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Análise da financeirização no setor automotivo: o caso da Ford Motor Company

Analysis of financialization in the automotive sector: the case of Ford Motor Company

Resumo:

O setor automotivo passa por um processo crescente de financeirização. Cada vez mais as montadoras vêm se tornando objeto de aquisições acionárias e do aumento da participação dos bancos, fundos de investimento e outras instituições financeiras em seus direitos de propriedade. Além disso, há enormes pressões por parte dos altos executivos e dos acionistas para que haja a maximização do valor ao acionista. Neste sentido, a proposta deste trabalho é analisar o processo de financeirização do setor automotivo por meio da Ford Motor Company, a partir de dados secundários da empresa e análise de seu conteúdo. Para analisar a financeirização, ao menos cinco categorias componentes desse processo serão usadas, tais como: proporção do lucro advindo das finanças em comparação com o lucro obtido pela produção; aquisições; composição acionária, origem dos dirigentes da empresa e pagamento de dividendos aos acionistas.

Palavras-chave:
Financeirização; setor automotivo; sociologia econômica.

Abstract:

The automotive industry is undergoing an increasing process of financialization. Increasingly, automakers are becoming the subject of equity acquisitions and increasing the participation of banks, mutual funds and other financial institutions in their property rights. In addition, there is enormous pressure from top executives and shareholders for maximizing shareholder value. In this sense, the proposal of this work is to analyze the process of financialisation of the automotive sector through Ford Motor Company, based on secondary data of the company and analysis of its content. To analyze financialization, at least five component categories of this process will be used, such as: proportion of profit from finance compared to profit from production; acquisitions; shareholding composition, origin of company officers and payment of dividends to shareholders.

Key-words:
Financialization; automotive sector; economic sociology.

1 Introdução

O processo de financeirização no setor automotivo pode ser caracterizado pela crescente aquisição de direitos acionários que bancos, fundos de pensão, fundos de investimento e seguradoras passam a deter das montadoras de automóveis. Também pode ser caracterizado pela instituição de uma nova ideologia, a da maximização do valor ao acionista e da transformação de uma estratégia baseada em reter e reinvestir para outra de diminuir e distribuir os recursos aos acionistas (Lazonick; O’Sullivan, 2000LAZONICK, W.; O`SULLIVAN, M. Maximizing shareholder value: a new ideology for corporate governance. Economy and Society, v. 29, n. 1, p.13-35, Feb. 2000., p.13).

A participação dos bancos e grandes grupos de investidores no controle acionário das empresas automotivas é um claro indicativo da financeirização do setor. Além desse fato, as próprias montadoras possuem seus bancos para financiar a venda dos automóveis que elas produzem, sendo tais atividades mais rentáveis do que a própria produção. Exemplos desses bancos são o Banco Fiat, Banco Volkswagen, RCI (braço financeiro da Renault), Banco Mercedes-Benz, entre outros (Anef, 2015ASSOCIAÇÃO NACIONAL DAS EMPRESAS FINANCEIRAS DAS MONTADORAS. São Paulo, Brasil. Disponível em: Disponível em: http://www.anef.com.br. Acesso em: 17 de março de 2015.
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). Além dos bancos, há as subsidiárias financeiras das montadoras, como por exemplo a Ford Motor Credit Company LLC, que “oferece uma ampla variedade de produtos financeiros automotivos” em forma de financiamento ou leasing (Ford, 2015FORD MOTOR COMPANY. Annual Report 2014 -Dearborn, Michigan, USA. 2015. , p. 8).

O setor automotivo representa uma fatia poderosa da indústria mundial e criou uma mercadoria que revolucionou a sociedade humana, o automóvel, que já há mais de cem anos é produzido, despertando paixões de todas as naturezas. No Brasil, a indústria automobilística representou em 2011 a impressionante parcela de 18,2% do PIB industrial brasileiro (Kubota, 2012KUBOTA, C. T. O Papel do Banco Toyota na Estratégia da Montadora Toyota. Dissertação de Mestrado em Administração de Empresas. EAESP/FGV - 2012., p.9). E, no mundo inteiro, atribui-se a esse setor 10% do PIB dos países desenvolvidos (Casotti; Goldenstein, 2008CASOTTI, B. P.; GOLDENSTEIN, M. Panorama do Setor Automotivo: as mudanças estruturais da indústria e as perspectivas para o Brasil. BNDES Setorial, Rio de Janeiro, n. 28, p. 147-188, set. 2008., p. 149).

Mas o desenvolvimento do capitalismo fez com que a rentabilidade do capital financeiro em muito ultrapassasse a rentabilidade e os lucros da produção. Daí a pressão do capital financeiro sobre o capital produtivo para que ele dê maiores lucros e assim consiga cada vez maior remuneração aos acionistas. Tais pressões alteram o modus operandi das empresas automotivas, fazendo-as dar mais valor ao aspecto financeiro das operações, a fim de conseguir as taxas de retorno esperadas, muitas vezes de 12 a 15%, somente para pagar dividendos aos acionistas, em um mercado de produtos maduro e cíclico, cujas margens de lucro são estreitas (Froud; Johal; Williams, 2002FROUD, J.; JOHAL, S; WILLIAMS, K. New agendas for auto research: financialization, motoring and present day capitalism. Competition & Change, v. 6 (1), p. 1-11, 2002., p. 7).

No sentido de compreender esses elementos, o objetivo deste trabalho é pesquisar o processo de financeirização do setor automotivo com uma análise do caso da Ford Motor Company. Para analisar a financeirização, estudaremos ao menos cinco categorias componentes desse processo, que são: proporção do lucro advindo das finanças em comparação com o lucro obtido pela produção real, pois isso dará a medida de onde vem a lucratividade e o grau de financeirização; as aquisições mostram os novos donos e controladores, suas políticas e preferências; a composição acionária das empresas vai nos dizer a proporção de ações que cada um controla, e a origem dos seus dirigentes nos demonstra de onde vem os principais executivos, se do mundo da produção ou das finanças. Além disso, o pagamento de dividendos aos acionistas também nos ajudará a analisar a prática da maximização do valor ao acionista. Com tudo isso, procuraremos entender as pressões que o mercado financeiro exerce sobre a indústria a partir do caso da Ford Motor Company.

Este trabalho se insere no quadro teórico estabelecido pela chamada Sociologia Econômica, que vem se desenvolvendo nas últimas décadas. Esse ramo das Ciências Sociais tenta conciliar a análise da economia com a sociologia, além de outras disciplinas, procurando interpretar os fenômenos econômicos da sociedade a partir de pressupostos que incluam as dimensões sociais, coletivas e comportamentais, que escapam às simplificações das concepções clássicas de economia, para quem o sujeito isolado e atomizado procura racionalmente sempre agir segundo seus interesses frios e calculistas.

O casamento entre a sociologia e a economia já vem sendo defendido por diversos autores, como por exemplo Mizruchi (2009MIZRUCHI, M. Análise de redes sociais: avanços recentes e controvérsias atuais. Redes e Sociologia Econômica . Edufscar, 2009.) e Granovetter (2009GRANOVETTER, M. Ação econômica e estrutura social: o problema da imersão. Redes e Sociologia Econômica. São Carlos. Edufscar, 2009.), mas é Swedberg (2009SWEDBERG, R. A sociologia econômica do capitalismo: uma introdução e agenda de pesquisa. Redes e Sociologia Econômica, Edufscar, 2009., p.163) quem mais claramente propõe o fim da divisão do trabalho entre sociólogos e economistas, com “uns estudando somente a economia e os outros estudando a sociedade menos a economia”. A criação da sociologia econômica, para esse autor, deveria ter a capacidade de explorar o que de melhor oferece tanto a sociologia quanto a economia para uma compreensão mais ampla dos processos e fenômenos denominados econômicos, e com isso beneficiar os estudiosos que puderem unir interesses e relações sociais em uma única análise, lembrando que “os interesses são sempre socialmente definidos e concretizados por meio de relações sociais” (Swedberg, 2009SWEDBERG, R. A sociologia econômica do capitalismo: uma introdução e agenda de pesquisa. Redes e Sociologia Econômica, Edufscar, 2009., p. 166).

2 Concepções teóricas sobre a financeirização

O processo de financeirização da economia mundial e das empresas vem sendo debatido nos últimos anos e seu sentido é amplo e cada vez mais popular (Martin et al., 2008MARTIN, R.; RAFFERTY, M.; BRYAN, D. Financialization, risk and labour. Competition & Change , v. 12, n. 2, p. 120-132, Jun. 2008.). Cada autor pesquisou os diferentes aspectos que envolvem a financeirização das sociedades e sua relação com diferentes dimensões da vida social: com as crises econômicas (Braga, 2009BRAGA, J. C. Crise sistêmica da financeirização e a incerteza das mudanças. Estudos Avançados, 23 (65), 2009.; Foster, 2009FOSTER, J. B. A financeirização do capital e a crise. Outubro, n. 18, 1° semestre, 2009.; Stockhammer, 2012STOCKHAMMER, E. Financialisation, income distribution and the crisis. Investigación Económica, v. LXXI, 279, p. 39-70, enero-marzo, 2012.), com o lucro financeiro (Guillén, 2014GUILLÉN, A. Financialization and financial profit. Brazilian Journal of Political Economy, v. 34, n. 3 (136), p. 451-470, July-September/2014.), com a explosão do crédito (Langley, 2008LANGLEY, P. Financialization and comsumer credit boom. Competition & Change , 12 (2), p. 133-147, 2008.), a racionalidade econômica (Kädtler, 2011KÄDTLER, J. - Financialisation of capitalist economies - bargaining on conventional economic rationalities. Historical Social Research 36, 4, pp. 169-191, 2011.), a desaceleração da economia (Stockhammer, 2000STOCKHAMMER, E. Financialisation and the slowdown of accumulation. Working Paper, n. 14, 2000.), a construção do princípio do valor ao acionista para poucos (Newberry; Robb, 2008NEWBERRY, S.; ROBB, A. Financialisation: constructing shareholder value... for some. Critical Perspective on Accounting, v. 19, Issue 5, p. 741-763, july 2008. ), a financeirização do Estado e a erosão da democracia (Giffin, 2007GIFFIN, K. M. Financeirização do Estado, erosão da democracia e empobrecimento da cidadania: tendências globais? Ciência & Saúde Coletiva, 12 (6), p. 1491-1504, 2007.), além de trabalhosBLOOMBERG. Disponível em: Disponível em: http://www.bloomberg.com. Acesso em: 30 de julho de 2015.
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que analisaramPAYSCALE. Disponível em: Disponível em: http://www.payscale.com . Acesso em: 9 de agosto de 2015.
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a financeirização no noticiário econômico (Puliti, 2009PULITI, P. A financeirização no noticiário econômico no Brasil (1989-2002). Tese de Doutorado em Ciências da Comunicação apresentada à Escola de Comunicação e Artes - (ECA) da Universidade de São Paulo, USP, 2009.), na transformação da economia americana (Fligstein; Shin, 2004FLIGSTEIN, N.; SHIN, T. Shareholder value and the transformation of american economy, 1984-2001. Project “The new inequalities at work”. Berkeley: Department of Sociology, University of California, 2004. p. 1-55.) e até com a transformação da propriedade das florestas madeireiras nos EUA (Gunnoe; Gellert, 2011GUNNOE, A; GELLERT, P. Financialization, shareholder value and the transformation of timberland ownership in the US. Critical Sociology, 37(3), p. 265-284, 2011.).

François Chesnais (1996CHESNAIS, F. Os grupos industrias, agentes ativos da mundialização financeira. In: A mundialização do Capital. São Paulo: Editora Xamã, 1996.) estudou a mundialização do capital e concluiu que “para os grandes grupos do setor de manufaturas ou serviços, a estreita imbricação entre as dimensões produtiva e financeira da mundialização do capital representa hoje um elemento inerente ao seu funcionamento cotidiano” (Chesnais, 1996CHESNAIS, F. Os grupos industrias, agentes ativos da mundialização financeira. In: A mundialização do Capital. São Paulo: Editora Xamã, 1996., p. 275). Para o autor francês, os grupos industriais são grupos financeiros de predominância industrial. Ele afirma que os grupos industriais diversificaram-se em direção às finanças e que a globalização os forçou a acentuarem sua função de centros financeiros (Chesnais, 1996CHESNAIS, F. Os grupos industrias, agentes ativos da mundialização financeira. In: A mundialização do Capital. São Paulo: Editora Xamã, 1996., p. 275). Os grupos industriais são agentes ativos da mundialização financeira, como ele asseverou em seu clássico livro de 1996. Nesse livro ele debate a interpenetração entre indústria e finanças, processo que caracterizou o início do século XIX, exposto em textos de Hilferding, que discutiram a “fusão” entre capital industrial e capital bancário, resultando no capital financeiro (Chesnais, 1996CHESNAIS, F. Os grupos industrias, agentes ativos da mundialização financeira. In: A mundialização do Capital. São Paulo: Editora Xamã, 1996., p. 290).

Claude Serfati (1999SERFATI, C. O papel ativo dos grupos predominantemente industriais na financeirização da economia. A mundialização financeira - gênese, custos e riscos. São Paulo: Editora Xamã, 1999.) estudou a participação dos grupos industriais na financeirização da economia, e nesse estudo ele define grupo como uma holding que centraliza os ativos, “qualificados de ‘produtivos’ e ‘financeiros’ e que são geradores de lucro”. Ele lança a hipótese de que “as clivagens entre essas duas formas de valorização, frequentemente consideradas como ‘polares’, são hoje menos claramente demarcadas do que se pensa” (Serfati, 1999SERFATI, C. O papel ativo dos grupos predominantemente industriais na financeirização da economia. A mundialização financeira - gênese, custos e riscos. São Paulo: Editora Xamã, 1999., p. 142).

Para Gerald Epstein (2002EPSTEIN, G. Financialization, rentier interest, and central bank policy. Paper prepared for PERI Conference on "Financialization of the World Economy", December 7-8, 2001, University of Massachusetts, Amherst. This version, June, 2002.) “financeirização refere-se ao aumento da importância dos mercados financeiros, objetivos financeiros, instituições financeiras, e elites financeiras na operação da economia e na gestão dessas instituições, tanto em nível nacional quanto em nível internacional” (p. 3).

De conjunto podemos depreender um mínimo de acordo na concepção básica: a financeirização seria a transformação do capitalismo industrial, fabril, como fonte principal de valorização do capital para o capitalismo financeiro (Zilbovicius; Dias, 2006ZILBOVICIUS, M.; DIAS, A.V.C. A produção face à financeirização: quais as consequências para a organização da produção e do trabalho? Uma proposta de agenda de pesquisa para a Engenharia de Produção brasileira. XXVI ENEGEP - Fortaleza, CE, Brasil, 9 a 11 de outubro, 2006., p. 1) e o avanço do capital fictício, como produto de considerável autonomização da circulação sobre a produção (Mollo, 2011MOLLO, M. L. R. Financeirização como desenvolvimento do capital fictício: a crise financeira internacional e suas consequências no Brasil. Departamento de Economia da Universidade de Brasília - UnB, texto n° 358, Brasília, abril de 2011., p. 2).

Robert Guttmann (1999GUTTMANN, R. As mutações do capital financeiro. A mundialização financeira- gênese, custos e riscos. São Paulo: Editora Xamã, 1999.) afirma que Marx, no livro III de O Capital, já fazia a distinção entre duas formas de capital financeiro: “os empréstimos a médio ou longo prazo, com juros, e o que ele (Marx) chama de ‘capital fictício’ (...) este abrangeria créditos envolvendo compromissos de caixa futuros (títulos), cujo valor é determinado unicamente pela capitalização do rendimento previsto, sem contrapartida direta em capital produtivo” (Guttmann, 1999GUTTMANN, R. As mutações do capital financeiro. A mundialização financeira- gênese, custos e riscos. São Paulo: Editora Xamã, 1999., p. 77). Seria, portanto, a transformação de um capitalismo produtivista para um capitalismo financeiro (Martins, 2014MARTINS, T. J. A nova elite financeira no Brasil: jogos, estratégias e disputas entre os “gerentes-engenheiros” e os acionistas. Revista de Economia Política e História Econômica, n. 32, Maceió-AL, agosto, 2014., p. 116).

Useem (1996USEEM, M. Investor Capitalism - How money managers are changing the face of corporate america. New York: Basic Books, 1996.) analisou as mudanças que ocorreram no funcionamento da gestão das empresas e na modificação do poder dos gerentes, passando este para o controle dos acionistas. Em seu célebre livro: Investor Capitalism, ele afirma que devido à pulverização dos acionistas o poder passou do dono da empresa para gerentes profissionais que detinham alto grau de autonomia e quase nenhum controle externo à firma, nem tampouco supervisão. Esses gerentes dominaram até a década de oitenta do século vinte, quando começou a ocorrer uma luta pelo controle das empresas através dos boards de diretores, que reuniram “acionistas insatisfeitos e diretores desapontados”.

Tal luta feriu de morte a até então inquestionada soberania dos gerentes e transferiu o poder efetivo aos acionistas, daí se desenvolvendo a mentalidade da maximização do valor ao acionista, das compensações milionárias aos executivos e da valorização a curto prazo do negócio (Useem, 1996USEEM, M. Investor Capitalism - How money managers are changing the face of corporate america. New York: Basic Books, 1996., p. 15).

Além dessa premissa básica de que a autovalorização do capital é mais eficiente por meio da lógica financeira, várias outras concepções podem ser unificadas no âmbito da nova sociologia econômica. A introdução do maximizing shareholder value como princípio foi analisada por vários pesquisadores (Kädtler; Sperling, 2002KÄDTLER, J.; SPERLING, H. J. The power of financial markets and the resilience of operations: argument and evidence from the German car industry. Competition & Change , v. 6(1), p. 81-94, 2002.; Jürgens et al., 2002JÜRGENS, U.; FRIGANT, V.; LUNG, Y.; VOLPATO, G. The arrival of shareholder value in the European auto industry. A case study comparison of four car makers. Competition & Change , v. 6(1), p. 61-80, 2002.; Newberry; Robb, 2008NEWBERRY, S.; ROBB, A. Financialisation: constructing shareholder value... for some. Critical Perspective on Accounting, v. 19, Issue 5, p. 741-763, july 2008. ; Goutas; Lane, 2009GOUTAS, L.; LANE, C. The translation of shareholder value in the German business system: A comparative study of Daimler-Chrysler and Volkswagen AG. Competition & Change , v. 13, n. 4, 327-346, Dec. 2009.). E além do aspecto concreto e visível das fusões e aquisições de empresas - movimentos acionários, demissões e reestruturações da produção, efeitos da financeirização -, os aspectos semiótico, simbólico e cultural das narrativas e justificações desse fenômeno também vêm sendo estudados pelos autores (Froud et al., 2006FROUD, J. et al., Financialization & Strategy: narrative and numbers. New York: Routledge, 2006.).

Pesquisa recente mostra que a lógica financeira altera sobremaneira a existência da empresa anterior, no que diz respeito à gestão, ao pessoal, à mentalidade geral dos atores. No estudo de caso de uma empresa do setor elétrico paulista, em que os autores analisaram a construção das carreiras em diferentes momentos da existência da empresa, antes e depois da privatização, uma das conclusões é a de que “a pressão dos novos donos tem consequências no desenho organizacional e na composição do poder da empresa” (Donadone; Matsuda, 2015DONADONE, J. C.; MATSUDA, P. M. A mudança da carreira dos dirigentes após o processo de privatização: estudo de caso no setor elétrico paulista. Gestão & Produção, São Carlos, v. 22, n. 2, p. 419-430, 2015., p. 420).

E no setor varejista brasileiro o estudo de Saltorato et al. (2014SALTORATO, P.; DOMINGUES, L.C.; DONADONE, J.C.; NEVES GUIMARAES, M. R. From stores to banks: the financialization of the retail trade in Brazil. Latin American Perspectives, v.41, p. 110-128, 2014.) lançou luz ao processo de financeirização que vem ocorrendo em ritmo acelerado, em seus impactos organizacionais e nos objetivos comerciais. Os autores analisaram as conexões cada vez mais próximas que as empresas varejistas vêm mantendo com as instituições financeiras e “a intensa concentração da indústria, uma maior participação do capital estrangeiro, a globalização das operações de negócios e a profissionalização da administração, que levaram a uma maior receptividade à lógica financeira pelo varejo” (Saltorato et al., 2014SALTORATO, P.; DOMINGUES, L.C.; DONADONE, J.C.; NEVES GUIMARAES, M. R. From stores to banks: the financialization of the retail trade in Brazil. Latin American Perspectives, v.41, p. 110-128, 2014., p. 111). Neste estudo ficou lançada a hipótese de que a lógica comercial pode estar sendo subordinada à lógica financeira quando da determinação das estratégias de gestão. E, além disso, os autores questionam quais são as consequências organizacionais que um varejista pode ter se começar a ter mais lucros advindos de atividades financeiras do que lucros obtidos pelas atividades tradicionais de varejo (Saltorato et al., 2014SALTORATO, P.; DOMINGUES, L.C.; DONADONE, J.C.; NEVES GUIMARAES, M. R. From stores to banks: the financialization of the retail trade in Brazil. Latin American Perspectives, v.41, p. 110-128, 2014., p. 111).

E, por fim, Saltorato et al. chegam a conclusão de que os próprios varejistas envolvidos com as demais instituições financeiras no lançamento de cartões de crédito e na exploração do mercado consumidor de crédito acreditam que a proporção de seus lucros financeiros tem crescido mais rápido do que seus lucros a partir das atividades convencionais varejistas (2014, p. 118).

2.1 Concepções teóricas sobre a financeirização do setor automotivo

No plano de análise do setor automotivo, Zilbovicius e Marx (2011ZILBOVICIUS, M.; MARX, R. What is the role for Brazil in the new automotive industry? Threats and opportunities in a changing future for the car and its industry. Gerpisa colloquium,Paris , 2011.) destacam vários desafios à indústria automotiva no início do século XXI, além de seus já tradicionais problemas. Meio ambiente, tecnologia, poluição, organização do trabalho, uso da terra e de recursos fósseis em larga escala são alguns dos desafios apresentados ao setor automotivo, além da sustentabilidade econômica. Os autores brasileiros questionam qual seria o papel que será reservado ao Brasil na nova indústria automotiva mundial, que está sendo redesenhada, e quais são as oportunidades e ameaças em um futuro próximo para o automóvel e sua indústria. Esta é uma preocupação nova que, a exemplo das preocupações acerca do processo de financeirização do setor, compõem outra dimensão de um mesmo processo de desenvolvimento da indústria automotiva e das especulações sobre seu futuro.

Com relação aos impactos sociais e humanos, os estudos referentes à financeirização no setor automotivo (Froud; Johal; Williams, 2002FROUD, J.; JOHAL, S; WILLIAMS, K. New agendas for auto research: financialization, motoring and present day capitalism. Competition & Change, v. 6 (1), p. 1-11, 2002.; Kädtler; Sperling, 2002KÄDTLER, J.; SPERLING, H. J. The power of financial markets and the resilience of operations: argument and evidence from the German car industry. Competition & Change , v. 6(1), p. 81-94, 2002.; Jürgens; Frigant; Lung; Volpato, 2002JÜRGENS, U.; FRIGANT, V.; LUNG, Y.; VOLPATO, G. The arrival of shareholder value in the European auto industry. A case study comparison of four car makers. Competition & Change , v. 6(1), p. 61-80, 2002.; Froud et al., 2006FROUD, J. et al., Financialization & Strategy: narrative and numbers. New York: Routledge, 2006.; Goutas; Lane, 2009GOUTAS, L.; LANE, C. The translation of shareholder value in the German business system: A comparative study of Daimler-Chrysler and Volkswagen AG. Competition & Change , v. 13, n. 4, 327-346, Dec. 2009.; Elías, 2013ELÍAS, J. C. The impact of the variable financialization in the collapse of General Motors Corporation of 2008. Gerpisa colloquium , Paris, 2013. , 2014) têm enfatizado que esse processo é por demais destrutivo e prejudicial ao modo de produção capitalista, já que a demissão de trabalhadores das montadoras e os cortes salariais, além da discrepância entre crescimento dos ativos financeiros e crescimento de contratações e aumentos de salários, poderão provocar uma crise maior ainda, com a diminuição do mercado consumidor principalmente na Europa ocidental e nos Estados Unidos (Elías, 2014ELÍAS, J. C. Financial analysis of the Volkswagen group from financialization point of view (1991-2007). Gerpisa colloquium, Paris, 2014., p. 2).

Para Lazonick (2012LAZONICK, W. “How american corporations transformed from producers to predators”. Huffpost Business, 4/3/2012.), a financeirização é definida como um processo de valorização que privilegia os aspectos financeiros da operação, considerando que o retorno aos acionistas em forma de pagamentos de dividendos, ou por meio de “stock buybacks” seja o centro das preocupações, “fazendo com que 1% da empresa seja mais importante do que os 99% restantes” (Lazonick, 2012, p. 1).

Elías (2013ELÍAS, J. C. The impact of the variable financialization in the collapse of General Motors Corporation of 2008. Gerpisa colloquium , Paris, 2013. ) alega que a variável financeirização teve um papel importantíssimo no colapso da General Motors Corporation (GMC). Segundo ele, William Lazonick, em sua apresentação: “The Innovative Entrerprise and the Development State: Toward an Economics of ‘Organizational Success’”, por ocasião da Conferência Anual de Bretton Woods, promovida pelo Institute for New Economic Thinking, em 10 de abril de 2011, escreveu que “se as três grandes montadoras norte-americanas não tivessem gastado 50 bilhões de dólares nos últimos vinte anos para impressionar Wall Street, elas não teriam chegado à situação em que se encontram, e se a General Motors tivesse deixado no banco US$ 20,4 bilhões, que foram distribuídos aos acionistas de 1986 a 2002, ela teria US$ 29,4 bilhões em dinheiro próprio para permanecer estável e enfrentar a competição global quando quebrou” (Elías, 2013ELÍAS, J. C. The impact of the variable financialization in the collapse of General Motors Corporation of 2008. Gerpisa colloquium , Paris, 2013. , p. 5).

Autores como Julie Froud, Sukhdev Johal e Karel Williams (2002FROUD, J.; JOHAL, S; WILLIAMS, K. New agendas for auto research: financialization, motoring and present day capitalism. Competition & Change, v. 6 (1), p. 1-11, 2002., p. 3) têm enfatizado a necessidade de se promover novas pesquisas para uma melhor compreensão do quadro de financeirização do setor automotivo, já que várias mudanças ocorreram e os métodos de análise anteriores, baseados em fábricas, processos e produtos, já estariam obsoletos.

Para William Lazonick e Mary O`Sullivan (2000LAZONICK, W.; O`SULLIVAN, M. Maximizing shareholder value: a new ideology for corporate governance. Economy and Society, v. 29, n. 1, p.13-35, Feb. 2000., p. 13), um dos pontos centrais do processo de financeirização é a introdução do princípio do maximizing shareholder value, que significa o retorno aos acionistas de seus investimentos com elevado grau de valorização, isto é, defende-se como corolário a maximização do retorno aos acionistas como uma nova ideologia.

Ocorre que enquanto no mercado financeiro a taxa de retorno é consideravelmente alta, no setor automotivo a taxa de retorno sobre o capital empregado é considerada medíocre se comparada às exigências das bolsas de valores. Isso faz com que haja uma pressão do capital financeiro sobre a indústria automotiva para que ela dê maiores lucros (Froud; Johal; Williams, 2002FROUD, J.; JOHAL, S; WILLIAMS, K. New agendas for auto research: financialization, motoring and present day capitalism. Competition & Change, v. 6 (1), p. 1-11, 2002., p. 7). Tais pressões alteram o modus operandi das empresas automotivas, fazendo-as investir boa parte de seus esforços nos serviços financeiros, a fim de conseguir as taxas de retorno esperadas muitas vezes de 12 a 15%, enquanto que na produção real os lucros de produção não ultrapassam 3 a 5% (Froud et al., 2002FROUD, J.; JOHAL, S; WILLIAMS, K. New agendas for auto research: financialization, motoring and present day capitalism. Competition & Change, v. 6 (1), p. 1-11, 2002.).

Na Ford, para cada US$ 100 investidos em dezembro de 2010, chegou-se a US$ 97 em dezembro de 2015, desvalorização de 3% em seis anos, sem descontar a inflação. Quando comparados com os índices das bolsas de valores, temos que os mesmos US$ 100 investidos em 2010 chegaram a US$ 181 na S&P 500 e US$ 132 no índice Dow Jones Automobile & Parts Titans 30, no fim de 2015. Valorizações de 81% e 32% respectivamente, muito acima da rentabilidade da empresa montadora (Ford, 2016, p. 200).

Na General Motors a situação é igualmente ruim. A cada US$ 100 investidos em fins de 2010, houve desvalorização, chegando a US$ 99,46 em dezembro de 2015. Enquanto isso, o índice Dow Jones 30 acumulava alta de 31%, saindo de US$ 100 em 2010 para US$ 131 em 2015. E o índice S&P 500 saía de US$ 100 em 2010 para US$ 180 em 2015, valor acumulado de 80% (GMC, 2015GENERAL MOTORS COMPANY. Annual Report 2015. Disponível em http://www.gm.com. Acesso em 22/2/2016.
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, p. 24).

As taxas de retorno sobre as receitas das montadoras podem ser decompostas e comparadas a partir de sua divisão fabril e de sua divisão financeira e são um componente importante para o estudo da financeirização do setor automotivo. É a partir delas que temos a dimensão da lucratividade que cada setor tem e das pressões que o capital financeiro faz sobre a indústria automotiva. Os serviços financeiros representam fatias importantes sobre o total da atividade econômica da indústria e vem incrementando sua participação no total dos negócios ao longo dos anos.

A pressão para um retorno cada vez maior ao acionista e por uma lucratividade que a atividade produtiva não consegue atingir faz com que os esforços se desviem para as atividades de caráter financeiro. No caso das montadoras, a dependência das vendas em leasing e financiamentos adquire cada vez contornos mais expressivos. É com esse expediente que se consegue dar a remuneração que os investidores esperam. Porque se trata da ideologia do maximizing shareholder value, o máximo retorno ao acionista acima de tudo (Lazonick; O`Sullivan, 2000LAZONICK, W.; O`SULLIVAN, M. Maximizing shareholder value: a new ideology for corporate governance. Economy and Society, v. 29, n. 1, p.13-35, Feb. 2000., p. 13).

3 Método

Este trabalho consiste em um estudo de caso da Ford Motor Company, empresa que atua há mais de cem anos na produção de automóveis e é a quinta maior empresa automobilística em nível mundial. O método de pesquisa do estudo de caso foi escolhido porque o objetivo do trabalho é analisar como se dá o processo de financeirização no setor automotivo a partir do caso de uma importante montadora. Segundo Robert Yin (2001YIN, R. K. Estudo de Caso - planejamento e métodos. Porto Alegre: Bookman, 2001.), o estudo de caso representa “a estratégia preferida quando se colocam questões do tipo ‘como’ e ‘por que’, quando o pesquisador tem pouco controle sobre os eventos e quando o foco se encontra em fenômenos contemporâneos inseridos em algum contexto da vida real” (Yin, 2001, p. 19).

Inicialmente, vamos nos debruçar na análise dos relatórios anuais disponibilizados pela Ford e publicados na internet pelo site da empresa, que é sediada nos Estados Unidos, na cidade de Dearborn, estado do Michigan.

Nestes annual report da Ford estão contidos dados que comparam a lucratividade da Ford Automotiva com a lucratividade da Ford Financeira. Parte desses dados estão publicados no livro Financialization & Strategy, de autoria de Froud et al. (2006FROUD, J. et al., Financialization & Strategy: narrative and numbers. New York: Routledge, 2006.), cobrindo do ano de 1988 a 2003. Nossa pesquisa vai continuar a apuração desses dados até 2014, permitindo chegar a 25 anos de análise sobre os números da Ford.

Após o estudo da comparação entre as lucratividades, serão analisados os dados sobre a composição acionária da montadora e seus últimos movimentos de aquisição de ações. Além disso, dados sobre o histórico de pagamentos de dividendos aos acionistas também são estudados. Esses dados estão disponíveis no site da associação norte-americana das seguradoras e acionistas, a Nasdaq.

Para analisar os dados dos dirigentes da Ford, serão utilizadas as informações contidas no site econômico Bloomberg, em sua área de perfis de executivos e profissionais da alta direção da empresa. Além do pagamento de salários e outras compensações totais auferidos pelos executivos e diretores.

E, por fim, os salários dos funcionários da Ford, desde o menor até o maior salário, serão conhecidos a partir das informações disponíveis no site Payscale, especializado em salários da indústria. Com eles, poderemos comparar os salários dos funcionários com os dos diretores e executivos da empresa e a proporção de vezes que o Chief Executive Officer (CEO), por exemplo, ganha em relação aos demais funcionários.

3.1 Análise dos resultados

Com todos esses dados, será possível estabelecer uma análise de conteúdo dos números que forem encontrados, interpretando, dessa maneira, o processo de financeirização no setor automotivo a partir do caso da Ford. A análise de conteúdo “é um conjunto de instrumentos metodológicos que se aplicam a discursos extremamente diversificados” (Bardin, 1977BARDIN, L. Análise de Conteúdo. Lisboa: Edições 70, 1977., p. 9). Inicialmente dedicados aos discursos de comunicação de massa, servem também para descortinar uma diversidade de conteúdos e continentes, não somente textos obscuros e com dupla significação. “Absolve e cauciona o investigador por essa atração pelo escondido, o latente, o não-aparente, o potencial de inédito (do não-dito), retido por qualquer mensagem” (Bardin, 1977, p. 9).

O objetivo da análise de conteúdo “é a manipulação de mensagens (conteúdo e expressão desse conteúdo) para evidenciar os indicadores que permitam inferir sobre uma outra realidade que não a da mensagem” (Bardin, 1977BARDIN, L. Análise de Conteúdo. Lisboa: Edições 70, 1977., p. 46).

Neste estudo sobre a financeirização no setor automotivo queremos exatamente isso: coletar e traduzir para o leitor dados, números e relatórios provenientes das empresas e que permanecem em silêncio nos annual report e outras fontes, em geral relatórios com centenas de páginas áridas e em formato de prestação de contas em linguajar de contabilista ou mensagens otimistas para acionistas e investidores.

Com base no referencial teórico utilizado e que dá respaldo às nossas preocupações, usaremos os dados empíricos obtidos na coleta e os confrontaremos com os pressupostos teóricos advogados pelos autores, verificando assim o acerto ou não da teoria em relação ao que foi observado.

Queremos com nossa análise interpretar o que está por trás dos dados e números e oferecer ao leitor uma contribuição sobre a questão e, mais ainda, deixá-lo livre para tirar suas próprias conclusões sobre a financeirização no setor automotivo.

4. Resultados da pesquisa

4.1 Estudo de caso: Ford Motor Company

A Ford Motor Company foi fundada em 1903 por Henry Ford e atua no mercado automotivo há mais de cem anos, produzindo atualmente veículos em seis continentes. Ao todo contava em 2014 com 187 mil trabalhadores espalhados por 62 plantas ao redor do mundo. Suas marcas principais são Ford e Lincoln e, em 2014, a empresa vendeu aproximadamente 6.323.000 de veículos em nível mundial, com uma receita total de US$ 144 bilhões. A montadora possui cinco divisões continentais, estabelecidas na América do Norte, América do Sul, Europa, Oriente Médio & África e Ásia & Pacífico, além da divisão de serviços financeiros, representada pela Ford Motor Credit Company LLC (Ford, 2015, p. 2).

Em 2014, a Ford teve uma participação no mercado global de automóveis de 7,2%, sendo que sua maior participação individual foi no Canadá, com 15,5% das vendas da montadora somente naquele país. Estados Unidos, com 14,7%, Inglaterra com 14,5%, Argentina com 14,1%, Turquia com 11,7% e Brasil com 9,4% foram os países que mais representaram fatias de vendas da empresa mundialmente (Ford, 2015, p. 7).

No quesito emprego, a Ford cresceu no total de suas contratações entre 2013 e 2014, tendo passado de 181 mil trabalhadores em 2013 para 187 mil em 2014. Cresceu na América do Norte, de 84 mil para 90 mil trabalhadores, mas decresceu na América do Sul, onde caiu de 18 mil para 16 mil funcionários de um ano para o outro. Mesmo movimento deu-se na sua divisão europeia, que reduziu seus postos de 50 mil trabalhadores para 47 mil. Um forte crescimento ocorreu na divisão da Ásia & Pacífico, passando de 20 mil trabalhadores em 2013 para 25 mil em 2014, aumento de 25%. Os postos de trabalho no Oriente Médio & África continuaram com os mesmos 3 mil trabalhadores nos dois anos em questão, o mesmo valendo para a divisão da Ford Motor Credit Company, que manteve 6 mil funcionários em atuação tanto em 2013 quanto 2014 (Ford, 2015, p. 13).

Nos últimos 25 anos, a Ford vem passando por um intenso processo de financeirização expresso pela sua dependência cada vez maior dos serviços financeiros em contraposição com sua área produtiva. Passaremos agora à análise da financeirização no setor automotivo a partir do caso da Ford.

4.2 Análise da financeirização da Ford

4.2.1 Lucros obtidos pelas atividades financeiras versus lucros obtidos pela atividade produtiva

Em primeiro lugar queremos aqui distinguir lucratividade e rentabilidade. Como todos sabem, lucratividade tem a ver com porcentagem sobre as vendas ou receitas. E rentabilidade refere-se ao retorno sobre o capital investido. Quando falamos em lucratividade buscamos comparar a área produtiva com a área financeira da empresa para verificarmos qual é mais lucrativa (os dados mostrarão que nossa suspeita inicial estava correta - a parte financeira é proporcionalmente mais lucrativa que a parte automotiva, como veremos a seguir). E quando falamos de rentabilidade do setor queremos dizer que a taxa de retorno sobre o capital investido ou empregado é essa ou aquela. Também aqui nossa suspeita inicial de que a rentabilidade do setor automotivo é medíocre em comparação com os índices das bolsas de valores ficará comprovada.

O ano de 2014 foi o segundo ano de maior valor total nas receitas da Ford, chegando a US$ 144,077 bilhões. Mas foi um ano de queda brusca na lucratividade. Em 2013, ano recorde, a empresa teve receita de US$ 146,917 bilhões e lucrou US$ 7,182 bilhões, mais do que o dobro do ano seguinte, 2014, cujo lucro caiu a US$ 3,187 bilhões.

Quando observamos o vai-e-vem da lucratividade da Ford que, tal como em outras montadoras, é cíclico e muito suscetível às oscilações de demanda, vemos que nos últimos cinco anos ela saiu de um lucro líquido de US$ 6,481 bilhões, em 2010, para incríveis US$ 20,312 bilhões em 2011, despencando depois para US$ 5,613 bilhões em 2012, subindo para US$ 7,182 em 2013 e de novo caindo para seu patamar mais baixo desses cinco anos: US$ 3,187 bilhões (Ford, 2015, p. 27).

O mais interessante de se notar é que quando olhamos para o valor do lucro líquido de qualquer ano não conseguimos enxergar imediatamente qual a composição desse lucro. Em uma análise mais detida do relatório anual da empresa, vemos que no ano de 2010 o lucro bruto de US$ 7,069 bilhões foi composto por US$ 4,066 bilhões provenientes da Ford Automotiva e US$ 3,003 bilhões oriundos da Ford Financeira (Ford, 2015).

Isto é, quase 45% do lucro vieram das atividades financeiras e por volta de 55% do lucro foram obtidos com as atividades produtivas. Isso pode parecer uma predominância da lucratividade a partir da área da produção, com mais da metade da lucratividade total, mas quando analisamos qual é a proporção do lucro com relação às receitas de cada setor, vemos que a Ford Financeira ganha e, de longe, vem ganhando, em termos de lucratividade, em comparação com a Ford Automotiva.

Em 2014, as receitas do setor automotivo da Ford foram de US$ 135,782 bilhões, com uma lucratividade de US$ 2,548 bilhões. Isso equivale a 1,9% de taxa de retorno. No mesmo ano, as receitas do setor financeiro da Ford foram de US$ 8,295 bilhões, com uma lucratividade de US$ 1,794 bilhões, ou seja, 21,6% de retorno sobre as receitas.

Tabela 1:
Receitas da Ford

É na demonstração dessa diferença de taxa de retornos que pretendemos nos concentrar neste momento. Os serviços financeiros da montadora tiveram uma lucratividade, em média, dez vezes maior do que sua área produtiva, suas fábricas e outras instalações.

Se tomarmos o ano de 2010, a diferença brutal também ocorre. As receitas do setor produtivo foram de US$ 119,280 bilhões e o lucro de US$ 4,066 bilhões, resultando em uma taxa de 3,4% de retorno. Enquanto isso, as receitas do setor financeiro da empresa nesse mesmo ano foram de US$ 8,842 bilhões e seu lucro de US$ 3,003 bilhões, ou seja, 34% de taxa de retorno (Ford, 2015, p. 27). De 1988 a 2003, um período que compreende dezesseis anos, a contribuição da Ford Financeira foi superior à da Ford Automotiva em dez anos, tendo cinco desses anos colaborado com 100% do lucro da empresa, já que a Ford automotiva deu prejuízos de US$ 5,477 bilhões em 1991, US$ 2,562 bilhões em 1992, US$ 9,394 bilhões em 2001, US$ 1,181 bilhão em 2002 e US$ 1,957 bilhão em 2003 (Froud et al., 2006FROUD, J. et al., Financialization & Strategy: narrative and numbers. New York: Routledge, 2006., p. 289, tabela c2.5).

Tabela 2:
Contribuição por setor

Nos anos 2000, os resultados também não foram positivos até o ano de 2009, quando a empresa freia o processo de prejuízos anuais e retoma a lucratividade. Também nesses anos quem salvou a empresa foi seu setor financeiro. Em 2004, ante um prejuízo de US$ 200 milhões da Ford Automotiva, a Ford Financeira obteve receita de US$ 5 bilhões. Em 2005, mais prejuízos da Ford Automotiva da ordem de US$ 3,9 bilhões só foram compensados com o lucro de US$ 5 bilhões da Ford Financeira. Em 2006, prejuízos de US$ 17 bilhões da Ford Automotiva não conseguiram ser salvos pelos US$ 2 bilhões de lucro da Ford Financeira. E assim foi em 2007, com prejuízo de US$ 5 bilhões da Ford Automotiva e lucro da Ford Financeira de US$ 1,2 bilhão.

Somente no ano de 2008, em plena crise do mercado imobiliário norte-americano, é que tanto a Ford Automotiva quanto a Ford Financeira apresentaram prejuízos da ordem de US$ 11,8 bilhões e US$ 2,6 bilhões, respectivamente (FORDFORD MOTOR COMPANY. Annual Report 2015 - Dearborn, Michigan, USA, 2016. Disponível em: http://corporate.ford.com/content/dam/corporate/en/investors/reports-and-filings/Annual%20Reports/2015-Annual-Report.pdf. Acesso em 6/6/2016.
http://corporate.ford.com/content/dam/co...
, annual report, vários anos).

Em 25 anos, pelo menos 12 anos apresentaram prejuízos por parte da Ford Automotiva com contribuição exclusiva da Ford Financeira, e nos 13 anos restantes, quando houve lucro, a lucratividade da Ford Financeira foi aproximadamente dez vezes maior do que a da Ford Automotiva.

Esses números ilustram o fato de que os serviços financeiros da empresa - por meio de sua subsidiária Ford Motor Credit Company LLC, envolvendo vendas parceladas a prazo, leasing e outras opções de compra - são de vital importância na lucratividade e mesmo significam uma verdadeira tábua de salvação nos períodos de crise e de prejuízos gigantescos já verificados na história da marca. Essas vendas significaram 38% do total no ano de 2012 e aumentaram para 45% em 2014 (Ford, 2015, p .8). Aqui cabe uma distinção no processo de financeirização da Ford. Embora os serviços financeiros da empresa deem lucros proporcionalmente mais altos do que os da manufatura, é verdade que esses serviços dependem da esfera da produção, dependem de que automóveis sejam produzidos para serem vendidos de modo financiado, à moda de bancos e instituições de crédito. Isso poderia indicar que a financeirização na Ford não é tão descolada da esfera produtiva, pois só seria uma extensão das atividades de vendas, mas não é bem assim.

Quando vemos que as compensações aos executivos incluem stock repurchases, recompras de ações, um mecanismo que visa aumentar o preço das ações com a recompra delas, artificialmente portanto, nota-se que aqui temos a clássica fórmula do capital-dinheiro que se autovaloriza sem passar pela esfera da produção, D - D’ (dinheiro que gera dinheiro), como ficou demonstrado no trabalho de Chesnais (1996CHESNAIS, F. Os grupos industrias, agentes ativos da mundialização financeira. In: A mundialização do Capital. São Paulo: Editora Xamã, 1996., p. 290). Isto é, a financeirização atinge a montadora de qualquer maneira.

Outro dado interessante que ilustra o processo de financeirização é o dos ativos da empresa. Em 2014, os ativos totais eram de US$ 210,443 bilhões, sendo que US$ 121 bilhões eram ativos financeiros e somente US$ 90 bilhões eram ativos físicos do setor automotivo. Mais de 60% dos ativos eram originados da Ford financeira (Ford, 2015, p. 27).

Isto nos leva a perguntar: qual estratégia econômica a montadora Ford vem adotando? Quando os lucros da empresa vêm das atividades financeiras, a partir do crédito, dos juros e das atividades típicas de bancos e outras organizações financeiras, podemos refletir: o que está acontecendo com esse segmento industrial nos dias de hoje?

4.2.2 Composição acionária

Com aproximadamente 4 bilhões de ações lançadas no mercado financeiro, a Ford possuía em 6 de agosto de 2015 o montante de 41,25% de ações não institucionais, isto é, individuais e de pessoas físicas e 58,75% de ações institucionais, detidas por corporações e grupos de investimento que praticamente dominam sua composição.

Os acionistas institucionais eram em número de 1.127 e detinham 2 bilhões, 289 milhões, 327 mil e 416 ações, avaliadas em US$ 33,882 bilhões. Porém, apenas os cinco maiores acionistas controlavam 34% das ações institucionais. São eles: Vanguard Group Inc, com 9,44%, Evercore Trust Company, N.A., com 9,4%, State Street Corp, com 6,54%, Blackrock Institutional Trust Company, N.A., com 4,27% e Barrow Hanley Mewhinney & Strauss LLC, responsável por 3,57%. Todas corporações gigantescas de serviços financeiros (Nasdaq, 2015NASDAQ. Disponível em: http://www.nasdaq.com. Acesso em: 6 de agosto de 2015.
http://www.nasdaq.com...
).

Se juntarmos mais cinco grandes acionistas, Wellington Management Group LLP, Fidelity Management and Research - FMR LLC, Allianz Asset Management AG, Loomis Sayles & Company LP e Northern Trust Corporation, o controle chega a nada menos do que 45% das ações. Ou seja, os dez maiores acionistas da Ford são grupos financeiros que detêm sozinhos mais de 1 bilhão de ações avaliadas em US$ 15,682 bilhões (Nasdaq, 2015).

Quando ampliamos este grupo para os quinze maiores acionistas, deixando para trás mais de mil e cem acionistas, o controle acionário chega a 54%, com ações avaliadas em mais de US$ 17 bilhões. Isto é, 1,3% dos acionistas concentram mais da metade dos valores e das ações.

Tabela 3:
Maiores acionistas

4.2.3 Aquisições acionárias

As aquisições que os grupos financeiros realizam nas ações da Ford realçam a política dos grupos e principalmente dos bancos de incrementar suas posses e daí seu controle nas decisões da empresa.

Os últimos movimentos acionários foram responsáveis pela expansão da participação dos bancos e corporações financeiras. Em 2015, o Vanguard Group Inc. adquiriu mais de 12 milhões de ações, passando a deter 214 milhões de unidades e aumentando sua participação em 6,44%. Esse grupo é um gigante da economia norte-americana, com valor de mercado estimado em US$ 1,455 trilhão.

Mais agressivos foram os bancos, como por exemplo o Bank of America, que adquiriu 13,5 milhões de ações, aumentando sua participação acionária em 63,41%. A financeira JP Morgan Chase & Co comprou mais de 8 milhões de ações, crescendo em 66,87% sua participação nas ações da Ford. Goldman Sachs Group Inc. também comprou quase 7 milhões de ações, ampliando sua participação em 46,83% (Nasdaq, 2015).

A essas ampliações que realizaram os bancos somam-se outros grupos nas aquisições acionárias da Ford. Os principais compradores de ações no ano de 2015 foram principalmente grupos financeiros poderosos, como por exemplo Anchor Bolt Capital, LP, que comprou mais de 8 milhões de ações com a injeção de US$ 117 milhões em capitais para a montadora. Outros fundos de investimento também participaram de aquisições acionárias da Ford, como Dimensional Fund Advisors LP, Mount Lucas Management LP, Hosking Partners LLP, Artemis Investment Management LLP, que juntos adquiriram mais de 10 milhões de ações, levando para a empresa quase US$ 200 milhões em capital. Ao todo, os dez maiores grupos financeiros adquiriram mais de 60 milhões de ações, investindo um montante de quase US$ 1 bilhão (Nasdaq, 2015).

Tabela 4:
Aquisições

4.2.4 Origem dos dirigentes da empresa

Um aspecto constituinte do processo de financeirização da sociedade é que nos principais cargos de direção das empresas estejam profissionais sintonizados com os pressupostos das finanças. Anteriormente, o presidente ou o dirigente da empresa tinham em mente que a atividade produtiva era fundamental para o desenvolvimento dos negócios. Depois, uma era de domínio da estratégia de vendas e marketing colocou nos principais postos de comando pessoas comprometidas com as vendas e o marketing. E, subsequentemente, as estratégias financeiras deram a primazia do comando aos membros do mundo financeiro.

Na Ford, o Board of Directors ou Conselho de Administração é composto pelo presidente e herdeiro William Clay Ford Jr. e mais dezessete diretores. Nada menos que nove diretores têm ou tiveram participações em bancos, seguradoras e outras instituições financeiras. Ou seja, mais da metade do Board é composta por pessoas que fazem ou fizeram parte de organizações financeiras e que levam para dentro da montadora suas crenças e valores moldados pelo mundo das finanças.

Com uma equipe montada à imagem e semelhança do mercado financeiro, a ideologia da maximização do retorno ao acionista torna-se natural e livre de obstáculos. A tabela 5 mostra as relações dos executivos com as organizações financeiras em que participam ou participaram.

Tabela 5:
Dirigentes da empresa

4.2.5 Pagamento de dividendos aos acionistas

A instituição das sociedades por ações e a prática dos investimentos em ações como estratégias de valorização do capital estimulou psicologicamente a expectativa de retorno ao acionista como elemento principal. Os investidores não têm interesse em conhecer a real situação de uma empresa, seus detalhes, a sua história e de seus funcionários, patrões, fornecedores ou clientes, enfim, os detalhes individuais, mas apenas têm em mente o retorno que a empresa dará às suas ações, a seus dividendos e a valorização da ação em si ao longo do tempo.

Já os executivos e diretores da empresa são parceiros dos acionistas na medida em que definem um conjunto de retribuições e altos salários que distam centenas de vezes dos salários da massa dos trabalhadores. Nesse caso, o que vemos é uma aliança entre acionistas e dirigentes das empresas para fazer valer o princípio da maximização do retorno ao acionista, fazendo com que os lucros sejam distribuídos a eles com o pagamento dos dividendos e os salários e compensações dos dirigentes sejam pagos regiamente.

A política da Ford de retribuição aos acionistas foi interrompida em 2006 e retomada em 2012, quando a empresa voltou a ter lucros. Desse ano para cá tem havido um crescimento contínuo no valor dos ganhos por ação, que subiram de US$ 0,20 em 2012 para US$ 0,40 em 2013, US$ 0,50 em 2014 e US$ 0,60 em 2015, triplicando, portanto, em quatro anos.

Tabela 6:
Ganho por ação

Pode parecer pouco tal retorno para uma ação que vale em torno de US$ 15,00, mas quando notamos na Tabela 7 que a totalidade do lucro líquido foi distribuída em forma de dividendos aos acionistas, perguntamos: como é que ficam os outros stakeholders do negócio?

Tabela 7:
Distribuição dos dividendos

Esses números demonstram que sobra pouco ou nada para reinvestimentos e melhorias salariais, entre outras vantagens que poderiam ser distribuídas aos seus mais de 187 mil funcionários, como por exemplo a criação de um fundo para os momentos de crise, por meio do qual poderiam ser evitados os cortes de postos de trabalho e milhares de demissões.

A esta categoria de análise gostaríamos de acrescentar dois itens que poderão ajudar na interpretação do processo de financeirização da Ford, que são as compensações aos executivos e os salários pagos aos trabalhadores restantes.

4.2.6 Compensações aos executivos

Na Ford há um salário anual para os diretores, opções de ações a longo e a curto prazo, prêmios com direito a ações restritas, enfim, várias compensações milionárias, fazendo com que em geral os ganhos anuais dos dirigentes sejam elevados em comparação com os trabalhadores restantes.

Para termos uma ideia das compensações dos dirigentes, tomaremos quatro diretores e dois executivos que tiveram ganhos milionários no ano de 2014. O CEO Mark Fields recebeu US$ 18.596.497,00 somente no ano fiscal de 2014, entre salário e compensações gerais. Anthony Earley Jr., diretor e presidente do comitê de compensações, recebeu US$ 11.627.216,00 em compensações totais. John Lechleiter, diretor que também participa do setor farmacêutico, angariou US$ 14.481.142,00 entre salários e outros ganhos totais. Robert Shanks, vice-presidente executivo e chefe financeiro, recebeu US$ 6.320.646,00 em compensações totais (Bloomberg, 2015).

Entre os executivos, James Farley Jr., vice-presidente executivo e presidente da divisão para a Europa, Oriente Médio e África, ganhou US$ 4.494.764,00 em compensações totais e Joseph Hinrichs, presidente da Ford para as Américas, embolsou US$ 6.092.630,00 em todo o ano fiscal de 2014 (Bloomberg, 2015).

Tabela 8:
Compensações

4.2.7 Salários dos funcionários

Esses números destoam da grande maioria dos outros empregados da empresa, que recebem salários muito menores e que variam de US$ 17 mil anuais para um ajudante de serviços, passando pelo trabalhador da linha de montagem, que ganha entre US$ 25 mil e US$ 68 mil anuais, até chegar a um gerente de grupo de engenheiros, com salários que variam de US$ 90 mil a US$ 190 mil anuais, conforme Tabela 9 (Payscale, 2015). Abaixo, podemos ver os salários de alguns dos principais profissionais que atuam diretamente no núcleo central da empresa, que é a produção.

Tabela 9:
Salários dos funcionários

Com base nos dados dos salários divulgados pelo site Payscale, podemos ver os valores mínimos e valores máximos pagos pela Ford (Tabela 9). Tais números mudam ao longo do ano e temos como base o mês de agosto de 2015.

Na Tabela 9, vemos que há uma diferença salarial entre os trabalhadores, o que é normal em um sistema econômico capitalista em que há mesmo diferenças entre as distribuições de recursos e remunerações entre os indivíduos e suas profissões. Na Ford, a diferença salarial existente entre um trabalhador menos qualificado e outro mais qualificado está por volta de quatro a cinco vezes, como pode ser visto na Tabela 9. Já quando comparamos os salários dos funcionários com as compensações totais que os executivos recebem, vemos uma disparidade enorme, podendo chegar a 1040 vezes de diferença salarial entre o CEO e o mais simples trabalhador, conforme mostra a tabela 10.

Tabela 10:
CEO versus Funcionários

Independentemente das concepções díspares encontradas no debate acadêmico e científico acerca da remuneração do trabalhador ou dos executivos, quando olhamos os números da tabela 10 não podemos deixar de reconhecer uma enorme diferença entre os ganhos totais dos executivos (aqui no caso o CEO) e o dos demais trabalhadores. Essa é uma questão de política interna definida pelos acionistas e seus procuradores/eleitores, e tão gritante discrepância de remunerações deve expressar sua distribuição de poder.

O que vimos até agora no estudo de caso da Ford é que as categorias de análise por nós estabelecidas, que buscaram materializar o conceito econômico abstrato de financeirização, são adequadas para decompor e analisar o processo. Quando comparadas, as diferentes lucratividades da montadora permitem entender o debate levantado por Froud et al. (2006FROUD, J. et al., Financialization & Strategy: narrative and numbers. New York: Routledge, 2006.). No livro Financialization and Strategy, narrative and numbers, os autores demonstraram que a Ford aderiu à financeirização ao longo das últimas duas décadas do século vinte como uma disposição consciente dos seus executivos em gerar o máximo retorno aos acionistas e manter com isso sua posição. As estratégias foram no sentido de dar ênfase às atividades financeiras, que rendiam muito mais. Isso significou uma espécie de conciliação que permitiu aos executivos derrotados pela rebelião dos acionistas, a que ser referiu Useem (1996USEEM, M. Investor Capitalism - How money managers are changing the face of corporate america. New York: Basic Books, 1996.), garantir que juntamente com a distribuição maciça de dividendos a estes haveria a garantia de pagamento de compensações milionárias àqueles. Aqui a luta analisada por Michael Useem parece ter arrefecido nos anos 2000, com a conjugação do pagamento de dividendos com remunerações estratosféricas a um pequeno número de dirigentes.

Para Froud et al. (2006FROUD, J. et al., Financialization & Strategy: narrative and numbers. New York: Routledge, 2006.), a Ford começou a praticar uma espécie de subsídio cruzado entre a área financeira e a automotiva, sendo que a primeira foi responsável em vários anos pelo socorro da segunda. Para os autores, houve três formas de subsídio cruzado praticado pela empresa: o mercado norte-americano subsidiar a divisão europeia; os carros serem subsidiados pelos caminhões; e em terceiro lugar a área automotiva ter sido subsidiada pelas finanças (Froud et al., 2006, p. 239-240).

No caso dos dirigentes empresariais, como apontou Fligstein (1991FLIGSTEIN, N. The structural transformation of American industry: an institutional account of the causes of diversification in the largest firms, 1919-1979. In: DIMAGGIO, P. J.; POWELL, W. W. (eds.) The new institutionalism in organizational analysis., 311-336. Chicago: University of Chicago Press, 1991.), a sua carreira e sua passagem pelo ramo das finanças permitia avaliar como eles chegaram até a cúpula da organização. Fligstein faz um retrospecto do desenvolvimento histórico do controle corporativo e enumera três momentos: o da manufatura, o das vendas e marketing e o financeiro. De 1979 para cá, segundo ele, presidentes da área financeira vêm dominando as grandes empresas, permitindo, aos analistas, “avaliar o grau em que os presidentes alteram a estratégia da empresa de acordo com seus próprios interesses dentro da organização” (Fligstein, 1991, p. 325).

A aquisição acionária cada vez maior por parte de bancos e instituições financeiras nos direitos de propriedade da montadora faz com que as atividades de tipo financeiro, que rendem acima da atividade produtiva, estejam na ordem do dia para os investidores. Quanto mais leasing, financiamento, “gerenciamento de mobilidade” houver, melhor. A empresa manufatureira, medíocre na rentabilidade, deve ampliar seu escopo e se tornar um “grupo de mobilidade global” que possa capturar mais do que a simples cadeia de suprimentos automotiva (Froud et al. 2006FROUD, J. et al., Financialization & Strategy: narrative and numbers. New York: Routledge, 2006., p. 250).

5 Conclusões

Uma primeira conclusão de nosso estudo sobre a financeirização da Ford é que ela é um processo crescente e vem se intensificando a cada ano. A dependência do setor financeiro é visível, como pudemos demonstrar na categoria de análise que comparou as fontes de lucratividade. A Ford Financeira é o setor que mais dá lucros à montadora e isso já vem acontecendo, com altos e baixos, há pelo menos 25 anos, como os dados da Tabela 2 mostraram, a partir dos relatórios anuais da empresa e dos estudos de Froud et al. (2006FROUD, J. et al., Financialization & Strategy: narrative and numbers. New York: Routledge, 2006.).

A composição acionária da Ford revela que poucos e grandes grupos financeiros, que atuam em vários setores da economia mundial, ampliam cada vez mais sua participação nos direitos de propriedade da montadora. Pouco mais de 1% de grandes investidores detêm mais da metade das ações e grande poder de decisão, concentrando enormes recursos econômicos, definindo desta maneira suas estratégias de investimento e de negócios, bem como os destinos da fabricante de automóveis.

As aquisições também comprovam que cada vez mais as organizações de tipo financeiro avançam na participação acionária e ampliam suas ações. As dez maiores aquisições no ano de 2015 foram realizadas por grandes bancos e fundos de investimento e refletem os movimentos que o setor financeiro vem realizando nos direitos da montadora Ford, que passa a depender cada vez mais do mundo das finanças, subordinando a produção aos interesses dos controladores, isto é, dando cada vez maior retorno aos investimentos dos acionistas.

Os dirigentes da empresa, em grande parte, vêm do mundo das finanças e levam para a empresa sua mentalidade financeirizada, facilitando o caminho para a realização da maximização do retorno ao acionista, que se tornou a verdadeira ideologia, absorvendo 100% do lucro líquido da montadora no ano de 2014. Fligstein (1991FLIGSTEIN, N. The structural transformation of American industry: an institutional account of the causes of diversification in the largest firms, 1919-1979. In: DIMAGGIO, P. J.; POWELL, W. W. (eds.) The new institutionalism in organizational analysis., 311-336. Chicago: University of Chicago Press, 1991.) debate essa questão no trabalho que desenvolveu sobre as transformações da indústria norte-americana.

As compensações aos dirigentes da empresa são da ordem de milhões de dólares a cada ano e, quando comparadas com os salários dos demais trabalhadores, descortinam um abismo salarial que pode chegar a mais de mil vezes a diferença entre os ganhos do CEO, por exemplo, e os de um trabalhador com menores habilidades e qualificações.

A política de pagamento de dividendos aos acionistas reflete essa preocupação exclusiva com o retorno ao acionista em detrimento de quaisquer outros fatores envolvidos nos negócios, e é o que foi chamado de nova ideologia do mundo corporativo (Lazonick; O`sullivan, 2000LAZONICK, W.; O`SULLIVAN, M. Maximizing shareholder value: a new ideology for corporate governance. Economy and Society, v. 29, n. 1, p.13-35, Feb. 2000.). De 2012 a 2015, em apenas quatro anos, a Ford distribuiu US$ 26,170 bilhões em dividendos aos acionistas, 100% do seu lucro líquido, conforme ficou demonstrado pela Tabela 7. Sobra pouco ou quase nada para reinvestimentos e melhorias salariais. Tal mentalidade cria um clima de instabilidade e falta de segurança com o dia de amanhã, já que ora a empresa pode dar lucros, e daí reparti-los sob a égide da maximização do retorno ao acionista, ora pode dar prejuízo, comprometendo postos de trabalho, ativos patrimoniais e outros bens.

Com este artigo procuramos contribuir com a produção teórica sobre os processos de financeirização da sociedade, e em particular do setor automotivo. Há ampla quantidade de pesquisas sobre o setor automotivo. Porém, sobre as transformações de cunho econômico, que enfatizam as mudanças de um capitalismo produtivista para um capitalismo financeiro, e como isso se dá no setor automotivo, há relativamente poucos trabalhos. Nosso estudo busca se integrar à agenda de pesquisas da financeirização da produção, ampliando o conhecimento sobre processos que normalmente passam despercebidos do conhecimento dos leitores e do público em geral.

Agradecimentos

Agradecemos à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) pelo suporte financeiro, sem o qual não teria sido possível o desenvolvimento deste trabalho de pesquisa.

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Disponibilidade de dados

Citações de dados

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    May-Aug 2018

Histórico

  • Recebido
    12 Jun 2016
  • Aceito
    20 Out 2016
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