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O Estado em disputa: os objetivos do II PND e os interesses dos industriais

The State in dispute: the objectives of the II PND and the interests of the industrial business community

Resumo

A bibliografia sobre o II Plano Nacional de Desenvolvimento (1975-1979) é caracterizada por vários trabalhos preocupados com acertos e erros da política econômica. Os que defendem os acertos enfatizam o efeito positivo da substituição de importações pretendida sobre a balança comercial na década de 1980. Os que acusam erros responsabilizam a sujeição de uma suposta racionalidade econômica a uma presumida racionalidade política autoritária ou o voluntarismo irrealista da ditadura descolada de bases sociais. Este artigo apresenta evidências de reivindicações de frações internas do patronato industrial e de interações com o sistema político que, a despeito do autoritarismo (seletivo), sugerem que a formulação do II PND expressa a autonomia relativa de um Estado articulado a bases sociais específicas.

Palavras-chave:
II PND; ditadura; Estado; frações de classe; empresariado industrial

Abstract

The literature on the II National Development Plan (1975-1979) is characterized by various works concerned with the economic policy´s rights and wrongs. Those who defend that the right decisions were taken usually point to the positive impact of the import substitution projects on the trade balance in the 1980s. Those who criticize errors censure the subordination of supposed economic rationality to 1) the presumed authoritarian political rationality or 2) the unrealistic voluntarism of a dictatorship unconnected to social bases. The paper presents evidence of demands from domestic fractions of the industrial business community and its interactions with the political system which, despite the (selective) authoritarianism, suggest that the II PND´s formulation expresses the relative autonomy of a State articulated to specific social bases.

Keywords:
II National Development Plan; military dictatorship; state; class fractions; industrial business community

1 Introdução

O II Plano Nacional de Desenvolvimento (1975-1979) (II PND) consistiu em ambicioso programa de reformas e metas de investimento, realizado no governo Ernesto Geisel (1974-1980), cujo objetivo era manter o crescimento econômico a partir de modificações na estrutura industrial. O contexto de sua preparação era marcado, por um lado, por grande otimismo, propiciado pelas grandes taxas de crescimento registradas entre 1968 e 1973, e, por outro, pelas incertezas geradas por um conjunto de crises internacionais.

Diante desse contexto, as análises sobre o II PND se dividem basicamente em dois grupos, o dos críticos - pouco homogêneo, mas em maior número (Malan; Boneli, 1983MALAN, P; BONELLI, R. Crescimento econômico, industrialização e balanço de pagamentos: o Brasil dos anos 70 aos anos 80. Rio de Janeiro: IPEA/INPES, 1983.; Lessa, 1998LESSA, C. A estratégia de desenvolvimento 1974-1976: sonho e fracasso. Campinas: Unicamp, IE, (1998[1978]).[1978]) -, e o dos entusiastas (Castro; Souza, 1985CASTRO, A. B.; SOUZA, F. A economia brasileira em marcha forçada. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985.; Tadini, 1986TADINI, V. O setor de bens de capital sob encomenda: análise do desenvolvimento recente (1974/83). Ensaios Econômicos, São Paulo, IPE/USP, n. 57, 1986.; Velloso, 1998VELLOSO, J. R. A fantasia política: a nova alternativa de interpretação do II PND. Revista de Economia Política, São Paulo: v. 18, n. 2, p. 133-144, 1998.), em número bem mais reduzido. Mesmo balanços recentes como os de Carneiro (2002CARNEIRO, R. Desenvolvimento em crise: a economia brasileira no último quarto do século XX. São Paulo: Unesp/Unicamp, 2002.) ou Fonseca e Monteiro (2007FONSECA, P; MONTEIRO, S. O Estado e suas razões: o II PND. Revista de Economia Política, v. 28, n. 1 (109), p. 28-46, jan.-mar. 2007.) se aproximam de um ou outro desses grupos. Entre os primeiros, há uma tendência a destacar, de um lado, a evasão ao ajuste austero exigido pelas restrições externas muitas vezes de forma relacionada a uma subordinação da racionalidade econômica à racionalidade política (Malan; Bonelli, 1983; Aguirre; Saddi, 1997AGUIRRE, B.; SADDI, F. Uma alternativa de interpretação do II PND. Revista de Economia Política, v. 17, n. 68, p. 78-98, out.-nov. 1997.). De outro, destaca-se a visão autoritária e megalomaníaca da ditadura ao impor um programa econômico de cima para baixo, como se houvesse autonomia decisória absoluta (Lessa, 1998[1978]). Por sua vez, entre os defensores do plano, encontramos desde agentes ligados à sua elaboração (Velloso, 1998; 1998b) até autores que, mesmo sendo críticos à ditadura, destacam a importância dos investimentos do II PND na sobrevida e consolidação da industrialização brasileira, especialmente no ramo da indústria pesada (Castro; Souza, 1985).

De modo geral, essas análises acabam por categorizar o II PND a partir de uma dicotomia entre “erros” ou “acertos” da política estatal. O autoritarismo político que caracterizava o regime parece induzir leituras menos atentas aos condicionamentos sociais da elaboração do programa, como se a ditadura só atendesse a seus próprios governantes ou respondesse apenas às idealizações de tais governantes sobre o que a economia brasileira deveria ser.

A análise do II PND aqui proposta busca um enquadramento diverso, tendo por base evidências de reivindicações de uma fração particular do empresariado industrial por políticas que seriam depois reunidas no II PND. Isso não significa que essas políticas fossem consensuais ou mesmo que houvesse no interior do Estado uma unidade em torno de um programa de ações.1 1 O que fica claro não apenas nas contradições entre os interesses empresariais, como na análise da assim chamada “Campanha antiestatização” (Cruz, 1995), como nas diferentes posições ideológicas e vínculos sociais de membros do governo, sendo exemplares as divergências entre Reis Velloso (Seplan) e Simonsen (Fazenda) ou entre a postura nacionalista de Severo Gomes (MIC) e os vínculos com multinacionais de Golbery do Couto e Silva (Gabinete Civil). Ao contrário, aqui se parte de outra perspectiva de análise, que implica tomar o II PND não como uma expressão direta do autoritarismo da ditadura militar, mas como fruto de uma complexa e contraditória relação entre um Estado autoritário e suas bases de sustentação. Por essa razão, sustenta-se que ainda que a presidência e a tecnocracia estatal tivessem autonomia decisória ela não parece ter sido absoluta, e sim relativa.

É claro que a opacidade dos mecanismos de decisão em um Estado capitalista e, mais ainda, em uma ditadura não nos autoriza a estabelecer uma relação cabal entre reivindicações empresariais e decisões de política econômica. Entretanto, ela nos autoriza a duvidar da hipótese de independência decisória absoluta, o que nos permite propor outra perspectiva mais plausível: a de uma autonomia relativa, que não concebe governantes como “instrumentos” do patronato nem como “chefes” dele, e sim, mesmo em uma ditadura, como aliados dele ou de parte dele. Ou seja, governantes de um Estado que não é nem Estado-coisa nem Estado-sujeito, mas um Estado de classe.2 2 A inspiração teórica é Nicos Poulantzas (2019[1968]), para quem o caráter de classe do Estado é dado por sua estrutura jurídico-política - instituída para defender o direito à propriedade privada e representar o povo-nação -, independentemente da origem de classe e dos critérios de recrutamento e socialização das elites políticas. Claus Offe (1985) enfatiza a dependência estrutural do Estado - para assegurar aumento da arrecadação de impostos, da renda e do emprego - perante decisões capitalistas, o que tende a manter as políticas públicas em limites aceitáveis para a classe capitalista. Teóricos liberais, por sua vez, enfatizam a pluralidade de grupos de interesses, sem conferir qualquer primazia aos capitalistas. Teóricos elitistas destacam a autonomia das elites políticas, embora marxistas elitistas relativizem sua autonomia demonstrando a seletividade dos critérios de recrutamento e socialização de elites e sua circulação próxima à cúpula do sistema econômico. Para uma análise das teorias do Estado, ver Adam Przeworsky (1995). Sua autonomia frente à sociedade em geral aparece limitada por sua própria constituição enquanto organizador dos interesses das classes e frações de classes hegemônicas.

No contexto tratado, tal autonomia relativa e aliança em relação ao patronato tinha por base a busca da ditadura brasileira em se legitimar como um regime de exceção necessário para defender a propriedade privada - concentrada pelos empresários, portadores não só de recursos econômicos como de prestígio social e de poder de mando (patrões) - contra as supostas ameaças de instauração de um regime comunista ou sindicalista. Nesse sentido, a ditadura não elimina o caráter de classe do Estado, inerente ao capitalismo, uma vez que sua atuação segue sendo limitada por sua capacidade de garantir a valorização do capital - crescimento econômico - o que não apenas contribui para legitimar o poder político (via ampliação de lucros, empregos e salários) como o provê de tributos que ampliam os recursos à sua disposição. Nessas condições estruturais inerentes ao Estado capitalista, é pouco provável que os governantes busquem fechar todos os canais de interlocução com os proprietários das empresas beneficiárias das decisões governamentais e com os responsáveis pela execução das decisões privadas de que depende o sucesso do programa governamental, mesmo em uma ditadura3 3 Peter Evans (1995) comparou três ditaduras - Coreia do Sul, Brasil e Zaire - chegando à conclusão de que em todas havia forte interação entre elites políticas e empresariais, mas que uma condição de sucesso de programas de desenvolvimento industrial era a existência de “autonomia inserida”, ou seja, a autonomia para traçar estratégias sem perder canais de interlocução com o empresariado, mas sem estabelecer relações clientelistas. . No caso do II PND, a evidência de alguma correspondência entre reivindicações empresariais específicas (e não outras) e decisões governamentais aponta nessa direção.

Em outras palavras, a ideia de autonomia relativa do Estado significa que por mais que a elaboração de um programa econômico e a gestão das condições sistêmicas para seu sucesso não sejam tarefas dos empresários, mas de governantes e burocratas, seu sucesso depende, em parte, da colaboração empresarial na implementação e até mesmo na definição de suas linhas gerais. De modo geral, sempre que governantes desconhecem ou se esquecem de tal limitação tendem a aprender ou serem lembrados por reações empresariais de desaprovação ou por críticas às suas linhas de ação.

Partindo dessa perspectiva, voltamo-nos para o contexto que antecede ao lançamento do II PND, quando se percebe que parcela do patronato industrial nativo, ou da fração industrial da burguesia interna,4 4 “Burguesia interna” é um conceito proposto por Poulantzas (1974) para designar frações do grande capital nativo que têm interesses particulares contrários ao capital estrangeiro, mas que não se opõem em geral à sua participação na economia nacional, como o faz a chamada burguesia nacional (que em alguns países participou de uma aliança com camadas populares para barrar ou expulsar o capital estrangeiro), e também não se subordina como sócio menor do capital estrangeiro como a chamada burguesia associada. Para uma discussão da pertinência desses fracionamentos antes e depois da globalização capitalista, ver Jessop (1998). manifestava descontentamento com o suposto avanço da “desnacionalização” e com o menor dinamismo de ramos industriais controlados majoritariamente pelo capital privado nacional (bens de consumo não duráveis e bens de capital). Tal descontentamento teve influência direta e pública no sistema político, a despeito do regime ditatorial: induziu à realização de duas Comissões Parlamentares de Inquérito, uma antes e outra depois do II PND, respectivamente a “CPI da desnacionalização” e a “CPI das multinacionais”. Seria provavelmente exagero dizer que induziu também ao II PND, mas não que o influenciou, sobretudo na centralidade que daria à empresa nacional para “equilibrar” o jogo, ou melhor, o modelo de desenvolvimento. Aliás, como veremos, tanto o general Geisel quanto o ministro Reis Velloso participaram do debate público em 1973 sobre as relações entre empresas multinacionais e nacionais, tomando partido explícito pela proteção das segundas.

A hipótese de um sistema político impermeável ao patronato pouco resiste ao fato de que tanto Geisel quanto Reis Velloso não apenas conheciam as reivindicações empresariais específicas que circulavam pela opinião pública e pelo sistema político, como as interpelavam com promessas públicas e depois com políticas de proteção direcionadas à empresa nacional (e não às filiais ou estatais). Pode ser exagero dizer que, antes da “Campanha contra a Estatização” (1975-1976), ocorreu uma longa e barulhenta “Campanha contra a Desnacionalização”, mas é inegável a existência de reivindicações de uma fração particular do empresariado industrial brasileiro por políticas de fomento à empresa nacional. Políticas que, como veremos, seriam depois reunidas no II PND. Se essa similaridade entre as demandas empresariais e a política pública implementada a seguir não nos permitem inferir uma relação direta de causalidade, ao menos tornam a percepção de uma autonomia relativa mais plausível do que a hipótese de autonomia absoluta do Estado. Assim, não parece haver sentido em apontar o II PND como fruto de um Estado-Príncipe inteiramente desconectado do empresariado, e tampouco entender seus objetivos gerais como “pouco mais que a própria vontade de seus formuladores” (Lessa 1998LESSA, C. A estratégia de desenvolvimento 1974-1976: sonho e fracasso. Campinas: Unicamp, IE, (1998[1978]).[1978], p. 3), independentemente do maior ou menor realismo e do sucesso das políticas executadas.

A investigação das posições, opiniões e interesses gerais do que chamamos de seção industrial da fração interna do patronato, que sustentam a hipótese apresentada anteriormente, será realizada, além de fontes secundárias, a partir de documentos produzidos por entidades como a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (FIESP), a Confederação Nacional das Indústrias (CNI) e a Associação Brasileira de Infraestrutura e Indústrias de Base (ABDIB).

Foram analisadas as revistas mensais Indústria e Produtividade, da CNI e Indústria e Desenvolvimento, FIESP/CIESP em Notícias e do FIESP/CIESP Relatório das Diretorias, publicados pela FIESP e ABDIB Informa e ABDIB Relatório Anual da Diretoria, produzidos pela ABDIB. Todos a partir de 1973: embora estejamos focados no período anterior à proposição do II PND, sua recepção empresarial imediata também é relevante em nossa perspectiva analítica.

Este artigo segue dividido em mais três sessões nas quais são apresentados, primeiro, o contexto da elaboração do II PND e suas principais interpretações, depois as inter-relações entre Estado e frações de classe na proposição do plano, e as considerações finais.

2 O Governo Geisel: do ajuste ao II PND

Após meia década com crescimento médio de mais de 10% ao ano entre 1968 e 1973, a euforia era evidente no início do governo Geisel. Em 1973, a economia crescia muito acima das taxas mundial e da América Latina,5 5 O PIB cresceu, respectivamente, 9,8, 9,5, 10,4, 11,3, 11,9 e 14% entre 1968 e 1973. No mesmo período o PIB mundial teve crescimento médio de 5,3%, e a América Latina 6,3% (Maddison, 2001). O dado referente à inflação (IGP-DI) está disponível em www.ipeadata.gov.br. o produto industrial se expandia à taxa anual de 17%, e a capacidade instalada da indústria alcançava o pico de 90% (Macarini, 2011MACARINI, J. Governo Geisel: transição político-econômica? Um ensaio de revisão. Revista de Economia Contemporânea, Rio de Janeiro, v. 15, n. 1, p. 30-61, jan.-abr. 2011., p. 36). Em meio à euforia, o ano de 1974 começou, contudo, com algumas preocupações para o governo que se iniciava. A inflação (IGP-DI), a despeito de ter fechado 1973 em 15,54%, menor índice desde 1964, dava sinais de aceleração. O deflator implícito do PIB, por exemplo, variou 29,6%.

Mais significativo foi o vultoso aumento dos preços do petróleo, quadruplicando até março de 1974. A balança comercial e a inflação tornaram-se grandes problemas de curto prazo a serem enfrentados pelo governo que se inaugurava. O Ministério da Fazenda, sob comando de Mário Henrique Simonsen, apresentou medidas para desacelerar a economia e promover o reequilíbrio das contas externas e a contenção da inflação, enquanto a Secretaria de Planejamento da Presidência da República (Seplan), sob comando de João Paulo dos Reis Velloso elaborava o II PND (apresentado em setembro). Mais que uma divisão de tarefas, posições divergentes: contenção da demanda contra desequilíbrios cambiais e monetários vs. crescimento com reestruturação produtiva.6 6 Segundo Gaspari (2003), o II PND não teria sido encampado pelo ministro da Fazenda, cuja posição extraoficial resumia-se na frase: “Não leio ficção” (Fonseca; Monteiro, 2007, p. 40).

Entre as primeiras medidas da Fazenda, destacou-se a recomposição dos preços administrados, promovendo a já prevista inflação corretiva, compensada por expansão monetária limitada a 35% em 1974.7 7 Tal meta foi cumprida, tendo a base monetária se expandido 32,9% para uma inflação (IGP-DI) de 35,4% (Macarini, 2011, p. 39). O resultado foi contração do crédito e súbita elevação de juros, que cumpriu tanto o papel de desacelerar a economia como estimular o endividamento externo.

Segundo Reis Velloso (1986VELLOSO, J. R. O último trem para Paris: de Getúlio a Sarney: “milagres”, choques e crises do Brasil moderno. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.), o governo teria promovido ajuste visando à desaceleração gradual e momentânea, mas que teria surtido efeitos além do esperado. O PIB, que cresceu em média 11% entre 1968 e 1973, se elevou “apenas” 8,1% e 5,2% em 1974 e 1975, respectivamente. A taxa de crescimento da indústria de transformação, que foi de 17,6% em 1973, caiu para 7,8% em 1974 e 3,8% no ano seguinte. O temor de uma nova recessão, nos moldes de 1964, se avizinhava e a inflação persistia em se manter na casa dos 30% (34,55% em 1974 e 29,35% em 1975) (Macarini, 2011MACARINI, J. Governo Geisel: transição político-econômica? Um ensaio de revisão. Revista de Economia Contemporânea, Rio de Janeiro, v. 15, n. 1, p. 30-61, jan.-abr. 2011., p. 40).

Quanto às contas externas, nenhum ajuste mais severo foi levado a cabo até 1975. Em decorrência do aumento nos preços do petróleo, as importações brasileiras saltaram de 6,2 bilhões de dólares em 1973 para 12,6 bilhões em 1974. As exportações também aumentaram, mas em menor taxa, saltando de 6,2 para 8,2 bilhões. Com isso a Balança Comercial, que permaneceu equilibrada na maioria dos anos do “Milagre”, apresentou déficit de 4,7 bilhões de dólares em 1974. O crescimento da dívida externa, que já ocorria desde 1968, foi acelerado, alterando-se seu perfil a partir do aumento do peso das captações públicas.8 8 Sobre o crescimento da dívida externa e sua estatização, ver Cruz, 1998, p. 69-73.

A política ortodoxa da Fazenda não conseguiu conter a inflação e o desequilíbrio externo, mas impulsionou descontentamentos junto aos setores econômicos prejudicados pelos primeiros sinais de desaquecimento. Esse quadro, que já seria negativo por si só, tornava-se mais dramático diante da conjuntura política. O objetivo de Geisel e seu ministro do Gabinete Civil, Golbery do Couto e Silva, de promover uma abertura “lenta, gradual e segura” rumo à redemocratização, podia ser prejudicado pelo descontentamento de grande parcela do empresariado com a política ortodoxa da Fazenda. A derrota do governo nas eleições legislativas de 19749 9 O MDB, partido da oposição, quase dobrou sua representação na Câmara Federal (87 para 165 deputados, num total de 364). No Senado, o partido passou a ter 20 cadeiras, ante as 7 da Legislatura anterior, incluindo São Paulo (Orestes Quércia), Minas Gerais (Itamar Franco) e Rio de Janeiro (Saturnino Braga), e assumiu o controle de importantes Assembleias Estaduais (Skidmore, 1988). foi, por isso, considerada por grande parte dos analistas da política econômica como o marco derradeiro do ajuste recessivo (Carneiro, 1990CARNEIRO, D. Crise e esperança: 1974-1980. In: ABREU, M. P. (Org.) A ordem do progresso: cem anos de política econômica republicana (1989-1989). Rio de Janeiro: Campus, 1990.; Fishlow, 1986FISHLOW, A. A economia política do ajustamento brasileiro aos choques do petróleo: uma nota sobre o período 1974/84. Pesquisa e Planejamento Econômico, v. 16, n. 3, dez. 1986.; Macarini, 2011MACARINI, J. Governo Geisel: transição político-econômica? Um ensaio de revisão. Revista de Economia Contemporânea, Rio de Janeiro, v. 15, n. 1, p. 30-61, jan.-abr. 2011.).

Em 1975, o aperto no crédito foi revertido. O governo reduziu os pisos de depósitos compulsórios para os bancos comerciais, esperando que estes ampliassem seus empréstimos ao setor privado, o que, entretanto, não ocorreu devido à prudência diante do cenário de incertezas. Talvez os primeiros prenúncios da mudança da forma de operação do sistema financeiro interno no sentido do aguçamento da especulação com títulos públicos e das estatais (Tavares; Assis, 1985TAVARES, M. C; ASSIS, J. C. O grande salto para o caos: a economia política e a política econômica do regime autoritário. 2. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1985.).

A reversão das políticas contracionistas estava em sintonia com a nova diretriz da política econômica. Apresentado em 10 de setembro de 1974, o II PND (1975-1979) deu o tom da política econômica, pautada por grandes investimentos públicos. As encomendas das empresas estatais, aliás, teriam papel central na estratégia de redirecionamento do complexo industrial para os setores de bens intermediários e de capital.

Algumas medidas cruciais para sua execução foram implementadas antes do anúncio do plano. Destacamos, primeiro, a Lei Complementar nº 19 (25/06/1974), que transferiu para o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico (BNDE) os fundos PIS/PASEP10 10 Esses fundos correspondem ao Programa de Integração Social e ao Programa de Formação do Patrimônio do Servidor Público, que ficavam a cargo do Banco do Brasil. Em 1975, os recursos oriundos desses fundos equivaleram a 46% do total de recursos mobilizados pelo BNDE. . O ingresso desses fundos praticamente duplicou os recursos à disposição do BNDE, principal agente financeiro do II PND. Não menos importante foi o Decreto-Lei 1.338 (23/071974), que reconfigurou os incentivos fiscais sobre o imposto de renda das pessoas físicas, para aplicação em títulos públicos ou no mercado de ações, ampliando assim o volume de poupança voluntária disponível para o governo e empresas privadas. Por fim, a criação de três subsidiárias do BNDE, a Insumos Básicos S/A (FIBASE), a Mecânica Brasileira S/A (EMBRAMEC) e a Investimentos Brasileiros S/A (IBRASA), em junho de 1974, com o intuito de permitir ao banco atuar na capitalização de empresas privadas por meio de participação acionária. Além dessas três medidas, teria papel fundamental a reativação do Fundo de Financiamento para a Aquisição de Máquinas e Equipamentos Industriais (FINAME), com a finalidade de ampliar o crédito ao setor de bens de capital (Lessa, 1998LESSA, C. A estratégia de desenvolvimento 1974-1976: sonho e fracasso. Campinas: Unicamp, IE, (1998[1978]).[1978]; Tavares, 2010TAVARES, M. C.; MELO, H. P.; CAPUTO, A. C.; COSTA, G. M. M.; ARAUJO, V. L. O papel do BNDE na industrialização do Brasil: os anos dourados do desenvolvimento, 1952-1982. Memórias do Desenvolvimento, n. 4, Rio de Janeiro, Centro Celso Furtado, 2010.).

Também deve ser destacada a reestruturação administrativa com a criação do Conselho de Desenvolvimento Econômico (CDE), sob a chefia do próprio Presidente da República, com Secretaria Executiva a cargo da Seplan. Com este órgão, o presidente trouxe para si o controle da política econômica, passando a exercer um papel muito mais ativo que seu antecessor. Na prática, o CDE também reduzia a importância do Conselho Monetário Nacional, deslocando o protagonismo da equipe econômica do Ministério da Fazenda para a Seplan (Codato, 1995CODATO, A. A burguesia contra o Estado? Crise Política, ação de classe e os rumos da transição. Revista de Sociologia e Política, Curitiba, v. 4-5, 1995.).

Diante dessas medidas prévias, o II PND anunciava como seus objetivos principais a manutenção do crescimento acelerado dos anos anteriores, a contenção da inflação através de método gradualista, a promoção de relativo equilíbrio no Balanço de Pagamentos, a melhora na distribuição pessoal e regional da renda, a preservação da estabilidade social e política e o desenvolvimento do país sem gerar maior degradação do meio ambiente, incentivando a descentralização industrial (Brasil, 1974).

Para além das expectativas de significativo crescimento industrial, o plano trazia uma ambiciosa proposta que, se implementada, levaria a mudanças profundas na estrutura industrial brasileira. Partindo da assertiva de que a dependência externa de bens de capital era o principal entrave à manutenção do desenvolvimento industrial, o plano apostava na nacionalização da oferta de bens de capital a partir de estímulos à indústria nacional, visando à ampliação de capacidade produtiva e à internalização de tecnologia. Ao mesmo tempo apostava no aumento dos investimentos estatais em infraestrutura e na expansão da produção de insumos básicos. Por meio do aumento dos investimentos públicos, se ampliaria a demanda por máquinas e equipamentos a ser suprida pela indústria nacional, reduzindo a demanda por importações. Era sem dúvida um plano ousado, que envolvia a movimentação de enorme volume de capitais, levando a deslocamentos entre as frações do patronato que capitaneavam o capitalismo no Brasil. Tudo isso em meio a uma das mais graves crises internacionais desde 1930.

Lessa (1998LESSA, C. A estratégia de desenvolvimento 1974-1976: sonho e fracasso. Campinas: Unicamp, IE, (1998[1978]).[1978], p. 77) entende o II PND como “um exemplo do exercício de autoridade (...), exercida com a convicção alimentada pela euforia do milagre”, e que apresenta “tudo o que é básico como acabado e pronto”. O autor apresenta evidências de que reformas significativas na estrutura econômica já eram previstas e trabalhadas pelos técnicos da Seplan desde o início da década de 1970. Assim, o plano já estaria praticamente elaborado quando da eclosão da crise do petróleo, em outubro de 1973, tendo apenas a retórica discursiva sido adaptada visando reforçar o enfrentamento da crise. Nesse sentido é que o plano aparece como fruto exclusivo do ufanismo estatal, de um Estado sujeito que elege prioridades e informa à Nação.

Outros autores seguem orientação parecida ao afirmarem que o II PND teria uma relação mais direta com a realidade política interna do país do que com a configuração econômica e com as transformações do mundo em crise. Nessa linha, enquadram-se os já citados trabalhos de Fishlow (1986FISHLOW, A. A economia política do ajustamento brasileiro aos choques do petróleo: uma nota sobre o período 1974/84. Pesquisa e Planejamento Econômico, v. 16, n. 3, dez. 1986.), Malan e Bonelli (1983MALAN, P; BONELLI, R. Crescimento econômico, industrialização e balanço de pagamentos: o Brasil dos anos 70 aos anos 80. Rio de Janeiro: IPEA/INPES, 1983.), Aguirre e Saddi (1997AGUIRRE, B.; SADDI, F. Uma alternativa de interpretação do II PND. Revista de Economia Política, v. 17, n. 68, p. 78-98, out.-nov. 1997.) e Santos e Colistete (2010SANTOS, F.; COLISTETE, R. Avaliando o II PND: uma abordagem quantitativa. In: ENCONTRO NACIONAL DA ANPEC, 38., 2010, Salvador, 2010.). Para esses intérpretes, todo o arcabouço estratégico do II PND estava assentado na ausência de rigor dos agentes públicos diante da gravidade da crise internacional. Pautada mais em razões políticas do que na racionalidade econômica, teria se consolidado no governo Geisel a crença na possibilidade da manutenção dos índices de crescimento do auge do “Milagre”, mesmo diante das pressões que pudessem surgir com a situação externa. Com poucas nuances entre esses autores, a saída apontada como mais adequada seria uma política de ajuste que reequilibrasse o Balanço de Pagamentos. Para tanto, o governo deveria promover um desaquecimento momentâneo da atividade econômica e o racionamento - por meio do ajuste dos preços relativos - do consumo de petróleo e seus derivados.

Todos os pesquisadores citados reconhecem as dificuldades de se realizar uma desaceleração da economia em meio à euforia do “Milagre” e diante dos objetivos políticos de abertura gradual do regime. Como já destacado, a derrota nas eleições de 1974 teria sido um complicador extra. A necessidade de legitimação política do regime teria dado o tom do II PND, de forma independente da racionalidade econômica presumida.

Apenas durante a década de 1980 apareceram outros trabalhos que interpretam o II PND como uma resposta “suficientemente racional” do ponto de vista econômico, diante da crise. Esses trabalhos, com destaque para Castro e Souza (1985CASTRO, A. B.; SOUZA, F. A economia brasileira em marcha forçada. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985.), Batista (1987BATISTA, J. A estratégia de ajustamento externo do Segundo Plano Nacional de Desenvolvimento. Revista de Economia Política, São Paulo, Editora da FGV, v. 7, n. 2, p. 66-80, 1987.) e Tadini (1986TADINI, V. O setor de bens de capital sob encomenda: análise do desenvolvimento recente (1974/83). Ensaios Econômicos, São Paulo, IPE/USP, n. 57, 1986.), tiveram por base os resultados das contas externas obtidos após 1983, atribuídos aos efeitos defasados do II PND. Assim, a contenção da demanda agregada não podia ser tomada como a única opção racional diante do choque do petróleo.

Mais alinhados a esse campo, Fonseca e Monteiro (2007FONSECA, P; MONTEIRO, S. O Estado e suas razões: o II PND. Revista de Economia Política, v. 28, n. 1 (109), p. 28-46, jan.-mar. 2007.) apontam, a partir do marco institucionalista, como a existência de racionalidade econômica não se apresenta necessariamente nos resultados de um plano, tampouco em sua contraposição a uma pretensa racionalidade universal. Nesse sentido, os autores mostram como é natural que os condicionantes políticos próprios de cada conjuntura interfiram na elaboração e nos desdobramentos de um programa econômico. Por esse motivo, afirmam, as razões por trás de uma política nem sempre são encontradas na análise de seus resultados. É comum que estes sejam o oposto do esperado por seus formuladores. “O mesmo não ocorre quando a indagação diz respeito ao porquê de uma opção ter sido feita, abordagem que (...) independe de seus resultados” (Fonseca; Monteiro, 2007, p. 31).

O caminho trilhado pelos autores, ainda que sob referencial teórico diverso do proposto aqui, joga luz sobre a questão ao também direcionar a investigação às intenções dos agentes, uma questão diferente daquela relativa aos resultados do plano, e com a qual tem relações complexas e mediações diversas. Ele mostra ainda que a inexistência de uma única racionalidade econômica reforça o equívoco da busca de racionalidades econômicas e políticas em espaços que não se comuniquem, exigindo a pergunta da economia política: qual racionalidade é para quem? Nesse caso, acrescentaríamos, devem ser rejeitados tanto a ortodoxia neoclássica, segundo a qual “não existe alternativa” à austeridade, quanto o enfoque da escola “derivacionista” marxista, que deduz políticas econômicas a partir da “lógica do capital”, o que poderia levar à hipótese de que não haveria alternativa a não ser buscar superar os estrangulamentos à acumulação de capital com algo como o II PND. Do que sabemos, não há exemplo nessa linha sobre o II PND, ao contrário do debate sobre os governos de Vargas.11 11 Ao criticar a ênfase que Sonia Draibe (1985[1980]) deu às alternativas de política econômica depois de 1930, Lessa e Fiori (1984) defendem um argumento quase oposto ao voluntarismo extremo sugerido por Lessa sobre o II PND: que Vargas não tinha opção a não ser enfrentar os estrangulamentos de oferta com um programa ambicioso, mas que nem “nacionalista” era. Para uma crítica, ver Bastos (2006).

Apresentado este breve sumário do II PND e de suas principais interpretações, ficou claro como, de modo geral, as análises do plano partem de uma visão do Estado como portador de autonomia absoluta. A partir disso, as políticas são avaliadas como mais ou menos racionais, mais ou menos factíveis, fadadas ao fracasso ou ao sucesso. Na seção seguinte se busca apresentar elementos que reforçam a hipótese de que a ação estatal não esteve livre de condicionantes e limitações. Sua autonomia, assim, seria apenas relativa.

3 O debate público sobre desnacionalização e a autonomia relativa do Estado na formulação do II PND

Uma primeira constatação emana das fontes consultadas: havia consenso entre empresários industriais no sentido de refutar alternativas recessivas. A opção de ajuste recessivo, tal qual postulava parcela significativa dos analistas econômicos, e cujas ações iniciais do governo pareciam indicar, não possuía bases políticas entre os industriais. O clima predominante era de que a continuidade das altas taxas de crescimento era não apenas viável, como constituía a política correta a ser seguida.

Entretanto, mais importante do que o crescimento era o debate sobre mudanças em seu padrão, em vistas de desequilíbrios identificados. São dois os principais desequilíbrios apontados no debate público entre membros do governo, parlamentares, empresários e intelectuais que precedeu o II PND: 1) o desequilíbrio entre empresas transnacionais (ETNs) e empresas estatais (EEs), de um lado, e empresas privadas nacionais (EPNs), de outro, e em particular a desnacionalização de EPNs; 2) os desequilíbrios que diferenciavam o ramo de bens de consumo durável, de um lado, e os bens de consumo não duráveis (que não abordaremos) e os bens de capital, de outro (Lessa, 1998LESSA, C. A estratégia de desenvolvimento 1974-1976: sonho e fracasso. Campinas: Unicamp, IE, (1998[1978]).[1978], p. 17-77).

Não é incomum considerar que o patronato industrial nativo, ou a fração industrial da burguesia interna, foi senão a fração hegemônica no bloco no poder atendido pelos programas de desenvolvimento industrial a partir do Estado Novo, a mais favorecida por eles (Farias, 2017FARIAS, F. Estado e classes dominantes no Brasil (1930-1964). Curitiba: Editora CRV, 2017.). No governo JK, a chegada da filial estrangeira não foi vista em geral como prejudicial pela maioria do patronato nativo, antes pelo contrário, a despeito das solicitações de equidade em vista da Instrução 113 da SUMOC (Trevisan, 1986TREVISAN, M. J. 50 anos em 5: a FIESP e o desenvolvimento. Petrópolis: Vozes, 1986., p. 116-122; Leopoldi, 2000LEOPOLDI, M. A. Política e interesses na industrialização brasileira: as associações industriais, a política econômica e o Estado. Rio de Janeiro: Paz e Terra, (2000[1984])., cap. 8). Após o golpe militar de 1964, entretanto, percebe-se o crescimento dos conflitos com o capital estrangeiro. Tais conflitos levaram não apenas a reclamações públicas, expressas em jornais e em publicações das associações empresariais, certamente conhecidas (e mesmo autorizadas) por um regime que censurava a imprensa. Além de publicações voltadas a influenciar a opinião pública e, mais ainda, os governantes, a movimentação classista logrou significativa influência direta e pública no sistema político, a despeito do regime ditatorial: induziu à realização de duas Comissões Parlamentares de Inquérito, a chamada “CPI da Desnacionalização” (1967-1968) e outra denominada “CPI das Multinacionais” (1975-1976).

No que tange à desnacionalização, a reivindicação principal era o apoio governamental à EPN, capacitando-a a concorrer com a ETN, e secundariamente o veto à entrada em alguns ramos. Segundo Lessa (1998LESSA, C. A estratégia de desenvolvimento 1974-1976: sonho e fracasso. Campinas: Unicamp, IE, (1998[1978]).[1978], p. 130-138), a demanda principal recebeu resposta governamental favorável, a segunda não, exceto no que tange à recomendação de reserva das encomendas de empresas estatais para EPNs, contra ETNs, em 1974.

As reivindicações empresariais analisadas por Lessa para o período 1974-1975 (como veremos) não eram novas, portanto, não reagiam ao II PND. Em estudo sobre a ação política da FIESP frente ao Plano de Metas e à entrada de filiais, Maria Trevisan (1986TREVISAN, M. J. 50 anos em 5: a FIESP e o desenvolvimento. Petrópolis: Vozes, 1986., p. 116-118) nomeou a estratégia da equidade: aceitar a entrada de ETNs em geral, mas exigir do governo condições equitativas para competição e a barreira à entrada em alguns ramos. A mesma posição é atestada no Relatório da CPI da Desnacionalização apresentado em 06 de setembro de 1968.12 12 A despeito de registrar várias queixas, o relator da CPI atesta que “nenhum dos depoentes se manifestou contrário à participação do capital estrangeiro no desenvolvimento econômico do país” (Medina, 1970, p. 74).

Durante a execução do Plano de Metas, por exemplo, a FIESP publicou o manifesto “Ameaça de desnacionalização progressiva da indústria” contra o privilégio - menor custo de capital - que a Instrução 113 da SUMOC conferiu a uma filial interessada no mercado de latas, explorado por EPNs, exigindo a revogação e crédito público barato (Trevisan, 1986TREVISAN, M. J. 50 anos em 5: a FIESP e o desenvolvimento. Petrópolis: Vozes, 1986., p. 122; Leopoldi, 2000LEOPOLDI, M. A. Política e interesses na industrialização brasileira: as associações industriais, a política econômica e o Estado. Rio de Janeiro: Paz e Terra, (2000[1984])., p. 268-269).13 13 Nas palavras de Leopoldi (2000, p. 269): “A campanha contra a American Can envolveu a imprensa, alianças com outros setores nacionalistas, protestos no Congresso, movimentos estudantis e até mesmo um subsídio financeiro da parte de Francisco Matarazzo Sobrinho ao Partido Comunista em retribuição ao seu apoio na campanha.” Já na CPI da Desnacionalização, o presidente da FIESP, Theobaldo de Nigris, reclamou da desnacionalização ocorrida em 1965-1966 por causa da escassez e custo do crédito e do privilégio que a Instrução 289 da SUMOC conferia às filiais - hedge cambial para dívida externa (Medina, 1970MEDINA, R. Desnacionalização: crime contra o Brasil? Rio de Janeiro: Saga, 1970., p. 57-58; 70). O diálogo empresarial com a ditadura é evidente nas respostas dadas na CPI pelo ex-ministro Roberto Campos (negando a desnacionalização) ou pelo ministro da Indústria e Comércio (General Macedo Soares), que defendeu ser exagero falar de desnacionalização da indústria em geral, pois o crescimento das ETNs ocorria nas “atividades industriais avançadas, como automobilística e de mecânica pesada” (Medina, 1970, p. 58-59; 66-67). Já o ministro Magalhães Pinto (Relações Exteriores) reconheceu as vantagens relativas das filiais associadas à Instrução 289 (Medina, 1970, p. 68). Acompanhando Campos, Mário Henrique Simonsen (futuro ministro da Fazenda de Geisel) citou a criação de fundos no BNDE, Finame, Fundece e Fipeme, por exemplo, como “fator de nacionalização” (Medina, 1970, p. 71).14 14 A mensagem de Castelo Branco ao Congresso Nacional em 1966 ressaltara que esses fundos “vieram permitir a participação do BNDE na área das pequenas e médias empresas e no financiamento à compra e venda de equipamentos de fabricação nacional (...) O produtor nacional deixa de ter o seu mercado consideravelmente restrito, com o financiamento da venda de máquinas e equipamentos” (Castello Branco, 1966, 57-64). Os boletins da FIESP a partir de 1964 revelam encontros com o presidente e ministros, afirmando-se em 07/1964 que “restabelece-se, assim, em toda sua plenitude, um diálogo entre as forças da produção e o governo o qual estava interrompido lamentavelmente desde há muito tempo” apudMoraes (2010, p. 94). Os boletins de 1965 elogiam a criação dos fundos no BNDE, mas as reclamações contra a chamada inflação de custos (juros, impostos e tarifas públicas) só pararam depois que a nomeação de Delfim Neto na Fazenda oficializou tal diagnóstico (Moraes, 2010, p. 96-99).

A CPI merece estudos mais profundos, mas não é exagero dizer que seu relatório apresentou um programa que interpelava frações do patronato industrial secundárias ao modelo do “Milagre”, nos ramos de bens de capital e de consumo não durável. São representantes desses ramos que apresentam queixas e são contemplados pelas propostas da CPI, que tem grande semelhança com o II PND (Medina, 1970MEDINA, R. Desnacionalização: crime contra o Brasil? Rio de Janeiro: Saga, 1970., p. 17-32, 113-126), 1) reserva de setores ou atividades a nacionais, até “garantir a existência nos setores básicos (...) de empresários nacionais”; 2) investimentos maciços que rompam pontos de estrangulamento e criem encomendas para a EPN; 3) ampliação do crédito público e isenções fiscais para EPNs; 4) participação acionária do Estado em EPNs para capitalizá-las; 5) incentivo à fusão de empresas para “elevar-lhes a eficiência”; 6) criação e transferência de tecnologias via joint-ventures; e 7) elevação de salários em “níveis que permitam o escoamento dos artigos produzidos no campo e nas fábricas”. O programa se traduzia em projeto de lei que criava o Conselho Nacional de Investimentos, com certas funções semelhantes às que teria o CDE (Medina, 1970, p. 150-161).

Enquanto a CPI funcionava, a XVIII Convenção dos Industriais do Estado de São Paulo, em maio de 1968, reclamava que a EPN não podia crescer mais por causa da “instalação repentina e em massa dos grandes complexos industriais, a grande maioria deles de capital alienígena (...) o empresário paulista (...) ampliou, em verdade, em muitíssimos casos, suas operações, de pequena para média empresa, ou, simplesmente, aumentou a média sem chegar à grande empresa, por própria influência dos grandes complexos recentemente instalados” (apudBastos, 2010BASTOS, R. S. A burguesia perdida: empresariado industrial e desenvolvimento econômico (1960-1974). Tese (Doutorado) - Universidade de São Paulo, 2010., p. 137-138).

O relatório da CPI foi aprovado pelo plenário da Câmara em julho de 1970 (JB, 30/07/1970), logo publicado em livro do relator, deputado federal Rubem Medina (1970MEDINA, R. Desnacionalização: crime contra o Brasil? Rio de Janeiro: Saga, 1970.). Enquanto sua análise focava o governo Castello Branco, livro de instituto subordinado à Seplan - o IPEA - defendia que as ETNs eram as principais beneficiárias do “Milagre” (Fanjzylber, 1971FANJZYLBER, F. Estratégia industrial e empresas internacionais: posição relativa da América Latina e do Brasil. Rio: IPEA/INPES, 1971.). No mesmo ano, isenções ou reduções das tarifas aduaneiras e demais impostos (IPI, ICM) que incidiam apenas sobre a importação de máquinas e equipamentos de projetos aprovados no Conselho de Desenvolvimento Industrial foram estendidas para bens de capital locais (Suzigan, 1990SUZIGAN, W. Estado e industrialização no Brasil. Campinas: Centro de Estudos de Conjuntura, UNICAMP, 1990. (Texto para discussão n. 5)., p. 4-5). Dada a abundância de reservas cambiais, a nova equidade no tratamento dos bens de capital não pode ser explicada por restrição externa. As demandas de incentivo para o ramo não acabaram e, em julho de 1973, antes do Choque do Petróleo e com o “Milagre” no auge, o presidente da FIESP/CIESP dialogava sobre fontes futuras de crescimento industrial: “diversificação e expansão das exportações; continuação da substituição de importações nos setores de bens intermediários e bens de capital; reorganização e reequipamento do setor tradicional; e desenvolvimento da tecnologia nacional” (FIESP, 1973, n. 7, p. 24). A semelhança com o programa da CPI da Desnacionalização é evidente. Em outubro de 1973, o presidente da CNI realçava o surgimento de pontos de estrangulamento nos setores siderúrgico e petroquímico que “terão que ser equacionados pelo novo presidente” (I&P, 1973, n. 65, p. 26), diferentemente da proposta corrente de ajuste recessivo diante do choque do petróleo.

Entre as duas declarações, Geisel intervém no debate proposto por parlamentares e industriais a respeito da desnacionalização. De posse do acervo de Golbery do Couto e Silva, Elio Gaspari (2003SILVA, M. Política industrial e interesses empresariais: o II PND (1974-1979). In: CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA ECONÔMICA, V; CONFERÊNCIA INTERNACIONAL DE HISTÓRIA DE EMPRESAS, 6ª., Caxambu: ABPHE, 2003., p. 239) mostrou que o futuro ministro da Casa Civil propôs o seguinte adendo ao discurso do general à convenção da Arena que o lançaria candidato a presidente: “As grandes empresas multinacionais, cujo potencial, para o bem, ou talvez para o mal é, e sê-lo-á, em escala maior talvez, condição essencial ao próprio desenvolvimento da Nação.” Geisel substituiu a passagem por: “(...) cujo potencial para o bem, ou talvez para o mal, ainda não nos é dado avaliar.”

A declaração provocou comoção pública e reforçou o debate sobre o papel das filiais, que se acentuara nos principais jornais e no Parlamento em 1973, prosseguindo em 1974 até a instalação de nova CPI das multinacionais em 1975.15 15 Pereira (1974, p. 48-101). Em reação aos sinais de Geisel, deputados e intelectuais propõem um anteprojeto relativo à desnacionalização (JB, 05/05/1974, 41), tema da CPI instalada meses depois. No JB, um ano depois (Paim, 1975), a CPI é descrita vivendo “um clima de tensões próprias dos inquéritos policiais, tantos, e tão variados e graves seriam as denúncias contra empresas de capital estrangeiro”. Note-se que os livros-denúncia do empresário Kurt Rudolf Mirow (1975) e Bandeira (1975) tornaram-se best-sellers. Diante da reação favorável ao discurso de Geisel por políticos dos partidos MDB e Arena (inclusive do presidente da Subcomissão de Empresas Multinacionais), o ministro Reis Velloso deu entrevista coletiva (17/09/1973) minimizando as remessas de lucro; já em outubro defenderia, primeiro, a necessidade de “normas de atuação que levem essas empresas a integrarem-se na orientação dos países em que operam. Segundo, no plano político, é importante que os países de origem tornem claro (...) que não apoiarão incondicionalmente suas multinacionais, recomendando-lhes a mesma orientação de ajustamento aos propósitos dos países onde operam” (Pereira, 1974PEREIRA, O. Multinacionais no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1974.).

O diálogo público não parou por aí. Em dezembro, Einar Kok, presidente do Sindicato da Indústria de Máquinas do Estado de São Paulo (SIMESP), defendia a “consolidação dos incentivos fiscais e uma política que dê tratamento às máquinas nacionais com um diferencial mais forte” (FIESP-CIESP, 1974b, n. 1, p. 36). Na primeira reunião ministerial (19/03/1974), Geisel (1975GEISEL, E. Discursos 1974 - vol. 1. Assessoria de Imprensa e Relações Públicas da Presidência da República, 1975., p. 59) refere-se explicitamente ao diálogo com o patronato para regular a participação das ETNs e assegurar a equidade competitiva: “O desenvolvimento do nosso sistema financeiro, os mecanismos de acompanhamento e de controle de preços, a participação das empresas multinacionais têm sido guiados por muitas regras não escritas e por critérios nem sempre explícitos que vêm sendo formados pelo consenso das autoridades no seu diálogo com o setor privado. Já adquirimos suficiente experiência para que, agora, explicitemos as regras do jogo, de modo a simplificar a administração pública, a fortalecer a confiança dos empresários e a assegurar a igualação das oportunidades.” Em abril, a CNI e todas as Federações industriais publicaram moção de aplauso às diretrizes anunciadas na posse de Geisel (I&P, 1974, n. 71), o que também indica a existência de um campo de interação pública entre patronato e governo.

O diálogo sugerido por Geisel prossegue em abril com documento da FIESP-CIESP a respeito das ETNs, apontando a importância delas na industrialização, mas destacando a concorrência desleal frente à EPN. Destaque foi dado aos diferenciais de porte, acesso ao crédito, tecnologia e maior flexibilidade de investimentos, advertindo-se que “quando a empresa multinacional que queira instalar-se no país assumir caráter competitivo em relação à indústria nacional, (...) devem ser criados mecanismos que evitem a sua entrada” (FIESP, 1974b, p. 35). Solicitava também apoio para fortalecimento do capital nacional, inclusive via “criação das empresas holdings do BNDE” para “deter a onda de desnacionalização que tem assolado o setor privado nacional, em virtude de sua fraqueza financeira diante dos grupos internacionais” (FIESP, 1974b, p. 37). Por fim, solicitava ampliação do crédito, incentivando o fortalecimento de grupos em condições de competir com as ETNs, e “esforço interno de pesquisa e desenvolvimento, objetivando-se a criação mais rápida de uma tecnologia nacional” (FIESP, 1974b, p. 41). Em suma, um projeto semelhante ao da CPI da Desnacionalização: 1) barrar ou orientar a entrada de filiais em certos ramos; 2) criar holdings no BNDE para investir em empresas nacionais; 3) ampliar crédito público; 4) estimular o P&D industrial.

No mês seguinte, o que Geisel chamava de “desenvolvimento do nosso sistema financeiro” para “assegurar a igualação das oportunidades” efetivou-se na criação das três holdings do BNDE. Em 17/05/1974, o ministro da Indústria e Comércio, Severo Gomes, defendeu a reforma institucional afirmando que “o atraso relativo das empresas privadas em face das estatais e estrangeiras criou uma distorção tão grande na economia que o governo decidiu criar instrumentos especiais para sua correção” (apudFreire, 1974FREIRE, M. Oposição no Brasil, hoje. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1974., p. 268).16 16 O deputado federal Marcos Freire, líder da oposição, também faz referência extensa à lista preparada pela Seplan em 1973 atestando a desnacionalização: 1974, 274-276. O Presidente da ABDIB, Cláudio Bardella, respondeu publicamente: “O Governo vem atender agora a aspirações de 20 anos da indústria de máquinas e equipamentos” (JB, 25/5/74, apudLessa, 1998LESSA, C. A estratégia de desenvolvimento 1974-1976: sonho e fracasso. Campinas: Unicamp, IE, (1998[1978]).[1978], p. 127).

A ideia que o governo “atendia a aspirações” empresariais é exagerada se não reconhecer a autonomia relativa do Estado, mas indica pelo menos influência, senão parceria. A Resolução 6/74 do CDE recomendou direcionar à EPN as compras de máquinas e equipamentos das estatais, enquanto o Decreto-Lei 1.335 (08/07/1974) estendeu para equipamentos nacionais incentivos concedidos aos importados. Carlos Villares (Superintendente da Indústria Villares e Presidente da SIMESP) reagiu assim: “O fato de o Governo estar recomendando às empresas estatais que deem preferência ao produto nacional é prova de que havia preferência pelo equipamento estrangeiro.” (apudLessa, 1998LESSA, C. A estratégia de desenvolvimento 1974-1976: sonho e fracasso. Campinas: Unicamp, IE, (1998[1978]).[1978], p. 129-130). A ABDIB fez questão de destacar que a resolução atendia suas demandas (ABDIB, 1974, n. 118, 121), inclusive admitindo “a atuação da CACEX, ABDIB, SIMESP e ABINEE nos acordos de participação” (Relatório, 1974, p. 1): não seria a confissão de um cartel para dividir as encomendas das estatais? Imaginava-se que a ETN cooperaria: “Foi claramente definida também uma política de nacionalização tecnológica, que sensibilizou até as filiais de empresas estrangeiras. Estas tentam agora convencer suas matrizes da necessidade de participar mais diretamente no desenvolvimento do Brasil” (ABDIB, 1974, nº 126, p. 2).17 17 A sintonia entre o II PND e o setor de bens de capital é amplamente reconhecida (Boschi, 1979; Brandão, 2007; 2008; Cruz, 1995; Silva, 2003). Para Brandão (2007), a ABDIB era um “aparelho privado de hegemonia” que buscava influenciar a política econômica para garantir reserva de mercado e condições de financiamento favoráveis.

Em um ramo que fornecia insumos para as filiais, Luís Eulálio de Bueno Vidigal Filho, empresário do setor de autopeças (Cobrasma) e presidente do Sindicato Nacional da Indústria de Peças para Automóveis e Similares (SINDIPEÇAS), apoiou as diretrizes (Notícias, 1975, n. 3). Em setembro, enfim, o II PND defende a necessidade da “Emergência de forte expressão da capacidade empresarial nacional, para a formação de um número significativo de grupos nacionais sólidos”; postula “Política de fusões e incorporações, com estímulos financeiros (o FMRI e o PMRC, no BNDE) e fiscais (COFIE), nos setores em que a excessiva disseminação de empresas nacionais lhes retire o poder de competição e as coloque em posição frágil, perante o concorrente estrangeiro”; apregoa a “criação de mecanismos para dotar as empresas nacionais de condições razoáveis de competição, em face da empresa estrangeira”. Quanto à ETN, salienta a necessidade de se explicitar “de forma dinâmica e continuamente atualizada, as prioridades para a atuação da empresa estrangeira no País, em termos de funções a desempenhar e de setores onde destinar-se preferencialmente. Trata-se, não de baixar legislação restritiva, mas de indicar como se deseja atue a empresa estrangeira no país.” (Brasil, 1974, p. 35-37).

Embora fuja ao escopo do artigo, é digno de nota que o patronato de bens de capital comemorou o II PND, mas continuou reclamando de empréstimos com juros reais positivos, de custos salariais supostamente elevados, além de concorrência estrangeira, que deveria ser coibida com cartas-patente, ou seja, reserva total de mercado (Lessa, 1998LESSA, C. A estratégia de desenvolvimento 1974-1976: sonho e fracasso. Campinas: Unicamp, IE, (1998[1978]).[1978], p. 130-138). É pouco provável que um patronato desacostumado a ser ouvido chegasse a fazer reivindicações tão maximalistas a uma ditadura.

Do que se mostrou aqui se depreende a proximidade de objetos entre demandas empresariais apresentadas em diversos espaços - publicações, discursos e entrevistas, livros e depoimentos em CPIs - e o que viria ser o II PND. Há nítida priorização do fortalecimento da empresa nacional, especialmente nos setores de bens de capital e bens de consumo não duráveis voltados para o mercado interno, elementos-chave de uma proposta de transformação do padrão de industrialização consagrado ao longo das décadas anteriores. Transformação essa que podia não estar entre as prioridades de todos os segmentos do patronato, mas que tampouco pode-se afirmar carecer de bases sociais. Se pode ser verdade que ao longo da execução do II PND as prioridades do governo foram se afastando das prioridades iniciais, nos parece que tal fato se deve mais a modificações ocorridas na segunda metade da década de 1970 (que fogem ao escopo deste trabalho) que à inexistência de bases sociais do plano em questão.

4 Considerações finais

Esperamos ter trazido argumentos e evidências que apoiem a hipótese de autonomia relativa do Estado na formulação do II PND. Embora Carlos Lessa tenha recorrido a imagens e metáforas que sugerem uma autonomia absoluta arrogante, irrealista e até megalomaníaca no processo decisório, ele não é sempre coerente. Outros trabalhos, que apontam para uma pretensa evasão de ajuste ou ausência de racionalidade do plano, tampouco parecem se sustentar na análise do contexto que antecede sua elaboração.

Nesse sentido, procuramos demonstrar que não se pode confundir o contexto de formulação da proposta (II PND) com os possíveis limites de sua implementação. A falta de autonomia na implementação não prova nem pode ser explicada pela total autonomia na formulação. O processo decisório pode ter sido mais influenciado por certas reivindicações empresariais, e sua implementação por outras, havendo autonomia relativa nos dois momentos. Carlos Lessa enfraquece sua hipótese de autonomia absoluta na formulação do II PND quando procura demonstrar quais reivindicações empresariais foram atendidas e quais não foram, e por quê. A rigor, o “atendimento” das reivindicações privadas com decisões públicas pode ser avaliado independentemente do desdobramento posterior da execução das políticas e do maior ou menor sucesso de seus objetivos declarados. Tanto as políticas factíveis de ampliação do crédito público e dos incentivos fiscais para o ramo de bens de capital e de participação do BNDES nas EPNs, quanto as promessas irreais de reservar as encomendas das estatais para as EPNs e forçar a transferência de tecnologia de filiais foram iniciadas por um Estado que, ao que tudo indica, atendeu às reivindicações patronais em diferentes graus sem conseguir entregá-las como desejado, também em diferentes graus. Se não se pode provar cabalmente a influência empresarial nas ações estatais, as reinvindicações empresariais apresentadas, expostas antes do anúncio do plano, tornam mais plausível a hipótese de autonomia relativa do que de independência decisória absoluta, “fundada em pouco mais que a própria vontade de seus formuladores (...) atribuição de Alto Comando, do supremo exercício de autoridade” (Lessa, 1998[1978], p. 69).

Embora a questão escape ao tema do artigo, a frustração das promessas talvez contribua para explicar por que o patronato do ramo de bens de capital não acompanhou, em 1975, a “campanha contra a estatização” iniciada pela imprensa liberal (notadamente, Revista Visão e jornal O Estado de São Paulo) e apoiada nitidamente por entidades representativas do comércio e do setor financeiro (Cruz, 1995CRUZ, S. V. Empresariado e Estado na transição brasileira: um estudo sobre a economia política do autoritarismo (1974-1977). Campinas: Unicamp; São Paulo: Fapesp, 1995., p. 68-97), mas foi liderança da “campanha pela democratização” em 1978 (Lessa, 1998LESSA, C. A estratégia de desenvolvimento 1974-1976: sonho e fracasso. Campinas: Unicamp, IE, (1998[1978]).[1978], p. 127-128). Novas pesquisas são necessárias para investigar tal realinhamento patronal, inclusive para avaliar em que medida descontentamentos parciais se uniriam, ou não, em um questionamento político mais geral à centralização autoritária das decisões a partir da “campanha pela democratização” (Codato, 1995CODATO, A. A burguesia contra o Estado? Crise Política, ação de classe e os rumos da transição. Revista de Sociologia e Política, Curitiba, v. 4-5, 1995., p. 57-60).

De qualquer modo, a demonstração verossímil de Lessa a respeito dos limites à implementação do II PND também não ampara a hipótese de um Estado descolado dos “pactos” de acumulação e reivindicação patronal, pelo contrário. Se Lessa focou a fase de implementação, procuramos avaliar o contexto de formulação do II PND para sugerir que os conflitos empresariais chegavam ao aparelho de Estado de diferentes formas, a partir de diferentes representantes do patronato, influenciando, ao que tudo indica, suas políticas independentemente do regime ditatorial e do sucesso no atendimento às reivindicações patronais. Com isso se propõe a relativização da ideia de um Estado absoluto, mesmo em um regime ditatorial, colocando em seu lugar a imagem de um Estado com autonomia de ação, mas uma autonomia limitada e, muitas vezes, condicionada pelas forças sociais que lhe servem de sustentação.

Agradecimentos

Parte da pesquisa que dá origem a este trabalho foi realizada com apoio da Fapesp, agência à qual deixamos registrado nosso agradecimento.

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  • Códigos JEL:

    N16, H11.
  • JEL Codes:

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  • 1
    O que fica claro não apenas nas contradições entre os interesses empresariais, como na análise da assim chamada “Campanha antiestatização” (Cruz, 1995CRUZ, S. V. Empresariado e Estado na transição brasileira: um estudo sobre a economia política do autoritarismo (1974-1977). Campinas: Unicamp; São Paulo: Fapesp, 1995.), como nas diferentes posições ideológicas e vínculos sociais de membros do governo, sendo exemplares as divergências entre Reis Velloso (Seplan) e Simonsen (Fazenda) ou entre a postura nacionalista de Severo Gomes (MIC) e os vínculos com multinacionais de Golbery do Couto e Silva (Gabinete Civil).
  • 2
    A inspiração teórica é Nicos Poulantzas (2019POULANTZAS, N. Poder político e classes sociais. Campinas: Editora Unicamp, 2019[1968].[1968]), para quem o caráter de classe do Estado é dado por sua estrutura jurídico-política - instituída para defender o direito à propriedade privada e representar o povo-nação -, independentemente da origem de classe e dos critérios de recrutamento e socialização das elites políticas. Claus Offe (1985OFFE, C. Problemas estruturais do estado capitalista. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1985.) enfatiza a dependência estrutural do Estado - para assegurar aumento da arrecadação de impostos, da renda e do emprego - perante decisões capitalistas, o que tende a manter as políticas públicas em limites aceitáveis para a classe capitalista. Teóricos liberais, por sua vez, enfatizam a pluralidade de grupos de interesses, sem conferir qualquer primazia aos capitalistas. Teóricos elitistas destacam a autonomia das elites políticas, embora marxistas elitistas relativizem sua autonomia demonstrando a seletividade dos critérios de recrutamento e socialização de elites e sua circulação próxima à cúpula do sistema econômico. Para uma análise das teorias do Estado, ver Adam Przeworsky (1995PRZEWORSKY, A. Estado e economia no capitalismo. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1995.).
  • 3
    Peter Evans (1995EVANS, P. Embedded autonomy: States and industrial transformation. Princeton: Princeton Univ. Press, 1995.) comparou três ditaduras - Coreia do Sul, Brasil e Zaire - chegando à conclusão de que em todas havia forte interação entre elites políticas e empresariais, mas que uma condição de sucesso de programas de desenvolvimento industrial era a existência de “autonomia inserida”, ou seja, a autonomia para traçar estratégias sem perder canais de interlocução com o empresariado, mas sem estabelecer relações clientelistas.
  • 4
    “Burguesia interna” é um conceito proposto por Poulantzas (1974POULANTZAS, N. Les classes sociales dans le capitalism aujourd’hui. Paris: Éditions du Seuil, 1974.) para designar frações do grande capital nativo que têm interesses particulares contrários ao capital estrangeiro, mas que não se opõem em geral à sua participação na economia nacional, como o faz a chamada burguesia nacional (que em alguns países participou de uma aliança com camadas populares para barrar ou expulsar o capital estrangeiro), e também não se subordina como sócio menor do capital estrangeiro como a chamada burguesia associada. Para uma discussão da pertinência desses fracionamentos antes e depois da globalização capitalista, ver Jessop (1998JESSOP, B. A globalização e o Estado Nacional. Crítica Marxista, São Paulo, Xamã, v. 1, n. 7, p. 9-45, 1998.).
  • 5
    O PIB cresceu, respectivamente, 9,8, 9,5, 10,4, 11,3, 11,9 e 14% entre 1968 e 1973. No mesmo período o PIB mundial teve crescimento médio de 5,3%, e a América Latina 6,3% (Maddison, 2001MADDISON, A. The world economy: A millennial perspective. Paris: OECD, 2001.). O dado referente à inflação (IGP-DI) está disponível em www.ipeadata.gov.br.
  • 6
    Segundo Gaspari (2003GASPARI, E. A ditadura derrotada. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.), o II PND não teria sido encampado pelo ministro da Fazenda, cuja posição extraoficial resumia-se na frase: “Não leio ficção” (Fonseca; Monteiro, 2007FONSECA, P; MONTEIRO, S. O Estado e suas razões: o II PND. Revista de Economia Política, v. 28, n. 1 (109), p. 28-46, jan.-mar. 2007., p. 40).
  • 7
    Tal meta foi cumprida, tendo a base monetária se expandido 32,9% para uma inflação (IGP-DI) de 35,4% (Macarini, 2011MACARINI, J. Governo Geisel: transição político-econômica? Um ensaio de revisão. Revista de Economia Contemporânea, Rio de Janeiro, v. 15, n. 1, p. 30-61, jan.-abr. 2011., p. 39).
  • 8
    Sobre o crescimento da dívida externa e sua estatização, ver Cruz, 1998CRUZ, P. D. Notas sobre o endividamento externo brasileiro nos anos setenta. In: BELLUZZO L. G.; COUTINHO, R. Desenvolvimento capitalista no Brasil (v. 2). Campinas: Unicamp, 1998., p. 69-73.
  • 9
    O MDB, partido da oposição, quase dobrou sua representação na Câmara Federal (87 para 165 deputados, num total de 364). No Senado, o partido passou a ter 20 cadeiras, ante as 7 da Legislatura anterior, incluindo São Paulo (Orestes Quércia), Minas Gerais (Itamar Franco) e Rio de Janeiro (Saturnino Braga), e assumiu o controle de importantes Assembleias Estaduais (Skidmore, 1988SKIDMORE, T. Brasil: de Castelo a Tancredo, 1964-1985. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.).
  • 10
    Esses fundos correspondem ao Programa de Integração Social e ao Programa de Formação do Patrimônio do Servidor Público, que ficavam a cargo do Banco do Brasil. Em 1975, os recursos oriundos desses fundos equivaleram a 46% do total de recursos mobilizados pelo BNDE.
  • 11
    Ao criticar a ênfase que Sonia Draibe (1985[1980]) deu às alternativas de política econômica depois de 1930, Lessa e Fiori (1984LESSA, C. FIORI, J. L. E houve uma política nacional-populista? In: ENCONTRO NACIONAL DE ECONOMIA, XII. Anais... ANPEC, 1984, São Paulo, 1984.) defendem um argumento quase oposto ao voluntarismo extremo sugerido por Lessa sobre o II PND: que Vargas não tinha opção a não ser enfrentar os estrangulamentos de oferta com um programa ambicioso, mas que nem “nacionalista” era. Para uma crítica, ver Bastos (2006BASTOS, P. P. Z. A construção do nacional-desenvolvimentismo de Getúlio Vargas e a dinâmica de interação entre Estado e mercado nos setores de base. Revista Economia, v. 7, n. 4, p. 239-275, 2006.).
  • 12
    A despeito de registrar várias queixas, o relator da CPI atesta que “nenhum dos depoentes se manifestou contrário à participação do capital estrangeiro no desenvolvimento econômico do país” (Medina, 1970MEDINA, R. Desnacionalização: crime contra o Brasil? Rio de Janeiro: Saga, 1970., p. 74).
  • 13
    Nas palavras de Leopoldi (2000LEOPOLDI, M. A. Política e interesses na industrialização brasileira: as associações industriais, a política econômica e o Estado. Rio de Janeiro: Paz e Terra, (2000[1984])., p. 269): “A campanha contra a American Can envolveu a imprensa, alianças com outros setores nacionalistas, protestos no Congresso, movimentos estudantis e até mesmo um subsídio financeiro da parte de Francisco Matarazzo Sobrinho ao Partido Comunista em retribuição ao seu apoio na campanha.”
  • 14
    A mensagem de Castelo Branco ao Congresso Nacional em 1966 ressaltara que esses fundos “vieram permitir a participação do BNDE na área das pequenas e médias empresas e no financiamento à compra e venda de equipamentos de fabricação nacional (...) O produtor nacional deixa de ter o seu mercado consideravelmente restrito, com o financiamento da venda de máquinas e equipamentos” (Castello Branco, 1966, 57-64). Os boletins da FIESP a partir de 1964 revelam encontros com o presidente e ministros, afirmando-se em 07/1964 que “restabelece-se, assim, em toda sua plenitude, um diálogo entre as forças da produção e o governo o qual estava interrompido lamentavelmente desde há muito tempo” apudMoraes (2010MORAES, R. Os governos João Goulart e Castello Branco vistos pela FIESP: uma análise da relação entre o Estado e o empresariado industrial. Dissertação (Mestrado) - PPGE, Porto Alegre, 2010., p. 94). Os boletins de 1965 elogiam a criação dos fundos no BNDE, mas as reclamações contra a chamada inflação de custos (juros, impostos e tarifas públicas) só pararam depois que a nomeação de Delfim Neto na Fazenda oficializou tal diagnóstico (Moraes, 2010, p. 96-99).
  • 15
    Pereira (1974PEREIRA, O. Multinacionais no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1974., p. 48-101). Em reação aos sinais de Geisel, deputados e intelectuais propõem um anteprojeto relativo à desnacionalização (JB, 05/05/1974, 41), tema da CPI instalada meses depois. No JB, um ano depois (Paim, 1975), a CPI é descrita vivendo “um clima de tensões próprias dos inquéritos policiais, tantos, e tão variados e graves seriam as denúncias contra empresas de capital estrangeiro”. Note-se que os livros-denúncia do empresário Kurt Rudolf Mirow (1975MIROW, K. R. A ditadura dos cartéis: anatomia de um subdesenvolvimento. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1975.) e Bandeira (1975BANDEIRA, L. M. Cartéis e desnacionalização: a experiência brasileira: 1964-1974. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1975.) tornaram-se best-sellers.
  • 16
    O deputado federal Marcos Freire, líder da oposição, também faz referência extensa à lista preparada pela Seplan em 1973 atestando a desnacionalização: 1974, 274-276.
  • 17
    A sintonia entre o II PND e o setor de bens de capital é amplamente reconhecida (Boschi, 1979BOSCHI, R. Elites industriais e democracia. Rio de Janeiro: Graal, 1979.; Brandão, 2007BRANDÃO, R. A ABDIB e a política industrial no governo Geisel. In: SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA, XXIV., Niterói: ANPUH, 2007.; 2008; Cruz, 1995CRUZ, S. V. Empresariado e Estado na transição brasileira: um estudo sobre a economia política do autoritarismo (1974-1977). Campinas: Unicamp; São Paulo: Fapesp, 1995.; Silva, 2003SILVA, M. Política industrial e interesses empresariais: o II PND (1974-1979). In: CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA ECONÔMICA, V; CONFERÊNCIA INTERNACIONAL DE HISTÓRIA DE EMPRESAS, 6ª., Caxambu: ABPHE, 2003.). Para Brandão (2007), a ABDIB era um “aparelho privado de hegemonia” que buscava influenciar a política econômica para garantir reserva de mercado e condições de financiamento favoráveis.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Abr 2022
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2022

Histórico

  • Recebido
    09 Fev 2021
  • Aceito
    10 Set 2021
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