Acessibilidade / Reportar erro

A reestruturação do sistema creditício doméstico e a recuperação precoce da economia brasileira na década de 1930

The restructuring of domestic credit system and the early recovery of the Brazilian economy in the 1930s

Resumo

Ao final de 1928, a economia brasileira começou a experimentar desaceleração econômica, puxada pela retração do crédito doméstico, devido ao aumento do entesouramento dos bancos aliado a uma já fraca entrada de capitais externos. Com a crise de 1929 a situação do crédito doméstico piorou substantivamente, em razão da piora dos termos de troca e da célere fuga de capitais. Dada a operacionalidade do padrão ouro-libra, a perda de reservas à qual foi submetida a economia brasileira resultou em retração da base monetária, com efeitos associados sobre os meios de pagamento e os empréstimos bancários. O presente artigo analisa a importância da restruturação do sistema financeiro à época, tendo em vista seus efeitos sobre a recuperação do crédito doméstico e da atividade econômica. A hipótese é de que essa restruturação é uma face fundamental do processo de recuperação precoce da economia brasileira, ao permitir a adoção de uma política monetária anticíclica e a expansão do crédito pelas instituições bancárias.

Palavras-chave:
Política monetária; crédito bancário; recuperação econômica no Brasil pós-1930; Grande Depressão; multiplicador monetário nos anos de 1930 no Brasil

Abstract

At the end of 1928, the Brazilian economy began to experience an economic slowdown, driven by the retraction of domestic credit, due to the increase in bank hoarding combined with an already weak inflow of foreign capital. From the 1929 crisis onwards, the situation of domestic credit worsened substantially, due to the deteriorating terms of trade and, notably, to the capital flight. Given the operationality of the Gold Standard, the loss of reserve currency to which the Brazilian economy was subjected resulted in a retraction of the monetary base, with associated effects on the money supply (M1) and bank loans. This article analyzes the importance of restructuring the financial system at the time to the recovery of domestic credit and economic activity. The hypothesis held here is that this restructuring is a fundamental face of the early recovery process of the Brazilian economy, as it allowed the adoption of a countercyclical monetary policy and the expansion of credit by banking institutions.

Keywords:
Monetary policy; economic recovery, credit system; Great Depression (1929); money multiplier in the 1930s in Brazil

1 Introdução

A crise de 1929 inaugurou um período de retração persistente do nível de atividade econômica em diversos países, com profundos impactos sobre seus níveis de produto, emprego e renda. Anos mais tarde, o evento passou a ser referenciado como “a Grande Depressão” do sistema capitalista. Na literatura econômica, o termo “depressão” remete a uma situação em que os efeitos da crise são tão extensos que os mecanismos de geração de ciclos simplesmente deixam de operar. Em situação como estas, a recuperação da atividade econômica tende a ser lenta, ou mesmo impraticável na ausência de fatores exógenos, como a adoção de uma política fiscal ativa (Carvalho, 2013CARVALHO, F. J. C. As ciências sociais e a crise. Folha do Gragoatá. Niterói, 16 nov. 2013. Disponível em: <http://afolhadogragoata.blogspot.com.br/2013/11/fernando-cardim-de-carvalho-as-ciencias.html>. Acesso em: 10 abr. 2015.
http://afolhadogragoata.blogspot.com.br/...
).

É difícil determinar se a depressão econômica é resultado de crises especificamente profundas e horizontais, ou se decorrem do uso tardio ou insuficiente de políticas anticíclicas. Fato é que algumas das economias centrais experimentaram quase uma década de alternância entre contração e baixo crescimento do Produto Interno Bruto (PIB). O fraco desempenho dessas economias e a retração do comércio e das finanças globais colocaram grandes desafios à recuperação das economias periféricas, em virtude de sua estrutura primário-exportadora.

Não obstante, a economia brasileira começou a dar sinais claros de recuperação antecipadamente às principais economias industrializadas. O PIB industrial voltou a crescer já no ano de 1931, ao passo que o conjunto da atividade econômica se recuperou em 1932. Furtado (1959FURTADO, C. Formação econômica do Brasil. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1959.) foi o primeiro a levantar os motivos dessa recuperação precoce em uma obra genuinamente acadêmica. Sua tese ganhou enorme notoriedade, sobretudo por se propor a explicar como uma economia primário-exportadora, marcada por uma forte dependência estrutural externa, conseguiu retomar rapidamente o crescimento, a despeito da persistente crise econômica internacional e da profunda crise no balanço de pagamentos.

A explicação furtadiana atribui a recuperação precoce da economia brasileira aos efeitos (não intencionados) da política de gastos públicos para a defesa da renda do setor cafeeiro. De acordo com o autor, os gestores de política econômica visavam, em um primeiro instante, apenas ir ao socorro do setor produtivo mais proeminente da economia nacional, mas acabaram colocando em prática uma agressiva política fiscal endereçada à retenção e queima dos estoques de café.1 1 Para o caráter expansivo da política fiscal no período, ver Fishlow (1972), Abreu (1990), Bastos (2008, 2011), Alvarenga Jr. e Mattos (2015). Essa política estimulou a demanda agregada em um momento de crise. Cabe destacar, ainda, que a desvalorização cambial teve um impacto auxiliar na recuperação econômica e fundamental na reestruturação produtiva do país. Ao ser conjugada aos programas que visavam sustentar a renda do setor cafeeiro, a depreciação do mil-réis terminou por represar a demanda agregada dentro dos limites do mercado doméstico, inclusive àquela criada em razão da compra de estoques invendáveis de café. A indústria nacional viveu nesse período um importante surto substitutivo de importações, passando a crescer mais aceleradamente do que o setor agropecuário, em um processo ao qual Furtado (1959FURTADO, C. Formação econômica do Brasil. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1959.) chamou de “deslocamento do centro-dinâmico” da economia brasileira. A própria desvalorização se mostrou funcional na defesa da renda do setor cafeeiro, na medida em que amorteceu os efeitos da queda de seus preços internacionais, quando cotados em moeda doméstica.

Para a economia brasileira, um dos aspectos mais marcantes dessa crise foi o profundo choque contracionista do crédito doméstico que resultou do choque externo. Essa retração foi em grande medida provocada pela passividade monetária do padrão ouro-libra, em que o lastro e a taxa de câmbio fixa reduziam a autonomia da política monetária e deixava a oferta de moeda exposta às variações no saldo do Balanço de Pagamentos. Nesse sentido, a deterioração do saldo comercial e o estancamento progressivo dos recursos financeiros que entravam via conta capital, que se transforma em fuga de capitais no segundo semestre de 1929, constituíram os principais mecanismos de contágio de fora para dentro da crise internacional.

Essa retração contínua e acelerada do fluxo internacional de capitais teve por desfecho o próprio abandono da Inglaterra ao padrão ouro-libra, em setembro de 1931. Tornava-se claro que esse padrão não mais reunia a capacidade de organizar e reger as transações comerciais e financeiras internacionais. A conversibilidade e o lastro perdiam gradualmente aplicabilidade no naquele contexto, sobretudo depois que a “economia mundial orientou-se para a fragmentação em blocos” (Bastos, 2008aBASTOS, P. P. Z. Gestão macroeconômica, mudança institucional e revolução burguesa na era Vargas: quando a ortodoxia foi superada? Texto para Discussão 146. IE/ Unicamp, ago. 2008a.; p. 196).

Desse ponto em diante, tem início uma onda de nacionalismo monetário, fazendo eclodir sistemas fundados na inconversibilidade da moeda fiduciária. No Brasil, o sistema monetário baseado no “curso forçado” foi legalmente instituído em 1933, constituindo uma das etapas de uma série de reformas institucionais (Van Der Laan et al., 2012) responsáveis por recuperar a autonomia da política monetária e por desatar os laços entre o crédito bancário e o fluxo de reservas internacionais, que agravavam a queda da atividade econômica nos momentos de crise externa.

É justamente sobre esse conjunto de medidas que o presente trabalho visa lançar olhares, demonstrando como o sistema financeiro foi reestruturado com vistas à liberação da política monetária e ao alargamento do crédito bancário para o seu uso anticíclico,2 2 A pronta adoção de políticas econômicas não convencionais (heterodoxas) pode sugerir que Vargas e sua equipe herdaram as convicções para sua implementação de momentos históricos distantes. Entretanto, as convicções prévias de Vargas eram mais alinhadas às políticas ortodoxas. A construção e implementação de uma agenda heterodoxa dá seus primeiros passos logo antes da crise, mas só ganha corpo a partir de 1930, à medida que novos fatos se apresentavam. Nesse sentido, as condições externas, a extensão e profundidade da crise, bem como as novas alianças políticas que haviam feito o movimento de 1930 levaram Vargas e seus assessores a tomarem medidas que, em outras circunstâncias, provavelmente não teriam sido tomadas. Nesse cenário, o pragmatismo político e a formação ideológica de Vargas ajudam a explicar a adoção dessas medidas heterodoxas no momento de crise (Bastos, 2011). Fonseca (2011) ainda chama atenção para a contribuição da formação positivista de Vargas e sua preocupação de longa data com o progresso econômico (que na época era amplamente associada à industrialização) na definição dos rumos das políticas econômicas pós-1930. Essas características e os traços de sua formação já haviam se manifestado em 1928, quando Vargas era governador do Rio Grande do Sul, na ocasião da criação do Banco do Estado do Rio Grande do Sul (BERGS), um banco de desenvolvimento regional que visava dar suporte creditício ao setor produtivo gaúcho e diversificar a atividade produtiva no estado. incluindo o financiamento dos déficits públicos praticados em virtude da política de defesas dos preços do café. O foco principal da análise recairá sobre o sistema monetário e o bancário, deixando espaço para futuros trabalhos que busquem se ocupar do exame do mercado de capitais e do debate acerca da intencionalidade das medidas responsáveis por conduzir a economia do país a um processo de recuperação econômica precoce.

A principal contribuição deste artigo está em apresentar dados e indicadores sobre o processo de expansão de crédito na década de 1930, além de mostrar como a evolução da trajetória desses indicadores dialoga com a rica mudança institucional no pós-crise e as reformas praticadas no sistema financeiro, especialmente as que incidiram sobre o Banco do Brasil e dotaram essa instituição de características semelhantes às de um banco central. O que se sustenta aqui é que essa nova institucionalidade na condução do sistema de crédito nacional foi essencial para a recuperação econômica, pois permitiu que a política monetária cumprisse o papel de financiar os gastos públicos (inclusive o de retenção e queima dos estoques de café), e que os bancos alargassem a oferta de crédito ao setor produtivo.

2 O boom e o colapso da economia brasileira sob o padrão ouro-libra na década de 1920

O biênio que antecedeu a crise de 1929 foi marcado pelo alto dinamismo da economia brasileira (Tabela 1). Esse pródigo período é explicado pela inflexão no comportamento do crédito doméstico, que desde 1924 era comprimido na tentativa de valorizar o câmbio e controlar o nível de preços, e sobre a qual se avolumavam queixas acerca da escassez de recursos ao financiamento da atividade produtiva e da falta de suporte a setores agrícolas e industrial voltados ao mercado doméstico (Alvarenga Jr.; Mattos, 2015).

Tabela 1
Variação real (%) do PIB da economia e por setor

Em 1926, o crédito doméstico inicia uma trajetória de franca expansão, com participação decisiva do Banco do Brasil, que passou a liderar um processo de intensa ampliação dos créditos concedidos pelo segmento bancário, justificando o acréscimo real observado de quase 100% no monte emprestado pelos bancos comerciais. Ademais, o redirecionamento da trajetória da base monetária implicou uma expansão real de 63% da oferta de moeda (M1) da economia no período 1926-1928.

Essa retomada do crédito à economia brasileira decorre do retorno do país ao padrão-ouro-libra, em um contexto de ascensão dos preços do café e de expansão da liquidez internacional. O retorno ao padrão ouro-libra já estava em pauta desde o governo anterior, e as medidas orientadas à valorização cambial e ao controle inflacionário dialogavam com a intenção do país em regressar ao bloco. Essa intenção foi ratificada por meio da reforma monetária proposta pela equipe econômica do governo Washington Luís e aprovada pelo Congresso, no final de 1926. A reforma monetária visava à criação de uma moeda (o cruzeiro) plenamente conversível em ouro. A instauração da conversibilidade seria feita de forma progressiva, por intermédio da Caixa de Estabilização, que emitiria notas conversíveis à vista, em contrapartida das reservas internacionais nela depositadas. Tão logo o monte de depósitos em ouro na Caixa se mostrasse suficiente para garantir a conversão de todo meio circulante, o governo central procederia à troca do mil-réis pelo cruzeiro.

Frieden (2008) aponta que o ingresso dos países ao padrão monetário internacional favoreceu um processo de expansão do comércio e das finanças globais sem precedentes. De um lado, o padrão ouro-libra permitia a denominação de ativos e passivos internacionais em uma unidade de conta comum. De outro, o compromisso com taxas de câmbio fixas reduzia sensivelmente a incerteza dos investidores em relação à estabilidade do valor, em moeda doméstica, dos débitos contraídos e dos créditos concedidos (Bastos, 2008aBASTOS, P. P. Z. Gestão macroeconômica, mudança institucional e revolução burguesa na era Vargas: quando a ortodoxia foi superada? Texto para Discussão 146. IE/ Unicamp, ago. 2008a.).

Dessa maneira, ao regressar ao padrão ouro-libra, o Brasil se credenciou a participar desse movimento de expansão do ciclo internacional das finanças, em curso na segunda metade da década de 1920. Já em 1927, a Caixa de Estabilização, então em seu primeiro ano de funcionamento, começou a receber uma entrada maciça de reservas internacionais. Como contrapartida da conversibilidade e do câmbio fixo, a base monetária passou a se expandir aceleradamente (Tabela 2).3 3 Segundo Neuhaus (1975), a adoção de uma paridade cambial desvalorizada entre o mil-réis e a libra contribuiu para atrair capitais externos, ao baratear o custo de aquisição de ativos domésticos.

Tabela 2
Desdobramento da base monetária por órgão emissor - em mil contos de réis (preços correntes)

Uma análise mais cuidadosa da Tabela 2 revela que Washington Luís se manteve fiel às suas convicções ortodoxas e à sua crença de que a entrada líquida de reservas sob a égide do padrão ouro-libra constituiria o verdadeiro regente do sistema creditício doméstico.4 4 É importante salientar que o retorno do Brasil ao padrão-ouro também contou com o apoio dos exportadores e de segmentos da burguesia industrial, unidos pelo interesse no fim do processo de valorização cambial. A valorização cambial, de um lado, corroía a renda dos setores exportadores e, de outro, aumentava a competição no mercado doméstico, ao baratear as importações (inclusive as de bens produzidos pelos setores industriais). Tal qual lembra Fritsch (1990): “Desde fins de 1925, cresciam os protestos de industriais - especialmente os da indústria têxtil - e exportadores contra os efeitos deflacionários da contração de moeda e da apreciação cambial” (p. 56). A principal evidência desse fato consiste na contração do estoque de papel-moeda emitido pelo Tesouro Nacional. Entre 1926 e 1929, a retração desse estoque atingiu o montante de 43 mil contos de réis (o equivalente a cerca de 1,3% do valor da base monetária em 1929), e só não rebateu na queda da base monetária, porque o volume de reservas entrantes no país promoveu uma significativa emissão via Caixa de Estabilização.

Essa expansão da liquidez internacional e do crédito doméstico foi fundamental para o desempenho do setor cafeeiro, na medida em que esses elementos auxiliaram no financiamento dos programas de defesas dos preços do café.5 5 Delfim (2009) ressalta que o problema da valorização do café vinha desde pelo menos o início do século XX, resultando na celebração do Convênio de Taubaté (1906). O autor lembra que, já em 1902, o estado de São Paulo tomou a primeira medida limitadora da oferta de café, mas pondera: “somente a partir da realização do chamado Convênio de Taubaté que a possibilidade de intervenção foi seriamente considerada” (p. 61). Segundo o autor, o Presidente Epitácio Pessoa defendia a necessidade de robustecer os programas de sustentação do preço do café (Delfim, 2009; p. 96/97) e teve que enfrentar forte resistência no Congresso, que reunia representantes de outras culturas que se ressentiam do “privilégio” concedido à cultura cafeeira. Diante da tentativa de Epitácio de fazer passar uma lei de defesa do café, o Congresso ampliou seu escopo e o tornou um Projeto de Lei muito mais amplo, orientado à criação do Programa de Defesa Permanente da Produção Nacional. O governo Bernardes, envolvido em inúmeros problemas políticos e econômicos, não logrou dar sustentação ao programa, dado o esforço fiscal que seria necessário para financiá-lo. Diante desse cenário, a solução foi transferir a prerrogativa da defesa permanente para o estado de São Paulo, que, em 1924, criou o Instituto de Defesa Permanente do Café (Delfim, 2009; Bastos, 2011). Ambos os trabalhos registram que a melhoria da situação da liquidez internacional teve papel decisivo para que se viabilizasse a institucionalização e implementação de um sistema de defesa de caráter mais permanente. Tal qual aponta Fritsch (1990FRITSCH, W. Apogeu e crise na Primeira República: 1900-1930. In: ABREU, M. P. (Org.). A ordem do progresso: cem anos de política econômica republicana (1889-1989). Rio de Janeiro: Editora Campus, 1990.), ao longo da década de 1920, foram consolidadas as:

(...) novas bases de operação financeira do programa de defesa do café, agora sob controle do governo de São Paulo. Tão logo o mercado de capital de Londres voltou a operar num clima de intensa competição, não foi difícil ao recém-criado Instituto de Defesa do Café de São Paulo convencer um grande banco inglês, até então praticamente ausente de operações com o Brasil, a prover os fundos para que o Banco do Estado - constituído com a finalidade básica de cumprir o papel de emprestador de última instância aos bancos envolvidos com o financiamento do café, antes desempenhado pelo Banco do Brasil - bancasse as eventuais necessidades de financiamento do complexo cafeeiro durante a retenção de estoque. (Ibid., p. 57-58).

A despeito da manutenção da entrada líquida de reservas internacionais até meados de 1929,6 6 Embora a entrada de recursos via conta capital tenha desacelerado já em 1928, a entrada líquida de reservas se manteve positiva até meados de 1929, quando a saída de capital se acelera, passando a promover perda de reservas e contração na base monetária. a economia brasileira começou a experimentar um processo de desaceleração a partir do último trimestre do ano anterior, quando tomou corpo um processo de entesouramento das instituições bancárias. Em parte, esse processo respondeu à intenção do governo federal em reestruturar o Banco do Brasil para que este assumisse as funções de um banco central, apoiado na conversibilidade do meio circulante em ouro. Para tal, julgou-se necessário o aumento da liquidez do Banco do Brasil “pela redução dos prazos de vencimento e risco dos ativos, e pelo aumento dos encaixes” (Neuhaus, 1975NEUHAUS, P. História monetária do Brasil, 1900-45. Rio de Janeiro: IBMEC, 1975.; p. 90). Posteriormente, já no primeiro trimestre de 1929, o mercado cambial começou a transparecer suas limitações e dificuldades em arcar com a taxa de câmbio estabelecida, de modo que a partir de março daquele ano, o Banco do Brasil iniciou uma política deliberada de entesouramento das notas da Caixa de Estabilização, visando salvaguardar os créditos externos que garantiam a taxa de intercâmbio entre a libra e o mil-réis. Por fim, uma onda de falências que se abateu sobre o ativo do BB, ao final de 1928, aumentou a cautela e as exigências do Banco para a concessão de novos empréstimos, o que dada a sua importância no segmento bancário à época, foi seguido de perto pelas demais instituições do setor (Tabela 3).

Tabela 3
Comportamento das instituições bancárias e contração do crédito entre dezembro de 1928 e fevereiro de 1929

A rigor, essa política de entesouramento teve início ainda em 1927, e só não rebateu na contração dos meios de pagamento, porque foram contrarrestados pelas emissões da Caixa de Estabilização. Embora os meios de pagamento seguissem em trajetória ascendente, o fator de multiplicação da base se reduzia, em resposta ao crescente entesouramento dos bancos. Isto ocorreu basicamente porque os encaixes das instituições bancárias cresceram mais rapidamente do que os depósitos à vista entre 1926 e 1928. De fato, enquanto os encaixes bancários cresceram 108,4% no período, os depósitos à vista cresceram 73,7%, o que acabou resultando em uma ligeira queda no multiplicador monetário: de 1,75 para 1,74, entre 1925 e 1928. No primeiro semestre de 1929, a política de encaixes ganhou corpo, ao passo que a expansão da base pelas notas da Caixa de Estabilização se reduziu, acompanhando a redução do ritmo de entrada de capitais internacionais. Diante desse cenário, o valor do multiplicador monetário caiu para 1,61.

Esse cenário de desaceleração da entrada de capitais externos se aliou a um quadro de deterioração dos saldos das transações correntes. Desde 1926, estava em curso um processo de progressiva deterioração dos saldos comerciais no Brasil,7 7 Destaca-se que o aumento da renda no biênio que antecedeu a crise de 1929 fez crescer o valor das importações em cerca de 10% acima daquele observado para a expansão das exportações. Como resultado, o saldo da balança comercial foi reduzido em 53%, entre 1926 e 1928. sobremaneira explicado pela estagnação do valor das exportações vis-à-vis ao aumento do valor importado (Tabela 4). Adicionalmente, a entrada maciça de recursos via conta capital no período de expansão do padrão ouro-libra rebatia agora no aumento do envio de renda ao exterior, reforçando a piora no saldo das transações correntes.8 8 No curto prazo, a entrada de capitais externos contribui para a melhora no balanço de pagamentos, mas, no longo prazo, a necessidade de arcar com as obrigações da dívida contraída e com o pagamento dos fatores de produção externos agravaria os déficits na conta de serviços e rendas, piorando a situação nas transações correntes.

Tabela 4
Exportações, importações e saldo da balança comercial - em milhões de dólares

Conforme a situação das contas externas se agravava, a capacidade e inclinação do sistema bancário em emprestar ao setor produtivo eram progressivamente corroídas. A natureza pró-cíclica do padrão ouro-libra agora se manifestava adversamente, e com ela vinha o receio de que o financiamento da retenção do estoque de café pudesse se tornar impraticável. Mais além da piora líquida na entrada de reservas, esse temor estava fundamentado no descasamento crescente entre a produção e a exportação do grão desde 1922 (Gráfico 1), que elevavam os custos de retenção dos estoques de café.

Gráfico 1
Produção e exportação de café em grãos - em milhões de sacas de 60 kg

Esses custos foram enormemente alargados ao final da década, em virtude de condições climáticas extremamente favoráveis que deram origem a duas grandes safras quase que em sequência. A safra de 1927, então a maior já registrada, foi aproximadamente duas vezes superior ao montante exportado. A retenção de estoques de tamanha magnitude só foi possível dadas as condições de financiamento externo muito particulares que vigoravam na ocasião. Contudo, com o início da reversão das condições de liquidez internacional ainda em 1928, erodia-se a capacidade do Instituto do Café de São Paulo em suportar os custos da política de sustentação dos preços do café. Em 1929, essa situação teve desfecho dramático, quando o cenário de perda de divisas se associou às estimativas de uma safra em patamares recordes (Cano, 2007CANO, W. Desequilíbrios regionais e concentração industrial no Brasil, 1930-70. São Paulo: Editora da Unesp, 2007.). O valor dos estoques acumulados atingiu em grandeza à décima parte do PIB naquele ano (Furtado, 1959FURTADO, C. Formação econômica do Brasil. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1959.), de modo que os custos com a retenção do café superaram largamente a capacidade do sistema de financiá-los ainda no início de outubro, ou seja, logo após iniciada a progressiva piora nas condições de contratação de crédito na praça de Londres, porém antes do colapso de Wall Street.9 9 Ver Sayers (1976).

Em termos nominais, a base monetária cresceu até final do terceiro trimestre de 1929 (vide Gráfico 2), embora os meios de pagamento já se encontrassem em queda desde o início daquele ano. O descasamento da trajetória dessas duas variáveis tem início justo quando a entrada de reservas internacionais deixou de ser suficiente para expandir o papel-moeda emitido em grandeza necessária para compensar os efeitos da elevação da relação encaixe/depósitos à vista dos bancos sobre os meios circulantes.

Gráfico 2
Base monetária (BM) e meios de pagamento (MP) - em mil contos de réis a preços correntes

A restrição externa, que já era bastante severa às vésperas da crise de 1929, seria ampliada, após o final de outubro (quando eclodiu a crise), pela célere fuga de capitais e pela queda nos preços do café. Nesse sentido, a eclosão da crise mundial só confirmou que não mais seria possível - ao menos em um futuro previsível - contar com recursos externos como pilar da política de sustentação dos preços do café e do crédito doméstico de uma forma geral.

Naquele momento, o Banco do Brasil passou a atuar no sentido de aliviar a forte restrição do crédito que se instaurara, passando a redescontar Letras cafeeiras, a adiantar recursos aos produtores no valor de 40 mil-réis por saca, além de fornecer a liquidez necessária aos demais bancos a fim de evitar uma corrida bancária. Essa postura ativa do Banco do Brasil só foi possível devido aos depósitos ociosos do Tesouro Nacional referentes aos superávits orçamentários dos anos anteriores, dado que Washington Luís se mantinha firme na ideia de conversibilidade. Não por acaso, o então presidente desautorizou a emissão emergencial de moeda fiduciária pelo Tesouro, requisitada ao final de 1929 pelo setor privado em dificuldades (Neuhaus, 1975NEUHAUS, P. História monetária do Brasil, 1900-45. Rio de Janeiro: IBMEC, 1975.). Mais além:

(...) embora após outubro de 1929 o Banco do Brasil tenha restringido a venda de divisas - o Governo reverteu sua decisão no início de 1929 de desencorajar a conversão de notas da Caixa de Estabilização, e reafirmou a sua adesão ao padrão ouro, passando a encorajar a saída de ouro como um mecanismo “saudável” para aliviar a situação (Ibid., p. 94).

Em teoria, o padrão ouro-libra era capaz de corrigir desequilíbrios automaticamente através dos mecanismos de mercado, em que diante de déficits nas contas externas o vetor de preços relativo se portaria compensatoriamente à perda de reservas. Ou seja, à medida que os déficits no Balanço de Pagamentos forçavam os países a transferirem reservas metálicas ou moeda conversível para o resto do mundo, as reservas internacionais experimentariam a elevação de seu preço vis-à-vis aos preços das demais mercadorias. Logo, ainda que nominalmente inalterada, a taxa de câmbio real se desvalorizava diante da perda de reservas, promovendo o aumento das exportações e reduzindo progressivamente o déficit nas contas externas.

Na prática, porém, o ônus do funcionamento do padrão ouro-libra recaía mais pesadamente sobre a periferia,10 10 As crises externas eram mais severas na periferia do capitalismo dado que quando a crise estourava: (i) os países centrais (credores industrializados) tinham débitos a receber, e não a pagar (Bastos, 2011); (ii) o capital procurava praças mais seguras, em detrimento das mais rentáveis; (iii) havia uma tendência a uma sensível deterioração dos termos de troca, uma vez que, na relação comercial entre centro e periferia, a essencialidade da pauta de importações tendia a ser muito maior para este último grupo de países. Logo, em tempos recessivos, a queda no preço das commodities tendia a ser muito mais acentuada do que a observada nos preços dos bens manufaturados (Furtado, 1959; Bastos, 2011). e as perdas de reservas a que esse conjunto de países era submetido nos momentos de crise internacional quase sempre justificavam o surgimento de grandes fissuras no sistema creditício doméstico, pesando seus efeitos recessivos sobre a atividade econômica. Esse foi justamente o caso que se instaurou em 1929, quando a insistência de Washington Luís em manter a Caixa de Estabilização operando, mesmo após o crash de Wall Street, deixou exposta a principal via por onde vazavam as reservas do país. No final de 1929, o Brasil dispunha, entre ouro e outros ativos estrangeiros, de pouco mais US$ 173,3 milhões em reserva. Um ano depois, não mais do que US$ 42,8 milhões permaneciam em caixa (Neuhaus, 1975NEUHAUS, P. História monetária do Brasil, 1900-45. Rio de Janeiro: IBMEC, 1975.).

Apesar dos esforços para manter operando normalmente os mecanismos do padrão ouro-libra, a situação se tornou insustentável já no início de 1930, quando a perda de reservas internacionais e seus efeitos sobre o crédito doméstico forçaram o governo de Washington Luís a suspender a conversibilidade das notas da Caixa de Estabilização. Em apenas um ano, as veias abertas do padrão ouro-libra fizeram contrair a base monetária em 719 mil contos de réis via caixa de conversão (vide Tabela 2 ). Ademais da redução da base monetária, os efeitos sobre meios de pagamento foram reforçados pela política de acúmulo de encaixes bancários, de modo que em 1930 a oferta de moeda não atingia em termos reais 3/4 do valor observado para o ano de 1928 (Tabela 9). Em face da extensão do choque monetário e de seus efeitos paralisadores sobre a atividade econômica, Washington Luís, enfim, autorizou por meio do Decreto nº 19.372, de 17 de outubro de 1930, a emissão de até 300 mil contos de réis em notas do Banco do Brasil. Desse total, cerca de 170 mil contos foram de fato emitidos, aliviando em parte o quadro crítico do crédito doméstico.

Mais além, as variações da base monetária discriminadas por órgão emissor contidos na Tabela 2 poderiam sugerir uma postura mais enérgica do governo federal, sobretudo quando se constata uma emissão de papel-moeda da ordem de 592 mil contos de réis pelo Tesouro. Entretanto, o que se observa de fato é uma recomposição da base monetária por órgão nos seguintes termos:

Nos dias da revolução, o governo de Washington Luís decretou a reforma do contrato do Tesouro com o Banco do Brasil, celebrada em 11 de outubro. O Tesouro devia ao Banco 372.044:534$631, a título de antecipação de receita, e mais 145.518:660$070 por letras vencidas e não pagas. Essa reforma de contrato, que por tanto tempo havia sido protelada, fez-se na forma prevista pela lei de 18 de dezembro de 1926 e, com base nela, o Tesouro foi creditado pela emissão do Banco, no valor de 592.000:000$000, em mais 114.394:982$952, que representavam metade do fundo de resgate do papel e que, pela cláusula 21ª do contrato de abril de 1923, teria de devolver ao governo, no prazo de dez anos. Assim, o Tesouro teve crédito para pagar ao Banco aquele débito e ainda para ficar com um saldo no valor de 188.831:848$203 (Banco do Brasil, 2010, p. 136-137).

A enorme perda de reservas e a dramática contração da base monetária atestam a demora do governo em reagir à piora nas condições externas. É bem verdade que algumas medidas foram tomadas para tentar remediar a situação, tais quais a suspensão da conversibilidade das notas da Caixa de Estabilização e a emissão emergencial do Banco do Brasil. Todavia, todas elas só foram implementadas após a materialização de condições insustentáveis ao funcionamento do sistema econômico. A morosidade com a qual se respondeu efetivamente à crise ampliou o contágio da economia brasileira por intermédio de um regime monetário internacional que em condições normais operava pró-ciclicamente e que fornecia escassos mecanismos de defesa.

3 Fundamentos de uma política monetária e creditícia expansionista

A ascensão do Governo Provisório no final de outubro de 1930 representa um marco histórico na construção de um sistema creditício menos reativo às condições externas e mais elástico às necessidades do empresariado nacional. Durante esse processo de construção, cabe destacar o papel desempenhado pelo aprofundamento da crise em curso ao apresentar questões práticas aos novos governantes, como, por exemplo, ao atestar a inviabilidade de se socorrer a economia doméstica por recursos outros que não os próprios de que se dispunha internamente. Era evidente a necessidade de uma reforma do sistema de crédito doméstico que fosse capaz de preencher a lacuna deixada pela liquidez internacional, que praticamente evaporou, a partir de 1930.

O primeiro grande passo nessa reformulação foi o pronto fechamento da Caixa de Estabilização (Decreto nº 19.423, de 22 de novembro de 1930), que pôs fim à curta, porém traumática, experiência brasileira no padrão ouro-libra. A abolição da conversibilidade em ouro, ao liberar a taxa de câmbio, permitiu que a política monetária assumisse uma trajetória mais autônoma em relação à entrada líquida de reservas internacionais no país.

Com o fechamento da Caixa de Estabilização, o estoque de ouro ali restante foi entregue aos cofres do Banco do Brasil, que passou a centralizar as operações cambiais do país. Um ano mais tarde, o Banco teve sua condição de monopolista no mercado de câmbio reafirmada por força do Decreto nº 20.451, de 28 de setembro de 1931. Ainda que essa mera transferência de ouro de uma instituição para outra não tenha relação direta com a adoção de uma política monetária ou creditícia expansionista, tal medida representa uma face da reestruturação do Banco do Brasil no sentido de dotá-lo das características análogas às de um banco central. A ideia de transformar o Banco do Brasil em um banco central era antiga, e já na década anterior suscitou um caloroso debate.11 11 Para mais, ver Neuhaus (1975) e Banco do Brasil (2010). Inicialmente, a transformação viria para unificar os componentes da política monetária em uma única instituição, sujeitando suas operações ao funcionamento do padrão ouro-libra que, em última instância, conferiria regras à emissão de papel-moeda.

Aos poucos, na década de 1930, a transformação do Banco do Brasil foi tomando corpo, mas em um sentido distinto da reforma proposta na década anterior. A reforma no Governo Vargas se orientou para a ampliação do crédito doméstico, a recuperação da atividade econômica e a diversificação produtiva.12 12 Ciente das enormes demandas que emergiam da crise, Vargas discursou em respeito à urgência de se reformar o Banco do Brasil com a finalidade de torná-lo: “(...) um propulsor do desenvolvimento geral, auxiliando, nesse caráter, a agricultura, amparando o comércio, fazendo redescontos, liderando, em suma, todo o sistema bancário, no sentido do contínuo engrandecimento do país. Atingir-se-á esse objetivo mediante a criação de carteiras especiais para o comércio, para a agricultura, para as indústrias etc.” (Vargas, 1930: p. 55 apudBastos, 2008a: p. 201).

A segunda etapa dessa reforma veio com a reabertura da Carteira de Redesconto do Banco do Brasil.13 13 Decreto nº 19.525, de 24 de dezembro de 1930. Em um primeiro instante, a Carteira estava habilitada apenas a redescontar títulos oriundos de transações comerciais, porém, em 1932, por força do Decreto nº 21.537, a natureza dos títulos redescontados foi consideravelmente ampliada, passando a incluir títulos de origem agrícola, pecuária, industrial e, ao final do ano, a autorizar o redesconto de promissórias do governo. Em tese, o redesconto dos títulos públicos constituía um expediente excepcional ao Tesouro em função da necessidade de se financiar o enorme (e imprevisto) déficit daquele ano, fortemente influenciado pela chamada Revolta Constitucionalista Paulista de 1932 e pela seca no Nordeste. Todavia, até 1935 outras autorizações foram concedidas no mesmo sentido, quando a partir de então fora vetado o acesso dos títulos públicos à Carteira de Redescontos, nas três esferas de governo.14 14 Lei nº 160, de 31 de dezembro de 1935. Vale ressaltar, porém, que após 1935 o Banco do Brasil seguiu fornecendo recursos aos governos federais, estaduais, municipais, bem como ao Departamento Nacional do Café, embora agora com recursos próprios, e não mais por meio de emissões de papel-moeda solicitadas ao Tesouro Nacional.

Dando sequência ao processo de reestruturação do Banco do Brasil, o governo criou, em 1932, a Caixa de Mobilização Bancária (CAMOB). O objetivo dessa caixa era prover recursos líquidos aos bancos cujas carteiras estivessem obstruídas por ativos de longo prazo e de baixa liquidez. Essa medida foi impulsionada pelo impacto do crescimento do número de falências no balancete dos bancos, tendo em vista seu efeito sobre a capacidade e propensão dessas instituições em conceder crédito.15 15 Entre 1927 e 1929, o valor do passivo de falências somente na praça do Rio de Janeiro saltou de 429,9 mil contos de réis para 1.339,8 mil contos de réis (Neuhaus, 1975). Por exemplo, o Banco Português, instituição fortemente ligada à concessão de crédito ao setor importador na praça do Rio de Janeiro, passou a enfrentar sérias dificuldades para liquidar seus empréstimos, sobretudo após a desvalorização cambial. (Marques; Melo, 2011). A partir de então, o banco passou a assumir uma postura mais conservadora, comportamento evidenciado na retração de seus depósitos (à vista e a prazo) de quase 70 mil contos de réis para 36 mil contos entre 1928 e 1932.

Seguramente, o caso do Banco Português é um entre muitos que ajudam a explicar a redução real de cerca de 27% dos depósitos à vista entre 1928 e 1930. A forte retração é reflexo da enorme incerteza que cercava o ambiente econômico - situação sob a qual a decisão mais prudente para qualquer agente, inclusive os bancos, era manter-se líquido. Nesse sentido, a criação da CAMOB ajudou a acalmar os ânimos no sistema financeiro, aumentando a segurança dos bancos na concessão de crédito.16 16 Nesse mesmo período nota-se uma retração real de 22% da base monetária, de 25% dos meios de pagamento e de 8% da concessão de empréstimos dos bancos comerciais.

Fundamentalmente, os recursos da CAMOB foram constituídos pela imposição do recolhimento junto ao Banco do Brasil das reservas dos bancos comerciais que extrapolassem certa parte do valor dos seus depósitos. Caso esses recursos se revelassem insuficientes, o Banco do Brasil poderia solicitar a emissão de papel-moeda ao Tesouro Nacional como forma de complementá-los. De forma inédita, ficou estabelecido que todos os bancos do país estavam “obrigados a manter em caixa numerário correspondente a dez e quinze por cento, respectivamente, do total de seus depósitos a prazo e à vista” (Brasil, 1932: Decreto nº 21.499).

Além de ajudar a restituir a liquidez do sistema bancário em meio ao aumento do número de falências e concordatas, a CAMOB ampliou sensivelmente a flexibilidade de que dispunha o Banco do Brasil para atender às necessidades do Tesouro e do Departamento Nacional do Café. As reservas compulsórias dos bancos comerciais depositadas no Banco do Brasil passaram a ser crescentemente utilizadas para financiar o governo e suas autarquias, especialmente no que concerne à política de retenção e queima de estoques invendáveis de café.

Em conjunto, a Carteira de Redesconto e a Caixa de Mobilização Bancária deram ao Banco do Brasil a aparência de um emprestador de última instância. Não se deve fazer pouco caso desses órgãos, pois sua criação alterou significativamente a estrutura do sistema bancário brasileiro. No modelo analítico proposto por Chick (1992CHICK, V. The Evolution of the banking system and the theory of saving, investiment and interest. In: CHICK, V. On money, method and Keynes: selected essays. London: Macmillan, 1992.), é justamente o surgimento de uma autoridade monetária com a atribuição de emprestador de última instância que demarca a passagem à quarta etapa evolutiva do sistema bancário. A partir dessa etapa, por poderem contar (em casos de crise de liquidez) com recursos adicionais (empréstimos ou redesconto de títulos) junto à autoridade monetária, os bancos passam a assumir uma postura mais agressiva na concessão de crédito.

As reformas praticadas a partir de 1930 incidiram também sobre a parte devedora. A eclosão da crise tornou grande parte das obrigações assumidas pelos tomadores de crédito impagáveis, sobretudo em virtude da prática comum e legalmente prevista pelo Código Civil de 1916 de se firmar contratos indexados ao ouro ou ao câmbio, ademais daqueles sobre os quais incidiam juros prefixados. As dificuldades de pagamento não decorreram somente da queda de receitas das unidades produtoras, mas também das alterações radicais que a crise gerou sobre os preços relativos da economia. Quando, por exemplo, o câmbio iniciou sua trajetória de desvalorização, os contratos cujo valor das obrigações estava previsto em ouro ou em moeda estrangeira passaram a justificar um esforço muito maior em termos de moeda doméstica. O mesmo se deu com contratos com juros prefixados, notadamente em um contexto de queda de preços da dimensão ocorrida no período.17 17 Dados de IBGE (1987) revelam que, em 1928, houve uma deflação de 1,5% nos preços ao consumidor do Rio de Janeiro; da mesma forma, houve uma queda adicional de 0,7% dos preços em 1929, de 9,0% em 1930, de 3,7% em 1931. Esse processo deflacionário aumentou as taxas de juros reais no triênio mais crítico da crise (1929-1931). Sobre esse aspecto, lembra Marcondes (2014: p. 4): “A teoria de Fisher (1933) de dívida-deflação é importante para entender as dificuldades posteriores a um período de sobre-endividamento. No caso brasileiro, os problemas anteriores deviam-se à indexação de dívidas ao ouro ou câmbio e às taxas de juros fixadas nas condições vigentes nos anos anteriores à Grande Depressão, bastante superiores às daquele momento.”

Em vista das dificuldades econômico-financeiras enfrentadas pela agricultura e demais setores, além das fortes transferências de renda em razão da mudança nos preços relativos, o governo federal determinou, em 1933, um teto de 12% ao ano para os juros cobrados nos contratos,18 18 Decreto nº 22.626 de, 7 de abril de 1933, também conhecido como Lei da Usura. além de proibir o expediente conhecido como cláusula ouro,19 19 Decreto nº 23.501, de 27 de novembro de 1933. Por meio desse expediente torna-se nulo o pagamento em ouro, ou em qualquer outra moeda que, por efeito, possa vir a recusar ou restringir o curso forçado do mil-réis papel. que previa indexação dos contratos ao ouro ou em moeda estrangeira. Não obstante, a abolição dos contratos com pagamentos previstos em ouro ou em moeda estrangeira atendia diretamente a necessidade de se reduzir a pressão da demanda por esses ativos, então bastante escassos no país.

Complementarmente a essas duas medidas, o governo federal promulgou, também em 1933, a Lei do Reajustamento Econômico, responsável por encampar metade das dívidas contraídas por agricultores e pecuaristas antes de 30 de junho de 1933, desde que com garantias de penhora ou hipoteca. Também tiveram seus débitos reduzidos à metade os agricultores e pecuaristas em comprovada situação de insolvência, mesmo no caso em que os contratos de empréstimos não previssem garantias reais ou pignoratícias. Ademais, as dívidas contraídas após a data limite também foram subtraídas na mesma proporção, contanto que o motivo para a sua contratação remetesse à necessidade de rolagem de débitos antigos.

Sem prejuízo dos credores, as dívidas perdoadas foram intercambiadas por apólices do governo federal a taxas de juros de 6% ao ano. Assim sendo, no lugar dos empréstimos de pagamento duvidoso, os ativos dos bancos passaram a contar com as apólices do reajustamento. A partir desse momento, a ação da Caixa de Mobilização Bancária se tornou ainda mais central para a recuperação econômica, tal qual relata Neuhaus (1975NEUHAUS, P. História monetária do Brasil, 1900-45. Rio de Janeiro: IBMEC, 1975.):

Já que os credores mais prováveis dos agricultores seriam os bancos comerciais, permitiu-se à CAMOB incluir as apólices do Reajustamento Econômico entre as suas operações, tomando-as como garantia, ao valor par, de empréstimos a longo prazo dos bancos. O efeito líquido, portanto, foi o de nacionalizar as dívidas agrícolas via emissão de moeda... (Ibid., p. 124).

Em um sentido mais amplo, o reajustamento econômico retirava dos bancos o ônus da insolvência do setor agropecuário. O peso do Reajustamento sobre a recuperação da economia brasileira é controverso. Villela e Suzigan (1975VILLELA, A.; SUZIGAN, W. Política do governo e crescimento da economia brasileira, 1889-1945. IPEA/INPES, 1975.), ao compararem o total das indenizações (cerca de 920 mil contos de réis) com o produto líquido da agricultura de 1939 (aproximadamente 10,2 milhões de contos), concluíram pela insignificância (nas palavras dos autores) dessa medida como instrumento anticíclico. Já Fishlow (1972FISHLOW, A. Origens e consequências da substituição de importações no Brasil. In Versiani, F.; Barros, J. R. (Org.). Formação econômica do Brasil: a experiência da industrialização. São Paulo: Saraiva, 1972.) argumentou que os 920 mil contos de réis de indenizações faziam referência às dívidas contraídas até 1933, o que representaria em valor aproximadamente 3,6% do PIB para aquele ano. Mais adiante, o autor afirma que o programa de reajustamento econômico teria elevado a renda dos produtores de café em não menos do que 20%.

Ainda que controverso, o peso do reajustamento econômico parece subestimado em algum grau por ambos os autores. É preciso ter ciência de que a encampação de metade da dívida do setor agropecuário, assim como a lei da usura, o fim da cláusula ouro e a reestruturação do Banco do Brasil fazem parte de um amplo conjunto de medidas por meio das quais a mensagem que se transmitia era de que o governo não deixaria o sistema bancário ruir. A rigor, essa mensagem era passada através de dois grandes canais. De um lado, garantia-se o auxílio de liquidez aos bancos por meio de empréstimos e redescontos, então atribuíveis à condição de emprestador de última instância do Banco do Brasil. De outro, se aliviava o fardo das dívidas contraídas pelo setor produtivo, especialmente o agropecuário. É evidente, embora não se saiba o montante exato, que essas medidas tiveram implicações positivas sobre o crédito concedido por essas instituições e, logo, sobre o crescimento da atividade econômica na época.

3.1 Breve análise sobre o comportamento do crédito bancário e dos agregados monetários

A utilização de uma política monetária e creditícia anticíclica só se tornou possível em virtude da série de reformas legais feitas pelo Governo Provisório no sistema bancário-financeiro, tratadas, em parte, no tópico anterior.

No que tange à criação de moeda manual, as possibilidades de condução anticíclica da política monetária foram alargadas pelo abandono do país ao padrão ouro e pela desistência - por escolha ou imposição das condições externas - em se manter o câmbio fixo. A partir desse momento, rompeu-se a ligação quase que umbilical que a base monetária guardava com as variações das reservas internacionais. Um indício dessa quebra de passividade está expresso na queda progressiva do coeficiente de correlação de Pearson entre essas duas variáveis, tal qual expresso na Tabela 5. Enquanto a correlação entre base e reservas foi de 0,84 na década de 1920 e de impressionante 0,99 entre 1927 e 1929, o grau de associação entre essas variáveis caiu para aproximadamente 0,28 entre 1931 e 1939.

Tabela 5
Coeficiente de correlação de Pearson entre base monetária e reservas internacionais por períodos

Ademais, convém relacionar as alterações nos valores às reformas no sistema financeiro. Na década de 1920, o quadro sugere três períodos de análise: 1921-1926; 1927-1929; 1927-1930. No primeiro deles, nota-se uma correlação menor (0,712) do que aquela que prevaleceu para a década inteira. Esse intervalo de tempo perfaz exatamente o período em que atuaram, embora em momentos disjuntos, a carteira de redesconto e a carteira de emissões do Banco do Brasil, que conferiam maior elasticidade ao crédito bancário.20 20 Para mais detalhes, ver Banco do Brasil, 2010; Neuhaus, 1975; Peláez; Suzigan, 1976. O segundo intervalo marca o período sob a tutela do padrão-ouro, todavia antes do aprofundamento da crise e da consequente emissão emergencial de papel-moeda levada a efeito por Washington Luís. Chama a atenção, nesse caso, a correlação direta e quase perfeita entre as duas variáveis. Por fim, o último corte anteriormente mencionado (1927-1930) engloba todo intervalo de tempo referente ao funcionamento da Caixa de Estabilização, capturando, inclusive, os efeitos da emissão de 170 mil contos de réis em caráter de emergência, ocorrida em outubro de 1930.

Já no início da década de 1930, a correlação entre essas duas variáveis passa a apresentar um valor significativamente menor (0,406). Contribuíram para a redução o fechamento da Caixa de Estabilização, a desvalorização do câmbio, a reabertura da Carteira de Redesconto e a criação da CAMOB. Em relação ao processo de reestruturação do Banco do Brasil, destaca-se o fato de que tanto a Carteira quanto a CAMOB desempenharam um papel fundamental na expansão da base monetária verificada na década de 1930, amplamente utilizada para financiar a retenção e queima dos estoques de café. A exemplo, em 1932, a Carteira de Redesconto já havia emitido mais de 400 mil contos de réis. Em 1935, esse valor atingiu 700 contos de réis, o equivalente a aproximadamente 20% do valor da base monetária para aquele ano.

Se considerado o período 1931-1939, a correlação entre base e reservas internacionais é ainda menor (0,277), dado o aprofundamento das reformas nos sistemas monetário e creditício no país, vide a determinação do curso forçado do papel-moeda (Decreto nº 23.501, de 27 de novembro de 1933). Embora o Brasil já trilhasse os rumos de um “nacionalismo monetário” desde o fechamento da Caixa de Estabilização, o decreto em questão assegurou o rompimento de jure entre as duas variáveis, na medida em que vedava a possibilidade do estabelecimento de contratos prevendo pagamentos em ouro ou moeda estrangeira entre residentes. Esse descolamento da base monetária da entrada líquida de reservas internacionais pode ser visualizado no Gráfico 3. Já em 1931 a base monetária inicia sua trajetória de crescimento, a despeito da grave situação externa e virtual esgotamento das reservas internacionais.21 21 Em 1931, o estoque de reservas internacionais atinge o seu nível mais crítico (US$ 0,3 milhão em ouro e outros US$ 14,4 milhões em outros ativos estrangeiros), o que resultou, após sucessivos atrasos, na suspensão unilateral do pagamento dos serviços da dívida externa.

Gráfico 3
Variação nominal da base monetária e das reservas internacionais - índice (1929 = 100)

Não menos importantes foram as atuações da Carteira de Redescontos e da CAMOB, que, ao conferirem maior segurança ao sistema bancário, permitiram uma postura mais agressiva dos bancos comerciais na criação de crédito, auxiliando e fortalecendo o processo de multiplicação da base monetária em meios de pagamento. O aumento da disposição dos bancos em responder às demandas por crédito está refletido na elevação dos depósitos à vista e na redução progressiva da razão R/DV (Gráfico 4).

Gráfico 4
Encaixes (R), depósitos à vista (DV) e razão R/DV - em mil contos de réis de 1939

Ademais, a imposição de jure de margem de segurança mínima para os bancos comerciais (depósitos compulsórios) junto à CAMOB serviu para coibir condutas que pudessem comprometer o bom funcionamento do setor bancário. Os efeitos sistêmicos desses elementos foram consideráveis, contribuindo para a redução da incerteza e a pronta ampliação dos empréstimos dos bancos comerciais (Tabela 6), em um contexto de crise econômica.

Tabela 6
Empréstimos dos bancos comerciais no período 1921-1939 - em mil contos de réis de 1939

As cifras acima perfazem o somatório aproximado dos depósitos à vista e a prazo dos bancos comerciais. Ressalva-se, entretanto, que a crise se abateu sobre os depósitos a prazo somente em 1931, tendo como vale o ano de 1933. A partir do terceiro trimestre daquele ano, os depósitos a prazo começaram sua trajetória de recuperação. Porém, o seu valor só foi integralmente restituído aos níveis anteriores à crise no ano de 1935 (Gráfico 5). Até lá, o grosso da recuperação dos empréstimos foi puxado pela expansão dos depósitos à vista (Marcondes, 2014MARCONDES, R. L. Malogro da fortuna: mercado financeiro durante a Grande Depressão do século XX. ENCONTRO NACIONAL DE ECONOMIA - ANPEC, 42º., 2014, Natal.). A pronta recuperação dos depósitos à vista, a queda na razão de entesouramento dos bancos (R/DV) e o aumento da razão dos depósitos à vista sobre meios de pagamento revelam que a confiança nas instituições bancárias não foi significativamente abalada pela crise econômica, dados o êxito e a celeridade das reformas no sistema monetário e financeiro feitos à época.

Gráfico 5
Depósitos a prazo - em mil contos de réis de 1939

O êxito dessas reformas pode ser notado a partir do sensível aumento do multiplicador monetário já no início da década 1930 (Tabela 7). Em 1929, cada unidade expandida na base monetária gerava uma variação positiva de 1,64 unidade nos meios de pagamento. Em 1934, esse valor foi aumentado para 2,29. Em 1938 foi o ano em que o valor do multiplicador atingiu o seu pico, quando alterações unitárias na base passaram a promover uma expansão de 2,37 unidades em M1, aproximadamente.

Tabela 7
Comportamento dos agregados monetários no período 1921-1939 - em mil contos de réis de 1939

O crescimento do multiplicador é a expressão contundente da expansão do crédito bancário na década de 1930, tendo relação próxima com a recuperação econômica. De imediato, essa reestruturação auxiliou no financiamento da retenção e queima dos estoques de café e no financiamento do gasto público (por meio da Carteira de Redesconto). Ademais, a política monetária expansionista22 22 Para mais, ver Furtado (1959) e Franco (1985). e a ampliação do crédito também foram decisivas ao financiamento da atividade agrícola em geral e do processo de industrialização substitutiva de importação, especialmente após a criação da Carteira de Crédito Agrícola e Industrial do Banco do Brasil (CREAI), em 1937. Não por acaso, nota-se, ao longo dessas duas décadas, um inegável comportamento solidário entre crescimento econômico e crescimento da oferta de moeda (e a disponibilidade de crédito, expressa pelo multiplicador) (Gráfico 6).

Gráfico 6
Expansão do crédito x PIB - em mil contos de réis de 1939

Por fim, a já evidente centralidade do Banco do Brasil na recuperação econômica da década de 1930 pode ser reforçada ao se atentar para a sua natureza dupla. Na década de 1930 o Banco passou a emular a estrutura e o comportamento de um banco central, expandindo a base monetária e conduzindo o sistema bancário à expansão do crédito doméstico, tal qual visto anteriormente. Entretanto, em sua condição de banco comercial, a instituição também desempenhou papel decisivo na recuperação do crédito pela expansão dos empréstimos concedidos ao setor público, bancário e privado (Tabela 8).

Tabela 8
Empréstimos do Banco do Brasil por destinatário no período 1932-1939 - em mil contos de réis de 1939

4 Conclusão

Este artigo procurou demonstrar a importância da política monetária e creditícia expansionista para a recuperação da economia brasileira na década de 1930. Os resultados aqui encontrados reforçam as conclusões de Furtado (1959FURTADO, C. Formação econômica do Brasil. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1959.), de que as emissões monetárias despenharam um papel essencial na recuperação precoce da economia brasileira, dado o seu uso para financiar os gastos do governo, especificamente no que se referia aos custos de retenção e queima dos estoques de café. Todavia, esse artigo foi além, ao trazer indicadores adicionais sobre a expansão do crédito doméstico, além de revelar como o comportamento desses indicadores dialogou com uma série de reformas institucionais promovidas à época.

Nesse sentido, admite-se que não apenas os gastos de defesa dos preços do café e a desvalorização cambial contribuíram para a recuperação econômica, mas também uma profunda reestruturação do setor financeiro, em especial do Banco do Brasil, que passou a acumular a função de autoridade monetária e banco comercial. Essa reestruturação desatou os laços que ligavam a entrada líquida de divisas à oferta de moeda, permitindo o crescimento “autônomo” do crédito doméstico.

O índice de correlação de Pearson mostra uma dissociação crescente entre base monetária e reservas internacionais, já no início da década de 1930, justo quando são efetivados o fechamento em definitivo da Caixa de Estabilização e a criação da Carteira de Redesconto do Banco do Brasil e da CAMOB, instituições que passam a atuar diretamente na expansão da base monetária. Convém dizer que esses dois órgãos dotaram o Banco do Brasil da institucionalidade necessária para reger a ampliação do crédito doméstico. Especificamente, a partir de sua criação, por poderem contar (em casos de crise de liquidez) com recursos adicionais (empréstimos ou redesconto de títulos) do Banco do Brasil, os bancos passam a assumir uma postura mais agressiva na concessão de crédito. Nesse sentido, não apenas a economia se recupera precocemente, mas o faz em paralelo a - e apoiada em - reformas rapidamente implementadas, que promoveram a expansão significativa do crédito doméstico.

Por fim, embora secundária nesse artigo, a reestruturação do sistema financeiro levada a efeito na década de 1930 fornece importantes elementos para se entender a recuperação econômica e refundação das bases de crescimento a partir de uma estrutura que se industrializava. Furtado (1959FURTADO, C. Formação econômica do Brasil. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1959.) havia atribuído a recuperação da atividade econômica ao surto substitutivo de importações, como resultado não intencionado dos gastos com a defesa da renda do setor cafeeiro e da desvalorização cambial. Entretanto, reformas institucionais não ocorrem por acaso, de modo que a extinção, criação e alteração de competência de diversas instituições só fazem sentido quando se admite algum grau de intencionalidade na adoção das políticas anticíclicas implementadas.

REFERÊNCIAS

  • ABREU, M. P. Crise, crescimento e modernização autoritária: 1930-1945. In: ABREU, M. P. (Org.). A Ordem do progresso: cem anos de política econômica republicana (1889-1989). Rio de Janeiro: Editora Campus, 1990.
  • ALVARENGA Jr., M; MATTOS, F. A. M. A política econômica nos anos 1930: evidências de uma heterodoxia consciente. Análise Econômica, v. 33, n. 64, 2015.
  • BANCO DO BRASIL. A história do Banco do Brasil. Rio de Janeiro: Editora Fazenda, Comunicação & Marketing, 2010.
  • BASTOS, P. P. Z. Gestão macroeconômica, mudança institucional e revolução burguesa na era Vargas: quando a ortodoxia foi superada? Texto para Discussão 146. IE/ Unicamp, ago. 2008a.
  • BASTOS, P. P. Z. Centro e periferia no padrão ouro-libra: Celso Furtado subestimou a dinâmica da dependência financeira? Texto para Discussão 138. Instituto de Economia da Unicamp, jan. 2008b.
  • BASTOS, P. P. Z. Ortodoxia e heterodoxia antes e durante a era Vargas. In: Bastos, P. P. Z.; FONSECA, P. C. D. (Org.). A Era Vargas: desenvolvimentismo, economia e sociedade. São Paulo: Editora da UNESP, 2011.
  • CANO, W. Desequilíbrios regionais e concentração industrial no Brasil, 1930-70. São Paulo: Editora da Unesp, 2007.
  • CARVALHO, F. J. C. As ciências sociais e a crise. Folha do Gragoatá. Niterói, 16 nov. 2013. Disponível em: <http://afolhadogragoata.blogspot.com.br/2013/11/fernando-cardim-de-carvalho-as-ciencias.html>. Acesso em: 10 abr. 2015.
    » http://afolhadogragoata.blogspot.com.br/2013/11/fernando-cardim-de-carvalho-as-ciencias.html
  • CHICK, V. The Evolution of the banking system and the theory of saving, investiment and interest. In: CHICK, V. On money, method and Keynes: selected essays. London: Macmillan, 1992.
  • DELFIM NETTO, A. O problema do café no Brasil. São Paulo: Editora da UNESP, 2009.
  • DRAIBE, S. Rumos e metamorfoses: Estado e industrialização no Brasil 1930-1960. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2004.
  • FAUSTO, B. História concisa do Brasil. 2. ed. São Paulo: Edusp, 2010.
  • FISHLOW, A. Origens e consequências da substituição de importações no Brasil. In Versiani, F.; Barros, J. R. (Org.). Formação econômica do Brasil: a experiência da industrialização. São Paulo: Saraiva, 1972.
  • FONSECA, P. C. D. Do progresso ao desenvolvimento: Vargas na Primeira República. In: BASTOS, P. P. Z.; FONSECA, P. C. D. (Org.). A Era Vargas: desenvolvimentismo, economia e sociedade. São Paulo: Editora da UNESP, 2011.
  • FRITSCH, W. Apogeu e crise na Primeira República: 1900-1930. In: ABREU, M. P. (Org.). A ordem do progresso: cem anos de política econômica republicana (1889-1989). Rio de Janeiro: Editora Campus, 1990.
  • FURTADO, C. Formação econômica do Brasil. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1959.
  • KINDLEBERGER, C. P. The world in depression, 1929-1939. London: Allen Lane and the Penguin Press, 1973.
  • MARCONDES, R. L. Malogro da fortuna: mercado financeiro durante a Grande Depressão do século XX. ENCONTRO NACIONAL DE ECONOMIA - ANPEC, 42º., 2014, Natal.
  • MARQUES, T. C. N.; MELO, H. P. Negócios portugueses no Rio de Janeiro: um estudo sobre o Banco Português do Brasil (1918 a 1938). Revista Economia Contemporânea, v. 15, p. 461-482, 2012.
  • NEUHAUS, P. História monetária do Brasil, 1900-45. Rio de Janeiro: IBMEC, 1975.
  • PELÁEZ, C. As consequências econômicas da ortodoxia monetária, cambial e fiscal no Brasil entre 1889-1945. Revista Brasileira de Economia, 25(3):5-82, 1971.
  • PELÁEZ, C. M.; SUZIGAN, W. História monetária do Brasil. Brasília: Editora da UnB, 1976.
  • PIRES, J. M. Desenvolvimentismo versus liberalismo econômico no período populista e gasto público social. Economia e Sociedade, Unicamp (Impresso), v. 19, n. 3(40), p. 529-556, 2010.
  • SAYERS, R. S. The Bank of England, 1891-1944. Cambridge: Cambridge University Press, 1976.
  • VAN DER LAAN, C. R; CUNHA, A. M.; FONSECA, P. C. D. Os pilares institucionais da política cambial e a industrialização nos anos 1930. Revista de Economia Política, v. 32, n. 4(129), out.-dez. 2012.
  • VILLELA, A.; SUZIGAN, W. Política do governo e crescimento da economia brasileira, 1889-1945. IPEA/INPES, 1975.
  • Códigos JEL:

    N16, O14, E51
  • JEL Codes:

    N16, O14, E51
  • 1
    Para o caráter expansivo da política fiscal no período, ver Fishlow (1972FISHLOW, A. Origens e consequências da substituição de importações no Brasil. In Versiani, F.; Barros, J. R. (Org.). Formação econômica do Brasil: a experiência da industrialização. São Paulo: Saraiva, 1972.), Abreu (1990ABREU, M. P. Crise, crescimento e modernização autoritária: 1930-1945. In: ABREU, M. P. (Org.). A Ordem do progresso: cem anos de política econômica republicana (1889-1989). Rio de Janeiro: Editora Campus, 1990.), Bastos (2008, 2011), Alvarenga Jr. e Mattos (2015).
  • 2
    A pronta adoção de políticas econômicas não convencionais (heterodoxas) pode sugerir que Vargas e sua equipe herdaram as convicções para sua implementação de momentos históricos distantes. Entretanto, as convicções prévias de Vargas eram mais alinhadas às políticas ortodoxas. A construção e implementação de uma agenda heterodoxa dá seus primeiros passos logo antes da crise, mas só ganha corpo a partir de 1930, à medida que novos fatos se apresentavam. Nesse sentido, as condições externas, a extensão e profundidade da crise, bem como as novas alianças políticas que haviam feito o movimento de 1930 levaram Vargas e seus assessores a tomarem medidas que, em outras circunstâncias, provavelmente não teriam sido tomadas. Nesse cenário, o pragmatismo político e a formação ideológica de Vargas ajudam a explicar a adoção dessas medidas heterodoxas no momento de crise (Bastos, 2011BASTOS, P. P. Z. Ortodoxia e heterodoxia antes e durante a era Vargas. In: Bastos, P. P. Z.; FONSECA, P. C. D. (Org.). A Era Vargas: desenvolvimentismo, economia e sociedade. São Paulo: Editora da UNESP, 2011.). Fonseca (2011FONSECA, P. C. D. Do progresso ao desenvolvimento: Vargas na Primeira República. In: BASTOS, P. P. Z.; FONSECA, P. C. D. (Org.). A Era Vargas: desenvolvimentismo, economia e sociedade. São Paulo: Editora da UNESP, 2011.) ainda chama atenção para a contribuição da formação positivista de Vargas e sua preocupação de longa data com o progresso econômico (que na época era amplamente associada à industrialização) na definição dos rumos das políticas econômicas pós-1930. Essas características e os traços de sua formação já haviam se manifestado em 1928, quando Vargas era governador do Rio Grande do Sul, na ocasião da criação do Banco do Estado do Rio Grande do Sul (BERGS), um banco de desenvolvimento regional que visava dar suporte creditício ao setor produtivo gaúcho e diversificar a atividade produtiva no estado.
  • 3
    Segundo Neuhaus (1975NEUHAUS, P. História monetária do Brasil, 1900-45. Rio de Janeiro: IBMEC, 1975.), a adoção de uma paridade cambial desvalorizada entre o mil-réis e a libra contribuiu para atrair capitais externos, ao baratear o custo de aquisição de ativos domésticos.
  • 4
    É importante salientar que o retorno do Brasil ao padrão-ouro também contou com o apoio dos exportadores e de segmentos da burguesia industrial, unidos pelo interesse no fim do processo de valorização cambial. A valorização cambial, de um lado, corroía a renda dos setores exportadores e, de outro, aumentava a competição no mercado doméstico, ao baratear as importações (inclusive as de bens produzidos pelos setores industriais). Tal qual lembra Fritsch (1990FRITSCH, W. Apogeu e crise na Primeira República: 1900-1930. In: ABREU, M. P. (Org.). A ordem do progresso: cem anos de política econômica republicana (1889-1989). Rio de Janeiro: Editora Campus, 1990.): “Desde fins de 1925, cresciam os protestos de industriais - especialmente os da indústria têxtil - e exportadores contra os efeitos deflacionários da contração de moeda e da apreciação cambial” (p. 56).
  • 5
    Delfim (2009) ressalta que o problema da valorização do café vinha desde pelo menos o início do século XX, resultando na celebração do Convênio de Taubaté (1906). O autor lembra que, já em 1902, o estado de São Paulo tomou a primeira medida limitadora da oferta de café, mas pondera: “somente a partir da realização do chamado Convênio de Taubaté que a possibilidade de intervenção foi seriamente considerada” (p. 61). Segundo o autor, o Presidente Epitácio Pessoa defendia a necessidade de robustecer os programas de sustentação do preço do café (Delfim, 2009; p. 96/97) e teve que enfrentar forte resistência no Congresso, que reunia representantes de outras culturas que se ressentiam do “privilégio” concedido à cultura cafeeira. Diante da tentativa de Epitácio de fazer passar uma lei de defesa do café, o Congresso ampliou seu escopo e o tornou um Projeto de Lei muito mais amplo, orientado à criação do Programa de Defesa Permanente da Produção Nacional. O governo Bernardes, envolvido em inúmeros problemas políticos e econômicos, não logrou dar sustentação ao programa, dado o esforço fiscal que seria necessário para financiá-lo. Diante desse cenário, a solução foi transferir a prerrogativa da defesa permanente para o estado de São Paulo, que, em 1924, criou o Instituto de Defesa Permanente do Café (Delfim, 2009; Bastos, 2011BASTOS, P. P. Z. Ortodoxia e heterodoxia antes e durante a era Vargas. In: Bastos, P. P. Z.; FONSECA, P. C. D. (Org.). A Era Vargas: desenvolvimentismo, economia e sociedade. São Paulo: Editora da UNESP, 2011.). Ambos os trabalhos registram que a melhoria da situação da liquidez internacional teve papel decisivo para que se viabilizasse a institucionalização e implementação de um sistema de defesa de caráter mais permanente.
  • 6
    Embora a entrada de recursos via conta capital tenha desacelerado já em 1928, a entrada líquida de reservas se manteve positiva até meados de 1929, quando a saída de capital se acelera, passando a promover perda de reservas e contração na base monetária.
  • 7
    Destaca-se que o aumento da renda no biênio que antecedeu a crise de 1929 fez crescer o valor das importações em cerca de 10% acima daquele observado para a expansão das exportações. Como resultado, o saldo da balança comercial foi reduzido em 53%, entre 1926 e 1928.
  • 8
    No curto prazo, a entrada de capitais externos contribui para a melhora no balanço de pagamentos, mas, no longo prazo, a necessidade de arcar com as obrigações da dívida contraída e com o pagamento dos fatores de produção externos agravaria os déficits na conta de serviços e rendas, piorando a situação nas transações correntes.
  • 9
    Ver Sayers (1976SAYERS, R. S. The Bank of England, 1891-1944. Cambridge: Cambridge University Press, 1976.).
  • 10
    As crises externas eram mais severas na periferia do capitalismo dado que quando a crise estourava: (i) os países centrais (credores industrializados) tinham débitos a receber, e não a pagar (Bastos, 2011BASTOS, P. P. Z. Ortodoxia e heterodoxia antes e durante a era Vargas. In: Bastos, P. P. Z.; FONSECA, P. C. D. (Org.). A Era Vargas: desenvolvimentismo, economia e sociedade. São Paulo: Editora da UNESP, 2011.); (ii) o capital procurava praças mais seguras, em detrimento das mais rentáveis; (iii) havia uma tendência a uma sensível deterioração dos termos de troca, uma vez que, na relação comercial entre centro e periferia, a essencialidade da pauta de importações tendia a ser muito maior para este último grupo de países. Logo, em tempos recessivos, a queda no preço das commodities tendia a ser muito mais acentuada do que a observada nos preços dos bens manufaturados (Furtado, 1959FURTADO, C. Formação econômica do Brasil. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1959.; Bastos, 2011).
  • 11
    Para mais, ver Neuhaus (1975NEUHAUS, P. História monetária do Brasil, 1900-45. Rio de Janeiro: IBMEC, 1975.) e Banco do Brasil (2010).
  • 12
    Ciente das enormes demandas que emergiam da crise, Vargas discursou em respeito à urgência de se reformar o Banco do Brasil com a finalidade de torná-lo: “(...) um propulsor do desenvolvimento geral, auxiliando, nesse caráter, a agricultura, amparando o comércio, fazendo redescontos, liderando, em suma, todo o sistema bancário, no sentido do contínuo engrandecimento do país. Atingir-se-á esse objetivo mediante a criação de carteiras especiais para o comércio, para a agricultura, para as indústrias etc.” (Vargas, 1930: p. 55 apudBastos, 2008aBASTOS, P. P. Z. Gestão macroeconômica, mudança institucional e revolução burguesa na era Vargas: quando a ortodoxia foi superada? Texto para Discussão 146. IE/ Unicamp, ago. 2008a.: p. 201).
  • 13
    Decreto nº 19.525, de 24 de dezembro de 1930.
  • 14
    Lei nº 160, de 31 de dezembro de 1935.
  • 15
    Entre 1927 e 1929, o valor do passivo de falências somente na praça do Rio de Janeiro saltou de 429,9 mil contos de réis para 1.339,8 mil contos de réis (Neuhaus, 1975NEUHAUS, P. História monetária do Brasil, 1900-45. Rio de Janeiro: IBMEC, 1975.).
  • 16
    Nesse mesmo período nota-se uma retração real de 22% da base monetária, de 25% dos meios de pagamento e de 8% da concessão de empréstimos dos bancos comerciais.
  • 17
    Dados de IBGE (1987) revelam que, em 1928, houve uma deflação de 1,5% nos preços ao consumidor do Rio de Janeiro; da mesma forma, houve uma queda adicional de 0,7% dos preços em 1929, de 9,0% em 1930, de 3,7% em 1931. Esse processo deflacionário aumentou as taxas de juros reais no triênio mais crítico da crise (1929-1931). Sobre esse aspecto, lembra Marcondes (2014MARCONDES, R. L. Malogro da fortuna: mercado financeiro durante a Grande Depressão do século XX. ENCONTRO NACIONAL DE ECONOMIA - ANPEC, 42º., 2014, Natal.: p. 4): “A teoria de Fisher (1933) de dívida-deflação é importante para entender as dificuldades posteriores a um período de sobre-endividamento. No caso brasileiro, os problemas anteriores deviam-se à indexação de dívidas ao ouro ou câmbio e às taxas de juros fixadas nas condições vigentes nos anos anteriores à Grande Depressão, bastante superiores às daquele momento.”
  • 18
    Decreto nº 22.626 de, 7 de abril de 1933, também conhecido como Lei da Usura.
  • 19
    Decreto nº 23.501, de 27 de novembro de 1933. Por meio desse expediente torna-se nulo o pagamento em ouro, ou em qualquer outra moeda que, por efeito, possa vir a recusar ou restringir o curso forçado do mil-réis papel.
  • 20
    Para mais detalhes, ver Banco do Brasil, 2010; Neuhaus, 1975NEUHAUS, P. História monetária do Brasil, 1900-45. Rio de Janeiro: IBMEC, 1975.; Peláez; Suzigan, 1976PELÁEZ, C. M.; SUZIGAN, W. História monetária do Brasil. Brasília: Editora da UnB, 1976..
  • 21
    Em 1931, o estoque de reservas internacionais atinge o seu nível mais crítico (US$ 0,3 milhão em ouro e outros US$ 14,4 milhões em outros ativos estrangeiros), o que resultou, após sucessivos atrasos, na suspensão unilateral do pagamento dos serviços da dívida externa.
  • 22
    Para mais, ver Furtado (1959FURTADO, C. Formação econômica do Brasil. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1959.) e Franco (1985).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Out 2021
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2021

Histórico

  • Recebido
    28 Mar 2020
  • Aceito
    11 Set 2020
Nova Economia FACE-UFMG, Av. Antônio Carlos, 6627, Belo Horizonte, MG, 31270-901, Tel.: +55 31 3409 7070, Fax: +55 31 3409 7062 - Belo Horizonte - MG - Brazil
E-mail: ne@face.ufmg.br