Acessibilidade / Reportar erro

As Memórias de Lacroix: a instrução pública na França revolucionária, em geral, e o ensino de Matemática, em particular

The Memoirs of Lacroix: on public education in revolutionary France, in general, and on the teaching of mathematics, in particular

Resumos

O artigo - um exame hermenêutico do livro Essais sur l'enseignement en général, et sur celui des mathématiques en particulier, de 1805, de Sylvestre-François Lacroix, enfatizando sua segunda parte, na qual o autor discute seu Curso de Matemática Elementar, uma série de manuais escolares elaborados para a Escola Central das Quatro Nações - tem sua fundamentação ligada à Hermenêutica de Profundidade de Thompson conjugada a procedimentos de investigação textual sugeridos por Genette quanto aos paratextos editoriais. Defende que o livro de Lacroix é uma obra auto-referencial, de cunho claramente autobiográfico, que responde mais aos ideais iluministas da França do Setecentos que às perspectivas do século XIX, quando a obra circulou, tendo sido reeditada por quatro vezes, sob Napoleão, na primeira metade do Oitocentos. Raramente focalizado em trabalhos de pesquisa, o livro - cujas edições estão disponíveis eletronicamente - tem uma única tradução, ainda inédita, para o português.

S-F Lacroix (1765-1843); Instrução Pública; Ensino de Matemática; Essais sur l'enseignement en général; et sur celui des mathématiques en particulier; Iluminismo


The aim of this paper is to analyse the Essais sur l'enseignement en général, et sur celui des mathématiques en particulier, a book published in 1805 by Sylvestre-François Lacroix. In particular, the paper focuses the second part of this book: Lacroix´s remarks on his Cours de Mathématiques, a set of textbooks used in the École Centrale des Quatre-Nations. The article - an hermeneutical exam whose theoretical framework is based on the studies of Thompson (Depth Hermeneutics) and Genette (Editorial Paratexts) - points out that Lacroix´s book is clearly autobiographical and reflects more the values of the Englightenment of the 18th Century than the ideas that predominated in France under Napoleon, even considering that the book was edited and revised four times in the first half of the 19th Century. The book under consideration has never been deeply studied in Math Education literature, and although its four editions are available in digital format, there is only one translation to Portuguese, which is not yet available.

S-F. Lacroix (1765-1843); Public Instruction; Mathematics Instruction; Essais sur l'enseignement en général, et sur celui des mathématiques en particulier; Enligthenment


ARTIGOS

As Memórias de Lacroix: a instrução pública na França revolucionária, em geral, e o ensino de Matemática, em particular* * A extensão, o detalhamento e a natureza do Essais sur l'enseignement en général, et sur celui des mathématiques en particulier, de Lacroix, impedem que uma apresentação e uma análise integrais possam ser divulgadas num único artigo. Assim, os autores optaram por elaborar dois textos, publicados em diferentes periódicos, cada um deles abordando, de modo mais direto, uma das duas partes do livro. Considerações gerais sobre a Primeira Parte do Essais..., entretanto, estão registradas neste artigo (que enfatiza mais a segunda parte) para contextualizar o leitor.

The Memoirs of Lacroix: on public education in revolutionary France, in general, and on the teaching of mathematics, in particular

Antonio Vicente Marafioti GarnicaI; Maria Laura Magalhães GomesII; Mirian Maria AndradeIII

IDoutor em Educação Matemática pela Universidade Estadual Paulista (UNESP), Rio Claro, Livre-docente pelo Departamento de Matemática da Faculdade de Ciências da Universidade Estadual Paulista (UNESP), Bauru. Docente da Universidade Estadual Paulista (UNESP), Bauru, e dos Programas de Pós-graduação em Educação para a Ciência da Universidade Estadual Paulista (UNESP), Bauru, e em Educação Matemática da Universidade Estadual Paulista (UNESP), Rio Claro, SP, Brasil. Endereço para correspondência: Av. Luiz E. C. Coube, s/n, Vargem Limpa, CEP: 17030-360, Bauru, SP, Brasil. E-mail: vgarnica@fc.unesp.br

IIDoutora em Educação pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), Campinas. Professora do Departamento de Matemática da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Belo Horizonte, MG, Brasil. Endereço para correspondência: Departamento de Matemática - ICEx-UFMG, Av. Antônio Carlos, n. 6627, Cidade Universitária-Pampulha, CEP: 31270-901, Belo Horizonte, MG, Brasil. E-mail: mlauramgomes@gmail.com

IIIDoutora em Educação Matemática pela Universidade Estadual Paulista (UNESP), Rio Claro. Professora do curso de matemática da Faculdade de Ciências Integradas do Pontal (FACIP), Universidade Federal de Uberlândia (UFU), Ituiutaba, MG, Brasil. Endereço para correspondência: Av. Professor José Vieira de Mendonça, 1535, Bairro Novo Mundo, CEP: 38307-034, Ituiutaba, MG, Brasil. E-mail: andrade.mirian@gmail.com.

RESUMO

O artigo - um exame hermenêutico do livro Essais sur l'enseignement en général, et sur celui des mathématiques en particulier, de 1805, de Sylvestre-François Lacroix, enfatizando sua segunda parte, na qual o autor discute seu Curso de Matemática Elementar, uma série de manuais escolares elaborados para a Escola Central das Quatro Nações - tem sua fundamentação ligada à Hermenêutica de Profundidade de Thompson conjugada a procedimentos de investigação textual sugeridos por Genette quanto aos paratextos editoriais. Defende que o livro de Lacroix é uma obra auto-referencial, de cunho claramente autobiográfico, que responde mais aos ideais iluministas da França do Setecentos que às perspectivas do século XIX, quando a obra circulou, tendo sido reeditada por quatro vezes, sob Napoleão, na primeira metade do Oitocentos. Raramente focalizado em trabalhos de pesquisa, o livro - cujas edições estão disponíveis eletronicamente - tem uma única tradução, ainda inédita, para o português.

Palavras-Chave: S-F Lacroix (1765-1843). Instrução Pública. Ensino de Matemática. Essais sur l'enseignement en général, et sur celui des mathématiques en particulier. Iluminismo.

ABSTRACT

The aim of this paper is to analyse the Essais sur l'enseignement en général, et sur celui des mathématiques en particulier, a book published in 1805 by Sylvestre-François Lacroix. In particular, the paper focuses the second part of this book: Lacroix´s remarks on his Cours de Mathématiques, a set of textbooks used in the École Centrale des Quatre-Nations. The article - an hermeneutical exam whose theoretical framework is based on the studies of Thompson (Depth Hermeneutics) and Genette (Editorial Paratexts) - points out that Lacroix´s book is clearly autobiographical and reflects more the values of the Englightenment of the 18th Century than the ideas that predominated in France under Napoleon, even considering that the book was edited and revised four times in the first half of the 19th Century. The book under consideration has never been deeply studied in Math Education literature, and although its four editions are available in digital format, there is only one translation to Portuguese, which is not yet available.

Keywords: S-F. Lacroix (1765-1843). Public Instruction. Mathematics Instruction. Essais sur l'enseignement en général, et sur celui des mathématiques en particulier. Enligthenment.

1 Intenções e quadro teórico

A intenção deste artigo é examinar hermeneuticamente a obra Essais sur l'enseignement en général, et sur celui des mathématiques en particulier, de Sylvestre-François Lacroix, publicada em 1805, reeditada - com alterações mínimas - em 1816, 1828 e 1838. Os recortes dessa obra, mobilizados neste artigo, provêm da tradução para a língua portuguesa, ainda inédita, feita a partir da edição original1 1 Para a tradução, a obra-base utilizada foi a disponível no Acervo de Livros Antigos do Grupo de Pesquisa História Oral e Educação Matemática, num trabalho de cotejamento com as versões eletrônicas integrais do texto de Lacroix, em suas quatro edições, disponíveis, por exemplo, em www.books.google.com, www.archive.org e www.gallica.bnf.fr. A tradução para o português foi elaborada por Karina Rodrigues, com revisão, prefácio e notas de Antonio V. M. Garnica e Maria Laura M. Gomes. de 1838. Por analisar hermeneuticamente queremos entender a descrição e a análise textual - a interpretação - realizada segundo os parâmetros de uma das várias abordagens hermenêuticas existentes. No caso, a moldura teórica aqui mobilizada foi aquela da Hermenêutica de Profundidade, apresentada em Thompson (1995) como uma possibilidade de análise a formas simbólicas numa abordagem que vincula, ao mesmo tempo, elementos historiográficos e sociológicos, e está filosoficamente enraizada na Fenomenologia Hermenêutica de Paul Ricoeur. Entretanto, se a extensão e abrangência do Essais...tornam inviável seu tratamento, na íntegra, num único artigo - sendo essa a razão pela qual, aqui, optamos por focar apenas sua Segunda Parte - , torna-se inviável, também, focar mais detidamente o referencial da Hermenêutica de Profundidade. O que se apresenta a seguir é, portanto, somente uma abordagem muito geral desse referencial.

Ainda que correndo o risco de superficializar os procedimentos e teorias fundantes, pode-se afirmar que uma forma simbólica é, em síntese, uma construção humana intencional, e a Hermenêutica de Profundidade pretende ser um referencial teórico-metodológico cuja intenção é estabelecer os liames de elaboração, circulação e apropriação das formas simbólicas - em especial em meios de comunicação de massa - de modo a apoiar o desvelamento da ideologia que marca tal forma. As propostas hermenêuticas - principalmente as contemporâneas, como as de Ricoeur e Gadamer - parametrizam-se menos pelo estabelecimento decisivo de uma versão última das obras que pela elaboração de um conjunto de informações e disposições que, tendo permitido a atribuição de significado pelo hermeneuta, possibilitam que isso seja por ele comunicado, visando a permitir, em cadeia, outras atribuições de significado. Mais contemporaneamente, a afirmação de que um texto é, propriamente, uma leitura, reforça essa abordagem hermenêutica e serve para consolidar o que se conhece como a virada hermenêutica das Ciências Humanas, situada na década de 1970.

A Hermenêutica de Profundidade indica a necessidade de analisar uma forma simbólica em duas frentes principais (a sociohistórica e a formal ou discursiva), entre as quais um contínuo movimento de arremates constantes, composto por interpretações e reinterpretações, deve ocorrer. A análise sociohistórica tem dentre seus objetivos identificar e descrever situações sociotemporais relativas à forma simbólica; analisar os campos de interação (as trajetórias que determinam como se tem ou se teve acesso à forma simbólica), as regras e recursos em vigência à época de sua elaboração e circulação, e examinar os meios técnicos de constituição de mensagens e como eles se inscrevem socialmente. A análise formal ou discursiva trata mais propriamente da materialidade da obra, da descrição e análise de sua composição interna.

Ainda que focalize especificamente livros - uma forma simbólica em particular - e sem deter-se muito em discutir e legitimar pressupostos teóricos prévios, Gérard Genette, em seu livro Paratextos Editoriais, cuja edição brasileira é de 2009, dá alguns parâmetros que nos auxiliam nessa análise formal ou discursiva proposta por Thompson. Segundo Genette (2009), um paratexto é aquilo por meio do que um texto se torna um livro e se propõe como tal a seu público. O nome do autor, a capa, o título, as dedicatórias, subtítulos, prefácios, tipo de papel, ilustrações, anexos, tipos e tamanhos das letras, a editora, os patrocínios, os textos de divulgação internos e externos ao livro, entre outros, são elementos paratextuais, ou seja, compõem o texto, permitem que a obra seja o que é e indique as formas de apropriação que o autor, embora não possa controlar, considera desejáveis.

Tanto a análise sociohistórica quanto a análise formal ou discursiva, entretanto, implicam mobilizar documentação complementar para a configuração espaço-temporal da obra. No caso da análise do Essais..., o leitor perceberá que foi nossa opção, dentre a diversidade de autores e obras existente, recorrer a algumas fontes específicas: é o caso dos trabalhos de Chartier (2009) e Darnton (1990) - singulares no que diz respeito ao estudo da França iluminista - , Domingues (2007), Schubring (1985, 2003), Gomes (2008) e Silva (2011) , que tratam da Matemática e da Educação Matemática na França setecentista, alguns deles detendo-se na produção e na biografia de Lacroix; e Durkheim (2002), obra obrigatória sobre os sistemas de ensino e sua evolução na França. Esses seriam, pode-se dizer, os autores centrais chamados, de início, a apoiar este estudo, e deles irradia uma diversidade de outros autores e fontes que interagem num movimento que pode, sempre, incorporar novas referências, aprofundando o exame hermenêutico proposto.

2 Um autor, uma memória: Lacroix, sua produção e o Essais...

As poucas - e sintéticas - biografias de Lacroix existentes referem-se a seu envolvimento com a docência desde 1782, aos 17 anos de idade, até o ano de sua morte, 1843. Foi professor da École des Gardes de La Marineem Rochefort, da École Royale d'Artillerie de Besançon, do Lycée2 2 Esse Lycée não deve ser confundido com os Liceus, as escolas de ensino secundário implantadas na era napoleônica. Segundo Domingues (2007, p.10), o Lycée no qual Lacroix atuou, entre 1786 e 1787, era uma instituição privada à qual membros da sociedade refinada de Paris recorriam para buscar cultura geral com professores renomados (Condorcet, que interferiu para a contratação de Lacroix no Lycée, era responsável pela cadeira de Matemática). de Paris, da École Royale Militaire, da École Centrale des Quatre-Nations, da École Polytéchnique, primeiro reitor da Faculté des Sciences de Paris, e daquele que, em 1870, depois de assumir várias denominações, passou a ser conhecido como o Collège de France. Atuou como avaliador de estudantes de Escolas de Artilharia e foi examinador permanente da École Polytéchnique.

Segundo seus biógrafos, vários estudiosos inspiraram Lacroix. Domingues (2007) cita, especialmente, Marie, Mauduit e, enfaticamente, Monge e Condorcet. Lacroix participou de cursos e conferências de Joseph-François Marie, professor do Collège Mazarin da Universidade de Paris, conhecido pela publicação de uma edição revisada, num único volume, de um curso de Matemática Elementar de autoria de La Caille. No Collège Royal assistiu aulas de Antoine-René Mauduit. Gaspard Monge ensinava Matemática na Escola Real de Artilharia (École Royale du Génie) de Mézières, na cadeira que havia sido de Bossut. Lacroix conheceu Monge quando participou de algumas de suas conferências na Academia de Paris, em 1780, e desenvolveu com ele uma forte relação. Também Condorcet foi uma figura importante na biografia de Lacroix. A relação de ambos iniciou-se quando Condorcet era secretário da Academia, à qual Lacroix submetia textos. Aparentemente, dessa aproximação com Condorcet, em termos de produção matemática, resultou o interesse de Lacroix pelo estudo das Probabilidades. Mas a influência mais marcante do Marquês sobre Lacroix foi, segundo os biógrafos, notadamente filosófica. Sob a proteção de Monge e Condorcet, Lacroix conheceu outras importantes figuras do cenário acadêmico e científico de seu tempo, como Laplace, Legendre, Cassini e Lalande (DOMINGUES, 2007).

Nomeado chef de bureau da Comissão de Instrução Pública, desempenhou papel importante na reforma do sistema educacional francês que implantou a Escola Normal e as Escolas Centrais. Para as Escolas Centrais - especialmente para a École Centrale des Quatre-Nations - Lacroix elaborou uma série de livros didáticos - cujo conjunto passou a chamar-se Cours de Mathématiques3 3 Lacroix sempre teve sua obra publicada por editoras cuja opção central era a divulgação científica, como as casas Courcier, Mme. Vve. Courcier, Bachelier e Gauthier-Villars. Um dos mais conhecidos divulgadores de textos relativos à Matemática na França do século XIX, Bachelier nasceu em Chablis e mudou-se, em 1800, para Paris, onde trabalhou na livraria de Denis Magimel, quase que exclusivamente dedicada à temática militar. Por intermédio de Magimel, Bachelier conhece a filha de Jean-Marie Courcier, proprietário de uma conhecida editora, fundada no final do século XVIII, com interesse focado na produção de textos científicos e, em especial, nos de Matemática. Em 1804, Bachelier casa-se com a filha de Courcier e, mais tarde, em 1812, instala sua livraria no Quai des Augustins, em Paris. Em 1821, a editora, que, com a morte de Courcier passara a propriedade da viúva, Mme Vve. Courcier, foi incorporada por Bachelier. Posteriormente, em 1853, Bachelier transmitiu sua empresa para seu genro Louis Alexandre Joseph Mallet. A casa Bachelier se tornou, então, a casa Mallet-Bachelier. Em 1864, a Bachelier/Mallet passa a ser administrada por Jean-Albert Gauthier-Villars. Essa sequência de editoras e editores termina no século XX, quando esse ramo francês é adquirido pela Elsevier, fundada na Holanda, em 1880, a partir de uma pequena livraria artesanal em atividade desde o século XVI. A Elsevier, transformada em editora multimídia internacional, atua até hoje no mercado de divulgação de títulos acadêmicos. - publicados nos anos de 17974 4 Sua primeira obra didática, o Essais de Géométrie sur les plans et les surfaces, conhecido como Élemens de Géométrie Descriptive, mais tarde incorporou-se ao Cours... com o título Complément des Élemens de Géométrie. a 1802. Composta por títulos relativos à Aritmética, à Álgebra5 5 Além do livro de Álgebra do Cours..., Lacroix incorporou à coleção um Complément des Élemens d'Algèbre. , à Geometria, à Trigonometria6 6 O Tratado Elementar de Trigonometria inclui considerações sobre as trigonometrias retilínea e esférica e sobre a aplicação da Álgebra à Geometria. e ao Cálculo Diferencial e Integral7 7 Trata-se do Traité Élémentaire de Calcul Differentiel et Integral. Mais tarde seria publicado, em três volumes - cujas primeiras edições foram produzidas respectivamente em 1797, 1798 e 1800 - , o Traité du Cálcul Differentiel et du Calcul Integral, tido como sua obra mais madura do ponto de vista matemático. , a coleção era dirigida às salas de aula do sistema de instrução secundário, recém-criado. Essa fase mais notadamente didática de sua produção8 8 Segundo Domingues (2007, p. 16-17), nos anos de 1806 a 1820 a produção de Lacroix mais propriamente relativa à Matemática é reduzida. Apenas um novo livro, o Traité Élémentaire du Calcul des Probabilités, é publicado (em 1816), ainda que várias reedições de outras obras tenham sido produzidas, com revisões e complementações. Nesse período, Lacroix envolve-se num projeto historiográfico, contribuindo com o Dicionário Biográfico de Michaud, responsabilizando-se pelos verbetes relativos a d'Alembert, Apolônio, Arbogast, Arquimedes, Barrow, de Beaune, os Bernoullis, Bézout, Bombelli, Cardano, Cavalieri, Clairaut, John Craig, Diofanto, Euclides, Euler, e Eutócio de Ascalon. Sua participação no dicionário foi interrompida quando seu verbete relativo a Condorcet - tido como muito favorável ao autor - foi recusado pelos editores. .Ainda segundo Domingues, o prestígio de Lacroix aumentaria significativamente no período, embora sua produção tenha diminuído. O período que Domingues chama de "os anos de declínio de Lacroix" é o dos anos de 1820 a 1843. Em 1826, ele publica uma pequena revisão bibliográfica; em 1828, o livreto Introduction a la Connaissance de l'sphère e, em 1831, uma nova edição do trabalho de Montucla sobre a quadratura do círculo (DOMINGUES, 2007, p.18). encerra-se com a publicação, em 1805, de um título voltado não aos estudantes secundaristas, mas, mais propriamente, aos professores e a um público especializadoou interessado nas questões relativas ao ensino: o Essais sur l'enseignement en général, et sur celui des mathématiques en particulier(LACROIX, 1838), uma coletânea de reflexões - que o próprio Lacroix assume serem de caráter historiográfico - sobre o ensino na França, seguida de uma descrição analítica de sua obra didática - os livros do Cours....

Essa obra de Lacroix estrutura-se em três partes principais. A primeira é uma Introdução denominada Da cultura matemática durante o século XVIII e da sua influência sobre o desenvolvimento do espírito humano nesse período. Segue-se uma Primeira Parte, intitulada Do ensino, em geral, durante o século XVIII e uma Segunda Parte, nomeada Do ensino da Matemática. Essa Segunda Parte, a que nos dedicamos mais destacadamente neste artigo, organiza-se em três seções: Sobre a maneira de ensinar Matemática e de avaliar, nas provas, o conhecimento dos alunos, Do método em Matemática e Análise do Curso elementar de Matemática pura da Escola Central das Quatro Nações.

Antes da Introdução, o livro traz uma breve nota intitulada Objetivo (da obra) na qual Lacroix declara suas intenções. Nesse pequeno texto, escrito na primeira pessoa do singular, o autor revela os motivos que o levaram a escrever o livro e relata, brevemente, sua posição e seu cenário: mostra-se ao leitor como homem público, dizendo de sua intenção de inserir no livro "uma longa experiência de ensino, adquirida em escolas muito diferentes, por métodos muito variados e sob a influência de regimes administrativos opostos" (LACROIX, 1838, p.3), mas, também, como administrador, já que, em 1794, foi "chamado a cooperar com o restabelecimento da instrução pública" (LACROIX, 1838, p.3). O autor assinala, ainda, que a escrita da obra se realiza em circunstâncias de mudanças, no "momento em que a instrução pública acaba de receber uma nova organização na qual uma certa ordem das coisas, obstruída por entraves de toda espécie, foi extinta e não pode ser julgada à luz da razão" (LACROIX, 1838, p.1), com uma intenção específica - a de fixar, ao menos para a história, o verdadeiro caráter das instituições para a instrução pública criadas após a tormenta revolucionária.

Lacroix afirma, assim, sua memória, sua experiência, sua posição de espectador e ativo participante nas instâncias executivas relativas à Instrução Pública do período revolucionário, defendendo uma isenção política que lhe permitiu transitar por entre grupos, espaços e tempos cujos ideários nem sempre se mostraram coesos e convergentes.

Ter sido indicado, durante o Grande Terror - também conhecido como Terror Jacobino, que dura de 1793 a 1794 - , para cargos de prestígio, como as posições de examinador da Escola de Artilharia em Charlons-sur Marne e de chefe de gabinete da Comissão de Instrução Pública, não significa que Lacroix tenha tido posições políticas extremadas, tampouco que fosse jacobino. Na verdade, segundo Domingues (2007), Lacroix era moderado, com posições claramente progressistas, bem ao gosto do Iluminismo, ainda que essa têmpera não possa explicar, de modo cabal, a permanência do prestígio do autor, cuja defesa apaixonada pelos ideais das Luzes e do modelo de instrução revolucionário é um dos principais temas do Essais..., com suas quatro edições produzidas entre 1805 e 1838, atravessando um momento revolucionário e o período napoleônico até alcançar a Restauração, com o retorno da Monarquia.

Os Ensaios sobre o ensino em geral e o de Matemática em particular representam mais do que um registro das concepções político-pedagógicas de um professor francês que viveu e atuou nos séculos XVIII e XIX - estamos diante de um escrito testemunhal de um autor específico, nomeado claramente e participante ativo nas tramas que ajudaram a constituir um sistema nacional de instrução para a França setecentista. Assim, o texto introdutório ao Essais... pode ser interpretado como um pacto autobiográfico (LEJEUNE, 2008) que Lacroix firma com seu leitor para que nenhuma dúvida paire sobre sua legitimidade como testemunha. O livro é, antes de tudo, um texto auto-referencial, pactuado contratualmente com o leitor já na exposição de seus objetivos. Torna-se importante destacar, também, que, além da identidade assumida na enunciação em primeira pessoa, que faz equivalerem autor, narrador e personagem, aspecto que caracteriza o pacto autobiográfico de acordo com Lejeune, Lacroix diz enfaticamente ao leitor que nada tem a ocultar, nada que o possa comprometer.

Enfim, independente de todos os grupos e colocado em circunstâncias que me permitiram apenas ser um observador na crise violenta que vivenciamos, não tenho nada a esconder, nada que me comprometa e que possa me impedir de dizer toda a verdade, ou, ao menos, o que eu entendo por ela (LACROIX, 1838, p.4).

Essa construção do texto introdutório do livro de Lacroix cria um acordo entre autor e leitor: como o autor afirma explicitamente que dirá a verdade, o leitor adentrará o texto conduzido pela ideia de sua veracidade, o que constitui, segundo Lejeune (2008), a essência do pacto autobiográfico.

As datas de publicação da edição original (1805) e das edições subsequentes poderiam indicar o Essais...como uma obra do século XIX. Todavia, levar em conta principalmente essas datas, relegando a plano secundário os aspectos internos do objeto investigado, se nos afigura como um equívoco. Com efeito, oEssais... tevereedições em 1816, 1828 e 1838, mas, mesmo com um exame pouco detido de qualquer dessas edições9 9 O cotejamento entre as quatro edições do Essais... nos permite afirmar que o corpus do texto permanece relativamente inalterado. A exceção são as notas. São 25 os rodapés originais - adjetivo usado por Genette (2009) para referir-se ao texto da primeira edição - e não há notas de caráter complementar inseridas no livro. Na segunda edição, há 50 notas em rodapé (sendo mantidas todas as originais) e uma única nota complementar sobre o estabelecimento da moral, adicionada ao final do livro, que entendemos ser um complemento a um dos rodapés. Nessa mesma segunda edição, surge uma nota posterior - que se mantém nas edições seguintes - em que o autor discute o método em Matemática. Ao analisarmos a terceira edição, verificamos um aumento menos significativo no número de notas em comparação com a edição anterior, de 1816: são 53 notas de rodapé e três de considerações complementares (duas delas já presentes na segunda edição, e a terceira, ao final do livro, tratando sobre filosofia ). Por fim, na quarta edição observamos 57 notas em rodapé e a manutenção das três notas complementares já presentes na edição anterior. , o leitor se aperceberá de que, no texto, os sinais do século XVIII são nitidamente muito mais fortes do que as marcas do século XIX no qual, efetivamente, a obra circulou. Nossa posição é, por conseguinte, a de que a obra, por ecoar os valores do Iluminismo e os modos como a Revolução interagiu com esse ideário, é um escrito da França do século das Luzes.

3 Uma revolução

Não é intenção deste nosso texto aprofundar-se nas formas de apropriação da Revolução Francesa. Para nossas intenções, uma breve cronologia clássica desse movimento, bem como uma abordagem panorâmica - provavelmente consensual - de alguns aspectos do Iluminismo, mostra-se suficiente.

A Revolução - que, para Tocqueville, foi "paradoxalmente o desfecho inevitável tanto de uma evolução extremamente longa da centralização administrativa assumida pela monarquia quanto de uma ruptura brutal, violenta e inesperada" (CHARTIER, 2009, p.35) - está fortemente enraizada na crise financeira que se estabelecera na França dos Setecentos, para a qual contribuíram tanto o apoio francês à causa da independência americana e as más colheitas ao final do século - que implicaram aumento significativo no preço da farinha e, consequentemente, do pão, fundamental na alimentação dos franceses10 10 Alimentos atualmente comuns à mesa dos europeus, como a batata e o tomate, não eram utilizados na França do século XVIII. O consumo de pão, porém, era imenso - quase um quilo ao dia por habitante, segundo alguns historiadores. Ainda assim, a má administração negligenciou a necessidade de estocar farinha, confiando no sucesso do controle das pragas, responsável por manter constante a produção do trigo durante quase todo o século e implicando, inclusive, um sensível decréscimo do índice de mortalidade da época. - quanto a corrupção que, então, se tornara epidêmica. Mas as inspirações que a possibilitaram e a promoveram são permeadas por elementos diversos, como os ideais iluministas e os mais variados acontecimentos de ordem social, política e econômica. Os historiadores, de modo geral, situam seu início, marco da transição da Idade Moderna para a Idade Contemporânea, entre a convocação da Assembléia dos Estados Gerais, em 1788, e a Queda da Bastilha (em julho de 1789). Usualmente, os dez anos da Revolução Francesa são divididos em quatro momentos: o inicial, da Assembleia Nacional Constituinte (de 1788/9 a 1791, que, dentre outras ações políticas voltadas à elaboração de uma constituição, à nacionalização dos bens da Igreja e à proibição dos sindicatos e das greves aprovou a Declaração dos Direitos dos Homens e dos Cidadãos); o da Assembleia Legislativa (de outubro de 1791 a setembro de 1792, época de grandes motins populares em Paris, da declaração de guerra à Áustria, do ataque ao Palácio das Tulherias e da prisão da família real); o da Convenção (1792-1795, quando é oficialmente proclamada a República, criam-se as leis que efetivam, de modo radical, o ideário revolucionário no cotidiano e nas instituições, surgem os Comitês de Salvação Pública e de Segurança Nacional e inicia-se o Terror que leva à guilhotina Maria Antonieta, Luis XVI, cientistas como Lavoisier e vários revolucionários, dentre eles Danton e Robespierre11 11 "O Tribunal Revolucionário trabalhava a todo vapor. [...] Os aristocratas, porém, compunham apenas uma pequena parcela de vítimas do Terror. Os registros nem sempre foram exatos, mas cerca de 85 por cento dos 35 mil que morreram eram provavelmente plebeus" (ALLAN, 1992, p.151-152). ); e o do Diretório (1795-1799, implantado com a Revolta Termidoriana, que exclui a participação popular do movimento revolucionário). Com o fim do Diretório, pela Lei do 18 Brumário, termina também o período revolucionário e se iniciam o Consulado, a Ditadura e o Império, sob a égide de Napoleão Bonaparte.

Com o movimentorevolucionário, vieram as reformas sociais e políticas que implicaram uma série de alterações significativas no cotidiano. A Convenção implantou um novo sistema de pesos e medidas (o sistema métrico) e um novo calendário foi usado, de 1793 a 1805. Inspirado na república romana da Antiguidade e nos ideais do Iluminismo, esse novo calendário, negando o parâmetro gregoriano, tem 1792 como marco inicial, seu ano I. A devoção à natureza e os múltiplos de 10 são reguladores básicos do novo sistema. A proposta de divisão do dia em 10 horas, das horas em 100 minutos "decimais" e dos minutos em 100 segundos "decimais" mostrou-se problemática e foi abandonada já em 1795. Os doze meses anuais - de 30 dias cada, divididos em 3 "décades" de 10 dias - , foram batizados com novos nomes, muitos deles afrancesamentos do latim. Vendémiaireiniciava-se em 22, 23 ou 24 de setembro; Brumaire, 22, 23 ou 24 de Outubro etc. Cada dia do ano recebeu um nome específico (remetendo a animais, flores e frutos e até mesmo a objetos de uso cotidiano - o dia dedicado a Santa Catarina tornou-se o dia do porco; o dia de Santa Cecília transformou-se no Dia do Nabo; 30 Germinal passou a ser dedicado à faca, 20 Prairial à foice, e o dia de Santo André passou a ser o Dia da Picareta). Cinco dias complementaresforam criados para comemorações nacionais (as Festas da Virtude, do Trabalho, do Talento, das Convicções e das Recompensas), ao final de cada ano. O 18 Brumário ano VIII (9 de novembro de 1799) e o 9 Termidor ano II (27 de junho de 1794) ainda são assim chamados na historiografia corrente. Em meio a todas as alterações - que hoje podem nos parecer risíveis, mas que para os revolucionários eram extremamente sérias, pois "queriam construir uma nova sociedade baseada em novos princípios de relações sociais" (DARNTON, 1990, p.27), mesmo que permanecessem alguns velhos costumes do Antigo Regime12 12 Segundo Darnton (1990, p.27-29), "o Estado-nação não varreu tudo o que tinha pela frente. Não conseguiu impor a língua francesa à maioria do povo francês, que continuou a falar todos os tipos de dialetos incompreensíveis entre si, apesar de uma enérgica campanha de propaganda do Comitê Revolucionário para a Instrução Pública. Mas ao eliminar os corpos intermediários que separavam o cidadão e o Estado, a Revolução transformou o caráter da vida pública. [...] Naturalmente, é possível apontar lacunas e contradições na legislação revolucionária. Não obstante, [sua] orientação principal é clara: ela substituiu a Igreja pelo Estado como autoridade suprema na condução da vida privada, e fundamentou a legitimidade do Estado na soberania do povo". - também os nomes próprios sofreram alterações. Era inadequado - e perigoso - , à época, por exemplo, chamar-se Louis: "Os Louis se apresentavam como Brutus ou Spartacus. Sobrenomes como Le Roy ou Lévêque, muito usuais na França, eram mudados para La Loi ou Liberté" (DARNTON, 1990, p.26). Em tempos exaltados, os mais leves sinais de religiosidade ou linhagem diferenciada deveriam ser evitados. Segundo Domingues (2007), esse estado de coisas levou Lacroix, que antes assinava S.-F. de Lacroix, a suprimir a partícula "de", cujo tom era demasiadamente aristocrático13 13 Ainda que seu sobrenome seja (ou pareça ser) herança de um passado nobre, Lacroix provinha de uma família de burgueses - membros urbanos do Terceiro Estado. Nasceu em abril de 1765, filho de Jean François De La Croix e Marie Jeanne Antoinette Tarlay. Segundo Domingues (2007, p.06), que assume a grafia Silvestre François Lacroix (a grafia correta do seu primeiro nome - "Silvestre" ou "Sylvestre" - não pode ser precisada, dado ser comum, nos séculos XVIII e XIX, o uso público apenas das iniciais dos nomes cristãos, bem como a variação quanto às maiúsculas ou minúsculas e à separação ou contração do artigo nos sobrenomes - La Croix, la Croix ou Lacroix), o primeiro registro da supressão do "de" - em "de Lacroix" - é uma petição encaminhada pelo autor ao poder público de Besançon, no ano de 1793: "Em seu Procés-verbal d'individualité para a Legion d'Honneur (provavelmente o documento mais oficial que se pode ter em mãos, datado de 1837, o sobrenome de Lacroix aparece como 'Lacroix (de)', e os nomes de batismo como 'Silvestre François'). Em uma transcrição de seu certificado de batismo, os nomes são escritos como 'Silvestre françois' e o sobrenome como 'De la Croix'". .

No período conservador que encerra o movimento revolucionário, o Diretório elaborou uma nova constituição - de 1792 a 1795 foram redigidas três cartas constitucionais - que mantinha aplacado o fervor revolucionário e prestigiado o exército, cujas vitórias frequentes eram exaustivamente divulgadas. Em 1798, um dos generais mais populares da França, então em campanha no Egito, retorna a Paris e, apoiado maciçamente pela alta burguesia, põe fim ao Diretório e instaura o Consulado. Trata-se de Napoleão Bonaparte que, em 1804, dissolverá também o Consulado e proclamar-se-á Imperador14 14 Para que se tenha uma ideia do impacto dessa atitude de Napoleão nos meios intelectuais e artísticos europeus da época, é oportuno lembrar as palavras e a atitude de Ludwig van Beethoven ao tomar conhecimento da autoproclamação do corso como imperador. Ferdinand Ries, contemporâneo e biógrafo do compositor alemão, recorda tais palavras: "Então ele também nada mais é do que um homem comum. Agora também vai ignorar os direitos humanos e satisfazer apenas sua própria ambição. Vai colocar-se acima de todos e tornar-se um tirano" (COOPER, 1996, p.156). Ademais, Beethoven intencionava dedicar a Bonaparte, cujos ideais republicanos admirava, sua terceira sinfonia, a Eroica, e, mais tarde, de fato decidiu intitulá-la Bonaparte. Contudo, Ferdinand Ries relata que, no momento em que soube da autoproclamação de Napoleão, o compositor se encolerizou, rasgou a folha de rosto da sinfonia e jogou-a ao chão. Considera-se que isso aconteceu em maio de 1804. Existe, ainda hoje, uma outra folha de rosto da partitura, na qual as palavras "intitolata Bonaparte" foram apagadas com tanta força, que o papel em que havia o nome do herói de Beethoven ficou perfurado (COOPER, 1996, p.234). sob as bênçãos de Pio VII, com quem já havia retomado as relações em 1801, quando era cônsul-geral da França. O império de Napoleão I dura até 1814. As Assembleias e o Tribunal foram suprimidos, o poder dos Corpos Legislativos esvaziado, a imprensa censurada e, no que se refere à educação, foram alterados os programas propostos pela política revolucionária, perigosos demais para o novo regime. Em 1813, derrotado pela aliança formada pela Prússia, Rússia e Áustria, o general imperador foi exilado em Elba, fugiu, voltou a governar a França no denominado "Governo dos cem dias", foi novamente exilado - agora em Santa Helena - em 1815, pela coligação que restituiu o poder a Luís XVIII. Inicia-se, então, o período da Restauração, que dura de 1814 a 1848, e "no qual a França volta a ser uma monarquia, sob os reis Luís XVIII (1814-1824), Carlos X (1824-1830) e Luís Filipe (1830-1848), todos eles membros da família de Luís XVI, o rei executado pela Revolução" (GOMES, 2008, p.311). Durante a Restauração, foram fortalecidos os vínculos com a Igreja, que voltou a ser um dos pilares políticos do país, e consolidou-se uma rejeição às teorias iluministas, agora consideradas culpadas pela desordem provocada pela Revolução.

Esse retrato - sintético, geral e um tanto linearizado - das tramas da Revolução Francesa é suficiente para nossa proposta, qual seja, apresentar e analisar - também num quadro geral - o Essais sur l'enseignement en général, et sur celui des mathématiques en particulier, de Sylvestre-François Lacroix. O objeto de nossa principal atenção, neste texto, é a Segunda Parte dessa obra. Antes, no entanto, de abordar esse componente do livro, voltado, na expressão do próprio Lacroix, para o ensino de Matemática em particular, parece-nos necessário indicar brevemente ao leitor alguns aspectos vinculados à educação na França do século XVIII, especialmente no período da Revolução, bem como tecer breves considerações acerca da primeira parte do Essais.

4 Sobre a educação na França Revolucionária, a Introdução e a Primeira Parte do Essais...

O debate científico, a necessidade de transformar a mentalidade conservadora e arcaica forjada pelas velhas instituições e, principalmente, dentre os letrados, pela formação jesuítica - então hegemônica - passaram a ser palavras de ordem: a queda da Bastilha havia tornado anacrônicas as discussões sobre a necessidade ou não da instrução do povo francês. As discussões, agora, concentravam-se na forma como esse povo, produto da Revolução, deveria ser instruído. Para tanto, entraram em cena questionamentos sobre as políticas públicas voltadas à Educação e os métodos pedagógicos que pautariam a nova instrução, de modo que se consolidasse o ideário revolucionário.

A expulsão dos jesuítas dos países católicos implicou várias reformas educativas. Na França, de onde os jesuítas foram exilados em 1762, houve vários projetos de reformas educativas em pauta durante todo o período da Revolução Francesa em suas várias fases (a Constituinte, a Assembleia Nacional, a Convenção Nacional e o Diretório).

No Essais..., Lacroix defende efusivamente o modelo das Escolas Centrais, implantado no verão de 1796. Para Durkheim (2002, p.280), nelas "tudo era novo; os quadros escolares, as matérias ensinadas, os métodos utilizados, os professores, tudo foi tirado do nada". Segundo Savoie (2007), as Escolas Centrais abandonaram o modelo de instrução adotado pelos colégios do Antigo Regime e optaram por um funcionamento mais aberto, oferecendo uma grande variedade e possibilidades de cursos. De acordo com Gomes (2008) e Schubring (1985), mesmo implantadas após a morte de Condorcet, as Escolas Centrais seguiam suas disposições.

Apostava-se num sistema de módulos de ensino. O conteúdo de cada curso, relativo a uma única disciplina, era regido, do início ao fim, por um mesmo professor, e dividido em seções que determinavam sua duração. Segundo Durkheim (2002, p.276) - cujas considerações sobre as Escolas Centrais concordam plenamente com aquelas presentes no Essais... - "as seções dos diferentes cursos eram totalmente independentes umas das outras, não eram ligadas umas com as outras [...] e a velha unidade da aula encontrava-se dissociada numa pluralidade de cursos paralelos". Quem optava pelos cursos era o próprio aluno, ouvindo sua família. O estudante tinha, também, a oportunidade de escolher somente cursos que poderiam auxiliar na carreira escolhida. Para Lacroix, esse formato oferecia aos jovens estudantes que possuíam pouco tempo para os estudos a oportunidade de se dedicar à profissão escolhida. De acordo com o Essais..., para estudar nas Escolas Centrais era cobrada uma quantia que não excedia 25 francos, havendo isenção para alunos carentes. A filosofia de ensino seguia claramente uma tendência iluminista, privilegiando as ciências, o desenho e os conteúdos, em geral, modernos. No entanto, a realidade vivida no interior das Escolas Centrais nem sempre era a esperada, e, em muitos casos, afastava-se flagrantemente do que previam a legislação e as disposições filosóficas que lhes serviam de fundamento.

Lacroix também tratou das alterações ocorridas no sistema de instrução francês a partir da lei do 3 Brumário ano IV, que dispunha sobre a divisão da instrução em três graus - seguindo com muita proximidade o sistema tripartite proposto no Plano de Condorcet: o primário, o secundário (correspondendo às Escolas Centrais) e as Escolas Especiais. As Escolas Primárias responsabilizar-se-iam pelo ensino da moral, da leitura, da escrita e do cálculo. As Escolas Centrais seguiriam um roteiro de estudos com duração de seis anos dividido em três ciclos - ou seções - superpostos. O estudante ingressava no primeiro ciclo com doze anos de idade, no segundo com quatorze e no último aos dezesseis anos.

A vigência das Escolas Centrais foi breve - do ano IV ao ano X - mas, segundo Lacroix, "durante o pouco tempo em que existiram [...] prestaram grandes serviços, adaptando ao ensino elementar os germes preciosos e fecundos acumulados nas lições da Escola Normal"15 15 Criada na França revolucionária, a Escola Normal serviu de modelo às demais escolas de formação de professores que se espalharam pela Europa, chegando ao Brasil em 1835. Segundo Piozzi (2007), as Escolas Normais eram as únicas efetivamente abertas aos menos favorecidos. De acordo com Dhombres (1980), as duas instituições mais notáveis do período revolucionário nasceram apenas após o Termidor: a École Polytéchnique e a École Normale (estabelecidas pela Convenção Nacional a partir dos decretos de fundação aprovados no 7 Vendemiário e no 9 Brumário ano III, respectivamente). Schubring (1985) afirma que a instituição das Escolas Primárias em toda a República demandou rapidez para formar professores, visando a atingir, em pouco tempo, um grande número de indivíduos. Para esse autor, essa foi a única razão para a fundação da Escola Normal. Segundo Dhombres (1980), as Escolas Normal e Politécnica eram, desde suas origens, bem diferentes: a Politécnica foi prevista para durar e a Normal consistiu numa estratégia emergencial, para divulgar normas quanto aos métodos de ensino, formando mestres que pudessem, logo que possível, implementar em cursos o que haviam aprendido. Paralelamente, acordos políticos permitiram que antigos representantes do clero se tornassem instrutores tanto em instâncias públicas quanto privadas. A Convenção Nacional, em decorrência dessa situação, suprimiu a Escola Normal apenas quatro meses depois de iniciado seu funcionamento (SCHUBRING, 1985). Ela reaparecerá por volta de 1808-1810, na era Napoleônica. . Gomes (2008, p.306) afirma que faltaram às Escolas centrais uma organização harmônica e uma concepção coerente das matérias que poderiam contribuir para a formação geral. Em 1802, dois novos tipos de estabelecimentos educacionais foram instituídos: os Liceus e os Colégios, com os quais se dá o retorno de uma organização escolar semelhante à dos colégios do Antigo Regime.

É provável que esse estado de coisas, em que impera a alteração frequente entre modelos educacionais, tenha motivado Lacroix a elaborar o Essais..., um libelo ao mesmo tempo memorialístico e em favor do modelo revolucionário das Escolas Centrais e da importância do ensino das Ciências e, em especial, da Matemática, num momento em que a tendência de retorno ao conservadorismo se insinua.

Particularmente na Introdução do Essais...é claro o ataque ao sistema educacional dos jesuítas16 16 A influência da educação jesuítica na formação dos que sustentariam filosoficamente a Revolução e defenderiam a nova ciência, servindo de modelo ao autor, é, para Lacroix, um detalhe de pouca importância. , sua formulação e sustentação: a negligência com as causas da Razão, o desconhecimento do ideário das Luzes, o apego ao dogmatismo, ao estudo das Humanidades apartado das demais formas de conhecimento do mundo, a um estado de coisas que, defendido por "homens ignorantes e supersticiosos" se prolongava desde a Idade Média - época "semibárbara" cujos sinais eram visíveis tanto na questionável cultura das Letras que promoviam quanto no "mau gosto" que ainda se podia perceber "nos monumentos que nos deixaram"17 17 Diga-se, em favor de Lacroix, que manifesta horror à arquitetura medieval, que as propostas relacionadas ao que hoje chamaríamos patrimônio cultural surgiram no século XIX. Até o século XVIII, projetos de restauração, por exemplo, tinham função essencialmente prática, de manutenção de edifícios. O afastamento dessa tendência pragmática, que assume aos poucos uma conotação cultural, só começa a ocorrer, ainda que timidamente, ao final do Setecentos (BOITO, 2008). . Descartes havia sido um dos primeiros a atacar, com seu Racionalismo, esse império que, segundo Lacroix, por tanto tempo sufocou a Razão "sob o peso dos preconceitos". Apoio às iniciativas cartesianas veio da Filosofia de Newton, que precisou ser reintroduzida na França por ter sido rechaçada - como ocorrera com a de Descartes - pelas velhas universidades.

Aos poucos, no discurso do autor, vão aparecendo as figuras da ciência que lhe servem de referência e às quais confere destaque em vários momentos de seu texto: D'Alembert, Clairaut, Euler, Lagrange, Legendre e Laplace; contudo, não entra em detalhes sobre as "ilustres descobertas" destes autores. Adianta, entretanto, que Maupertuis e D'Alembert "foram os primeiros geômetras em seu século a dar o exemplo da cultura das Letras e da Filosofia moral aliada à cultura das ciências exatas" (LACROIX, 1838, p.13-14) e, de modo apaixonado e de forma altamente elogiosa, menciona as contribuições de Voltaire às ciências e à divulgação científica. Tendo trazido à cena alguns dos mais influentes iluministas (e antepassados inspiradores das Luzes), Lacroix retoma as contribuições de D'Alembert ao saber científico e, incorporando Diderot ao seu panteon de influências, passa a referir-se ao projeto da Enciclopédia. A Metafísica, tornada acessível por meio da obra de Locke e depois cultivada por Condillac, é vista como uma das conquistas essenciais a permitirem o sucesso das ciências dos Setecentos - até mesmo os geômetras sentiam necessidade de "iluminar melhor a entrada do enorme edifício que acabavam de construir" (LACROIX, 1838, p.18), pois mesmo o Cálculo Algébrico, no início do século XVIII, parecia mais ofuscar a razão do que esclarecê-la. E Lacroix, não temendo o julgamento, hierarquiza: "Com ainda mais coragem para a defesa da filosofia e um cuidado vigoroso com relação à propagação das luzes, sobre a qual fundava a esperança de um aperfeiçoamento indefinido da espécie humana, Condorcet teve um estilo mais elevado, mais vivaz que o de D'Alembert" (LACROIX, 1838, p.19-20). Declara, desse modo, sua principal referência iluminista, a influência cabal que Condorcet exerceu em sua trajetória tanto pessoal quanto profissional.

É o esclarecimento dos novos tempos que permite a articulação entre as ciências, e, nessa articulação, a Matemática - cujas "exatidão e a impossibilidade de contentar-se com noções vagas, de ligar-se a hipóteses, por mais sedutoras que fossem, a necessidade de perceber claramente o vínculo entre as proposições e o objetivo para o qual elas tendem" (LACROIX, 1838, p.20-21) - desempenha papel especial. É da "contribuição mútua entre as ciências" que se formou, "inicialmente pelo impulso das ciências matemáticas, logo seguido pelo das ciências físicas, esse espírito de dúvida e verificação, de cálculo e observação que caracteriza o século XVIII" (LACROIX, 1838, p.24-25).

Discussões pautadas nessas ideias, garante Lacroix, ganharam espaço na Assembleia Constituinte, e o avanço dos debates foi tamanho que a Convenção Nacional pensou em reorganizar o ensino. Membros do Comitê de Salvação Pública propuseram a formação da Escola Central de Trabalhos Públicos que, fundada em 1794, e já em 1795 transformada na École Polytéchnique, deu grande impulso à cultura da Matemática. Tendo sucesso a Escola Central de Trabalhos Públicos, ela serviu de parâmetro para a criação de uma instituição com o objetivo precípuo de formar os professores que os novos tempos reclamavam, a Escola Normal.

O encadeamento do discurso de Lacroix se constrói, portanto, fundamentado no núcleo do pensamento iluminista - o enaltecimento dos progressos científicos, sua divulgação e a exaltação da razão - para perceber a cultura em geral, e particularmente a Educação francesa, como ecos das Luzes. Situa-se nessa esteira não apenas a importância dos iluministas, mas, também, a da Matemática, pois "é impossível não reconhecer a influência que a Matemática teve sobre a restauração das ciências e como, atraindo os olhares, ela se tornou objeto principal da primeira educação" (LACROIX, 1838, p.31).

Reavivando o ataque dos philosophes às instituições do Antigo Regime e à educação jesuítica, o autor vincula as Luzes, a Matemática e o diálogo entre as ciências ao projeto inovador das Escolas Centrais. O vetor inicial para a instrução das crianças deveria ser colocado sobre as Ciências, em detrimento das Letras, opção julgada nociva por alguns autores. Entretanto, segundo Lacroix - que aqui faz um exercício estratégico de imparcialidade, embora não tenha cessado de defender seu ponto de vista - essa era "ainda uma questão em aberto".

Nessa Introdução, que na edição de 1838 ocupa 34 páginas, Lacroix explicita sua determinação em defender os ideais das Luzes, tomando como suas referências os grandes nomes da Ciência de seu tempo. Seu discurso empolgado não só defende as Ciências como portadoras de uma verdade que a injustiça, a religião e o atraso - tomados como sinônimos - dos antigos sistemas que gerenciavam a educação do Antigo Regime impediam de vir à tona com a sua extraordinária força, como também estabelece, na sequência quase linear de seus argumentos, a influência das Luzes como parâmetro para a criação de instituições escolares que constituiriam um sistema nacional de educação diferenciado, adequado e justo. Ainda que pareça ceder espaço aos discursos contrários - quando se permite considerar a posição de alguns detratores - Lacroix é claro em sua posição: as novas concepções permitem vislumbrar um estado de coisas que deve ser arduamente defendido, e a Matemática, nesse sistema, deve ocupar um estágio diferenciado, superior, privilegiado. Essa Matemática - que no interior das instituições escolares pode promover a articulação entre as Ciências - é, por sua própria natureza, consistente com o que se deseja para a formação do cidadão.

A elaboração textual de Lacroix para a Primeira Parte do texto (cujo tema central é a instrução pública na França revolucionária) não difere da usada na Introdução: é sóbria, com longos parágrafos, de estilo elegante sem ser propriamente literária. Lacroix mantém-se professoral: não apenas descreve - segundo sua experiência - o contexto educacional francês, mas ensina, dá indicativos de como determinadas ações deveriam ser implementadas ou abandonadas. Os iluministas continuam presentes, de forma muito nítida, como fundamentação principal para os comentários do autor.

Entretanto, o que Lacroix afirma ser um ensaio sobre o ensino, em geral, durante o século XVIII na França é, mais propriamente - ainda que ele nos dê sinais de um cenário mais amplo quanto às instituições e legislações - , um detalhamento das práticas de ensino das Escolas Centrais e dos fundamentos dessas práticas. Percebe-se uma defesa apaixonada de Lacroix em relação a esse grau da instrução pública, implantado pela Lei do 3 Brumário ano IV, ainda que, em alguns momentos, se possa compreender que a inovação extrema proposta com a criação dessas Escolas - que causou resistências, como parece ser usual face tanto à liberdade dada aos professores e mesmo aos alunos, que escolhiam a sequenciação e os conteúdos a serem cursados quanto à presença de temas e abordagens muito distintas das que eram ensinadas nos antigos Colégios - apresentasse pontos a ser refinados para que o desenvolvimento da instrução fosse plenamente adequado. As instabilidades políticas do período revolucionário, a manutenção de práticas antigas - como as de favorecimento, exemplificadas por Lacroix quando cita a usual substituição de professores a cada alteração no núcleo de autoridades locais - , a falta de agilidade dos órgãos públicos - por exemplo, em atender as necessidades de contratação ou material para o bom funcionamento da instituição - as críticas dos que, habituados aos Colégios do Antigo Regime, prezavam mais pelas formas consagradas de instrução, desconfiando das alterações propostas, fizeram com que esse sistema educacional tivesse existência curta, a ponto de não ser possível uma avaliação mais aprofundada dos resultados que obteve, ou obteria, caso tivesse sido mantido.

Além da recorrência ao ideário iluminista e, explicitamente, aos philosophes, prossegue sem alteração, também nessa parte primeira, a crítica às antigas instituições. Simultaneamente, Lacroix contrapõe a elas as vantagens do modelo educacional da Revolução Francesa para o ensino secundário, referindo-se à intenção das instituições revolucionárias destinadas a esse nível de instrução, em seus três graus: privilegiar o debate científico e a vinculação entre os campos do conhecimento humano.

Na Primeira Parte, Lacroix detalha o conteúdo dos cursos e os termos da legislação, oferecendo chaves significativas para percebermos a estrutura das Escolas Centrais. Mas, mesmo que referências à Matemática ocorram, nenhuma especificidade é realçada com muita ênfase: trata-se mais de defender, nesse momento, a interconexão entre campos do conhecimento do que, propriamente, de iniciar a abordagem que o autor promete desenvolver posteriormente, na Segunda Parte.

Tendo em vista que, nessa última parte do Essais, o autor discorre sobre os livros que escreveu visando as Escolas Centrais, para focalizar mais diretamente a parte da obra dedicada especialmente à Matemática e a seu ensino, é relevante que nos aproximemos, primeiramente, da produção e disseminação da obra didática de Lacroix.

5 Escrita e difusão dos livros didáticos de Lacroix

Os livros didáticos de Lacroix foram elaborados para uso nas Escolas Centrais, no período em que a proeminência das ciências esteve na ordem do dia da instrução pública. A produção desses manuais é tema central de alguns trabalhos de Gert Schubring. Segundo ele, após o Terror, os ideólogos18 18 Os ideólogos eram um grupo de filósofos, cientistas, literatos e reformadores políticos liderados por Destutt de Tracy e Cabanis. Defensores da epistemologia de Condillac, que localizava nas sensações a origem dos conhecimentos humanos, esses intelectuais desenvolveram, no início do século XIX, o sensacionismo. A Ideologia se tornou, após a queda de Robespierre, em 1794, quase que uma filosofia oficial da República francesa, divulgada nas páginas de La Décade philosophique. Na educação, os ideólogos foram muito influentes, especialmente no período das Escolas Centrais. A Ideologia propunha uma metodologia para o estudo de todas as operações mentais, classificadas por Destutt de Tracy em sensação, memória, juízo e vontade. Para os adeptos desse movimento, a análise das ideias era a disciplina filosófica básica. assumiram a liderança nas questões relativas à instrução na França no final do século XVIII. Intelectuais dos mais ilustres foram contratados pela República para elaborar métodos de ensino e materiais didáticos. Os savantspartiram da filosofia de Condillac e cuidaram de divulgar o método analítico, que se difundiu rapidamente, provocando grande entusiasmo e criando um clima favorável à elaboração de livros elementares, uma das pedras de toque, à época, da política educacional francesa. Diante dos fracassos de alguns planos de instrução e do colapso do sistema educacional francês, o concurso de livros elementares foi uma dentre as estratégias criadas para vencer tal situação de descompasso, que não permitia a formação do homem livre como propunha a Revolução.

Na época de Napoleão, a concepção de livros elementares para a instrução pública foi abandonada. Nesse período, a França viveu suas mais severas leis em todos os domínios, incluindo a educação. Em relação aos livros didáticos, foi instituído, em 1803, um decreto que obrigava as escolas a usarem apenas livros-texto aprovados pelos comitês estabelecidos para examinar e adaptar livros didáticos. Lagrange era o único matemático que compunha o Conselho de Instrução Pública. Segundo Schubring (2003), o decreto afirmava que o professor não poderia, sob nenhum pretexto, ensinar outras obras. Os melhores livros escolhidos passaram a ser denominados obras clássicas. Na lista de indicações de livros-texto de Matemática, liderava a obra de Bézout, com os livros de Lacroix vindo logo em seguida. Étiènne Bézout falecera em 1783, e seu Cours... fora produzido na década de 1760. Segundo Schubring (2003, p.108), "Lacroix pode ser visto como um protótipo e um primeiro realizador do programa de livres élémentaires destinado a reestruturar o conhecimento matemático ensinado de acordo com as invenções científicas mais avançadas".

Ainda, de acordo com Schubring (2003), a carreira de Lacroix parece ter começado depois do Termidor e da queda de Robespierre. Em 1794, Lacroix compunha o júri estabelecido para os Concours de livres élémentaires e fazia parte da facção dos idéologues.Dos livros didáticos aprovados pelo Conselho de Instrução Pública em 1799, e indicados para as Escolas Centrais, estão três Cours de Mathématiques (o de Bézout, o de Lacaille - que havia sido revisado por Marie, antigo professor de Lacroix - e o de Lacroix), duas Geometrias (a de Clairaut e a de Legendre), uma Geometria Descritiva (de Mauduit - também próximo a Lacroix) e a Arithmétique Universalle, de Newton. Contudo, a partir de 1803, decidiu-se autorizar, para cada nível, apenas um livro didático de matemática para ser usado pelos professores e alunos dos liceus. Dessa nova listagem, participavam quatro obras de Lacroix (o Traité élémentaire d'arithmétique, oÉléments de Géométrie, o Traité élémentaire de trigonométrie et de l'application de l'Algèbre à la Géométrie e o Compléments des éléments d'Algèbre)19 19 A influência do modelo francês no sistema educacional brasileiro é determinante. Segundo Silva (2011, p. 234), "Os docentes de matemática da Academia Real Militar [do Rio de Janeiro] realizaram vários embates por causa dos 'compêndios' a serem recomendados na instituição. Eles desejavam um 'sistema' único de orientação e isso, na prática, significava guiar o ensino das disciplinas básicas, como aritmética, álgebra, geometria (incluindo a geometria analítica) e o cálculo diferencial por um único autor. A partir de 1834, os livros adotados eram: a Trigonometria (plana) de Legendre; a Geometria; os Complementos de Geometria e Geometria Descritiva; a Trigonometria esférica; o Cálculo Diferencial e Integral; a Aritmética e a Álgebra, todos de Lacroix. Isso demonstra um longo reinado e soberania dos livros do autor na academia". . O único texto de outro autor era o de Mecânica, área da qual Lacroix nunca tratou. (SCHUBRING, 2003, p.104).

Um vestígio do alcance das obras de Lacroix no ensino de Matemática é o grande número de reedições de seus textos voltados à instrução secundária. Para Schubring (2003, p.42), "pode-se olhar para Lacroix como um autor cuja obra contribui de forma decisiva para a constituição da matemática escolar em França". Dezessete edições da Álgebra de Lacroix foram publicadas na França enquanto o autor ainda estava vivo. As quatro primeiras edições foram publicadas no período de 1797 a 1803, e foram as que sofreram mudanças mais representativas no que se refere à estrutura da obra.

A notável influência dos livros-texto que Lacroix publicou não se limitou ao território francês. O enorme sucesso de sua obra estendeu-se por muitos outros países, tanto da Europa quanto das Américas do Norte e do Sul. Muitas dessas obras tiveram mais de uma tradução num mesmo idioma. Também no Brasil a influência de Lacroix pode ser sentida. Logo quando da permissão de impressão de livros no país, cinco obras de Lacroix foram traduzidas para a língua portuguesa: o Tratado Elementar d'Arithmetica para uso da Real Academia Militar, em 1810; os Elementos d'Álgebra, em 1811; o Tratado Elementar de Aplicação de Álgebra à Geometria; os Elementos de Geometria e o Tratado Elementar de Cálculo Diferencial e Cálculo Integral, estes publicados em 1812. Schubring (2003) afirma que essas traduções tiveram outras versões, além de muitas reedições, durante todo o século XIX. Fatores como esses indicam a grande circulação e repercussão das obras de Lacroix para o ensino de Matemática no Brasil. Corrobora essa afirmação de Schubring o texto de Silva (2011), que traz a listagem de oito títulos publicados em português, de 1810 a 1814. Todavia, chama a atenção o fato de que não tenham sido localizados por nós indícios tanto da circulação do Essais... no Brasil quanto de estudos sobre ele.

Da produção relativa à Matemática escolar, há, ainda, um detalhe a ser considerado: os livros de Lacroix não eram, em grande parte, de autoria20 20 Não são poucos os autores que, no panorama contemporâneo, se dedicaram a compreender a questão da autoria, e todos ressaltam de forma veemente o cuidado necessário para não se negligenciar a historicidade dessa categoria. Deles são exemplos Foucault (2002), Grammont (2008) e Genette (2009). exclusiva, mas o autor reconhecia explicitamente os empréstimos que fazia. Segundo Schubring (2003), à exceção do texto sobre Cálculo Diferencial e Integral, a análise dos outros títulos da obra de Lacroix faz surgir claramente questões relativas à autoria.

O Traité du Calcul Differentiel et du Calcul Intégral de Lacroix não é uma exceção apenas no que se refere às questões sobre autoria. Esse livro - cuja primeira edição, em três volumes, surge no período de 1797 a 1800, com uma única reedição publicada, também em três volumes, entre 1810 e 1819 - diferencia-se do corpo dos demais itens da produção do autor principalmente por ser considerado como uma obra madura, na qual fica evidenciada uma contribuição mais efetiva e inédita não só pela compilação detalhada dos tópicos até então desenvolvidos sobre o Cálculo, mas também pelas inovações dela resultantes. Segundo Dhombres (1985), também citado por Moreira (2004, p.105), o Traité é "um sumário de todos os resultados no cálculo integral e diferencial do século XVIII, com citações precisas de autores originais".

A diferença fulcral entre este Traité... e o Traité Élémentaire... (de 1802), ambos relativos ao Cálculo Diferencial e Integral, explicita-se já no título. O substantivo elementos - na expressão Elementos de... compunha o título de vários livros anteriores às reformas da instrução pública francesa, indicando uma abordagem que remontava aosElementos de Euclides: eram obras desenvolvidas a partir de pressupostos básicos, noções fundamentais ou primitivas que sustentavam a cadeia de argumentos a partir delas construída. Após as reformas dos anos 1790-1800, a presença do adjetivo elementar, como no livro de Lacroix que acabamos de mencionar, passou a indicar um enfoque introdutório, simples, e a caracterizar essencialmente as obras voltadas para o ensino. É precisamente nesse sentido que se pode falar numa diferenciação entre as obras produzidas por Lacroix: de um lado, o Traité; de outro, os livros elementares, incluindo o Traité Élémentaire du Calcul Differentiel et du Calcul Intégral (DOMINGUES, 2007, p.18).

Entretanto, Darlinda Moreira (2004) estuda o prefácio do Traité... e defende a intenção de Lacroix em apostar, com sua obra, no que a autora chama de continuidade geracional: mesmo em seu tratado mais enfaticamente matemático - e não explicitamente voltado à Matemática escolar - Lacroix não apenas desenvolvia conteúdos e abordagens especificamente matemáticas, mas, também preocupava-se em formar aqueles que o tempo encarregaria de continuar essa produção. Segundo Moreira (2004, p.175), Lacroix dirige-se a uma nova geração de matemáticos, e, quanto ao objeto matemático, mais propriamente, procura por "uma nova organização, formatização e uniformidade de conteúdos que, ao apagar as diferenças, reduz e unifica os 'métodos', e portanto maximiza o ensino, no sentido que encaminha os estudantes para os resultados verdadeiramente significativos e importantes [...]". O Traité..., portanto, "ilustra, por um lado a preocupação colocada na continuidade geracional da jovem comunidade matemática e, por outro, as mudanças na reorganização do corpus matemático exigidas pela nova conjuntura educativa e profissional que se observava no âmbito da matemática da época" (MOREIRA, 2004, p.169).

Tanto no Traité...como nas demais obras de Lacroix - e isso é reforçado definitivamente a partir da leitura do Essais... - ressalta-se o espírito enciclopedista em uma de suas mais claras características: a busca por uma abordagem global e total do saber. Se no Essais... essa influência é declarada a todo momento, no Traité... há dela indícios no prefácio e, talvez, de um modo menos óbvio, na frase que Lacroix escolhe como epígrafe dos três volumes: uma citação de Horácio (Tantùm series juncturaque pollet)21 21 " Quão poderosas são a ordem e a conexão" (Horácio, Ars Poetica). que, numa forma mais completa (Tantum series juncturaque pollet / Tantum de medio sumptis accedit honoris!),22 22 " Quanta graça o poder da ordem e da conexão acrescenta às questões comuns" (Tradução livre nossa). vem registrada na página de título da primeira edição da Enciclopédia, de 1751. Ordem e conexão sintetizam, certamente, a intenção de Lacroix com o Traité...: não uma mera compilação do que já se produzira sobre o Cálculo Diferencial e Integral, mas uma compilação criativa, historicamente situada, fortemente voltada a um diálogo com a produção matemática da época e preocupada com o devir dessa produção.

6 O ensino da Matemática: a Segunda Parte do Essais

Ainda que para compor o Essais... Lacroix mobilize sua experiência relativa à produção de conhecimento matemático avançado - que, em sua obra, está mais bem representada pelo Traité... e menos pelos livros voltados para o ensino nas Escolas Centrais e, portanto, vinculados a uma cultura escolar básica e introdutória - é à matemática para os estudos secundários, às abordagens que o autor julga adequadas para o ensino, e às reflexões sobre o processo educativo próprio às salas de aula de matemática que servem de tema à reflexão do autor na segunda parte dessas suas memórias. Como já foi dito, nela são três os tópicos abordados. O primeiro trata dos modos de ensinar Matemática e de avaliar, nas provas, o conhecimento dos alunos; o método em Matemática vem em seguida e, por fim, no terceiro tópico, Lacroix dedica-se à análise mais ou menos pormenorizada do que chama de Curso Elementar de Matemática Pura, elaborado para a Escola Central das Quatro Nações. Nessa análise, Lacroix inclui o livro relativo à aritmética, os Elementos de Álgebra e de Geometria, o Tratado de Trigonometria e de Aplicação da Álgebra à Geometria. O Tratado Elementar de Cálculo Diferencial e de Cálculo Integral e os Complementos de Álgebra, embora indicados no sumário do Essais..., são muito brevemente abordados. Segundo Lacroix, ambos não fazem propriamente parte do Curso Elementar:

O Complemento dos Elementos de Álgebra ainda é, na minha opinião, mais distante do curso elementar do que o Tratado elementar de cálculo diferencial e de cálculo integral, cuja leitura, no entanto, facilitaria o seu estudo. Mas, como já disse várias vezes, o número das matérias que devem entrar na instrução da juventude é tão grande que é preciso descartar, por mais interessante que seja, todo assunto que não apresente uma aplicação frequente (LACROIX, 1838, p.345-346).

As disposições do autor, que regem a arquitetura do texto nessa última parte, vêm explicitadas de modo claro já de início, no mesmo tom memorialista, subjetivo, fundado da experiência que caracteriza todo o Essais.... Lacroix afirma seu envolvimento precoce com o ensino - ainda que atuando como professor em escolas conservadoras à luz do modelo das Escolas Centrais - distanciando suas práticas - como autor e professor - de uma postura espontaneísta, já que seu modo de fazer forjou-se, segundo ele próprio, em experimentos de ensino consciente e objetivamente executados ao longo de sua carreira.

Dentre os princípios assumidos por Lacroix, estão a aproximação do ensino de Matemática ao ensino das artes - em ambos, a escolha cuidadosa dos exemplos motivadores, sua qualidade, é mais recomendável que a aposta na quantidade deles - ; sua crença sobre ser a instrução um interesse da sociedade, não dos indivíduos; e sua disposição de não tratar do ensino inicial, aquele próprio às Escolas Primárias, que exigiria ter como tema ideias centrais, como as de número e grandeza, sobre o ensino das quais se confessa ignorante. É levando em conta essa falta de conhecimento que ele próprio se atribui sobre a aprendizagem das primeiras noções matemáticas que o autor se limita, então, "a examinar como podemos, com os materiais já elaborados por uma primeira instrução empírica, por assim dizer, fazer entrar a teoria elementar das ciências matemáticas e as formas dos métodos que lhes são próprios na cabeça de jovens de quinze a dezesseis anos" (LACROIX, 1838, p.171).

Seguindo disposições que afirma serem as mesmas de Laplace, Lacroix aposta nos métodos mais gerais para chegar à "verdadeira metafísica" da ciência, conquanto não caiba propriamente ao professor cuidar da escolha e da ordenação dos tópicos para um determinado curso: essa missão deve ser deixada ao escritor. É própria ao professor a aplicação do que os autores previamente dispõem em seus tratados, e "enquanto o livro fixa as diferentes partes das proposições aos olhos do leitor, a palavra fugidia obriga o professor a repetições que seriam imperdoáveis ao autor" (LACROIX, 1838, p.179-180). São, pois, funções distintas aquelas das quais Lacroix - professor e escritor - , por sua experiência, pode tratar.

A ideia do professor como mobilizador, coordenador e motivador vincula-se à do estudante como participante ativo, já que os cálculos algébricos e aritméticos, bem como as construções em geometria não podem ser propriamente ensinados, mas devem ser aprendidos.

A memória, tão frequentemente mobilizada nas instâncias de instrução, só deve servir para lembrar, nunca para atender à disposição de reproduzir o lembrado em seus detalhes, e não deve o professor pautar-se nas repetições contínuas, no uso excessivo de exercícios que visam à retenção de demonstrações previamente lidas ou fórmulas facilitadoras: para minimizar essa recorrência equivocada à memória, há os livros, que devem ser disponibilizados para que a eles os estudantes possam recorrer se e quando necessário. Por isso, o exame oral em Matemática, aquele em que se exige a repetição de cor de conceitos, cálculos e demonstrações formais, deve ser evitado, já que ele não assegura que os jovens aprenderam efetivamente os ofícios dessa ciência. Tais práticas anacrônicas induzem à criação de estratégias contrárias àquelas nas quais a escola deveria pautar-se. Exames escritos - e ainda assim nunca um único exame - seriam mais precisos e mais vantajosos para estudantes e professores, segundo o autor.

Em todo caso, é conveniente diminuir a extensão dos exames, tanto orais quando escritos, e diminuir também o intervalo entre os períodos de aplicação deles, a fim de que os alunos não adiem para um tempo mais distante, no qual terão perdido de vista o desenvolvimento das lições, o estudo que devem fazer das matérias que lhes foram ensinadas. (LACROIX, 1838, p.200)

Quanto aos métodos para desenvolver-se em Matemática, Lacroix considera dois, cujas descrições faz ancorado nos autores antigos, como Euclides e Platão: a síntese, cujo significado vincula-se à composição, e a análise23 23 "A análise é, em geral, o método da invenção [...] [e] foi por esse meio que os geômetras do século XVII fizeram as numerosas descobertas que os tornaram ilustres e que serviram de base para os trabalhos de seus sucessores" (LACROIX, 1838, p.209). , cujo significado é similar, ao mesmo tempo, à resolução e à composição. Utilizados com maior êxito na Química24 24 Na Matemática, é a ordem de encadeamento das proposições que, em síntese, constitui o método. - área na qual fica mais evidente a vinculação entre a prática e a etimologia - ambos os métodos são complementares, e apenas do encontro entre eles pode resultar o conhecimento.

A abordagem das várias disciplinas matemáticas, vinculada à análise dos livros compostos para a Escola Central das Quatro Nações, cuja presença marcante no sistema de instrução francês, e até mesmo no Brasil, já pensamos ter deixado clara, é tema do final dessa segunda parte e encerra o Essais... . Esse movimento de (auto) análise - dado que o autor, ao mesmo tempo que apresenta seus princípios para o ensino dos vários temas, justifica sua obra e a si próprio, como autor - inicia-se pelas considerações sobre a Aritmética, tida como a ciência dos números, e ainda que Lacroix tenha, anteriormente, estabelecido sua decisão de não tematizar o ensino para os primeiros anos escolares, dada a ignorância que declara quanto a essas questões, algumas considerações - talvez por serem julgadas mais óbvias - são tecidas: deve-se iniciar as crianças na contagem e nas operações usando elementos concretos, como os dedos ou pequenos objetos.

Se não é isso o que ocorre nas escolas, é porque sempre procurou-se mais a comodidade daquele que mostra do que daqueles a quem ele ensina; e porque, com punições severas, consegue-se fazer uma criança aprender de cor o que outras já aprenderam antes da mesma maneira. Associar bem cedo o raciocínio à memória seria a obra prima da primeira educação, se pudéssemos, para isso, agir como a natureza (LACROIX, 1838, p.231).

Os exemplos devem ser sempre mobilizados para a familiarização das crianças com os procedimentos da Aritmética que, na instrução elementar, ficam reduzidos às operações básicas com números inteiros. Tratar dos decimais, nesse início, seria complicar antes do necessário as primeiras ideias sobre Aritmética. Pode-se, entretanto, com cautela, tratar das frações. Um enunciado que envolva a busca de um número desconhecido induz a uma pesquisa que constitui "o verdadeiro saber em Aritmética, libera a memória de uma enormidade de regras das quais estão repletos os tratados comuns dessa ciência, e apresenta recursos para os casos imprevistos, nos quais o 'calculador', que sabe apenas as fórmulas das operações, fracassa" (LACROIX, 1838, p.240-241). Exercícios elementares, como registrar em linguagem matemática números ditados em linguagem comum, ou ler números compostos por vários algarismos, são convenientes, por mais simples que pareçam. Um tópico sobre o estabelecimento do sistema métrico e as implicações dessa alteração do período revolucionário para a instrução pública encerra a parte relativa à Aritmética.

Na Álgebra, "os resultados não são mais números determináveis, como na Aritmética, mas conjuntos de operações parciais que só serão efetuadas quando se quiser chegar a uma aplicação especial para os números dados" (LACROIX, 1838, p.249). Ser um ramo facilmente definível, entretanto, não implica serem os estudantes imunes às dificuldades que a Álgebra pode apresentar.

Lacroix faz breves comentários acerca de livros e autores que trataram do conhecimento algébrico, da antiguidade até o século XVIII. Assim, menciona sucessivamente Diofanto, Leonardo de Pisa, Viète, Clairaut, Euler e seus trabalhos. A Aritméticade Diofanto ("o mais antigo tratado de Álgebra que chegou até nossos dias") é uma das referências centrais de Lacroix. Nela são tratadas equações de, no máximo, segundo grau, e empregados apenas alguns signos (seja para designar números, seja para indicar as operações de adição e subtração entre eles). Dentre os algebristas que sucederam Diofanto, Lacroix considera Leonardo de Pisa (apresentado como o "autor que ensinou a Álgebra à Europa do século XIII"), Viète ("que estendeu o uso das letras para que designassem quantidades conhecidas"), e Descartes ("que criou a notação dos expoentes"). Foi Clairaut, porém, o primeiro a espalhar luz viva sobre os princípios da Álgebra: depois de suas produções pouco ou quase nada surgiu de novo, mesmo sendo posteriores a ele os trabalhos de Euler, Waring e Lagrange sobre a teoria das equações. Seguir o "caminho dos inventores"25 25 De acordo com Schubring (2003), a abordagem adotada por Clairaut em seus Elementos de Geometria e nos Elementos de Álgebra - livros publicados pela primeira vez na década de 40 do século XVIII - moldou o discurso dos livros-texto na França por pelo menos 60 anos, por ter lançado a palavra-chave para a metodologia desses livros. Trata-se do "caminho dos inventores", que seria aquele tomado pelos inventores para fazer suas descobertas matemáticas. Embora tal conceito não fosse operacional e bem-sucedido, a criação da palavra-chave "caminho dos inventores" (também referida como "ordem dos inventores", "marcha dos inventores" ou "método dos inventores") passou a figurar, na França, como um método natural para apresentação do conhecimento de um modo evolutivo. D'Alembert divulgou o "caminho dos inventores" como instrumento metodológico geral em seu extenso verbete Elementos de Ciências na Encyclopédie. e multiplicar "resumos e enunciados na forma dogmática" são estratégias indicadas aos professores e mobilizadas por Lacroix em seu manual de Álgebra26 26 Silva (2011, p.219) trata especificamente de alguns temas tidos como espinhosos por Lacroix, dentre os quais os "conceitos polêmicos envolvendo o zero, infinito, números negativos e números imaginários". Baseada nas edições da Álgebra de Lacroix em francês e em português, a autora apresenta um exemplo do que talvez sejam, para Lacroix, "resumos e enunciados na forma dogmática": " Concluir-se-há daqui esta regra geral: para fazer passar hum termo qualquer de huma equação, de hum membro para outro membro, He preciso apagal-o no membro em que se acha, e escrevel-o no outro com hum signal contrario ao de que estava affecto" (p.15 da edição de 1830 da Álgebra, em português; apud SILVA, 2011, p.227). . A conexão entre Álgebra e Geometria insinua-se, já inicialmente, quando o autor afirma situarem-se, exatamente nessa conexão, os fundamentos para "a teoria das quantidades negativas" posto que a Geometria permitiria mais facilmente a constatação e a ordenação dos "fatos algébricos" próprios a essa "teoria" dos negativos27 27 Silva (2011, p.233) suspeita que "Lacroix só atribuía legitimidade aos números positivos que, como objetos oriundos da quantidade, poderiam ser considerados como objetos matemáticos, enquanto os números negativos e imaginários existiriam apenas porque, inegavelmente, surgem de manipulações algébricas, não podendo ser totalmente desprezados, mas com status ontológico diferente [do] dos positivos". Para Silva (2011, p.235), "Lacroix não ficou imune a alguns fantasmas da matemática - números negativos, números imaginários e infinito - que ainda não estavam totalmente legitimados no início do século XIX". A posição do próprio Lacroix sobre algumas das questões levantadas por Silva está claramente exposta no Essais...: "Fui contrário a falar de quantidades negativas até que elas surgissem como necessárias para a resolução das questões. Mostrei como, segundo as regras estabelecidas sobre os signos, elas modificavam os enunciados dos problemas resolvendo-os de uma maneira totalmente conforme ao que prescreviam as regras do raciocínio, para levantar a contradição manifesta contida nos enunciados originais. Essa consideração me conferiu a oportunidade de verificar as regras dos signos que frequentemente atrapalham os estudiosos com mais dificuldades, e que demonstrei, a priori, para as quantidades negativas isoladas. [...] Considerei, em seguida, as expressões singulares, como m/0, 0/0, que a Álgebra dá como resposta às questões impossíveis ou indeterminadas, e na classe das quais entram, ao menos na opinião de alguns teóricos, as quantidades negativas, já que elas são, na verdade, apenas um modo do qual a Álgebra se serve para evitar uma contradição. [...] A doutrina das quantidades negativas não era a única dos elementos de Álgebra que precisou de esclarecimentos e até mesmo de retificações. A busca do máximo divisor comum, ainda mais elementar em certas opiniões, era incompleta, como se pode observar comparando o que eu digo com o que se encontra em outros tratados. Essa operação não tem em Álgebra o mesmo objetivo que em Aritmética. [...] Podemos incluir no conjunto de verdades das quais falo a multiplicidade das soluções de equações além do primeiro grau, e a significação dos símbolos imaginários. Também não me dei por satisfeito, observando essa multiplicidade em equações de segundo grau, de concluir que ela provinha do duplo sinal que podemos atribuir à raiz quadrada de um número. Mostrei que essas equações só se verificam se decompostas em dois fatores, que desaparecem pela substituição dos valores da incógnita: esse desenvolvimento me pareceu mais conveniente à medida que coloca em evidência o primeiro caso da teoria geral das equações. Pareceu-me também necessário mostrar, a posteriori, em seu enunciado geral, o absurdo das questões que levam a equações de segundo grau cujas raízes se apresentam sob uma forma imaginária [...]" (LACROIX, 1838, p.256-260). .

As discussões de Lacroix sobre a composição dos Elementos de Álgebra seguem tratando da demonstração da fórmula do binômio de Newton; da fatoração de expressões a partir do cálculo das raízes e da resolução de equações numéricas por aproximação28 28 A afirmação de Lacroix "Eu fiz a teoria algébrica das proporções, que serve de introdução à das progressões, suceder às equações. E em função da teoria algébrica das proporções, penso eu, é preciso indicar o segundo ramo da análise algébrica, ou seja, a teoria das sequências" (LACROIX, 1838, p.268) é um dos vários exemplos da potencialidade do Essais... para compreender o desenvolvimento da matemática escolar, já que a opção por uma determinada sequenciação de conteúdos implica uma concepção específica sobre os conceitos e procedimentos envolvidos nessa sequenciação. Um excelente estudo sobre esse tema, considerando os logaritmos, é o de Miorim e Miguel (2002). . Sua "teoria analítica dos logaritmos", afirma ele, é similar à publicada por Euler na Introdução à Análise do Infinito. Abordando o cálculo de juros financeiros - tema "naturalmente" vinculado às progressões e logaritmos e "uma das aplicações mais usuais da Álgebra" - e inscrevendo seu trabalho no panorama das produções europeias sobre o mesmo assunto, Lacroix termina essa sua análise:

[...] ouvi estrangeiros, sobretudo ingleses, censurarem tratados franceses por oferecerem poucos exemplos e muitas teorias, enquanto que os deles oferecem apenas exemplos e nada ou quase nada sobre a teoria, o que me parece, ouso dizer, um grande erro. Nesses livros, como em muitos outros nos quais se deixa de ressaltar a essência e o objetivo dos métodos, pode-se aprender o mecanismo do Cálculo Algébrico, mas não será possível compreender a sua metafísica, sem a qual, entretanto, essa ciência parece apenas uma ocupação verdadeira, desprovida de qualquer interesse para os seres pensantes (LACROIX, 1838, p.273).

Sobre os Elementos de Geometria, a exposição inicia-se com considerações sobre as dificuldades que se impõem para a elaboração de um bom tratado nesse campo:

[...] primeiro, a concorrência com um autor consagrado pelas marcas da antiguidade29 29 Ainda no século XIX - e talvez mais enfaticamente no século XIX, quando começavam a se delinear com mais clareza os campos do saber científico e o status profissional dos que deles cuidariam - os Elementos de Euclides eram a grande referência para os estudos e para o ensino de Matemática (não só propriamente os estudos em Geometria, posto que o tratado de Euclides tem uma amplitude maior) e não apenas para aqueles que começavam a ser reconhecidos por matemáticos, mas por toda uma diversidade de acadêmicos, dentre os quais se destacam aqueles da Filosofia. Na Inglaterra, por exemplo, quando começavam, ao mesmo tempo, a surgir textos alternativos aos Elementos e novas determinações para o ensino de Geometria nas escolas, Lewis Carroll publica Euclid and His Modern Rivals (CARROLL, 2004), defendendo a permanência do livro de Euclides como suporte central ao estudo de Matemática nas escolas. Em meio às argumentações de um Euclides que, retornado dos mortos, defende sua própria obra, comparando-a com vários textos ingleses compostos para o novo ensino de Geometria, Carroll deixa registrada, de modo geral, sua admiração pelos tratados escolares franceses. Aparentemente, a versão inglesa dos Elementos de Euclides que Carroll tinha à mão para compor seu livro era aquela traduzida e revisada por Simson (EUCLIDES, 1855) a partir da edição latina de Comandino (esta, por sua vez, baseada na versão alterada de Théon). Essa versão - que inclusive contou com várias edições em língua portuguesa e, por isso mesmo, serviu de suporte a muitos estudos sobre a matemática da antiguidade, já que a única tradução direta do grego para o português, elaborada por Bicudo (EUCLIDES, 2010) só surgiria recentemente - é referenciada também por Lacroix: "Devemos ainda a Robert Simson outras observações sobre as condições que garantem a igualdade e a semelhança dos corpos, e devemos considerar a edição dos principais livros dos Elementos de Euclides que ele publicou como muito importante para a história da Geometria" (LACROIX, 1838, p.294-295). (Euclides), sempre perigosa para um autor moderno /./img/revistas/bolema/v26n44/; em seguida, a obrigação que nos impomos, para seguir o exemplo dos antigos, de empregar somente o método sintético, num tratado que deve fazer parte de um curso composto quase inteiramente de acordo com o método analítico e destinado a leitores que quase não farão uso desse último" (LACROIX, 1838, p. 273-274).

A sugestão para os que se lançam à elaboração de um tratado de geometria vem num conjunto de oito regras, cujo objetivo é minimizar as críticas possíveis à obra. A sugestão, indicada por D'Alembert anteriormente em suas Mélanges de Littérature, parece, segundo Lacroix, fundamentar-se em Pascal:

1° Não tentar definir coisas tão conhecidas por si sós, que não há termos mais claros para explicá-las;

2° Não deixar sem definição nenhum dos termos um pouco obscuros ou duvidosos;

3° Não empregar nas definições senão termos perfeitamente conhecidos ou já explicados;

4° Não omitir nenhum dos princípios necessários, por mais claros e evidentes que possam ser, sem antes se assegurar de que sua ausência não afetará a compreensão do todo;

5° Requerer, em axiomas, somente coisas perfeitamente evidentes por elas mesmas;

6° Não tentar demonstrar coisas que são tão evidentes por si sós, que não se tenha nada de mais claro para prová-las;

7° Provar todas as proposições ainda obscuras, empregando somente axiomas evidentes por si sós, ou proposições já demonstradas ou aceitas;

8° Jamais cair no equívoco dos termos, deixando de substituir mentalmente as definições que os restringem e explicam (LACROIX, 1838, p.274-275).

A extensão é, segundo o autor, o objeto central da Geometria, e a definição de ângulo a mais adequada para iniciar a apresentação da série de exposições e argumentações que seguirá. Da discussão sobre as relações incomensuráveis nas linhas proporcionais (que Lacroix faz a partir das observações de Arnauld, de Port-Royal, que a ele pareciam estar esquecidas) e sobre o infinito (essas sempre conduzidas à luz do problema da extensão de corpos) seguem considerações sobre a arquitetura dos Elementos de Geometria, das quais decorrem indicações sobre o modo de tratamento dessa obra em salas de aula, dentre as quais estão as disposições sobre a necessidade de entremear a sequência dos teoremas com problemas que lhes dariam sentido; do exercício do traçado - que, na geometria, é similar ao do cálculo na aritmética - e da exemplificação, paralela à efetivação, dos diferentes modos de raciocinar - o que tornaria os Elementos de Geometria, "excelentes elementos de Lógica e seriam, talvez, os únicos que seria necessário estudar". Lacroix, entretanto, considera-se incapaz de apresentar uma resposta absoluta à questão sobre a precedência da Álgebra ou da Geometria na sequenciação dos programas escolares, ainda que sua tendência seja por iniciar pela Geometria:

A Geometria é, talvez, de todas as partes da Matemática, aquela que se deve aprender primeiro. Ela me parece muito adequada para atrair as crianças, desde que seja apresentada principalmente com relação às suas aplicações, tanto teóricas quanto práticas. [...] Penso que, em todos os casos, não há nenhuma razão para colocar a Geometria entre a Aritmética e a Álgebra, porque é desnecessário separar essas duas partes que, na verdade, formam uma única, a saber: a ciência do cálculo das grandezas ou a Aritmética universal (LACROIX, 1838, p.306-308).

O Complemento dos Elementos de Geometria, embora não seja propriamente, segundo o autor, uma obra do Curso Elementar, é abordado em seguida, posto que, nesse livro, foram desenvolvidas as noções básicas sobre a seção dos planos e que os Elementos de Geometria não tratam adequadamente dos planos, das esferas, das linhas retas e do círculo. Os Complementos dos Elementos de Geometria, que o autor afirma serem muito próximos ao conjunto das lições ministradas por Monge na Escola Normal - ainda que essa proximidade não signifique ter sido opção dele, a priori, pautar-se em seu professor para elaborar essa sua obra que, bem antes da publicação de Monge, já havia sido disponibilizada a muitas pessoas30 30 "Pensava em colocá-los em ordem quando fui designado para o ensino de Geometria descritiva na Escola Normal (ano III, 1794)". - termina com o tratamento de alguns tópicos gerais sobre a perspectiva que, segundo Lacroix, são apresentados de maneira sucinta, já que suas ideias quanto ao método do desenho não são novas: havia, no Emíliode Rousseau, uma discussão sobre o ensino de desenho próxima à que ele compreende ser a mais adequada.

Quanto ao Tratado Elementar de Trigonometria Retilínea e Esférica e de Aplicação da Álgebra à Geometria, cujo "objetivo principal [é] mostrar as diversas aplicações que as fórmulas algébricas encontram nas considerações geométricas" (LACROIX, 1838, p.326), a exposição de Lacroix é direta: à trigonometria retilínea - desenvolvida a partir do estudo de triângulos e limitando-se quase que totalmente a esse estudo - afirma ser central o tratamento do triângulo retângulo, a partir do qual a resolução de outros triângulos pode ser obtida. A intenção é chegar às primeiras relações das linhas trigonométricas, que serão necessárias ao estudo do Cálculo Diferencial e Integral e à Mecânica. Da trigonometria esférica - "aplicada quase que somente na Astronomia e na Navegação" - , pensa Lacroix, deveria ser incluída nos Cursos Elementares "uma teoria, ao mesmo tempo simples e geral, que se ligasse às partes precedentes" (LACROIX, 1838, p.328).

7 À guisa de conclusão

A Segunda Parte do livro de Lacroix é longa - suas 179 páginas perfazem exatamente metade da edição que consultamos. Trata-se de um escrito muito minucioso, no qual o autor, como já assinalamos, faz sobressair, por diversas vezes, suas próprias experiências como docente; esse traço nos levou a perceber e apresentar, aqui, o Essais... como um trabalho memorialístico.

Embora esperemos ter conseguido dar a conhecer as características mais importantes das ideias de Lacroix sobre o ensino da Matemática no nível secundário, (particularmente nas Escolas Centrais) nessa obra que o autor considera como o complemento de suas outras obras publicadas, nosso estudo não tem a pretensão de abarcar todas as possibilidades de análise. É certo que outras incursões à Segunda Parte dos Ensaios sobre o ensino em geral e o de Matemática em particular trariam outras observações e comentários.

Escolhemos encerrar este texto com uma passagem da Segunda Parte em que o autor reafirma uma das dimensões centrais do pensamento dos iluministas franceses, explicitado especialmente nas obras de Diderot e Condorcet - a difusão dos conhecimentos interessa ao desenvolvimento da sociedade e deve levar em consideração a diferente distribuição das capacidades entre os indivíduos que a compõem. Destacamos, assim, que as concepções e propostas de Lacroix para o ensino secundário de Matemática, apresentadas no Essais, se fundam nesse ponto de vista.

Creio ser oportuno me deter ainda na minha ideia sobre o ensino público e lembrar que é o interesse da sociedade, e não o dos indivíduos, que deve reger o seu desenvolvimento, pois o primeiro pede que a massa das luzes seja ampliada e, sobretudo, que a distribuição do trabalho seja feita em razão das capacidades, se não rigorosamente (isso é impossível), ao menos de maneira aproximativa. Para isso, é preciso, como já disse, que a instrução seja suficientemente profunda para manifestar o talento, para evidenciar a vocação, para mostrar a rota que o aluno deve seguir a fim de caminhar rumo à perfeição, e, ao mesmo tempo, suficientemente severa para afastar dos alunos a mediocridade de ocupações sempre inúteis e estéreis, desviando-a para trabalhos aos quais essa mediocridade possa se tornar útil (LACROIX, 1838, p.172).

  • ALLAN, T. (ed.). Ventos Revolucionários(1700-1800). São Paulo: Time-Life/Abril, 1992. Coleção História em Revista
  • BOITO, C. Os restauradores Cotia: Ateliê Editorial, 2008.
  • CARROLL, L. Euclid and his modern rivals Phoenix: Dover Editions, 2004.
  • CHARTIER, R. Origens Culturais da Revolução Francesa São Paulo: Editora UNESP, 2009.
  • COOPER, B. (org.). Beethoven: um compêndio. Tradução de M. Gama e C. Gama. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996.
  • DARNTON, R. O beijo de Lamourette: mídia, cultura e revolução. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
  • DHOMBRES, J. L'enseignement des Mathématiques par la "méthode révolucionnaire". Les Leçons de Laplace à l'Ecole normale de l'an III. Revue D'Histoire des Sciences Evry, FR, Tome XXXIII, n.4, p.315-348, oct. 1980.
  • DOMINGUES, J.M.C. M. The Calculus according to S.F. Lacroix (1765-1843). 2007. 466f. Thesis (PhD Doctor of Philosophy), Middlesex University, London, 2007.
  • DURKHEIM, E. A Evolução Pedagógica 2. ed. Porto Alegre: Artes Médicas, 2002.
  • EUCLIDES, Elementos de Euclides(dos seis primeiros livros do undécimo e duodécimo da versão latina de Frederico Commandino; addicionados e illustrados por Roberto Simson). Coimbra: Imprensa da Universidade, 1855.
  • EUCLIDES. Elementos São Paulo: UNESP, 2010.
  • FOUCAULT, M. O que é um autor?Lisboa: Passagens, 2002.
  • GENETTE, G. Paratextos Editoriais Cotia: Ateliê Editorial, 2009.
  • GOMES, M.L.M. Quatro visões iluministas sobre a educação matemática: Diderot, D'Alembert, Condillac e Condorcet. Campinas: Editora da UNICAMP, 2008.
  • GRAMMONT, G. Aleijadinho e o aeroplano: o paraíso barroco e a construção do herói nacional. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008.
  • LACROIX, S.-F. Essais sur l´enseignement en general et sur celui des Mathématiques en particulier 4. ed. Paris: Bachelier, 1838.
  • LEJEUNE, P. O pacto autobiográfico: de Rousseau à Internet.Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008.
  • MIORIM, M.A.; MIGUEL, A. Os logaritmos na cultura escolar brasileira Série Textos de História da Matemática. Natal: Editora SBHMat, 2002.
  • MOREIRA, D. Profissionalização e continuidade geracional: uma leitura sociológica de prefácio do Traité Du Calcul Differentiel et du Calcul Intégral de S. F. Lacroix.In: MOREIRA, D.; MATOS, J. M. (Org.) História do Ensino de Matemática em Portugal Porto: Sociedade Portuguesa de Ciências da Educação, 2004, p.169-180.
  • PIOZZI, P. Utopias Revolucionárias e Educação Pública: rumos para uma nova "cidade ética". Educação e Sociedade, Campinas, v.28, n.100 - Especial, p.715-735, out. 2007.
  • SAVOIE, P. Criação e reinvenção dos liceus: 1802 - 1902. Trad. Eduardo Arriada e Maria Helena Camara Bastos. Revista História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, n.22, maio/ago. 2007. Disponível em: <http//fae.ufpel.edu.br/asphe>. Acesso em: fev.2011.
  • SCHUBRING, G. Análise Histórica de Livros de Matemática Campinas: Autores Associados, 2003.
  • SCHUBRING, G. Essais sur l'histoire de l'enseignement des mathématiques, particulièrement en France et en Prusse. Recherches en Didactique des Mathématiques, Grenoble,v.5, n.3, p.343-385, 1985.
  • SILVA, C.M.S. Os "espinhos" da álgebra para Lacroix. Educação Matematica Pesquisa, São Paulo, v.13, n.1, p.1-19, 2011.
  • THOMPSON, J. B. Ideologia e Cultura Moderna: Teoria social crítica na era dos meios de comunicação de massa. Petrópolis: Vozes, 1995.
  • *
    A extensão, o detalhamento e a natureza do
    Essais sur l'enseignement en général, et sur celui des mathématiques en particulier, de Lacroix, impedem que uma apresentação e uma análise integrais possam ser divulgadas num único artigo. Assim, os autores optaram por elaborar dois textos, publicados em diferentes periódicos, cada um deles abordando, de modo mais direto, uma das duas partes do livro. Considerações gerais sobre a Primeira Parte do
    Essais..., entretanto, estão registradas neste artigo (que enfatiza mais a segunda parte) para contextualizar o leitor.
  • 1
    Para a tradução, a obra-base utilizada foi a disponível no Acervo de Livros Antigos do Grupo de Pesquisa História Oral e Educação Matemática, num trabalho de cotejamento com as versões eletrônicas integrais do texto de Lacroix, em suas quatro edições, disponíveis, por exemplo, em
    www.gallica.bnf.fr. A tradução para o português foi elaborada por Karina Rodrigues, com revisão, prefácio e notas de Antonio V. M. Garnica e Maria Laura M. Gomes.
  • 2
    Esse
    Lycée não deve ser confundido com os Liceus, as escolas de ensino secundário implantadas na era napoleônica. Segundo Domingues (2007, p.10), o
    Lycée no qual Lacroix atuou, entre 1786 e 1787, era uma instituição privada à qual membros da sociedade refinada de Paris recorriam para buscar cultura geral com professores renomados (Condorcet, que interferiu para a contratação de Lacroix no Lycée, era responsável pela cadeira de Matemática).
  • 3
    Lacroix sempre teve sua obra publicada por editoras cuja opção central era a divulgação científica, como as casas Courcier, Mme. Vve. Courcier, Bachelier e Gauthier-Villars. Um dos mais conhecidos divulgadores de textos relativos à Matemática na França do século XIX, Bachelier nasceu em Chablis e mudou-se, em 1800, para Paris, onde trabalhou na livraria de Denis Magimel, quase que exclusivamente dedicada à temática militar. Por intermédio de Magimel, Bachelier conhece a filha de Jean-Marie Courcier, proprietário de uma conhecida editora, fundada no final do século XVIII, com interesse focado na produção de textos científicos e, em especial, nos de Matemática. Em 1804, Bachelier casa-se com a filha de Courcier e, mais tarde, em 1812, instala sua livraria no Quai des Augustins, em Paris. Em 1821, a editora, que, com a morte de Courcier passara a propriedade da viúva,
    Mme Vve. Courcier, foi incorporada por Bachelier. Posteriormente, em 1853, Bachelier transmitiu sua empresa para seu genro Louis Alexandre Joseph Mallet. A casa Bachelier se tornou, então, a casa Mallet-Bachelier. Em 1864, a Bachelier/Mallet passa a ser administrada por Jean-Albert Gauthier-Villars. Essa sequência de editoras e editores termina no século XX, quando esse ramo francês é adquirido pela Elsevier, fundada na Holanda, em 1880, a partir de uma pequena livraria artesanal em atividade desde o século XVI. A Elsevier, transformada em editora multimídia internacional, atua até hoje no mercado de divulgação de títulos acadêmicos.
  • 4
    Sua primeira obra didática, o
    Essais de Géométrie sur les plans et les surfaces, conhecido como
    Élemens de Géométrie Descriptive, mais tarde incorporou-se ao
    Cours... com o título
    Complément des Élemens de Géométrie.
  • 5
    Além do livro de Álgebra do
    Cours..., Lacroix incorporou à coleção um
    Complément des Élemens d'Algèbre.
  • 6
    O
    Tratado Elementar de Trigonometria inclui considerações sobre as trigonometrias retilínea e esférica e sobre a aplicação da Álgebra à Geometria.
  • 7
    Trata-se do
    Traité Élémentaire de Calcul Differentiel et Integral. Mais tarde seria publicado, em três volumes - cujas primeiras edições foram produzidas respectivamente em 1797, 1798 e 1800 - , o
    Traité du Cálcul Differentiel et du Calcul Integral, tido como sua obra mais madura do ponto de vista matemático.
  • 8
    Segundo Domingues (2007, p. 16-17), nos anos de 1806 a 1820 a produção de Lacroix mais propriamente relativa à Matemática é reduzida. Apenas um novo livro, o
    Traité Élémentaire du Calcul des Probabilités, é publicado (em 1816), ainda que várias reedições de outras obras tenham sido produzidas, com revisões e complementações. Nesse período, Lacroix envolve-se num projeto historiográfico, contribuindo com o
    Dicionário Biográfico de Michaud, responsabilizando-se pelos verbetes relativos a d'Alembert, Apolônio, Arbogast, Arquimedes, Barrow, de Beaune, os Bernoullis, Bézout, Bombelli, Cardano, Cavalieri, Clairaut, John Craig, Diofanto, Euclides, Euler, e Eutócio de Ascalon. Sua participação no dicionário foi interrompida quando seu verbete relativo a Condorcet - tido como muito favorável ao autor - foi recusado pelos editores. .Ainda segundo Domingues, o prestígio de Lacroix aumentaria significativamente no período, embora sua produção tenha diminuído. O período que Domingues chama de "os anos de declínio de Lacroix" é o dos anos de 1820 a 1843. Em 1826, ele publica uma pequena revisão bibliográfica; em 1828, o livreto
    Introduction a la Connaissance de l'sphère e, em 1831, uma nova edição do trabalho de Montucla sobre a quadratura do círculo (DOMINGUES, 2007, p.18).
  • 9
    O cotejamento entre as quatro edições do
    Essais... nos permite afirmar que o
    corpus do texto permanece relativamente inalterado. A exceção são as notas. São 25 os rodapés
    originais - adjetivo usado por Genette (2009) para referir-se ao texto da primeira edição - e não há notas de caráter complementar inseridas no livro. Na segunda edição, há 50 notas em rodapé (sendo mantidas todas as originais) e uma única nota complementar sobre o estabelecimento da moral, adicionada ao final do livro, que entendemos ser um complemento a um dos rodapés. Nessa mesma segunda edição, surge uma nota
    posterior - que se mantém nas edições seguintes - em que o autor discute o método em Matemática. Ao analisarmos a terceira edição, verificamos um aumento menos significativo no número de notas em comparação com a edição anterior, de 1816: são 53 notas de rodapé e três de considerações complementares (duas delas já presentes na segunda edição, e a terceira, ao final do livro, tratando sobre filosofia
    ). Por fim, na quarta edição observamos 57 notas em rodapé e a manutenção das três notas complementares já presentes na edição anterior.
  • 10
    Alimentos atualmente comuns à mesa dos europeus, como a batata e o tomate, não eram utilizados na França do século XVIII. O consumo de pão, porém, era imenso - quase um quilo ao dia por habitante, segundo alguns historiadores. Ainda assim, a má administração negligenciou a necessidade de estocar farinha, confiando no sucesso do controle das pragas, responsável por manter constante a produção do trigo durante quase todo o século e implicando, inclusive, um sensível decréscimo do índice de mortalidade da época.
  • 11
    "O Tribunal Revolucionário trabalhava a todo vapor. [...] Os aristocratas, porém, compunham apenas uma pequena parcela de vítimas do Terror. Os registros nem sempre foram exatos, mas cerca de 85 por cento dos 35 mil que morreram eram provavelmente plebeus" (ALLAN, 1992, p.151-152).
  • 12
    Segundo Darnton (1990, p.27-29), "o Estado-nação não varreu tudo o que tinha pela frente. Não conseguiu impor a língua francesa à maioria do povo francês, que continuou a falar todos os tipos de dialetos incompreensíveis entre si, apesar de uma enérgica campanha de propaganda do Comitê Revolucionário para a Instrução Pública. Mas ao eliminar os corpos intermediários que separavam o cidadão e o Estado, a Revolução transformou o caráter da vida pública. [...] Naturalmente, é possível apontar lacunas e contradições na legislação revolucionária. Não obstante, [sua] orientação principal é clara: ela substituiu a Igreja pelo Estado como autoridade suprema na condução da vida privada, e fundamentou a legitimidade do Estado na soberania do povo".
  • 13
    Ainda que seu sobrenome seja (ou pareça ser) herança de um passado nobre, Lacroix provinha de uma família de burgueses - membros urbanos do Terceiro Estado. Nasceu em abril de 1765, filho de Jean François De La Croix e Marie Jeanne Antoinette Tarlay. Segundo Domingues (2007, p.06), que assume a grafia Silvestre François Lacroix (a grafia correta do seu primeiro nome - "Silvestre" ou "Sylvestre" - não pode ser precisada, dado ser comum, nos séculos XVIII e XIX, o uso público apenas das iniciais dos nomes cristãos, bem como a variação quanto às maiúsculas ou minúsculas e à separação ou contração do artigo nos sobrenomes - La Croix, la Croix ou Lacroix), o primeiro registro da supressão do "de" - em "de Lacroix" - é uma petição encaminhada pelo autor ao poder público de Besançon, no ano de 1793: "Em seu
    Procés-verbal d'individualité para a
    Legion d'Honneur (provavelmente o documento mais oficial que se pode ter em mãos, datado de 1837, o sobrenome de Lacroix aparece como 'Lacroix (de)', e os nomes de batismo como 'Silvestre François'). Em uma transcrição de seu certificado de batismo, os nomes são escritos como 'Silvestre françois' e o sobrenome como 'De la Croix'".
  • 14
    Para que se tenha uma ideia do impacto dessa atitude de Napoleão nos meios intelectuais e artísticos europeus da época, é oportuno lembrar as palavras e a atitude de Ludwig van Beethoven ao tomar conhecimento da autoproclamação do corso como imperador. Ferdinand Ries, contemporâneo e biógrafo do compositor alemão, recorda tais palavras: "Então ele também nada mais é do que um homem comum. Agora também vai ignorar os direitos humanos e satisfazer apenas sua própria ambição. Vai colocar-se acima de todos e tornar-se um tirano" (COOPER, 1996, p.156). Ademais, Beethoven intencionava dedicar a Bonaparte, cujos ideais republicanos admirava, sua terceira sinfonia, a
    Eroica, e, mais tarde, de fato decidiu intitulá-la
    Bonaparte. Contudo, Ferdinand Ries relata que, no momento em que soube da autoproclamação de Napoleão, o compositor se encolerizou, rasgou a folha de rosto da sinfonia e jogou-a ao chão. Considera-se que isso aconteceu em maio de 1804. Existe, ainda hoje, uma outra folha de rosto da partitura, na qual as palavras "intitolata Bonaparte" foram apagadas com tanta força, que o papel em que havia o nome do herói de Beethoven ficou perfurado (COOPER, 1996, p.234).
  • 15
    Criada na França revolucionária, a Escola Normal serviu de modelo às demais escolas de formação de professores que se espalharam pela Europa, chegando ao Brasil em 1835. Segundo Piozzi (2007), as Escolas Normais eram as únicas efetivamente abertas aos menos favorecidos. De acordo com Dhombres (1980), as duas instituições mais notáveis do período revolucionário nasceram apenas após o Termidor: a
    École Polytéchnique e a
    École Normale (estabelecidas pela Convenção Nacional a partir dos decretos de fundação aprovados no 7 Vendemiário e no 9 Brumário ano III, respectivamente). Schubring (1985) afirma que a instituição das Escolas Primárias em toda a República demandou rapidez para formar professores, visando a atingir, em pouco tempo, um grande número de indivíduos. Para esse autor, essa foi a única razão para a fundação da Escola Normal. Segundo Dhombres (1980), as Escolas Normal e Politécnica eram, desde suas origens, bem diferentes: a Politécnica foi prevista para durar e a Normal consistiu numa estratégia emergencial, para divulgar normas quanto aos métodos de ensino, formando mestres que pudessem, logo que possível, implementar em cursos o que haviam aprendido. Paralelamente, acordos políticos permitiram que antigos representantes do clero se tornassem instrutores tanto em instâncias públicas quanto privadas. A Convenção Nacional, em decorrência dessa situação, suprimiu a Escola Normal apenas quatro meses depois de iniciado seu funcionamento (SCHUBRING, 1985). Ela reaparecerá por volta de 1808-1810, na era Napoleônica.
  • 16
    A influência da educação jesuítica na formação dos que sustentariam filosoficamente a Revolução e defenderiam a nova ciência, servindo de modelo ao autor, é, para Lacroix, um detalhe de pouca importância.
  • 17
    Diga-se, em favor de Lacroix, que manifesta horror à arquitetura medieval, que as propostas relacionadas ao que hoje chamaríamos
    patrimônio cultural surgiram no século XIX. Até o século XVIII, projetos de restauração, por exemplo, tinham função essencialmente prática, de manutenção de edifícios. O afastamento dessa tendência pragmática, que assume aos poucos uma conotação cultural, só começa a ocorrer, ainda que timidamente, ao final do Setecentos (BOITO, 2008).
  • 18
    Os ideólogos eram um grupo de filósofos, cientistas, literatos e reformadores políticos liderados por Destutt de Tracy e Cabanis. Defensores da epistemologia de Condillac, que localizava nas sensações a origem dos conhecimentos humanos, esses intelectuais desenvolveram, no início do século XIX, o sensacionismo. A Ideologia se tornou, após a queda de Robespierre, em 1794, quase que uma filosofia oficial da República francesa, divulgada nas páginas de
    La Décade philosophique. Na educação, os ideólogos foram muito influentes, especialmente no período das Escolas Centrais. A Ideologia propunha uma metodologia para o estudo de todas as operações mentais, classificadas por Destutt de Tracy em sensação, memória, juízo e vontade. Para os adeptos desse movimento, a análise das ideias era a disciplina filosófica básica.
  • 19
    A influência do modelo francês no sistema educacional brasileiro é determinante. Segundo Silva (2011, p. 234), "Os docentes de matemática da Academia Real Militar [do Rio de Janeiro] realizaram vários embates por causa dos 'compêndios' a serem recomendados na instituição. Eles desejavam um 'sistema' único de orientação e isso, na prática, significava guiar o ensino das disciplinas básicas, como aritmética, álgebra, geometria (incluindo a geometria analítica) e o cálculo diferencial por um único autor. A partir de 1834, os livros adotados eram: a Trigonometria (plana) de Legendre; a Geometria; os Complementos de Geometria e Geometria Descritiva; a Trigonometria esférica; o Cálculo Diferencial e Integral; a Aritmética e a Álgebra, todos de Lacroix. Isso demonstra um longo reinado e soberania dos livros do autor na academia".
  • 20
    Não são poucos os autores que, no panorama contemporâneo, se dedicaram a compreender a questão da autoria, e todos ressaltam de forma veemente o cuidado necessário para não se negligenciar a historicidade dessa
    categoria. Deles são exemplos Foucault (2002), Grammont (2008) e Genette (2009).
  • 21
    "
    Quão poderosas são a ordem e a conexão" (Horácio,
    Ars Poetica).
  • 22
    "
    Quanta graça o poder da ordem e da conexão acrescenta às questões comuns" (Tradução livre nossa).
  • 23
    "A análise é, em geral, o método da invenção [...] [e] foi por esse meio que os geômetras do século XVII fizeram as numerosas descobertas que os tornaram ilustres e que serviram de base para os trabalhos de seus sucessores" (LACROIX, 1838, p.209).
  • 24
    Na Matemática, é a ordem de encadeamento das proposições que, em síntese, constitui o método.
  • 25
    De acordo com Schubring (2003), a abordagem adotada por Clairaut em seus
    Elementos de Geometria e nos
    Elementos de Álgebra - livros publicados pela primeira vez na década de 40 do século XVIII - moldou o discurso dos livros-texto na França por pelo menos 60 anos, por ter lançado a palavra-chave para a metodologia desses livros. Trata-se do "caminho dos inventores", que seria aquele tomado pelos inventores para fazer suas descobertas matemáticas. Embora tal conceito não fosse operacional e bem-sucedido, a criação da palavra-chave "caminho dos inventores" (também referida como "ordem dos inventores", "marcha dos inventores" ou "método dos inventores") passou a figurar, na França, como um método natural para apresentação do conhecimento de um modo evolutivo. D'Alembert divulgou o "caminho dos inventores" como instrumento metodológico geral em seu extenso verbete
    Elementos de Ciências na Encyclopédie.
  • 26
    Silva (2011, p.219) trata especificamente de alguns temas tidos como
    espinhosos por Lacroix, dentre os quais os "conceitos polêmicos envolvendo o zero, infinito, números negativos e números imaginários". Baseada nas edições da Álgebra de Lacroix em francês e em português, a autora apresenta um exemplo do que talvez sejam, para Lacroix, "resumos e enunciados na forma dogmática": "
    Concluir-se-há daqui esta regra geral: para fazer passar hum termo qualquer de huma equação, de hum membro para outro membro, He preciso apagal-o no membro em que se acha, e escrevel-o no outro com hum signal contrario ao de que estava affecto" (p.15 da edição de 1830 da Álgebra, em português; apud SILVA, 2011, p.227).
  • 27
    Silva (2011, p.233) suspeita que "Lacroix só atribuía legitimidade aos números positivos que, como objetos oriundos da quantidade, poderiam ser considerados como objetos matemáticos, enquanto os números negativos e imaginários existiriam apenas porque, inegavelmente, surgem de manipulações algébricas, não podendo ser totalmente desprezados, mas com status ontológico diferente [do] dos positivos". Para Silva (2011, p.235), "Lacroix não ficou imune a alguns fantasmas da matemática - números negativos, números imaginários e infinito - que ainda não estavam totalmente legitimados no início do século XIX". A posição do próprio Lacroix sobre algumas das questões levantadas por Silva está claramente exposta no
    Essais...: "Fui contrário a falar de quantidades negativas até que elas surgissem como necessárias para a resolução das questões. Mostrei como, segundo as regras estabelecidas sobre os signos, elas modificavam os enunciados dos problemas resolvendo-os de uma maneira totalmente conforme ao que prescreviam as regras do raciocínio, para levantar a contradição manifesta contida nos enunciados originais. Essa consideração me conferiu a oportunidade de verificar as regras dos signos que frequentemente atrapalham os estudiosos com mais dificuldades, e que demonstrei, a priori, para as quantidades negativas isoladas. [...] Considerei, em seguida, as expressões singulares, como m/0, 0/0, que a Álgebra dá como resposta às questões impossíveis ou indeterminadas, e na classe das quais entram, ao menos na opinião de alguns teóricos, as quantidades negativas, já que elas são, na verdade, apenas um modo do qual a Álgebra se serve para evitar uma contradição. [...] A doutrina das quantidades negativas não era a única dos elementos de Álgebra que precisou de esclarecimentos e até mesmo de retificações. A busca do máximo divisor comum, ainda mais elementar em certas opiniões, era incompleta, como se pode observar comparando o que eu digo com o que se encontra em outros tratados. Essa operação não tem em Álgebra o mesmo objetivo que em Aritmética. [...] Podemos incluir no conjunto de verdades das quais falo a multiplicidade das soluções de equações além do primeiro grau, e a significação dos símbolos imaginários. Também não me dei por satisfeito, observando essa multiplicidade em equações de segundo grau, de concluir que ela provinha do duplo sinal que podemos atribuir à raiz quadrada de um número. Mostrei que essas equações só se verificam se decompostas em dois fatores, que desaparecem pela substituição dos valores da incógnita: esse desenvolvimento me pareceu mais conveniente à medida que coloca em evidência o primeiro caso da teoria geral das equações. Pareceu-me também necessário mostrar,
    a posteriori, em seu enunciado geral, o absurdo das questões que levam a equações de segundo grau cujas raízes se apresentam sob uma forma imaginária [...]" (LACROIX, 1838, p.256-260).
  • 28
    A afirmação de Lacroix "Eu fiz a teoria algébrica das proporções, que serve de introdução à das progressões, suceder às equações. E em função da teoria algébrica das proporções, penso eu, é preciso indicar o segundo ramo da análise algébrica, ou seja, a teoria das sequências" (LACROIX, 1838, p.268) é um dos vários exemplos da potencialidade do
    Essais... para compreender o desenvolvimento da matemática escolar, já que a opção por uma determinada sequenciação de conteúdos implica uma concepção específica sobre os conceitos e procedimentos envolvidos nessa sequenciação. Um excelente estudo sobre esse tema, considerando os logaritmos, é o de Miorim e Miguel (2002).
  • 29
    Ainda no século XIX - e talvez mais enfaticamente no século XIX, quando começavam a se delinear com mais clareza os campos do saber científico e o
    status profissional dos que deles cuidariam - os
    Elementos de Euclides eram a grande referência para os estudos e para o ensino de Matemática (não só propriamente os estudos em Geometria, posto que o tratado de Euclides tem uma amplitude maior) e não apenas para aqueles que começavam a ser reconhecidos por
    matemáticos, mas por toda uma diversidade de
    acadêmicos, dentre os quais se destacam aqueles da Filosofia. Na Inglaterra, por exemplo, quando começavam, ao mesmo tempo, a surgir textos alternativos aos
    Elementos e novas determinações para o ensino de Geometria nas escolas, Lewis Carroll publica
    Euclid and His Modern Rivals (CARROLL, 2004), defendendo a permanência do livro de Euclides como suporte central ao estudo de Matemática nas escolas. Em meio às argumentações de um Euclides que, retornado dos mortos, defende sua própria obra, comparando-a com vários textos ingleses compostos para o
    novo ensino de Geometria, Carroll deixa registrada, de modo geral, sua admiração pelos tratados escolares franceses. Aparentemente, a versão inglesa dos
    Elementos de Euclides que Carroll tinha à mão para compor seu livro era aquela traduzida e revisada por Simson (EUCLIDES, 1855) a partir da edição latina de Comandino (esta, por sua vez, baseada na versão alterada de Théon). Essa versão - que inclusive contou com várias edições em língua portuguesa e, por isso mesmo, serviu de suporte a muitos estudos sobre a matemática da antiguidade, já que a única tradução direta do grego para o português, elaborada por Bicudo (EUCLIDES, 2010) só surgiria recentemente - é referenciada também por Lacroix: "Devemos ainda a Robert Simson outras observações sobre as condições que garantem a igualdade e a semelhança dos corpos, e devemos considerar a edição dos principais livros dos
    Elementos de Euclides que ele publicou como muito importante para a história da Geometria" (LACROIX, 1838, p.294-295).
  • 30
    "Pensava em colocá-los em ordem quando fui designado para o ensino de Geometria descritiva na Escola Normal (ano III, 1794)".
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      01 Abr 2013
    • Data do Fascículo
      Dez 2012
    UNESP - Universidade Estadual Paulista, Pró-Reitoria de Pesquisa, Programa de Pós-Graduação em Educação Matemática Avenida 24-A, 1515, Caixa Postal 178, 13506-900 Rio Claro - SP Brasil - Rio Claro - SP - Brazil
    E-mail: bolema.contato@gmail.com