria recomendada apenas de forma transitória para garantir programa de longo prazo em investimentos ou em situações de recessão já em curso, quando a arrecadação fica comprometida, e a necessidade de execução de investimentos públicos pode superar a disponibilidade de fundos próprios do governo. Mas, uma vez garantido o crescimento do produto e do emprego, a arrecadação tende a aumentar, e isso permite a redução e eliminação do déficit.

É nesse contexto que se coloca o debate sobre a zeragem do déficit nominal. Ressalta-se que a zeragem do déficit é um objetivo partilhado tanto por ortodoxos quanto por heterodoxos. O que se discute é a forma de se alcançar o déficit zero. Assim, o debate sobre a zeragem do déficit nominal no Brasil reflete outro, isto é, a dominância fiscal da política monetária, alegada pela ortodoxia, ou da dominância monetária da política fiscal, alegada pela heterodoxia.

Neste debate, a ortodoxia defende menor papel do governo, via aumento do superávit primário. A credibilidade do governo aumentaria com o superávit primário, visto que exigiria menor participação do governo com gastos e o impediria de exercer seu viés inflacionário. Isso levaria à queda da taxa de juros e do déficit fiscal. Por outro lado, a heterodoxia mostra que é a política monetária ortodoxa, exigindo taxas altas de juros, para conter inflação e a fuga de capitais, impõe dificuldades para a zeragem do déficit nominal.

O argumento pós-keynesiano é que a queda das taxas de juros proporcionaria maior crescimento do produto e, consequentemente, da arrecadação. Tal aumento da arrecadação, assim como a queda da taxa de juros, haveria de se traduzir em queda do déficit nominal. Neste sentido, o superávit primário não seria causa da queda dos juros, mas consequência. De forma a ilustrar este debate e criticar a posição ortodoxa, utilizamos a metodologia dos Vetores Auto-Regressivos (VAR).

Os resultados da análise econométrica mostraram que o superávit primário não é significativo para explicar variação da taxa de juros Selic, apesar de ser importante para explicar o EMBI. Tal resultado torna discutível a prescrição de aumentar o superávit para reduzir juros e, com isso, zerar o déficit nominal.

Além disso, outro resultado interessante foi que o PIB sofre influência da taxa de juros e dos gastos, confirmando o argumento keynesiano da importância do gasto público como propulsor do crescimento econômico. Esse resultado torna discutível, por exemplo, argumentos como o de crowding-out, segundo o qual a política fiscal é ineficaz, porque maior gasto governamental leva a maior taxa de juros, provocando queda de investimentos privados.

Keynes, ao contrário, propôs o uso dos gastos e receitas do governo como meio de influenciar, positivamente, o nível de atividade econômica (produção e emprego) nas economias de mercado.

Como esperado, encontramos forte correlação entre PIB e arrecadação. Com base na análise da função impulso-resposta, verificamos que um choque no PIB tem impactos significativos e duradouros sobre a arrecadação. Neste sentido, os resultados obtidos fortalecem os argumentos pós-keynesianos, com respostas acentuadas da taxa de juros e dos gastos sobre o PIB e deste sobre a arrecadação, permitindo o financiamento dos gastos anteriores.

No entanto, a estratégia de se elevar o produto, a renda e, consequentemente, as receitas geradas para o governo não vem sendo levada em consideração nos anos recentes no Brasil pela ortodoxia, em vista da concepção de Estado ineficiente e provocador de inflação. Optou-se pela política combinada de altas taxas de juros e expressivos superávits primários, ocasionando o baixo crescimento econômico verificado nos últimos anos.

Artigo recebido em outubro 2009; aprovado em maio de 2010.

Agradecemos a dois pareceristas anônimos cujas sugestões permitiram o aperfeiçoamento do artigo e ao CNPq, por financiamento de pesquisa maior da qual este trabalho é um dos frutos. A responsabilidade pelas ideias aqui discutidas é apenas das autoras, não envolvendo os órgãos onde trabalham.

E-mail de contato dos autores: mariana.lopes@fazenda.gov.br, mlmollo@unb.br

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  • 1
    O modelo VAR estimado é conhecido como 'modelo VAR na forma reduzida'. Esse modelo deriva de um mais geral conhecido como 'modelo VAR estrutural'. A priori, como o modelo VAR na forma reduzida possui menos parâmetros que o VAR estrutural, não seria possível a identificação exata deste segundo por meio das estimativas dos parâmetros do primeiro modelo. Neste caso, dizemos que o modelo VAR estrutural é superidentificado, e sua identificação exata só é possível quando se impõem restrições sobre um subgrupo de seus parâmetros estruturais.
  • 2
    Para recuperar os valores dos choques estruturais e, assim, calcular a decomposição das variâncias e as funções impulso-resposta, utilizamos o processo de decomposição de Cholesky. O ordenamento que definimos para a decomposição baseou-se em nosso conhecimento de teoria econômica. Desta maneira, ordenamos as variáveis 'da mais endógena para a mais exógena'.
  • 3
    As hipóteses nulas, de ausência de causalidade do tipo Granger, são hipóteses de ausência de correlação temporal entre as variáveis analisadas e são geralmente rejeitadas com probabilidade inferiores a 10% (valor fixado nesta pesquisa).
  • 4
    Quanto mais distantes de zero estiverem os intervalos de confiança das respostas aos impulsos, mais significativos são considerados os impactos.
  • 5
    Este resultado é oposto àquele encontrado no trabalho de Gomes e Holland (2003), em que os autores afirmam que '
    a variância da mesma (taxa de juros Selic) sofre influência do PIB, o que pode ser traduzido como uma preocupação inicial das autoridades monetárias com o crescimento econômico do país'.
  • 6
    O trabalho desses autores estima um VAR para as variáveis Taxa de Juros Selic, PIB, IPCA, Taxa de Câmbio Nominal e Dívida Líquida do Setor Público (% PIB) para o período entre janeiro de 1999 e maio de 2003.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      27 Jul 2011
    • Data do Fascículo
      Abr 2011

    Histórico

    • Recebido
      Out 2009
    • Aceito
      Maio 2010
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