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Quais as relações institucionais entre o passado colonial da economia brasileira e o desenvolvimento do seu sistema financeiro?

What are the institutional relationships between the colonial past of the Brazilian economy and the development of its financial system?

Resumo

Amparados no referencial teórico keynesiano e cepalino/furtadiano, investigamos as relações institucionais entre o passado colonial brasileiro e o desenvolvimento do seu sistema financeiro até os anos de 1960. A hipótese subjacente é a de que existe conexão entre um sistema financeiro deficiente em prover fundos ao investimento e a condição brasileira economicamente periférica. Esta estava subordinada a instituições europeias portuguesas, apesar de imersa no processo de acumulação do capitalismo mercantil. Isso mudou na passagem do modelo primário-exportador ao orientado à demanda doméstica. O processo de industrialização pressionou um sistema financeiro inapto a atender à crescente demanda creditícia, ampliando a necessidade de instrumentos e mecanismos de financiamento do investimento. Todavia, conforme o sistema financeiro desenvolvia-se, as instituições financeiras lucravam, não apesar das “disfuncionalidades” impostas pela condição periférica econômica brasileira, mas por meio delas. Conclui-se que tais relações institucionais foram a herança do passado colonial deixada ao sistema financeiro contemporâneo.

Palavras-chave:
Brasil; economia colonial; economia periférica; sistema financeiro; sistema produtivo

Abstract

Based on the keynesian and cepalinian/furtadian theoretical framework, we investigate the institutional relations between the Brazilian colonial past and the development of its financial system until the 1960s. The underlying hypothesis is that there is a connection between a financial system deficient in providing investment funds and the economically peripheral Brazilian condition. This was subordinate to Portuguese European institutions, despite being immersed in the accumulation process of mercantile capitalism. This changed in the transition from the primary-export model to one geared to domestic demand. The industrialization process put pressure on a financial system unable to meet the growing demand for credit, which increased the need instruments and mechanisms for financing the investment. However, as the financial system developed, financial institutions profited not despite the “dysfunctionalities” imposed by the peripheral Brazilian economic condition, but through them. It is concluded that such institutional relations were the legacy of the colonial past left to the contemporary financial system.

Keywords:
Brazil; Colonial economy; peripheral economy; financial system; productive system

1 Introdução

Conforme Furtado (1959, p. 5), “a ocupação econômica das terras americanas constitui episódio da expansão comercial da Europa”, almejando elevados ganhos no contexto do mercantilismo. Quanto à economia colonial brasileira, sua concepção objetivou produzir mercadorias de alto valor mercantil para Portugal. Assim, a colônia foi organizada por instituições de origem portuguesa para ser empresa comercial da metrópole nas Américas. Todavia, as instituições requeridas ao florescimento do capitalismo moderno na seara das finanças não se desenvolveram de forma eficiente e eficaz em Portugal, reverberando na formação econômica do Brasil.

Destarte, baseando-se sobretudo no referencial teórico keynesiano e cepalino/furtadiano, neste artigo investigam-se as relações institucionais entre o passado colonial da economia brasileira e o desenvolvimento do seu sistema financeiro até início dos anos de 1960. O lócus do estudo é o descompasso deste com o sistema produtivo. Parte-se do pressuposto de que um sistema financeiro robusto e diversificado, dotado de capacidade em prover fundos de longo prazo ao investimento, é condição necessária - embora não suficiente - ao desenvolvimento econômico.

Metodologicamente, esta pesquisa tem caráter eminentemente qualitativo com fins exploratórios baseados em bibliografia especializada resultante de fontes secundárias. Utilizou-se o método indutivo para sustentar a argumentação, partindo-se de contextos gerais para chegar-se às considerações particulares. A pesquisa justifica-se pela escassez de literatura que proponha conectar a formação das instituições financeiras brasileiras com o passado colonial; pretende-se, portanto, fomentar esse debate na literatura econômica.

Na primeira seção do artigo consta o referencial teórico, em que se discute a importância do sistema financeiro no financiamento do investimento. Essencialmente, está fundamentado pelos escritos de John Maynard Keynes (1931, 1933, 1936, 1937) com foco no debate entre ativos reais e financeiros. O intuito é esteirar o argumento posterior (lato sensu) de que as dificuldades inerentes ao desenvolvimento do sistema financeiro são ampliadas se vinculadas às raízes institucionais de uma economia colonial periférica. Tal assunção evoca nas seções seguintes as interpretações de autorias cepalinas precursoras que favorecerão a compreensão do caso específico brasileiro, em especial as teses de Celso Furtado (1959) e de Maria da Conceição Tavares (1972TAVARES, M. C. Da substituição de importações ao capitalismo financeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 1972.).

Na segunda seção, verifica-se a hipótese de que existe conexão entre um sistema financeiro deficiente em prover fundos ao investimento e a condição de economia periférica. Contrastam-se os avanços logrados numa nação com instituições de arquitetura inglesa (Estados Unidos, EUA) com os entraves ao desenvolvimento de uma economia colonial vinculada às instituições de arquitetura portuguesa (Brasil). Ressalta-se que não se estabelecem relações causais diretas (o que se aplica a todo o texto), mas sim denota-se que há path dependence na formação econômica dos Estados.

Na terceira seção, analisa-se como a pressão sobre o sistema financeiro doméstico por mecanismos de financiamento de longo prazo ocorreu na transição da economia brasileira do modelo primário-exportador ao orientado à demanda doméstica, ensejado pela industrialização via mercado interno com trabalho livre assalariado. O acelerado ritmo de industrialização elevou subitamente a demanda por crédito, incapaz de ser atendida pelo sistema financeiro apesar dos mecanismos instituídos ao longo do processo. Assim, o financiamento inflacionário foi caminho heterodoxo para prover fundos ao investimento numa economia que objetivava incorporar cadeias produtivas num curto lapso temporal.

Por fim, nas considerações finais, argumentar-se que o sistema financeiro brasileiro, no decorrer do seu desenvolvimento, obteve lucratividade não apesar das “disfuncionalidades” de uma economia periférica, mas, sim, por meio delas. Por “disfuncionalidades” assumimos as clivagens no comportamento das economias centrais e periféricas apontadas pelos cepalinos, que asseveravam que a teoria ortodoxa não era verificada quando contrastada às particularidades das últimas. Isso se revela na carência de arquitetura financeira adequada à demanda por financiamento capaz de financiar a atividade real e promover transferências de recursos intersetoriais.

Destarte, as (retroalimentadas) “disfuncionalidades” herdadas do passado colonial da economia brasileira abordadas ao longo do texto são a falta de planejamento de um sistema financeiro desenvolvido no que tange à capacidade nacional de prover o financiamento de longo prazo, o cenário constante de restrição externa (de crises cambiais e de balanço de pagamentos), o gerenciamento das crises externas (sobretudo via processos inflacionários - emissão de moeda - e desvalorização cambial) frente à estrutura financeira doméstica, além do desenvolvimento do sistema financeiro paralelamente ao sistema produtivo e não em resposta às suas necessidades de financiamento.

2 A importância do sistema financeiro no financiamento do investimento

Em 1931, Keynes salientou uma característica fundamental das economias modernas: a separação entre os detentores de ativos reais e financeiros, isto é, entre quem produz riqueza real e quem a financia. Intermediários financeiros, como o setor bancário, exercem papel fundamental no financiamento do investimento e do sistema produtivo. Ademais, o setor bancário tem a capacidade de criar moeda. Assim, o desenvolvimento de um sistema financeiro capaz de atender a demanda do sistema produtivo constitui-se como condição necessária - embora não suficiente - ao desenvolvimento econômico de uma nação.

Keynes (1937) destacou que o empresário teria de obter financiamento de curto prazo que viabilizasse o investimento inicial - papel do finance - e precisaria consolidar essas posições via emissões de títulos de longo prazo - papel do funding. Essa dupla necessidade de financiamento do investimento, no momento em que é realizado e no alongamento posterior das dívidas contraídas à sua execução, deveria ser assegurada ao investidor para um investimento se tornar.

Pela teoria keynesiana, do ponto de vista agregado e concomitantemente à realização do gasto com investimento, geram-se rendas que originam as poupanças. Todavia, nada garante que estas serão alocadas no financiamento do investimento produtivo de longo prazo. Dados os riscos envolvidos nessa modalidade de investimento, as poupanças tendem a ser destinadas noutros fins, colocando em xeque os alongamentos contratuais.

Um sistema financeiro maduro, ao prover finance e funding, libera o investidor da necessidade de recursos próprios e permite expandir as taxas de investimento.1 1 O financiamento do investimento foi amplamente analisado na literatura econômica. Os estudos de Gurley (1955), Shaw (1973), McKinnon (1973), Minsky (1976) e Zysman (1983) são referências importantes nesse debate. Gurley (1955GURLEY, J. E. S. “Financial Aspects of Economic Development”, AER45 (Sept.), p. 515-538, 1955.) e Shaw (1973SHAW, E. S. Financial Deepning in Economic Development. New York: Oxford University, 1973.), considerando a importância do investimento para o desenvolvimento econômico (tal qual Keynes), ressaltam a necessidade de haver arcabouço institucional e ampla gama de instrumentos financeiros capazes de atender a demanda por financiamento para além dos recursos próprios, seja via mercado de capitais, seja via mercado de crédito bancário.

Pelos riscos envolvidos, a capacidade de um sistema financeiro nacional prover financiamento de longo prazo pode representar entrave independentemente do grau de desenvolvimento da economia - central ou periférica. Além daqueles inerentes a um empréstimo de longo prazo, o setor bancário (prestamista) defronta-se também com os riscos atrelados às vicissitudes do mercado externo. O modo como desenvolve-se a estrutura financeira doméstica das economias nacionais é fundamental para definir como ocorrerá a absorção e o gerenciamento dos choques externos. Sobre esse ponto, Zysman (1983ZYSMAN, J. Governments, Markets and Growth: Financial Systems and the Politics of Industrial Changes. London: Cornell University Press, 1983., p. 56) destacou: “International financial developments that put common pressures on all countries have distinct national consequences that depend on the structure of national financial system”.

No caso do funding, a relação entre prestamista e mutuário é de longo prazo. O primeiro, que por conceder empréstimos submete-se a várias modalidades de riscos (como taxas de juros e liquidez), procurará interferir nos negócios do segundo buscando preservar a rentabilidade do montante alocado na forma de financiamento. Zysman (1983ZYSMAN, J. Governments, Markets and Growth: Financial Systems and the Politics of Industrial Changes. London: Cornell University Press, 1983.) ressalta que, para encorajar a transformação de recursos de curto em longo prazo, os governos devem absorver parte dos riscos envolvidos decorrentes da flutuação das taxas de juros.

Recursos concedidos ao funding podem advir de dois canais de financiamento: i) mercado de capitais, pela emissão de títulos ou participações nas empresas; ii) empréstimo bancário. Logo, para obter fundos de longo prazo necessita-se de um mercado de capitais ou de um mercado de empréstimos bem desenvolvido. Por distintas razões, algumas economias desenvolveram seu sistema financeiro num ou noutro sentido. O financiamento de longo prazo majoritariamente via mercado de capitais é característico das economias anglo-saxônicas. Economias que têm como fundamento o empréstimo bancário para financiamentos de curto e longo prazo tendem a ser aquelas que se desenvolveram mais tardiamente, com que tiveram de crescer mais rapidamente tentando o catching up (Zysman, 1983ZYSMAN, J. Governments, Markets and Growth: Financial Systems and the Politics of Industrial Changes. London: Cornell University Press, 1983.).

Os sistemas financeiros, inclusive aqueles fundamentados na mesma via de financiamento de longo prazo - mercado de capitais ou crédito bancário - têm configurações domésticas distintas, cujas instituições (e suas relações) teriam se desenvolvido em resposta às condições históricas, políticas e econômicas enfrentadas por cada nação para que atingissem o desenvolvimento industrial e financeiro. Esta é a noção de path dependence, de que a trajetória importa. Portanto, certa configuração do sistema financeiro que permitiu o desenvolvimento industrial de determinada nação não necessariamente se adéqua às condições domésticas enfrentadas noutra economia.

Estabelecer um sistema financeiro capaz de prover financiamento de longo prazo numa economia periférica enfrenta outros dois entraves: a convivência com a inflação alta e a restrição externa (crises cambiais e de balanço de pagamentos). Medidas comumente utilizadas para enfrentar esses problemas macroeconômicos têm como consequência dificultarem o desenvolvimento de mercados para instrumentos financeiros de prazos alongados. Exemplo desse trade off de políticas é a taxa de juros: elevá-la para conter inflação e atrair capitais externos coloca piso às taxas de juros de curto prazo que obstaculizam taxas atrativas para empréstimos alongados (que envolvem maior risco) (Keynes, 1936; Thirlwall, 1979). A manutenção das taxas de juros em patamares elevados pela teoria econômica convencional justifica-se por aumentar os níveis da poupança agregada e, com isso, do investimento.

Entretanto, pela lente keynesiana, em que a poupança é resíduo, a elevação demasiada da taxa de juros acima da rentabilidade esperada do capital impõe entraves ao investimento e, assim, à própria poupança. As restrições de fundos ao investimento não seriam consequências de “insuficiência de poupança”,2 2 Sobre a visão convencional dos problemas de financiamento de longo prazo, ver Shaw (1973) e McKinnon (1973). mas da disponibilidade de liquidez e da forma como as poupanças geradas pelo investimento são alocadas.

Como explica Tavares (1972TAVARES, M. C. Da substituição de importações ao capitalismo financeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 1972.), a acumulação financeira é basicamente dada pela capitalização de rendas de um direito de propriedade. Isso não necessariamente depende de excedentes econômicos na esfera real serem criados, pois pode ocorrer pela redistribuição da posição patrimonial das diferentes unidades econômicas. Um problema estrutural da economia brasileira é que inexiste reconversão do capital financeiro em capital produtivo, pois o primeiro pode destinar os recursos ao financiamento do consumo privado ou público e não na capacidade produtiva. Isso valoriza o capital do sistema financeiro, não o produtivo.

Outro entrave que permeia a relação entre capital produtivo e capital financeiro, essencial à argumentação nesta pesquisa, é a ligação entre poupança e investimento. Inexistem garantias no sistema econômico de que os recursos das unidades econômicas superavitárias sejam destinados às empresas para aumento da capacidade produtiva. O investimento, para existir, depende de fatores que não se vinculam apenas ao autofinanciamento ou à disponibilidade de crédito, “mas, sobretudo, das relações existentes no mercado entre a estrutura da taxa de lucro e de juros e da rentabilidade esperada de novos investimentos (expectativas de rentabilidade e risco)” (Tavares, 1972TAVARES, M. C. Da substituição de importações ao capitalismo financeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 1972., p. 236). Grandes divergências entre a taxa de lucro empresarial e a taxa de rentabilidade dos títulos financeiros podem causar perturbações no mercado e levar a crises econômico-financeiras,3 3 Conforme hipótese de instabilidade financeira proposta por Minsky (1992). por descolar a rentabilidade do capital do sistema financeiro (maior) daquela do sistema produtivo (menor).

Esse argumento de Tavares, centrado na perspectiva cepalina de desequilíbrios no balanço de pagamentos para a explicação do subdesenvolvimento do financiamento na periferia, foi revisado e ampliado pela própria autora em busca das forças endógenas de acumulação do capital mercantil e das dificuldades imensas em operar a transição para uma economia industrial moderna quando há padrões oligopolizados de concorrência, a internacionalização desse capital oligopólico e a distribuição desigual dos aumentos da produtividade na periferia semi-industrializada (Tavares, 1975, introdução ao cap. 2). A força endógena da acumulação de capital na periferia é que explica os movimentos de financiamento e desfinanciamento da ex-colônia, o que inclui uma interpretação kaleckiana de função de investimentos sempre pressionada pela existência da sobreacumulação. Como afirma Bastos (2007BASTOS, P. P. Z. Centro e Periferia no Padrão Ouro-Libra: Celso Furtado Subestimou a Dinâmica da Dependência Financeira. EconomiA, v. 8, n. 4, p. 169-197, dez. 2007.), ao analisar os argumentos cepalinos das origens exógenas das crises no capitalismo periférico, a ênfase de Furtado no mecanismo de ajuste via balanço de pagamentos, apesar de não estar errada em sua orientação geral, acaba por ignorar os movimentos especificamente internos da acumulação na periferia, e a forma como esta acumulação periférica - que obedece a diferentes padrões, como bem pontua Tavares (1975, items 2.1.1 a 2.1.3) - está inserida na hierarquia financeira do capitalismo oligopolizado global. O problema geral do subfinanciamento da periferia, no entanto, persiste, seja regido por forças exógenas, seja por forças endógenas à acumulação de capital doméstica.

3 Brasil como economia periférica: entraves ao desenvolvimento do sistema financeiro

Como exposto anteriormente, o desenvolvimento de um sistema financeiro capaz de atender as demandas geradas pelo investimento numa economia periférica é mais desafiador do que numa economia central. No caso brasileiro, esse processo atravessou três períodos: colonial; primário-exportador; e de economia industrializada periférica. As repercussões dos caminhos percorridos pelos sistemas financeiro e produtivo nacional serão examinadas nesta seção.

3.1 Os entraves ao desenvolvimento econômico-financeiro numa economia colonial periférica

Em sua fase colonial, a economia brasileira inseriu-se internacionalmente para servir à metrópole. No contexto do mercantilismo, a expansão colonial (iniciada em fins do século XV) almejava prover a Europa com produtos de alto valor comercial. Buscando suprir as necessidades de lucro mercantis portuguesas, o Brasil foi colonizado como “vasta empresa colonial” (Prado Jr., 1942, p. 28), sendo extensão das possessões metropolitanas nas Américas. Por isso, as instituições necessárias ao desenvolvimento do capitalismo moderno iam desenvolvendo-se em algumas nações europeias, bem como seus sistemas financeiros. O mesmo ocorreria no espaço colonial, pois a acumulação de capital ali estava subordinada aos ditames europeus. Apesar de a colônia estar inserida no processo de acumulação primitiva que levaria ao capitalismo europeu, sua posição como “empresa comercial” exclusiva a impedia de desenvolver instituições modernas.

Com essa afirmativa, não se nega que no interior do espaço colonial houve o desenvolvimento do setor creditício, como estudado pelas revisões das teses cepalinas. Conforme Sampaio (2002SAMPAIO, A. C. J. O mercado de crédito: da acumulação senhoria à acumulação mercantil (1650-1750). Estudos Históricos, n. 29, p. 29-49, 2002., 2003), a ausência de moeda no interior da colônia, que estava restrita ao setor mercantil, incentivou a criação de interligações creditícias entre moradores e diversas classes ali existentes. Cadeias de créditos e débitos, que esporadicamente eram liquidadas, foram criadas para viabilizar o comércio. Noutras palavras, o “fiado” virou instituição constituinte das relações coloniais.

Mas a existência dessa modalidade creditícia não se contrapõe à tese de que instituições modernas necessárias ao desenvolvimento capitalista não se desenvolveram ou eram atrofiadas no espaço colonial. As exigências iniciais de financiamento diziam respeito às necessidades do próprio comércio internacional e, num primeiro momento, foram resolvidas pelos holandeses, que precocemente desenvolveram atividades financeiras. Realizados os investimentos, a pressão da demanda por crédito sobre o sistema financeiro metropolitano ou, em último caso, colonial, para a continuidade do investimento era baixa. Versiani (2020VERSIANI, F. R. Formação econômica do Brasil: Celso Furtado como historiador econômico, 2020. No prelo.) destaca que poderiam coexistir uma classe de senhor de engenho rentista, que sobrevivia de estoques de investimentos passados, e outra mais produtiva, pois os custos de ampliação e manutenção da capacidade produtiva eram relativamente pequenos quando comparados à alta lucratividade do investimento colonial. Conforme descrito na seção anterior, a existência de mercado financeiro consolidado é imbricada com a necessidade de financiamento para além dos recursos próprios; se essa necessidade for baixa, inexistirá pressão para que o sistema financeiro se desenvolva.

Levy (1979LEVY, M. B. História financeira do Brasil colonial. Rio de Janeiro: IBMEC, 1979.) e Alencastro (2000ALENCASTRO, L. F. O aprendizado da colonização. In: ____. O trato dos viventes: formação do Brasil no Atlântico Sul. São Paulo: Cia. das Letras, p. 11-43, 2000.) destacaram que, em decorrência dos incentivos à colonização, inicialmente os colonos geriram as atividades de produção, distribuição e comercialização do açúcar, absorvendo a maior parcela do lucro mercantil. Em 1571 a Coroa tomou para si a exclusividade de comercializar com o Brasil, mas a debilidade financeira portuguesa forçou a metrópole a recorrer aos capitais flamengos e a comercialização do açúcar foi transferida à Antuérpia (centro financeiro internacional à época, então pertencente à Holanda). Com isso, Portugal tornou-se centro de reexportação do açúcar ao norte europeu, enquanto a Antuérpia passou a deter o lucro monetário. Na especialização das atividades, a Holanda manteve a distribuição, e Portugal (assistido pelo capital holandês) a produção. Como os lucros que cabiam aos lusitanos nos negócios coloniais reverteram-se aos holandeses, a plena capacidade de autofinanciamento da produção pode não ter sido utilizada, como sugere Furtado (1959) O capital holandês garantia a entressafra e, muito possivelmente, o financiamento da produção. Assim, Holanda, e não Portugal, controlava a economia monetária gerada em decorrência do comércio do açúcar. Isso reforça, noutra via, a tese furtadiana de escassez monetária na colônia, robustecendo a hipótese de que inexistia pressão institucional no interior da colônia para desenvolver sistema financeiro próprio.

Apesar de controversa, a tese furtadiana de inexistência de uma classe de comerciantes na colônia, como bem aponta Versiani (2020VERSIANI, F. R. Formação econômica do Brasil: Celso Furtado como historiador econômico, 2020. No prelo.), pode-se considerar que a classe agrícola colonial detinha interesses que (especialmente no período de produção açucareira) pouco destoavam dos objetivos europeus em relação à colônia. As fricções entre os interesses locais e os externos ocorreram a partir do momento em que Portugal se configurara como entreposto comercial, levando ao encarecimento dos produtos importados e exportados no comércio colonial, e não por razões de cunho ideológico sobre como se daria o desenvolvimento da colônia (Furtado, 1959).

Mesmo quando mudaram perspectiva econômica e política internacional do Brasil em 1808 (com a vinda da família real portuguesa e a abertura dos portos), a organização da economia doméstica demoraria mais um século para romper com seu passado e apoiar o crescimento majoritariamente da demanda interna em detrimento da externa. Segundo Furtado (1959), precondição ao desenvolvimento do mercado interno era a existência de fluxo de renda permanente que permitisse a existência de encadeamentos do sistema produtivo doméstico e a ação do multiplicador keynesiano.4 4 Apesar de Furtado não levar em consideração a demanda por gado na análise, segundo Versiani (2020, p. 4-5), “é uma explicação convincente, pois a hipótese de que tanto os gastos de consumo quanto os de investimento consistissem majoritariamente de importações é certamente uma aproximação plausível”. Todavia, o uso da mão de obra escravizada, ao restringir as possibilidades de consumo dos trabalhadores, impedia esse fluxo. Portanto, com a incorporação do trabalho livre assalariado na economia brasileira, potencialmente o mercado doméstico poderia desenvolver-se. Outrossim, pode-se argumentar que a própria escassez de moeda em circulação e a fraca dinâmica do mercado interno contribuíram para atrasar o desenvolvimento financeiro da antiga colônia.

Entender o enlace entre os sistemas financeiro e produtivo no Brasil pede analisar os motivos que levaram ao bloqueio do processo de industrialização no Brasil em sua fase colonial. Na obra Formação Econômica do Brasil, Furtado (1959) perscrutou o tema, comparando o caso brasileiro ao estadunidense. O autor contrapôs-se à visão de que se o Brasil tivesse tido liberdade de ação para implementar política protecionista, como ocorrido nos EUA, teria também se industrializado.

A importância de discutir as origens da industrialização na argumentação presente advém da necessidade de entender-se que o desenvolvimento do sistema financeiro, no sentido de garantir o financiamento do investimento, deve depender da demanda do sistema produtivo. Apesar de a existência de instituições bancárias e financeiras preceder o sistema capitalista, elas configuram-se como instituições tipicamente modernas, justamente por possibilitarem expandi-lo. Tanto pela lente histórica quanto teórica, a conexão entre setor produtivo e sistema financeiro é fundamental para compreender a origem desse modo de produção.

Não se argumenta que o sistema financeiro não possa se desenvolver sem indústria, mesmo porque a ascensão daquele na Antuérpia ocorreu antes da primeira Revolução Industrial na Inglaterra. Mas é a partir dali que o sistema financeiro conectou-se ao desenvolvimento industrial e produtivo em geral. Esse foi o caso da industrialização estadunidense, pois o sistema financeiro ascendeu de modo retroalimentado ao setor industrial.

3.1.1 Desenvolvimento financeiro das colônias portuguesa e inglesa nas Américas

Quais eram as condições para a economia colonial brasileira incorporar as técnicas de manufaturas existentes na Europa durante o século XVIII e as inovações da primeira Revolução Industrial no século XIX?5 5 Versiani (2020) cita Prado Jr. (1942) para argumentar que o problema da ausência de desenvolvimento no Brasil-colônia de técnicas para a confecção de tecidos tem muito mais a ver com a ausência de condições institucionais para investimento de longo prazo, devido ao caos normativo existente e por cada governador de capitania deter autonomia de decisão, em um contexto de que decisões pessoais predominavam. Esse contexto inviabilizava previsibilidade em relação ao futuro, impedindo o investimento de longo prazo. Nessa perspectiva, mesmo que se resolvesse a questão da técnica, não haveria condições para o desenvolvimento de indústrias no Brasil setecentista. Furtado (1959) considerava como fator importante ao atraso no desenvolvimento das forças produtivas e do mercado interno o fato de elas terem se organizado pelo uso da mão de obra escravizada. Isso impedia o desenvolvimento do mercado consumidor e, também, do fluxo de renda interno como facilitador do comércio. Na história econômica dessa colônia, apenas durante o período da mineração teria havido intenso fluxo monetário doméstico e a formação de incipiente mercado consumidor. Isso seria decorrente das distâncias dos portos das áreas mineradoras e também do fato de a renda ser menos concentrada, dificultando as importações, especialmente de bens de luxo - onde teria sido gasta grande parcela da renda gerada pela economia açucareira.

Com dificuldade de importar e a necessidade de buscar suprimentos no mercado doméstico, por que não ocorreu no Brasil o desenvolvimento de manufaturas de grau inferior que viabilizasse, após o período da mineração, a formação de atividade econômica permanente? Segundo Furtado (1959, p. 79), um dos impedimentos da industrialização no Brasil nesse período foi a falta de conhecimento técnico dos colonos portugueses. Se Portugal não era industrializado, como poderia ser a colônia portuguesa? Este ainda seria ponto a favor dos EUA para sua precoce industrialização. Ampliando a hipótese furtadiana à questão do desenvolvimento financeiro, pergunta-se: como poderia a colônia portuguesa desenvolver-se financeiramente se o primeiro banco do império português foi fundado na própria colônia sul-americana, na condição de Reino Unido, em 1808? Portugal teria seu primeiro banco em solo europeu, o Banco de Lisboa, apenas em 1821. Ademais, o fato de Portugal necessitar de apoio financeiro de outras potências europeias, primeiramente dos holandeses e, mais tarde, dos britânicos, evidencia a debilidade do desenvolvimento do sistema financeiro português em relação aos seus concorrentes europeus.

Comparativamente, Alexander Hamilton, primeiro secretário de Tesouro estadunidense, procurando solucionar problemas econômicos que abateram a nova nação após a guerra de independência - aumento da dívida privada, da inflação, e, consequentemente, o enfraquecimento da moeda nacional, comércio e crescimento -, buscou na história e na estrutura financeira de outros países, principalmente França e Inglaterra, ideias para construir-se uma nação (Furtado, 1959). Senão, veja-se:

Although Hamilton culled valuable information about public finance from the writings of French Minister of Finance Jacques Necker, it was England - America’s recently defeated colonial overlord - that provided Hamilton with sound foundations for creating a viable economic system. Hamilton consulted the works of philosophers David Hume and Adam Smith. In addition, England’s use of public debt interested Hamilton because this type of funding, which had helped to build England’s military might and pay for its wars, accounted, at least in part, for that country’s prosperity and had enabled the British to build an empire (Federal Reserve Bank Of Philadelphia, 2009, p. 1, grifos nossos).

Ou seja, a inspiração de um dos founding fathers para construir a arquitetura financeira da nova nação veio mormente da antiga metrópole colonial, a Inglaterra. Hamilton esforçou-se para implementar um sistema de dívida pública e fundar o primeiro banco nacional estadunidense, indo de encontro àqueles (como o presidente Thomas Jefferson) que vislumbravam a formação sobre bases agrárias e temiam que uma instituição dessa natureza diminuísse a autonomia financeira dos estados. Destarte, fundou-se o primeiro banco nacional estadunidense (1791), que colaborou para melhorar a gestão da dívida pública, esteirando o desenvolvimento econômico.

Ademais, Furtado (1959) destaca que a política econômica do governo central concebida por Hamilton permitiu construir engenharia financeira que gerisse a dívida pública via emissão de títulos federais e estaduais, impedindo que os déficits comerciais com a Inglaterra, do início do século XIX, pesassem sobre o câmbio, pois foram transformados em dívidas alongadas. Mantendo o câmbio estável, estabilizou-se uma corrente de capitais fundamental ao desenvolvimento estadunidense. Esses fatores levaram ao desenvolvimento industrial precoce da antiga colônia inglesa. Em fins do século XVIII, antes de se adotarem as medidas protecionistas, já estavam postas as bases que levariam ao desenvolvimento nas décadas seguintes, em que paralelamente ao do sistema produtivo ocorreu o do sistema financeiro.

Entre fins do século XVIII e a segunda metade do XIX, período de difusão das técnicas da primeira Revolução Industrial, a economia brasileira passou pela maior depressão econômica da etapa colonial (Furtado, 1959). Mesmo que houvesse interesses nacionais ligados à industrialização, o que não era o caso,6 6 Como visto anteriormente, a classe latifundiária que passou a governar o país a partir de 1831 não tinha interesses ideologicamente distintos dos europeus no sentido do desenvolvimento da antiga colônia portuguesa. para desenvolvê-la seria necessário afluxo de moeda estrangeira, capaz de conter as crises econômicas do período. O estancamento das importações, o elevado coeficiente de importação característico da economia primário-exportadora e a impossibilidade de elevar-se as tarifas de importação7 7 Os tratados de 1810 assinados após a abertura dos portos, tendo como principal mercado importador do Brasil a Inglaterra, limitavam a capacidade governamental brasileira de elevar as tarifas sobre as importações. Esses tratados vigoraram até 1842, quando não foram renovados. A esse respeito, ver Furtado (1959, cap. XVII). impuseram sucessivas crises no balanço de pagamentos. O gerenciamento da crise via emissão de moeda e desvalorização cambial pesava sobre os preços, prejudicando especialmente as classes mais dependentes de importações, obstaculizando as possibilidades de desenvolvimento do sistema produtivo.

As recorrentes crises externas sofridas no período impactaram na capacidade de consolidar o desenvolvimento do sistema monetário-financeiro necessário ao desenvolvimento das forças produtivas. Destarte, argumenta-se que existe conexão importante entre o desenvolvimento do sistema financeiro e o impacto exercido pelos choques externos: o gerenciamento das crises externas depende da estrutura financeira doméstica (como argumentado na primeira seção), mas a capacidade dessa estrutura de desenvolver-se pode ser limitada pela profundidade dos choques que a atingem.

3.2 Dilemas de uma economia primário-exportadora organizada pelo trabalho assalariado8 8 Esta seção baseia-se em Furtado (1959, cap. XXVII).

A difusão do trabalho livre assalariado na economia brasileira a partir da segunda metade do século XIX, apesar de permitir maior fluxo de renda interna, colocou entraves ao funcionamento da economia primário-exportadora, pois, apesar do grande crescimento populacional do período escravista, e pelo mesmo motivo da permanência histórica de relações de trabalho negativas, o mercado de trabalho estava vazio, “porque os homens, em quantidade superabundante, não podem [podiam] ser submetidos pelo capital” (Cardoso de Mello, 1975, p. 79).

Os cepalinos, buscando compreender as especificidades estruturais das economias periféricas, questionaram o porquê de as crises externas serem recorrentes nesses países mesmo quando seguiam orientações teóricas que embasavam o padrão-ouro.

Segundo a lógica do padrão-ouro, quando uma economia incorria em déficit externo, devia ocorrer saída desse metal. Seu fundamento era de que a moeda em circulação deveria manter lastro em reservas auríferas, logo, um déficit externo seria acompanhado da contração dos meios pagamentos nessa economia. Pela teoria quantitativa da moeda, isso levaria à queda dos preços domésticos, o que aumentaria o volume exportado, reequilibrando o balanço de pagamentos automaticamente, sem afetar a taxa de câmbio nominal - mantendo-a fixa em ouro e em libra esterlina.

Todavia, economias periféricas não conseguiam conter a desvalorização cambial nominal, mesmo realizando política monetária fortemente contracionista. Na crise, não se assistia à queda dos preços domésticos que estimulassem as exportações, mas sim a inflação. A explicação disso veio via contraste entre as estruturas de mercado de uma economia industrial e de uma economia primário-exportadora. A primeira apresentava mercado interno desenvolvido e era pouco dependente de produtos importados. Na crise, a contenção de importação não significava redução do consumo da população, pois o mercado interno provia produtos essenciais. Além disso, esses países eram emprestadores internacionais e, nos momentos de crise, continuavam recebendo fluxos externos pela balança de rendas. Isso ajudava a reequilibrar o balanço de pagamentos, que não contava apenas com o aumento das exportações para evitar desvalorização nominal do câmbio.

Nas economias primário-exportadoras, caso brasileiro, a tese cepalina compreende que a participação comercial externa (apoiada em exportações de um único produto) e a dependência de produtos importados para abastecer o mercado doméstico estariam detrás das constantes crises de balanço de pagamentos. Com a melhora das relações de trocas externas, o aumento das exportações levaria ao incremento da renda doméstica e, pelo efeito multiplicador keynesiano numa economia de trabalho livre assalariado, geraria demanda por produtos importados acima da capacidade de exportação, pressionando continuamente o balanço de pagamentos.

Além disso, os cepalinos defendem que os produtos primários exportados pelas economias periféricas tinham a característica de ser renda-inelástica (as exportações desses países não cresciam proporcionalmente ao aumento da renda internacional). Já os produtos industrializados que importavam seriam elásticos em relação à renda, o que também elevava a pressão cambial. Ademais, como as economias periféricas eram devedoras externas, durante a crise a pressão para desvalorizar o câmbio não provinha somente do comércio internacional, mas também daquela exercida pela balança de rendas, comumente negativa.

Geralmente, a crise deflagrada na economia primário-exportadora ocorria pela queda do preço do produto de exportação no mercado externo. No caso brasileiro de fins do século XIX e início do XX, isso ocorreu pela queda do preço internacional do café. Como se tratava de produto cuja demanda era preço-inelástica, frequentemente a queda do preço era decorrência do excesso de oferta. Visando à conversibilidade da moeda, a reação governamental nacional, especialmente a imperial, era restringir a oferta de meios de pagamento. Só que essa política, que deveria servir para baixar os preços dos produtos exportados e elevar exportações, não obtinha os resultados desejados. Era inviável aumentar exportações de café, cuja demanda era inelástica.

Como a economia brasileira era dependente das importações, sua redução implicava abrir mão de produtos de consumo essenciais e a população resistia a diminuir sua demanda, tendo como efeito pressionar ainda mais o câmbio. A queda nas importações só se realizava via desvalorização cambial. Isso ocasionava queda da arrecadação tributária, pois o principal imposto governamental era sobre produtos importados.

Desse modo, o governo obrigava-se a emitir moeda, o que ensejava renovada majoração dos preços, ensejando novas desvalorizações cambiais. A crise só era resolvida via obtenção de empréstimos externos e como resultado aumentava o endividamento orçamentário e externo, além da perda de poder de compra salarial, sem reajustes após os picos inflacionários. No contexto de constantes crises externas acompanhadas de crises domésticas, cuja maneira de gerir a crise provocava restrição dos meios de pagamento, inexistia espaço para desenvolver o sistema financeiro.

3.2.1 Reforma bancário-financeira na República Velha e o Encilhamento9 9 Encilhamento é a designação dada ao período correspondente à euforia na Bolsa de Valores do Rio de Janeiro no final do século XIX, que culminou em crise monetário-financeira aguda.

Furtado (1959) ressaltava que a busca pela conversibilidade externa da moeda impunha forte restrição monetária na economia pós-colonial. Mas a reforma bancário-financeira só foi implementada com o advento da República (1889), na expectativa de modernizar a antiga economia agrário-escravista e esteirar o desenvolvimento industrial. Ela promoveu mudança profunda na institucionalidade do mercado financeiro.

Algumas dessas leis foram implementadas entre fins do Império e o início da República, o que estimulou o mercado de títulos e ações na Bolsa de Valores do Rio de Janeiro e de São Paulo. As mais importantes foram: i) Lei do Comércio (1882), legitimando as Bolsas de Valores; ii) Lei dos Bancos (1888), facilitando o processo de emissão monetária bancária no país; iii) conjunto de leis promulgadas durante o Encilhamento e no período imediatamente depois dele (1890 e 1891), primeiro desregulamentando, e depois regulamentando o sistema financeiro (Musacchio, 2009MUSACCHIO, A. Experiments in Financial Democracy: Corporate Governance and Financial Development in Brazil, 1882-1990. New York: Cambridge University Press, 2009.).

Tal arcabouço jurídico engendrou nova forma de organização financeira, abrindo espaço para que títulos e ações fossem mais comercializados. Houve impactos na economia brasileira, com impulsos concretos no sistema produtivo (sobretudo no industrial) (Musacchio, 2009MUSACCHIO, A. Experiments in Financial Democracy: Corporate Governance and Financial Development in Brazil, 1882-1990. New York: Cambridge University Press, 2009.).

Na sequência da década de 1890 consolidaram-se mecanismos institucionais decorrentes desse novo arcabouço jurídico que elevaram a confiança do investidor no Brasil, o que pode ser verificado pela progressiva aquisição de papéis que financiariam seu sistema produtivo. Essa confiança provinda da criação de dispositivos legais foi experiência nacional pioneira, importante também para a industrialização e urbanização nas décadas seguintes (Musacchio, 2009MUSACCHIO, A. Experiments in Financial Democracy: Corporate Governance and Financial Development in Brazil, 1882-1990. New York: Cambridge University Press, 2009.).

Esse movimento também foi abordado por Haber (1991HABER S. H. Industrial Concentration and the Capital Markets: A Comparative Study of Brazil, Mexico, and the United States, 1830-1930. The Journal of Economic History, v. 51, n. 3 (Sept., 1991), p.559-580, 1991., p. 569), para quem até a República as “institutions designed to mobilize impersonal sources of capital were largely absent in Brazil”. Havia a Bolsa de Valores do Rio de Janeiro, fundada no início do século,10 10 Já o embrião do que veio a ser a Bolsa de Valores de São Paulo foi a chamada Bolsa Livre, fundada em 1890. mas entre 1850 e 1885 só havia uma empresa de manufaturas listada. Quanto ao setor bancário, “formal banks were so scarce as to be virtually nonexistent” (Ibidem). Em 1888 havia 26 bancos presentes em apenas 7 estados (dos 20 existentes à época), com metade dos depósitos situados em bancos sediados na capital.

Pela reforma de 1890, houve desregulamentação bancária. Essencialmente, aos bancos comerciais foi permitido engajarem-se na atividade financeira que desejassem e aos bancos regionais que emitissem moeda, subvertendo a lógica da forte regulação prévia existente no setor. A reforma fez expandir o número de bancos no país, que passaram a comprar títulos de empresas na bolsa carioca. Haber (1959, p. 570) destacou que no primeiro ano do Encilhamento houve quase a mesma quantidade de negócios na bolsa do que nos sessenta anos anteriores.11 11 “The Rio exchange, which had been a staid and sleepy affair throughout the nineteenth century, now saw wild securities trading as well as an expansion of the number of firms listed. In the first year of the Encilhamento alone, it saw almost as much trading as it had in the previous 60 years” (Ibidem). Saltou de 13 bancos em 1888 para 39 em 1894, listados na bolsa do Rio de Janeiro. Apesar de a existência de muitos deles ter sido de curta duração, sucumbindo à crise especulativa, durante o período que operaram promoveram expansão creditícia, em especial, na indústria têxtil.12 12 “Though many of these enterprises failed during the collapse of the bubble and the recurrent financial crises over the following decade, in the short run they provided loans to Brazil’s textile industry” (Ibidem).

Ademais, o número de empresas manufatureiras negociadas no pregão carioca cresceu significativamente. Apesar de a crise do Encilhamento (1892) ter levado à falência muitos bancos recém-criados, o mesmo não aconteceu com as novas empresas, que, assistidas pelo governo central, continuaram apoiando-se na bolsa de valores para obterem financiamento. E o número de empresas listadas, especialmente as ligadas à manufatura têxtil, continuou crescendo.13 13 “In 1888 only 3 cotton textile enterprises were listed on the Rio stock exchange; by 1894 there were 18. […] Even after the burst of the financial bubble, new firms were financed by the stock exchange. Thus, the number of cotton manufacturers listed on the Rio exchange grew from 18 in 1894 to 25 in 1904 and to 54 in 1914, when it leveled off. Thus, in 1914, 54 of Brazil’s 191 cotton textile companies (28 percent) were publicly traded” (Ibidem). Portanto, o período teve consequências positivas à indústria, especialmente porque os industriais passaram a receber apoio de políticas protecionistas, marca do processo de industrialização (Levy, 1979LEVY, M. B. História financeira do Brasil colonial. Rio de Janeiro: IBMEC, 1979.).

Assim que eclodiu a crise, as medidas adotadas pelo governo central para os bancos foram de retorno à regulamentação restritiva anterior. Dos 68 bancos comerciais que estavam operando em 1891, apenas 10 sobreviveram à crise e operavam em 1906, quando iniciou nova fase de expansão do setor. Em 1918 havia 51 bancos operando, além de 80 filiais do Banco do Brasil espalhadas pelo país. Entretanto, apesar desse crescimento, Haber (1991HABER S. H. Industrial Concentration and the Capital Markets: A Comparative Study of Brazil, Mexico, and the United States, 1830-1930. The Journal of Economic History, v. 51, n. 3 (Sept., 1991), p.559-580, 1991., p. 570) ressaltou que os dados disponíveis não demonstraram que o setor estava financiando as empresas têxteis, que continuavam capitalizando-se no mercado de capitais:

Despite this growth, the banking system appears to have lent very little of its investable capital to industry. For this reason, Brazil’s textile industrialists issued bonds to raise loan capital. By 1911 the bonds of 19 of the country’s major textile manufacturers were traded on the Rio exchange. An analysis of the balance sheets of 22 large-scale Rio de Janeiro and Federal District firms in 1915 indicates that they were able to raise significant amounts of capital through public debt issues.

O breve período do Encilhamento (de relaxamento da regulamentação financeira do setor bancário) marcou um primeiro elo entre capital financeiro e produtivo, pois a possibilidade de elevação da lucratividade para ambos os setores esteve vinculada à valorização dos títulos das empresas manufatureiras têxteis recém-criadas na bolsa de valores carioca. Inexistia opção concorrente à aplicação dos ativos do setor bancário. Nos períodos seguintes de crescimento, as “disfuncionalidades” da economia periférica (como restrição externa e inflação alta), que levaram ao aumento dos juros e às dificuldades na gestão da dívida externa e pública, permitiram que os bancos comerciais privados tivessem opções de portfólio mais atrativas do que o empréstimo industrial, como examinado a seguir.

4 Financiamento do investimento: as relações entre os sistemas financeiro e produtivo no Brasil

Sobre as razões históricas de a estrutura do sistema financeiro brasileiro ser incapaz de financiar a atividade real e promover transferências de recursos intersetoriais, Tavares (1972TAVARES, M. C. Da substituição de importações ao capitalismo financeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 1972., p. 129-130, grifos nossos) afirma o seguinte:

[...] essa incapacidade possui raízes mais profundas do que a simples “falta de uma política financeira” adequada, as quais se prendem ao modelo histórico de desenvolvimento da maioria dos países latino-americanos. As necessidades de financiamento interno no mercado primário-exportador estavam basicamente associadas ao desenvolvimento comercial e urbano e eram facilmente atendidas por uma rede bancária operando em condições de pouca sofisticação. A expansão da capacidade produtiva nas atividades básicas de exportação ou na infraestrutura de serviços de utilidade pública, embora exigisse uma considerável acumulação de capital, não pressionava por créditos de longo prazo a serem supridos por uma institucionalidade financeira “nacional”.

A pressão sobre o sistema financeiro ocorreu na passagem do modelo primário-exportador para uma economia de desenvolvimento para dentro, em curto lapso temporal. As recorrentes crises que induziam a desvalorização cambial levaram a dinamização do mercado interno possibilitada pelo assalariamento da economia, dado que a moeda depreciada protegia as nascentes manufaturas domésticas da concorrência externa.

Uma conjunção de fatores favoreceu a industrialização da economia brasileira na década de 1930. Apesar de abalada pela crise de 1929, antes mesmo de esta ser resolvida nos países centrais a economia nacional pôde recuperar-se graças à adoção de políticas anticíclicas que defenderam a demanda interna.14 14 A esse respeito, ver capítulos XXXI e XXXII de Furtado (1959). Nesse contexto, a economia doméstica, que já contava com capacidade produtiva instalada e até então ociosa, ineditamente passou a ser o centro dinâmico do crescimento econômico no lugar da demanda externa. Cano (2015CANO, W. Crise e industrialização no Brasil entre 1929 e 1954: a reconstrução do Estado Nacional e a política nacional de desenvolvimento. Revista de Economia Política, São Paulo, v. 35, n. 3, p. 444-460, 2015., p. 444-450) concorda com a análise furtadiana nesses pontos e foca no papel da taxa de câmbio, que teria permitido a maior extração possível do excedente do café, “transferindo-o aos novos setores dinâmicos, principalmente à indústria”. Ainda segundo o autor, a reformulação do papel do Estado, optando por atuação desenvolvimentista - verificada tanto pelas instituições criadas quanto pela ocupação de função produtora - marcou a trajetória industrializante brasileira.

A rapidez com que se deu o processo de industrialização pressionou fortemente a demanda por financiamento, abrindo espaço para que o sistema financeiro (no contexto da época fundamentalmente composto por bancos comerciais) se desenvolvesse de forma articulada com o setor industrial. Como visto na primeira seção, as economias atrasadas industrialmente tendem a apoiar o financiamento industrial no setor bancário (Zysman, 1983ZYSMAN, J. Governments, Markets and Growth: Financial Systems and the Politics of Industrial Changes. London: Cornell University Press, 1983.). A pressão sobre o sistema financeiro ocorre quando a taxa de investimento das unidades produtivas é maior do que a capacidade dessas de crescerem por aplicação dos lucros reinvestidos, o que acontece especialmente na industrialização tardia, pois num curto período de tempo exige-se incorporar todas as etapas tecnológicas do processo produtivo. Contudo, no Brasil as transformações nas instituições financeiras não ocorriam em resposta à pressão do sistema produtivo por financiamento. Nas palavras de Tavares (1972TAVARES, M. C. Da substituição de importações ao capitalismo financeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 1972., p. 130, grifos nossos):

A passagem, num breve momento histórico, a um modelo de desenvolvimento para dentro [...] gerou, entretanto, uma tensão crescente sobre as instituições financeiras do País, herdadas do modelo anterior, que não parece ter sido enfrentada em tempo pelas modificações institucionais necessárias. Deste modo, os mecanismos ou instrumentos financeiros que surgiram ao longo do processo foram-se forjando posteriormente por reação ou fuga a certas condições adversas do mercado, ou como adaptação a certas exigências nítidas e iniludíveis da evolução do aparelho produtivo, tornando difícil, em consequência, alcançar-se em cada etapa do desenvolvimento industrial uma estrutura financeira adequada à solução dos problemas de financiamento emergentes, dentro de relativa estabilidade.

Como visto na primeira seção, o financiamento de longo prazo é imbuído de riscos, mas para além dos tradicionais enfrentados pelo setor bancário ao conceder crédito de longo prazo, na periferia deve-se considerar o cenário constante de restrição externa e inflação elevada. Assim, a adaptação institucional do setor bancário à demanda por crédito não é automática. No Brasil, o sistema financeiro aprenderá a obter ganhos, não apesar, mas, em grande medida, por meio das “disfuncionalidades” de uma economia periférica. Grande parte dos lucros durante o século XX foi derivada do processo inflacionário. O sistema financeiro acabou desenvolvendo-se paralelamente ao sistema produtivo e não em resposta às suas necessidades de financiamento. Como não vinculou sua rentabilidade ao sistema produtivo, o sistema financeiro brasileiro desenvolveu-se obtendo altas taxas de lucros em períodos tanto de prosperidade quanto de crise econômica.

Da metade da década de 1930 ao início dos anos de 1960, a economia brasileira apresentou altas taxas de crescimento econômico sem, todavia, haver expansão proporcional do crédito. O período caracterizou-se por desequilíbrio permanente entre oferta e demanda creditícia.15 15 Oliveira (1996) estudou o setor bancário brasileiro do período compreendido entre 1930 e 1945, corroborando a afirmativa aqui apresentada de que o sistema financeiro da época se resumia ao setor bancário (instituições nacionais na sua maioria). Via dados - ainda que não deflacionados -, demonstra expressivo aumento do ativo do setor bancário nacional, sem a mesma contrapartida no crescimento do capital próprio; ou seja, o setor teria se alavancado. As evidências apontam que o crédito teria aumentado em decorrência do capital industrial, e, conforme a argumentação apresentada nesta seção, esse aumento teria sido concedido via empréstimos de curto prazo, utilizando o redesconto. Detalhamentos das formas de obtenção de ganhos pelo sistema financeiro - inclusive a partir de dados - originadas das “disfuncionalidades” da economia brasileira estão em Granziera (1976), Costa (1978) e Bastos (2004; 2006; 2008). A obtenção de financiamento com prazos alongados foi atendida via Caixas Econômicas Federais/Estaduais e por bancos públicos como o Banco do Brasil e, a partir de sua criação em 1951, o Banco Nacional do Desenvolvimento - cuja importância para o financiamento cresceu a partir do Plano de Metas do governo Kubistchek (1955-1961). Entretanto, a competição por recursos entre os entes privados e públicos (e dentro de cada um desses entre o consumo e a produção corrente), de um lado, e a formação bruta de capital fixo, de outro, levou a pressões altistas sobre os preços, que redundaram no processo inflacionário aberto no início dos anos de 1960.

A inflação teve, portanto, papel fundamental em suprir grande parte da demanda por financiamento no período, além da já citada taxa cambial (depreciada). Tavares (1972TAVARES, M. C. Da substituição de importações ao capitalismo financeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 1972.) destacou que não apenas a senhoriagem foi utilizada como poupança forçada, mas também na transferência de recursos dos setores menos aos mais dinâmicos. Contudo, o uso da inflação como forma de financiamento rapidamente encontrou seu limite quando as expectativas inflacionárias estavam difundidas entre todos os setores da economia; de forma articulada eram feitos os reajustes de preços via antecipação dos agentes - extrapolando a tendência altista. Quando a economia chegava nesse ponto, o problema da estrutura de financiamento e a falta de mecanismos financeiros que propiciassem o funding ao investimento evidenciavam-se. O uso da inflação como forma de financiamento esgotava-se, e a carência de arquitetura financeira adequada à demanda por financiamento tornava-se fundamental à continuidade dos investimentos e do próprio processo de industrialização, pois os mecanismos criados a reboque do investimento eram insuficientes.

Durante a industrialização por substituição de importações até início da década de 1960, o uso dos lucros retidos foi essencial no financiamento das empresas na aquisição de capital fixo. Os lucros foram crescentes no pós-guerra devido à oferta elástica de mão de obra, aos subsídios cambiais, que protegiam a indústria nacional da concorrência externa e à formação de oligopólios. Inexistiam pressões para as empresas transferirem os aumentos de produtividade aos consumidores, tampouco para elevar os salários reais de modo que estes acompanhassem os incrementos na produtividade. Majorando os preços dos produtos finais acima da elevação dos salários médios, as empresas conseguiam manter elevada taxa de lucratividade, beneficiando-se do processo inflacionário para aumentar a capacidade produtiva, enquanto inexistia desenvolvimento da estrutura financeira capaz de suprir as necessidades de recursos da indústria. Segundo Tavares (1972TAVARES, M. C. Da substituição de importações ao capitalismo financeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 1972., p. 151): “A inflação apresenta-se, assim, como mecanismo heterodoxo de financiamento que, mediante tensões crescentes, mobiliza e sanciona a acumulação de capital.”

Na época, inexistiam meios de obter-se financiamento de longo prazo via setor privado. Esse era fundamentalmente formado pelos bancos comerciais públicos. A lei de usura, implementada em 1933, limitava os juros nominais cobrados a 12% ao ano, no contexto de inflação alta, que provocava excesso de demanda por créditos (Simonsen, 1961SIMONSEN, M. H. Os controles de preços na economia brasileira. Rio de Janeiro: Consultec, 1961.). O setor bancário, na busca por rentabilidade, criou, então, mecanismos para burlá-la. Segundo Simonsen (1965, p. 66-67) “os bancos contornavam a lei de usura por meio de três artifícios principais e às vezes combinados”: i) juros cobrados além dos oficiais, não escriturados; ii) comissões excessivas sobre serviços prestados; iii) contas vinculadas, as quais exigiam que o receptor do empréstimo depositasse parcela do valor recebido no próprio banco. Assim, os bancos tinham enorme diferencial entre o custo do passivo e a rentabilidade do ativo.

Favorecidos pelo período de forte demanda por financiamento, os bancos concentraram seus empréstimos, em geral, no curto prazo - para evitar a perda de rentabilidade que o processo inflacionário poderia provocar. Isso propiciou ao setor, mesmo no cenário aparentemente adverso de inflação elevada, altíssimas taxas de rentabilidade. Esta seria maior se os bancos conseguissem captar depósitos à vista - que normalmente não rendiam juros. Então, as instituições bancárias passaram a concorrer na captação destes depósitos.16 16 Como exemplo, pode-se citar a Instrução nº 34 da SUMOC de 1950, que limitava os juros nominais pagos aos depositantes entre 3 e 6%, dependendo do prazo da operação, bem inferiores aos 12% impostos pela lei de usura. A partir da segunda metade dos anos de 1950, o número de agências bancárias cresceu vertiginosamente, e os bancos também aumentaram os serviços prestados na busca por mais clientes. Os lucros dos bancos cresceram, como também o custo operacional em virtude da elevação de gastos com pessoal, administrativo e instalações luxuosas (Almeida, 1980ALMEIDA, J. S. G. As financeiras na reforma do mercado de capitais: o descaminho do projeto neoliberal. 195f. Dissertação (Mestrado) - IFCH/Unicamp, Campinas, 1980.).

A lucratividade do sistema financeiro nessa primeira etapa da industrialização brasileira não vinculou-se diretamente à expansão produtiva, e sim se associou à concessão de crédito de curto prazo - remunerado por elevadas taxas de juros. A industrialização viabilizou-se em decorrência da atmosfera macroeconômica otimista aos negócios, que acabaram por obter altas lucratividades mesmo num ambiente de inflação alta.

5 Considerações finais

Com base no referencial teórico keynesiano e cepalino/furtadiano, investigaram-se neste artigo as relações institucionais entre a economia colonial brasileira e o desenvolvimento do seu sistema financeiro até início dos anos de 1960. Destacou-se que as relações institucionais herdadas do passado colonial volveram-se num ambiente macroeconômico em que o sistema financeiro desenvolveu-se em descompasso com o sistema produtivo, descumprindo sua função de financiar o investimento (sobretudo de longo prazo) por evitar os riscos intrínsecos à atividade produtiva capitalista.

Via criação de instituições (e de institucionalidades), diferentes governos procuraram mitigar os riscos do sistema na expectativa de que isso contribuísse para a disponibilização de recursos de prazos alongados à produção na esfera privada. Todavia, os resultados de tais ações facilitaram a rentabilidade das instituições bancárias, que sempre tiveram à disposição opções de portfólio mais rentáveis do que a concessão de créditos alongados. A busca pela solução do problema de financiamento sempre teve como consequência “inesperada” reforçar o sentido paralelo do desenvolvimento do sistema financeiro em relação ao produtivo.

Como visto, o passado colonial herdado - organizado por instituições de arquitetura portuguesa - retardou a incorporação das forças produtivas no Brasil. Quando finalmente foram criadas circunstâncias econômicas à industrialização, inexistia (e nem poderia existir) na economia brasileira institucionalidade financeira privada que suprisse a oferta de créditos. O financiamento ao investimento, inicialmente suprido de forma heterodoxa pela inflação, permitia o autofinanciamento das empresas.

O ponto central a ser considerado é que, conforme o sistema financeiro desenvolvia-se, obtinha lucros não apesar das “disfuncionalidades” resultantes da condição periférica da economia brasileira, mas por meio delas. Essa formação do sistema financeiro nacional é a base para explicar por que, mesmo ao longo do século XX, essas “disfuncionalidades” (consubstanciadas no ambiente macroeconômico) transfiguram-se e permitem o florescimento de um sistema financeiro avesso a empréstimos ao sistema produtivo.

Combinando, num primeiro momento, a inflação, e, em um segundo, a correção monetária, os juros altos e os papéis da dívida pública, o sistema financeiro privado brasileiro pôde desenvolver-se harmonizando duas variáveis que teoricamente teriam sentidos inversos: alta rentabilidade e baixo risco. Muito desse resultado inesperado foi possibilitado pelas reformas financeiras, que serviram para modernizar o sistema na expectativa de que passasse a servir ao financiamento do sistema produtivo.

Destarte, o que se verifica no caminho do desenvolvimento econômico brasileiro é a perene dissociação entre as rentabilidades financeira e produtiva. De meados dos anos de 1960 em diante, o sistema financeiro (sobretudo no setor bancário) tem obtido altas de rentabilidade via títulos financeiros de prazos curtos, ensejando preferência por aplicações desse tipo em detrimento daquelas de prazos alongados. Assim, essa incapacidade do sistema financeiro em atender a demanda por financiamento do investimento continuaria mesmo após as reformas financeiras (de 1964-1967 e de 1988), que permitiram significativo desenvolvimento do sistema pela criação de instituições que serviram a inúmeras modalidades de crédito. Elas não foram capazes de permitir a superação das (retroalimentadas) “disfuncionalidades” herdadas do passado colonial da economia brasileira, que persistiram no tempo.

O objetivo primordial do sistema capitalista, como defendido por Keynes, é o lucro (máximo). Somente quando o lucro do sistema financeiro se vincular fundamentalmente ao crédito é que se pode vislumbrar readaptação institucional nesse sentido - como visto, no único período em que isso ocorre, o do Encilhamento, existiu real conexão entre o desenvolvimento do capital financeiro e produtivo.

Conclui-se, assim, que tais relações institucionais foram a herança deixada pelo passado colonial ao sistema financeiro brasileiro contemporâneo. Prado Jr. ([1942], 2011, p. 28) alertou que o sentido da nossa colonização explicaria “os elementos fundamentais, tanto no econômico quanto no social, da formação e evolução históricas dos trópicos americanos”. Portanto, políticas e medidas econômicas que não levem à superação stricto sensu das heranças do passado colonial servirão apenas para reforçá-lo e reproduzi-lo.

Agradecimentos

As autorias são gratas pela colaboração de Luis Eduardo Conrado de Oliveira (discente de Ciências Econômicas na UFPI) nas formatações do artigo. Agradecemos aos editores e aos pareceristas anônimos pelas sugestões construtivas. Obviamente, equívocos e omissões remanescentes são de nossa inteira responsabilidade.

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  • Códigos JEL:

    F54, E44, N26.
  • JEL Codes:

    F54, E44, N26.
  • 1
    O financiamento do investimento foi amplamente analisado na literatura econômica. Os estudos de Gurley (1955GURLEY, J. E. S. “Financial Aspects of Economic Development”, AER45 (Sept.), p. 515-538, 1955.), Shaw (1973SHAW, E. S. Financial Deepning in Economic Development. New York: Oxford University, 1973.), McKinnon (1973), Minsky (1976) e Zysman (1983ZYSMAN, J. Governments, Markets and Growth: Financial Systems and the Politics of Industrial Changes. London: Cornell University Press, 1983.) são referências importantes nesse debate.
  • 2
    Sobre a visão convencional dos problemas de financiamento de longo prazo, ver Shaw (1973SHAW, E. S. Financial Deepning in Economic Development. New York: Oxford University, 1973.) e McKinnon (1973).
  • 3
    Conforme hipótese de instabilidade financeira proposta por Minsky (1992MINSKY, H. The Financial Instability-Hypothesis. Working Paper, n. 74. New York: The Levy Economics Institute, 1992.).
  • 4
    Apesar de Furtado não levar em consideração a demanda por gado na análise, segundo Versiani (2020VERSIANI, F. R. Formação econômica do Brasil: Celso Furtado como historiador econômico, 2020. No prelo., p. 4-5), “é uma explicação convincente, pois a hipótese de que tanto os gastos de consumo quanto os de investimento consistissem majoritariamente de importações é certamente uma aproximação plausível”.
  • 5
    Versiani (2020VERSIANI, F. R. Formação econômica do Brasil: Celso Furtado como historiador econômico, 2020. No prelo.) cita Prado Jr. (1942) para argumentar que o problema da ausência de desenvolvimento no Brasil-colônia de técnicas para a confecção de tecidos tem muito mais a ver com a ausência de condições institucionais para investimento de longo prazo, devido ao caos normativo existente e por cada governador de capitania deter autonomia de decisão, em um contexto de que decisões pessoais predominavam. Esse contexto inviabilizava previsibilidade em relação ao futuro, impedindo o investimento de longo prazo. Nessa perspectiva, mesmo que se resolvesse a questão da técnica, não haveria condições para o desenvolvimento de indústrias no Brasil setecentista.
  • 6
    Como visto anteriormente, a classe latifundiária que passou a governar o país a partir de 1831 não tinha interesses ideologicamente distintos dos europeus no sentido do desenvolvimento da antiga colônia portuguesa.
  • 7
    Os tratados de 1810 assinados após a abertura dos portos, tendo como principal mercado importador do Brasil a Inglaterra, limitavam a capacidade governamental brasileira de elevar as tarifas sobre as importações. Esses tratados vigoraram até 1842, quando não foram renovados. A esse respeito, ver Furtado (1959, cap. XVII).
  • 8
    Esta seção baseia-se em Furtado (1959, cap. XXVII).
  • 9
    Encilhamento é a designação dada ao período correspondente à euforia na Bolsa de Valores do Rio de Janeiro no final do século XIX, que culminou em crise monetário-financeira aguda.
  • 10
    Já o embrião do que veio a ser a Bolsa de Valores de São Paulo foi a chamada Bolsa Livre, fundada em 1890.
  • 11
    “The Rio exchange, which had been a staid and sleepy affair throughout the nineteenth century, now saw wild securities trading as well as an expansion of the number of firms listed. In the first year of the Encilhamento alone, it saw almost as much trading as it had in the previous 60 years” (Ibidem).
  • 12
    “Though many of these enterprises failed during the collapse of the bubble and the recurrent financial crises over the following decade, in the short run they provided loans to Brazil’s textile industry” (Ibidem).
  • 13
    “In 1888 only 3 cotton textile enterprises were listed on the Rio stock exchange; by 1894 there were 18. […] Even after the burst of the financial bubble, new firms were financed by the stock exchange. Thus, the number of cotton manufacturers listed on the Rio exchange grew from 18 in 1894 to 25 in 1904 and to 54 in 1914, when it leveled off. Thus, in 1914, 54 of Brazil’s 191 cotton textile companies (28 percent) were publicly traded” (Ibidem).
  • 14
    A esse respeito, ver capítulos XXXI e XXXII de Furtado (1959).
  • 15
    Oliveira (1996OLIVEIRA, G. B. M. A expansão do crédito e a industrialização no Brasil, 1930-1945. America Latina en La Historia Económica, n. 6, jul.-dic., p. 81-90, 1996.) estudou o setor bancário brasileiro do período compreendido entre 1930 e 1945, corroborando a afirmativa aqui apresentada de que o sistema financeiro da época se resumia ao setor bancário (instituições nacionais na sua maioria). Via dados - ainda que não deflacionados -, demonstra expressivo aumento do ativo do setor bancário nacional, sem a mesma contrapartida no crescimento do capital próprio; ou seja, o setor teria se alavancado. As evidências apontam que o crédito teria aumentado em decorrência do capital industrial, e, conforme a argumentação apresentada nesta seção, esse aumento teria sido concedido via empréstimos de curto prazo, utilizando o redesconto. Detalhamentos das formas de obtenção de ganhos pelo sistema financeiro - inclusive a partir de dados - originadas das “disfuncionalidades” da economia brasileira estão em Granziera (1976GRANZIERA, R. Moeda e crédito no limiar do capitalismo no Brasil: a outra história financeira. 247f. Tese (Doutorado) - IFCH/Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Campinas, 1976.), Costa (1978COSTA, F. N. Bancos em Minas Gerais (1889-1964). 330f. Dissertação (Mestrado), IFCH/Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Campinas, 1978.) e Bastos (2004BASTOS, P. P. Z. Raízes do desenvolvimentismo associado: comentários sobre sonhos prussianos e cooperação panamericana no Estado Novo (1937-1945). EconomiA, v. 5, n. 3, p. 285-320, dez. 2004.; 2006; 2008).
  • 16
    Como exemplo, pode-se citar a Instrução nº 34 da SUMOC de 1950, que limitava os juros nominais pagos aos depositantes entre 3 e 6%, dependendo do prazo da operação, bem inferiores aos 12% impostos pela lei de usura.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Jul 2023
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 2023

Histórico

  • Recebido
    27 Jul 2021
  • Aceito
    02 Nov 2022
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