Acessibilidade / Reportar erro

Narrativas na pesquisa em Educação Matemática: caleidoscópio teórico e metodológico

Um início de conversa...

O que nos mobilizou para a organização desta edição temática? Diríamos que ela se deu em decorrência de nossas práticas nesse campo de investigação. Cada uma de nós vem trabalhando em perspectivas teóricas específicas, mas relacionadas ao tema das narrativas: dos estudos biográficos (a Adair), da análise sociolinguística (a Cármen) e da história oral (a Heloisa). Nos últimos anos, quer em nossas pesquisas individuais, quer em parceria com nossos orientandos e grupos de pesquisa, temos identificado o quanto o uso das narrativas vem ganhando espaço nas pesquisas em Educação Matemática, principalmente no campo da formação docente. Possivelmente, esse interesse crescente seja decorrente da importância dada à historicidade, aspecto marcante das narrativas, tanto como prática pedagógica, quanto como abordagem potencial para a compreensão de práticas sociais relativas à Educação Matemática.

Temos constatado que esse aumento significativo também ocorre no campo da educação, haja vista o número de trabalhos que tem sido divulgado em eventos, periódicos e capítulos de livros como resultados de pesquisas, além do aumento significativo de participantes a cada edição do Congresso Internacional sobre Pesquisa (Auto)biográfica (CIPA).

Essa expansão também nos instiga a refletir se não seria mais um modismo dentre tantos outros que marcaram e marcam a educação brasileira e a própria pesquisa. Qual é o entendimento que se tem sobre narrativas? Ora ela é usada como prática de formação, ora como objeto ou gênero de pesquisa e ora, ainda, como pesquisa – no caso, a pesquisa narrativa.

Não bastasse essa amplitude de possibilidades, constatamos a polissemia que envolve a palavra narrativa: escrita do professor, narrativas (auto)biográficas, narrativas da experiência, histórias de vida, memoriais (de formação), narrativas e/ou trajetórias de formação, narrativas de aulas, pesquisa narrativa e investigação biográfico-narrativa. Em muitos casos, não se trata de termos correlatos, mas com múltiplos significados e múltiplas formas de abordagem teórica e de análise.

Outra diversidade também é identificada nas formas de apresentação dos textos: os que utilizam o gênero narrativo na comunicação dos resultados da pesquisa – o que tem sido chamado de análise narrativa (de narrativas) – e os que tomam a narrativa como objeto de pesquisa, mas não apresentam os resultados em forma narrativa.

Conhecedoras dessa abrangência, entendemos que a organização de um número especial do BOLEMA sobre a produção nesse campo seria não apenas uma forma de aglutinar essas diferentes experiências de pesquisa, mas também de colaborar para a compreensão de como esse campo de investigação vem se constituindo.

Assumido o desafio de organizarmos esta edição, lançamos o convite à comunidade de educadores matemáticos e contamos com um número relevante de artigos submetidos, dos quais 14 foram aprovados para a composição desta edição temática. Além deles, contamos ainda com a tradução de um texto de Jorge Larrosa, autor que vem sendo referenciado significativamente nesse campo.

Como apresentar a coletânea de artigos que compõem esta edição? Larrosa (2004LARROSA, J. Notas sobre narrativa e identidad (A modo de presentatión). In: ABRAHÃO, M. H. M. B. (Org.). A aventura (auto)biográfica: teoria e empiria. Porto Alegre: EdiPUCRS, 2004. p. 11-22., p. 11) nos instiga, pois, assim como ele diante da apresentação de um livro, nos sentimos leitoras privilegiadas dos textos, visto sermos as primeiras leitoras e, ao dá-los a ler, como fazer para não dar como já lida uma coletânea de artigos que estão por ser lidos? “Cómo no convertir esa primera lectura en una lectura autorizada, dotada de una legitimidad especial, de un rango especial, con las ventajas e los riesgos que eso comporta?”.

Ousamos ir além da apresentação, com todos os riscos que isso possa ter. Optamos por agrupar esses textos em três conjuntos, partindo de uma interpretação pessoal, nossa, de que há convergências entre as formas de narrar e/ou usar as narrativas nas pesquisas em Educação Matemática. Foi uma tentativa de nossa parte a colocação de vários espelhos no caleidoscópio de narrativas em Educação Matemática. Sem dúvida, esses espelhos poderão ser deslocados, produzindo outras combinações, outros efeitos.

Mas essa conversa já tinha começado...

A organização de dossiês temáticos tem sido uma prática de muitos periódicos brasileiros. Pode-se dizer que a organização de um dossiê parte da necessidade e/ou desejo dos pesquisadores em conservar e disseminar fontes de informação sobre um determinado tema.

A temática de narrativas e Educação Matemática já se fez presente em outros dossiês. O primeiro deles foi publicado na revista Ciências Humanas e Sociais, da UFRRJ, em 2010, e organizado por Elizeu Clementino de Souza e Adair Mendes Nacarato. Esse dossiê foi fruto das discussões ocorridas no GT 19: Educação Matemática, durante a 32ª Reunião Anual da Anped, em 2009, na sessão denominada “Trabalho encomendado”. Como prática do GT, para cada reunião anual é escolhido pelos seus membros um tema para discussão. Os pesquisadores envolvidos com o GT enviam seus textos e, se aprovados, subsidiam o debate, o qual conta com um pesquisador que faz a articulação entre os diferentes textos. Naquela ocasião, oito textos foram selecionados e debatidos por Elizeu, pesquisador externo convidado pela coordenação do GT naquela ocasião (Adair Mendes Nacarato e Marcelo Almeida Bairral). Esses textos, posteriormente, foram publicados, constituindo o primeiro dossiê brasileiro sobre a temática.

No texto de abertura do dossiê, Souza (2010)SOUZA, E. C. Pesquisa Narrativa, (auto)Biografias e História Oral: ensino, pesquisa e formação em Educação Matemática. Ciências Humanas e Sociais em Revista, Rio de Janeiro, v. 32, n. 2, p. 13-27, jul./dez. 2010.) escreve sobre a importância do campo autobiográfico nas pesquisas em Educação Matemática, destacando os modos próprios que essa perspectiva tem assumido na área; a flutuação terminológica existente, flutuação essa, segundo o autor, marcada por distanciamentos e aproximações; e a flutuação metodológica, sem que isso signifique fragilidades. O autor traça um panorama histórico da constituição do campo de estudos biográficos no cenário brasileiro, destaca as tipificações de pesquisa e os espaços de produção e disseminação dessas pesquisas. No caso específico da Educação Matemática,

os textos analisados pelo autor trazem em comum a identificação do modo como os pesquisadores propõem o trabalho de formação por meio das narrativas orais e das proposições de escritas de si como dimensão de formação inicial ou continuada [...] explicitam perspectivas de verticalização do trabalho de pesquisa com as narrativas, a História Oral e as práticas de formação em Educação Matemática, resguardando o espaço-tempo acadêmico em que cada trabalho foi produzido (SOUZA, 2010SOUZA, E. C. Pesquisa Narrativa, (auto)Biografias e História Oral: ensino, pesquisa e formação em Educação Matemática. Ciências Humanas e Sociais em Revista, Rio de Janeiro, v. 32, n. 2, p. 13-27, jul./dez. 2010., p. 23).

Ainda, segundo o mesmo autor, os textos evidenciam trabalhos centrados na oralidade e na escrita, em processos formativos, constitutivos de identidades e de saberes dos professores que ensinam Matemática. São destacados

os modos como os professores narram e compartilham suas histórias de vida-formação, por meio da apreensão de memórias e lembranças da trajetória de escolarização, dos dispositivos de formação, dos episódios de aula, do trabalho com os memoriais de formação, das narrativas compartilhadas e das práticas exploratório-investigativas (SOUZA, 2010SOUZA, E. C. Pesquisa Narrativa, (auto)Biografias e História Oral: ensino, pesquisa e formação em Educação Matemática. Ciências Humanas e Sociais em Revista, Rio de Janeiro, v. 32, n. 2, p. 13-27, jul./dez. 2010., p. 23).

Podemos considerar que um segundo conjunto de textos focalizando as narrativas teve lugar no periódico Interacções1 1 http://revistas.rcaap.pt/interaccoes/article/view/456. , em 2011. Cármen L. B. Passos organizou um número temático da revista da Escola Superior de Educação de Santarém, Portugal. O número intitulado “As narrativas como potencializadoras no movimento de ensinar, aprender e formar-se” organizou-se em torno do tema narrativas como forma de pesquisa e de formação de professores e reuniu um conjunto de trabalhos de pesquisadores portugueses e brasileiros, atestando a expansão da temática. Ainda que os autores tenham se ocupado de questões investigativas diversificadas, com aportes teóricos diversos, os textos se aproximam e dão sentido às preocupações comuns sobre a formação e de desenvolvimento profissional de professores. Os resultados das investigações reunidas naquele dossiê demonstram que a centralidade nas narrativas é muito significativa tanto nos contextos de formação inicial, como nos de formação continuada, ou ainda na compreensão do sucesso de professoras que atuam nos Anos Iniciais. Dos oito artigos que compõem o número da revista, quatro referem-se às narrativas no campo da pesquisa em Educação Matemática e foram organizados nos eixos: narrativas de professores, memória e desenvolvimento profissional; narrativas de formação e iniciação à docência; e narrativas de formação e memória da formação matemática.

Em uma mesa redonda no II Seminário de Leituras e Escritas (II SELEM), realizado na Universidade Cruzeiro do Sul, em maio de 2013, Elizeu Clementino de Souza apresentou um mapeamento2 2 Texto ainda não publicado. da pesquisa brasileira sobre narrativas e Educação Matemática, identificando os grupos e os principais focos de pesquisa. Houve um destaque para o GHOEM (Grupo de História Oral em Educação Matemática), da UNESP/Rio Claro, como o de maior produção nacional, seguido de outros que vêm se constituindo nas diferentes instituições do país.

Ainda no ano de 2013, outro dossiê foi organizado por Adair Mendes Nacarato e Cármen Lucia Brancaglion Passos, denominado “Escritas, narrativas & formação docente em Educação Matemática” e publicado pela Revista Educação da PUC/Campinas3 3 http://periodicos.puc-campinas.edu.br/seer/index.php/reveducacao. . A mesma flutuação ou dispersão terminológica identificada no dossiê de 2010 também se fez presente nesse de 2013: histórias de vida, história oral, narrativas de aula, escritas de si, memoriais de formação, diários de formação, dentre outros. Entendemos ser essa a riqueza de nossa área ao possibilitar olhares para os contextos de sala de aula e de formação docente sob múltiplas perspectivas.

Tão importante quanto os dossiês são os estudos do tipo estado da arte. Nessa perspectiva, esta edição temática traz o texto de Rafael Bracho, Nelia Jiménez-Fanjul, Alexander Maz, Manuel Torralbo-Rodriguez e Antonio Fernández-Cano, pesquisadores espanhóis das universidades de Córdoba e Granada. O texto intitulado “Producción Científica sobre narrativa en Educación Matemática en la Web of Science”, faz uma “análisis cenciométrico de la producción en narrativa”, a partir da base de dados Web of Science. Para isso utilizaram o programa Pajek. Nesse estudo, foram identificados os autores e instituições com maior produção na temática e as possíveis redes de coautorias e colaboração. Assim como nós, os autores desse texto também constatam que a investigação em narrativas na Educação Matemática vem adquirindo presença relativamente consolidada nos últimos anos, embora ainda não seja possível identificar grandes autores, mas já se evidencia a preponderância de instituições anglo-saxônicas, em especial, norte-americanas. Eles destacam ser recente a indexação de revistas latino-americanas na base de dados, o que talvez justifique a pouca produção nesse campo de investigação. Nesse sentido, sugerem que outras pesquisas sejam realizadas considerando outras bases de dados, com maior abrangência.

O panorama aqui apresentado visou evidenciar que esse campo de investigação tem sido já organizado e sistematizado por alguns grupos/pesquisadores. Mas, o que se mantém e o que há de novo nas produções da presente edição temática? Quais as aproximações e os distanciamentos teóricos e metodológicos? Buscamos organizar os trabalhos em três eixos, não necessariamente excludentes: a abordagem narrativa no âmbito das práticas de formação; as narrativas como fontes para análise de situações de formação e práticas; e modos de produção e de narração.

Como dito anteriormente, um autor que tem contribuído em muitos trabalhos aqui reunidos e outros já publicados é Jorge Larrosa, da Universidade de Barcelona. Algumas noções por ele especialmente tratadas, como experiência, alteridade, narratividade, subjetividade e identidade, têm perpassado essas investigações. Assim, poder contar com um texto seu neste dossiê para nós é muito significativo. Com a sua concordância e autorização, o texto “20 minutos na fila: sobre experiência, relato e subjetividade em Imre Kertész” abre o presente dossiê. Esse texto, traduzido por Filipe Santos Fernandes, foi sua conferência de abertura do I Congresso Internacional sobre Pesquisa (Auto)biográfica, realizado em Porto Alegre, em setembro de 2004. Não nos atrevemos a apresentar o texto de Larrosa, pois ele se apresenta por si mesmo; apenas não podemos deixar de manifestar o quanto ele é instigante e nos coloca em estado de vigilância quanto ao uso das narrativas na pesquisa. Destacamos um excerto do final de sua fala, num convite ao leitor/pesquisador para a leitura:

Nós somos os moralistas, os que falam dos outros para justificar a nós mesmos, os que falam em nome dos outros para ter algo a dizer, os que convertem as experiências e as subjetividades dos outros em experiências e subjetividades compreensíveis, inteligíveis, representáveis, identificáveis. Nós somos os que convertemos as vidas e as palavras dos outros em saber, em conhecimento, em informação, em cultura, em mercadoria. Teríamos que problematizar constantemente nossos conceitos, nossas teorias, nossos métodos. E para essa problematização, ao que me parece, deveríamos atender às lições dos escritores, dos narradores, dos poetas. Ainda que não saibamos o que fazer com elas. Ainda que nos deixem, às vezes, perplexos, sem palavras. (Conferência proferida por Larossa no I Congresso Internacional sobre Pesquisa (Auto) Biográfica)4 4 Referência dessa obra consta na tradução de Fernandes do referido texto de Larossa, publicada neste número. .

Como diria o próprio Larrosa, damos o seu texto a ler neste dossiê.

Além dos dois textos já destacados, apresentamos, a seguir, a organização dos demais nesse nosso caleidoscópio.

A abordagem narrativa no âmbito das práticas de formação

A abordagem narrativa no âmbito da formação continuada do professor de Matemática (ou que ensina Matemática), visando o seu desenvolvimento profissional, inclui a discussão sobre histórias orais ou escritas que envolvem o ensino dos próprios professores ou a discussão de situações de ensino que vivenciaram ou conheceram, a fim de compreender o seu senso de tomada de decisão em situações de ensino de Matemática ou do cotidiano escolar e facilitar a ampliação ou reconstrução desse senso. Já no âmbito dos cursos de licenciatura, as narrativas têm sido utilizadas para intervir na aprendizagem de futuros professores e no seu desenvolvimento profissional por meio da exploração da historicidade dos licenciandos no que se refere ao ensino e à aprendizagem da Matemática e/ou temas matemáticos: das experiências destes como alunos de Matemática na escola, como estagiários do curso e de seus pensamentos acerca de como deve ser o ensino de Matemática, bem como do contato desses com narrativas de professores em serviço.

Neste eixo são quatro os artigos em que as narrativas da prática docente trazem elementos importantes para a formação de professores. São textos diretamente comprometidos com a discussão de resultados de pesquisas que utilizaram as narrativas no âmbito da formação de professores de Matemática.

A narrativa “De Professor de Matemática a Pesquisador em Educação Matemática: uma trajetória”, de André Luis Trevisan, expressa como um graduado em Matemática tornou-se um pesquisador da própria prática como docente do Ensino Superior em um curso de Licenciatura em Matemática. O narrado por Trevisan, do ponto de vista da análise sociolinguística, permite que o leitor identifique o seu fazer pedagógico, sua aprendizagem docente e dá visibilidade ao trabalho que ele fez acontecer com as avaliações em sua sala de aula. Sua narrativa possibilita que seus saberes e práticas sejam (com)partilhados com os pares. Podemos dizer que o autor passou por momentos relacionados dialeticamente, como explicado por Shor e Freire (1986SHOR, I.; FREIRE, P. Medo e ousadia: o cotidiano do professor. Trad. Adriana Lopez. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986., p. 18): um deles relativo à produção de um conhecimento novo (prova em fases) e o outro, quando se deu conta do conhecimento produzido. Shor e Freire, referindo-se às qualidades da profissão docente, dizem que “algumas dessas qualidades são, por exemplo, a ação, a reflexão crítica, a curiosidade, o questionamento exigente, a inquietação, a incerteza — todas essas virtudes — são indispensáveis ao sujeito cognoscente”.

As explicações incluídas no texto de Trevisan permitem que o leitor visualize, sob seu ponto de vista, a prática desenvolvida. As representações incluídas na narrativa podem ser consideradas tanto no seu aspecto físico como simbólico (GALVÃO, 1998GALVÃO, C. Professor: o início da prática profissional. 1998. 716 f. Tese (Doutorado Educação) — Departamento de Educação, Faculdade de Ciências, Universidade de Lisboa, Lisboa, 1998.), e nos possibilitam perceber o desenvolvimento de seu processo de tornar-se professor reflexivo do ensino superior e pesquisador da própria prática. As reflexões incluídas na narrativa nos ajudam a perceber as alterações na ação que se fizeram necessárias mediante as exigências do contexto, bem como as opções que o autor precisou realizar ao longo do projeto. Ao expressar que (felizmente!) não voltou a aplicar provas tradicionais, ele dá indícios da satisfação que teve com o processo pelo qual passou.

Podemos dizer que uma narrativa escrita, ao ser socializada com os pares, possibilita o compartilhamento de experiências e saberes, de compreensão da própria prática e de reconstrução de novas práticas. Isso mostrou-se também no artigo de Marcos Antonio Gonçalves Junior e Dione Lucchesi de Carvalho, “Perscrutando Diários de Aulas e Produzindo Narrativas sobre a Disciplina Estágio Supervisionado de um Curso de Licenciatura em Matemática”. Nele, o primeiro autor narra e analisa narrativas de sua experiência como professor da escola básica, responsável por supervisionar licenciandos durante o estágio de docência, e projeta tal experiência para a pesquisa de doutorado em Educação Matemática. No ato de releitura dos diários ele aproxima sua história vivida e escrita, com a colaboração dos estagiários, da literatura e identifica que práticas comuns possibilitam reflexões sobre o próprio fazer docente.

Identificamos em seu texto uma dupla função do texto/narrativa: como prática de profissional e como prática de formação. Gonçalves Junior organiza e reflete sobre sua prática docente, atribui sentidos e significados ao que fez, revela-se como produtor de conhecimentos. Ele dá sentido ao ato de narrar os acontecimentos do cotidiano das aulas de Matemática no diário; cotidiano esse vivenciado por ele e pelos licenciandos em estágio. Os desafios e os caminhos percorridos pelos envolvidos vão sendo transformados em aprender a “educar matematicamente os alunos” e, nesse processo de tensões da prática, vão se revelando aspectos da identidade dos futuros professores de Matemática e do formador de professores. Além disso, seu texto discute aspectos metodológicos relativos ao uso de diários como instrumento de investigação, relaciona esse processo de formação vivido e às perspectivas investigativa e colaborativa que empreendeu em sua prática. Como diz Gonçalves Junior, ele não pode mudar o que viveu, mas com a pesquisa narrativa ele olha outra vez, com outros olhos, para o passado recente.

Outro texto que discute as potencialidades das narrativas como prática profissional e de formação é o de Edna Maura Zuffi, Cláudia Flora Degrava, Miriam Cardoso Utsumi e Esther Pacheco de Almeida Prado, intitulado “Narrativas na Formação do Professor de Matemática: o caso da professora Atíria”. Ao explorar a construção de narrativas escritas por uma professora em formação continuada (mestrado profissional), destacando-a como um processo relevante para o desenvolvimento profissional da mesma, as autoras reportam-se a dois processos investigativos envolvendo as narrativas: um referente à pesquisa na sala de aula realizada pela professora em formação, que busca compreender e aplicar uma metodologia de ensino do tipo investigativa; e outra relativa ao desenvolvimento profissional dessa professora ao constituir as narrativas sobre suas experiências didáticas.

No primeiro processo, o uso das narrativas pela professora se dá em dois momentos: em sua anotação do que propunha em sala de aula com a metodologia de ensino investigativa, bem como de suas dificuldades e decisões tomadas; e na constituição de narrativas propriamente ditas a partir dessas anotações prévias e de sua articulação com os estudos teóricos sobre o método de ensino investigativo, na organização de sua dissertação de mestrado. No segundo processo, as narrativas da professora apresentadas neste seu trabalho final são vistas como modo de estudar/investigar a experiência. Desta vez, as narrativas são, portanto, analisadas pelas autoras/formadoras, a partir do que Freitas e Fiorentini (2007)5 5 A referência desse artigo consta no texto de Zuffi, Degrava, Utsumi e Prado, publicado neste número. chamam de análise narrativa, com vistas a discutir as potencialidades da utilização da escrita narrativa bem como de sua discussão em um ambiente de formação continuada, para o desenvolvimento profissional da professora de Matemática. Destaca-se, nessa análise, que as reflexões advindas da escrita narrativa da professora possibilitaram uma valorização por sua parte, dos registros escritos de seus alunos. Ou seja, entendemos que foi um processo que colaborou para a legitimação, por parte da professora, daquilo que é proposto na metodologia investigativa que utilizou, qual seja, a de Ponte, Brocardo e Oliveira (2003)6 6 Idem. . Segundo as autoras, como sugerido por Libâneo (2002)7 7 Idem. , outra possibilidade trazida pela reflexão dada a partir da escrita narrativa da professora foi a apropriação teórico-prática da realidade da sala de aula, bem como de procedimentos de resolução de conflitos nela surgidos.

Em seu texto “História da Educação Matemática, Formação de Professores a Distância e Narrativas Autobiográficas: dos sofrimentos e prazeres da tabuada”, Maria Laura Magalhães Gomes traz à cena a relevância das dimensões históricas do ensino da Matemática na formação de professores de Matemática. Segundo a autora, a compreensão histórica de diversos aspectos ligados à atuação e à formação docente, se problematizada de forma adequada, tem o potencial de melhorar a compreensão das próprias concepções sobre a profissão e sobre as práticas docentes relativamente à Matemática, por parte dos futuros professores. Além de discutir as potencialidades do uso das narrativas autobiográficas a partir das dimensões históricas do ensino de Matemática – explorando excertos de memórias de autores brasileiros que incluíram considerações sobre o ensino da Matemática, bem como a escrita de narrativas autobiográficas de alunas de um curso de licenciatura em Matemática a distância –, Gomes discute aspectos da cultura de aulas de Matemática, mas traz também outros aspectos que vão além do ensino, tais como “aspectos afetivos no processo de ensino-aprendizagem, entre professor e aluno e entre alunos, bem como relações de poder, refletidas em humilhações, punições e recompensas conferidas aos estudantes”. A exploração da historicidade do aluno/futuro professor a partir das narrativas autobiográficas mostra-se, deste modo, nesse texto, como uma potencialidade para a formação de professores em disciplinas de cursos de licenciatura, no sentido de ampliar a discussão e compreensão, nesse âmbito, de questões envolvendo alterações e permanências de práticas na história do ensino da Matemática ou da Educação Matemática. Essas compreensões podem contribuir “para a proposição, pelos professores, de formas alternativas positivas de atuação em relação ao que se tem feito na maioria das vezes – reproduzir práticas inadequadas do passado, mesmo sem entendê-las”.

As narrativas como fontes para análise de situações de formação e práticas

Neste eixo apresentamos aqueles textos que se propuseram a investigar práticas de ensino de Matemática e/ou aspectos relacionados à formação de professores, desenvolvimento profissional, ou práticas na Educação Matemática. Diferentemente do eixo anterior que, embora apresente pesquisas que realizaram análises de narrativas e discutiram práticas e aspectos da formação, referência àquelas que tinham como objetivo principal discutir as potencialidades das narrativas na/para a formação de professores de Matemática (ou que ensinam Matemática), neste eixo apresentamos as pesquisas interessadas em investigar algum aspecto relacionado às práticas e à formação e, para tanto, valem-se das narrativas como fontes de investigação, ou seja, como modo de investigar/estudar indícios de experiências.

Um artigo que compõe esse eixo é o de Celi Espasandin Lopes, “As narrativas de Duas Professoras em seus Processos de Desenvolvimento Profissional em Educação Estatística” que, ao discutir narrativas de experiências com Educação Estatística de participantes em um grupo de estudo e pesquisa, opta por trazer elementos reveladores de desenvolvimento profissional encontrado nas narrativas produzidas por duas professoras da escola básica. A autora narra, em seu artigo, elementos que compuseram as narrativas das professoras; explica que essas narrativas são de natureza reflexiva e problematizadora. Nessa perspectiva, Lopes explica que as narrativas das professoras permitiram que ela percebesse o modo como organizam a aula e interagem com os alunos. Desse modo, o narrar revelou o construir e o reconstruir da história de suas experiências pessoais.

Esse artigo não traz narrativas na íntegra produzidas pelas professoras, isto é, o estilo de texto escolhido pela autora é reescrever, a partir de narrativas orais e escritas, a história de cada uma das professoras com relação ao investimento que elas fazem para o seu desenvolvimento profissional e a relação que elas estabelecem com a Educação Estatística em suas aulas. O destaque apresentando pela autora refere-se ao papel que o grupo de estudos representou para as professoras.

Observamos que esse estilo de pesquisa, ainda que não apresente análise das narrativas, procura textualizar o dito e vivido pelos professores buscando elementos que revelem aspectos do seu desenvolvimento profissional. Assim, de certo modo, há uma ruptura com os aportes teóricos que tomam as narrativas na perspectiva da pesquisa em Educação e em Educação Matemática.

Embora também considere as narrativas como elemento de reflexão e formação docente, outro artigo que as utilizará como elemento revelador de indícios do desenvolvimento profissional é o de Priscila Domingues de Azevedo, intitulado “Narrativas de Práticas Pedagógicas de Professoras que Ensinam Matemática na Educação Infantil”. A autora considerou as narrativas orais e escritas como fontes de identificação da produção, do reconhecimento e da ressignificação dos conhecimentos matemáticos e metodológicos por parte de professoras da Educação Infantil que participaram de um grupo colaborativo. Para tanto, a autora mobilizou a análise de conteúdo proposta por Bardin (2011)8 8 Referência dessa obra consta no texto de Azevedo, publicado neste número. . A pesquisa realizada evidenciou indícios de desenvolvimento profissional manifestados pelas participantes do grupo e da pesquisa, ao discutir as abordagens metodológicas redimensionadas pelas professoras, os conhecimentos matemáticos que podem ser trabalhados com jogos e, também, os aspectos da aprendizagem colaborativa ocorridos no grupo.

O texto de Reginaldo Fernando Carneiro, intitulado “Narrativas de Alunas-professoras dos Anos Iniciais do Ensino Fundamental: uma cultura de aula de Matemática”, como o próprio título informa, buscou, nas narrativas de alunas/professoras de um curso de Pedagogia a distância, elementos reveladores de uma cultura de aula de Matemática. A mobilização das narrativas apresentada nesse texto, sobre as lembranças de alunas relacionadas à Matemática durante a sua vida escolar, se deu com vistas à produção de dados para a pesquisa apresentada. Para a análise das narrativas, Carneiro pauta-se em Górriz (2008)9 9 Referência desse artigo consta no texto de Carneiro, publicado neste número. , que propõe um modelo de investigação/formação autobiográfica a partir da análise de algumas dimensões que, segundo este autor, permitem ao sujeito a reconstrução de si mesmo. Apoiado na indicação do que cada uma dessas dimensões detectadas nas narrativas pode revelar sobre a cultura matemática das alunas-professoras, o autor destaca algumas potencialidades desse modelo de investigação/formação autobiográfica tanto para quem narra como para quem analisa o que foi narrado: o olhar para experiências marcantes e sentimentos com relação ao que é narrado (no caso, em relação à Matemática), bem como uma tentativa de compreensão de suas razões; o olhar sobre as ações e, com ele, a possibilidade de (re)avaliá-las e tomá-las como referências para ações futuras; a teorização possível daquilo que foi narrado.

Ampliando as reflexões a respeito do uso de biografias e narrativas nas pesquisas em Educação Matemática, o ensaio teórico de Filipe Santos Fernandes explica que “biografar é narrar relações, e esse narrar é diferente de meramente descrever”.

Temos verificado que muitas pesquisas que se propõem a discutir narrativas de professores apresentam uma descrição das práticas de professores. Para Fernandes, a descrição “pressupõe algo fixo, estratificado e constante” enquanto que a narrativa “não pressupõe a existência desse algo: o algo da narrativa se constitui no fazimento da narrativa”.

O ensaio de Fernandes, “Biografia do Orvalho: considerações sobre narrativa, vida e pesquisa em Educação Matemática” amplia essa discussão e nos remete a questionar o uso e/ou abuso que tem sido feito de narrativas nas pesquisas em Educação e Educação Matemática. Ele alerta que essa discussão pode ser pensada em termos filosóficos, metodológicos e históricos, no âmbito do pesquisar. E, de forma poética, ele propicia ao leitor tais reflexões ao entrelaçar poesia, narrativa e filosofia, procurando aproximações da pesquisa narrativa e historiográfica no campo da Educação Matemática.

Os espelhos do caleidoscópio de Fernandes são movimentados em duas direções: a que discute poeticamente a Biografia do orvalho de Manoel de Barros, que o fez refletir a respeito da qualidade do bio de uma biografia, que o levou, no âmbito filosófico, a uma discussão sobre os usos da narrativa de vida para além e aquém da constituição de sujeitos como compreendido na Modernidade; a outra, que parte do fragmento de Livro sobre Nada, também de Manoel de Barros, e nos provoca reflexões a respeito dos usos das narrativas de vida – biografias, autobiografias, relatos, depoimentos, diários, poemas e outras. Esses movimentos, segundo o autor, “desdobram-se em modos de se praticar a pesquisa e, como que em uma reverberação, a pesquisa em Educação Matemática tem sido pensada”.

Também aproximando a discussão da pesquisa narrativa à pesquisa historiográfica na Educação Matemática, Fernando Guedes Cury, Luzia Aparecida de Souza e Heloisa da Silva, no texto “Narrativas: um olhar sobre o exercício historiográfico na Educação Matemática”, apresentam perspectivas do Grupo História Oral e Educação Matemática – GHOEM, vinculadas ao uso de análise (narrativa) de narrativas na/para a História da Educação Matemática. A partir de uma comparação entre aquilo que caracteriza a História-arte e a História-ciência como formas de conhecimento histórico, os autores realizam aproximações entre História e Ficção, defendendo sua complementaridade, com Nunes (1988)10 10 Referência dessa obra consta no texto de Cury, Souza e Silva, publicado neste número. . Para eles, o caráter de Ciência conquistado pelo conhecimento histórico não deveria suprimir a base narrativa que mantém sua ligação com o ficcional, já que, compreendem, “a leitura ficcionaliza a História e, em compensação, historiciza a ficção, na medida em que a voz narrativa situa no passado o mundo da obra”. Com tais fundamentos, argumentam que a História Oral, como uma metodologia de pesquisa, anuncia cuidados especiais no tratamento e registro de narrativas com vistas à criação de fontes históricas e alertam: o pesquisador, nesse processo, compõe as narrativas ao textualizá-las, mas isso deve se dar em um processo de negociação em que existem inúmeros intérpretes e significações. “Lida-se com a individualidade que cada um quer imprimir a seu relato, com imagens cristalizadas, institucionalizadas, com dramas e aflições”.

Também pautados em Jorge Larrosa e Walter Benjamin sobre o significado de experiência e narrativas de experiências, os autores defendem que o historiador que pratica a História Oral deve esclarecer e contextualizar os episódios com os quais está tratando, não devendo caracterizá-los como modelos do mundo (ou estereótipos, como chamou Larrosa); ao trazer narradores de experiências da vida cotidiana, dando a ler suas narrativas legitimadas e cedidas com seus nomes impressos, o historiador deve, portanto, promover o encontro dos fios históricos com os pequenos detalhes da vida cotidiana – não se falará, deste modo, em “o professor de Matemática”, mas em professores de matemáticas específicos, situados em um contexto também específico. Assim, defenderão um tipo de análise de narrativas, a análise narrativa, no lugar da análise paradigmática. Pautados em Jerome Bruner, que nomeou tais expressões, essa defesa se justifica pelo motivo de o modo paradigmático buscar categorizações nas narrativas para se chegar a generalizações do grupo estudado, buscando temas comuns em suas narrativas. Por outro lado, na análise narrativa, busca-se considerar os casos particulares e tecer uma trama que cria uma nova narrativa, caracterizada pela explicitação de argumentos que tornem os dados significativos, sem buscar elementos comuns, mas dando destaque ao que é singular, procurando coerências e não contradições, em suma, sem aspirar à generalização. Os autores demonstram uma preocupação, por sua parte e por parte do grupo de pesquisa que representam, com o que Larrosa chamou a atenção em seu texto, também publicado nesta edição, sobre a problematização constante de nossos conceitos, nossas teorias e nossos métodos.

Modos de produção e de narração

O envolvimento com as narrativas, em suas múltiplas perspectivas, mobiliza os pesquisadores para outras formas de produção de dados e/ou de apresentação do texto narrativo. Acrescente-se a isso os recursos tecnológicos e o quanto eles têm favorecido outras formas de produção de dados de pesquisa.

Muitas pesquisas utilizam-se de entrevistas, memoriais, diários etc. como modos de produção de dados. O que pode ocorrer são variações nos modos de apresentação dessa produção. Esses instrumentos geralmente se apresentam na forma de texto escrito. Por exemplo, as entrevistas podem ser textualizadas ou não; mesmo em caso de textualização, pode-se apenas retirar as marcas da oralidade das falas dos depoentes, mantendo as intervenções do pesquisador no ato da entrevista (as perguntas), ou elas podem ser reescritas, dando-lhes a forma de um texto, com uma história de trajetória organizada no espaço-tempo dos acontecimentos.

Como textos, essas produções podem passar por vários processos de (re)escrita, não necessariamente em tempo simultâneo. No entanto, o uso de recursos de tecnologia de informação e comunicação pode produzir outro tipo de registro: aquele que pode ser comentado, complementado, refutado pelos pares e pelo professor, no próprio ambiente virtual.

Esse é o caso do trabalho “O Uso de Blogs como Tecnologia Educacional Narrativa para a Forma/ação Inicial Docente” de Luciane Mulazani dos Santos, Roger Miarka e Ivanete Zuchi Siple. Os autores, utilizando blogs, entendidos por eles como tecnologia da informação e da comunicação narrativa, analisam produções de licenciandos em Matemática na disciplina de Estágio Curricular Supervisionado. Eles discutem o “uso dos blogs como recurso metodológico, ora como possibilidade de os alunos estagiários se narrarem, ora como possibilidade de narrarem sobre a prática do ser professor”. Cada aluno do curso se responsabilizou pela criação, manutenção e administração de seu blog, no qual deveria postar uma narrativa semanalmente, de forma que o professor supervisor de estágio pudesse acompanhar, por meio da leitura, compartilhando, inserindo comentários e instigando discussões.

Outra inovação nos modos de produção dos dados está no trabalho de Ricardo Scucuglia Rodrigues da Silva, “Narrativas Multimodais: a imagem dos matemáticos em performances matemáticas digitais”. No texto o autor descreve como foi a produção dessas performances, por ele consideradas como “narrativas multimodais nas quais são comunicadas ideias matemáticas através das artes”. A pesquisa foi realizada num curso de extensão universitária, no qual os alunos produziram duas performances: uma de natureza cinematográfica e outra, musical. Ao final do curso de dez meses, cinco dos nove estudantes participantes passaram por uma entrevista. Além disso, o pesquisador considerou o registro das interações coletivas durante o curso, visto que as atividades foram filmadas. Nas suas análises, o autor discute relações entre narrativa, paramatemática e identidade.

Se os dois trabalhos anteriores inovam nos modos de produção de dados, o de Sônia Maria Clareto e Margareth A. Sacramento Rotondo, “Como Seria um Mundo sem Matemática? Hein?! Na Tensão Narrativa-Verdade”, inova na escrita narrativa. As autoras rompem com os modos canônicos de apresentação de um texto com narrativas, uma escrita que “se coloca no lugar de desabituar esse modo de escrita acadêmica” e produzem uma narrativa tecendo as múltiplas vozes que a compõem: das autoras, dos autores com quem dialogam e dos alunos. Ou, como denominam as autoras, narrativas em narrativa, narrativa da narrativa. Nele é discutida uma Matemática escolar que produz modos de existir, são discutidas concepções de Matemática.

Igualmente criativo na sua forma de apresentação é o texto “Repositioning Ourselves: acknowledging contradiction”, de Dana Cox, Beatriz Silva D’Ambrosio, Jane Keiser e Nirmala Naresh. Utilizando o gênero teatral, em três atos, as pesquisadoras realizam um self-study, narrando como elas, em condição de formadoras de professores, ao avaliarem o impacto de um projeto de formação que visava trabalhar com as habilidades dos professores para ouvirem seus alunos, se conscientizam das discrepâncias existentes entre o que esperavam dos professores e o que, de fato, estavam realizando com os dados produzidos por eles. Reconhecem o quanto negaram “aos participantes tanto autonomia quanto identidade. Isso resultou numa contradição viva, já que esse posicionamento era conflitante com nossa postura de que alunos merecem ambos”. A tentativa de categorização dos dados levou-as a distorcerem e até silenciarem as vozes dos professores.

Para concluir...

Os textos que compõem essa edição temática apontam para a multiplicidade de perspectivas para o campo de investigação com as narrativas. Múltiplas são as interpretações do que sejam as narrativas; as formas de produção de dados, de constituição das fontes e de análise; e as formas de escritura do texto.

A nós, editoras, que tivemos o prazer de ler os textos desta edição, fica a impressão de que esse conjunto de artigos permite ao leitor responder às questões postas no início desta apresentação, questões estas que passamos a retomar a seguir, a elas agregando outras.

O que esses textos ampliam à luz do que já se tinha produzido no campo? Quais potencialidades para a pesquisa em Educação Matemática? Como ficam os critérios éticos com essa forma de pesquisar? E as questões de autoria? Como analisar o singular no social? Ou o social no singular? Quais indagações nos deixam? Quais provocações nos fazem? Descrever as narrativas? Interpretá-las? Categorizá-las? Ou narrá-las?

Se o texto de Larrosa, na abertura desta edição, nos alerta para a assimetria entre os sujeitos pesquisadores e os sujeitos pesquisados e que a pesquisa com narrativas pode se constituir em armadilhas, pois, ao democratizarmos vidas, identidades próprias, podemos estar contribuindo para que a sociedade se converta em espetáculo de si mesma, ou ainda, produzindo estereótipos de personagens, de lugares, os textos de Cury, Souza e Silva e de Cox, D’Ambrosio, Keiser e Naresh, com o qual fechamos esta edição, nos alertam para os modos de análise de pesquisas com vozes de professores. Como não silenciar essas vozes? Como não criarmos estereótipos? Como não sermos moralistas ao falarmos do outro?

Concordamos com Larrosa de que nós, os pesquisadores acadêmicos somos “os que estabelecemos a relação legítima entre as palavras e as coisas, entre a experiência e o sentido, os que clarificam, ordenam e escrevem o mundo, os que têm a arrogante pretensão de conhecê-lo, julgá-lo, transformá-lo”? Temos realizado reflexões suficientes sobre as teorias e métodos que praticamos?

Damos, assim, o presente dossiê para ser lido. Que cada leitor faça sua leitura, sua interpretação, tente responder a essas e outras questões, modifique os espelhos para que o caleidoscópio produza outras imagens e crie outros efeitos.

Referências

  • GALVÃO, C. Professor: o início da prática profissional. 1998. 716 f. Tese (Doutorado Educação) — Departamento de Educação, Faculdade de Ciências, Universidade de Lisboa, Lisboa, 1998.
  • LARROSA, J. Notas sobre narrativa e identidad (A modo de presentatión). In: ABRAHÃO, M. H. M. B. (Org.). A aventura (auto)biográfica: teoria e empiria. Porto Alegre: EdiPUCRS, 2004. p. 11-22.
  • SHOR, I.; FREIRE, P. Medo e ousadia: o cotidiano do professor. Trad. Adriana Lopez. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986.
  • SOUZA, E. C. Pesquisa Narrativa, (auto)Biografias e História Oral: ensino, pesquisa e formação em Educação Matemática. Ciências Humanas e Sociais em Revista, Rio de Janeiro, v. 32, n. 2, p. 13-27, jul./dez. 2010.
  • 1
    http://revistas.rcaap.pt/interaccoes/article/view/456.
  • 2
    Texto ainda não publicado.
  • 3
    http://periodicos.puc-campinas.edu.br/seer/index.php/reveducacao.
  • 4
    Referência dessa obra consta na tradução de Fernandes do referido texto de Larossa, publicada neste número.
  • 5
    A referência desse artigo consta no texto de Zuffi, Degrava, Utsumi e Prado, publicado neste número.
  • 6
    Idem.
  • 7
    Idem.
  • 8
    Referência dessa obra consta no texto de Azevedo, publicado neste número.
  • 9
    Referência desse artigo consta no texto de Carneiro, publicado neste número.
  • 10
    Referência dessa obra consta no texto de Cury, Souza e Silva, publicado neste número.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Ago 2014
UNESP - Universidade Estadual Paulista, Pró-Reitoria de Pesquisa, Programa de Pós-Graduação em Educação Matemática Avenida 24-A, 1515, Caixa Postal 178, 13506-900 Rio Claro - SP Brasil - Rio Claro - SP - Brazil
E-mail: bolema.contato@gmail.com