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A Ação dos Signos e o Conhecimento dos Alunos em Atividades de Modelagem Matemática* * Artigo produzido em projeto financiado pelo CNPq.

The Action of Signs and the Students' Knowledge in Mathematical Modeling Activities

Resumo

Este artigo tem como objetivo discutir a relação entre a ação e a produção de signos em atividades de modelagem matemática e o conhecimento dos alunos. Para delimitar o objeto de análise tratamos do conceito retomado por Peirce ao longo de seus trabalhos: a semiose. Considerando elementos relativos ao entendimento de modelagem matemática e à luz de aspectos da teoria peirceana, olhamos para o desenvolvimento de atividade de modelagem realizado por alunos de um curso de Química durante aulas de CDI. A análise da ação e produção de signos na atividade indica que a semiose, como ação que envolve signo, objeto e interpretante, não é limitada. Em vez disso, esta ação e produção revelam que fenômeno e Matemática são indissociáveis e que parece se configurar como uma rede em que signos são produzidos ou acionados pelo conhecimento e também geram novo conhecimento. Nesta rede, podemos caracterizar uma estrutura que associa conhecimento matemático, conhecimento sobre o problema em estudo e conhecimento tecnológico.

Palavras-chave:
Modelagem Matemática; Semiótica; Conhecimento

Abstract

This article aims to discuss the relationship between the action and the production of signs in mathematical modeling activities and the knowledge of students. To delimit the object of analysis, we discuss the concept taken up by Peirce throughout his work: semiosis. Considering factors relating to the understanding of mathematical modeling and light aspects of Peirce's theory, we look at the development of a modeling activity performed by students in a chemistry course during CDI classes. The analysis of the action and production of signs in the activity indicates that the semiosis as an action that involves sign, object, and interpretant is not limited. Instead, this action and production revealed that the phenomenon and mathematics are inseparable and that seems to be set up as a network in which signs are produced or driven by knowledge and generate new knowledge. In this network, we can characterize a structure that combines mathematical knowledge, knowledge of the problem under study, and technological knowledge.

Keywords:
Mathematical Modeling; Semiotics; Knowledge

1 Introdução

A construção de conhecimento tem recebido atenção e despertado interesse em profissionais de diferentes áreas. No âmbito da Educação Matemática, especialmente no contexto escolar, discussões sobre a temática vêm ocupando professores e pesquisadores da área. Essa construção de conhecimento, entretanto, tem relação com especificidades das atividades desenvolvidas e das possibilidades que elas proporcionam para a abordagem do que se deseja conhecer.

No entanto, o que é conhecer? Como conhecemos algo? Como representamos aquilo que conhecemos? Certamente questões como estas não são excludentes e guardam entre si alguma relação, embora cada uma possa proporcionar discussões específicas. Deliberações sobre encaminhamentos de alguma resposta, sem dúvida, continuam desafiando mentes nas mais diversas áreas.

Não está no escopo deste artigo definir respostas. Ao invés disso, o que se vislumbra é lançar alguma luz sobre o conhecimento em atividades desenvolvidas em aulas de Matemática. Mais especificamente, interessa-nos colocar em discussão a construção de conhecimento durante o desenvolvimento de atividades de modelagem matemática.

A modelagem matemática diz respeito a uma abordagem, por meio da Matemática, de uma situação-problema não matemática. Assim, conforme indica Almeida (2010)ALMEIDA, L. M. W. Um olhar semiótico sobre modelos e modelagem: metáforas como foco de análise. Zetetiké, Campinas, v. 18, número temático, p. 387–414, dez. 2010., em linhas gerais, uma atividade de modelagem matemática pode ser descrita em termos de uma situação inicial – problema a ser investigado – e uma situação final – modelo matemático que serve para descrever, representar e, em alguns casos, prever aspectos associados ao problema. Considerando a natureza contextual de atividades desse tipo, conhecimentos matemáticos e não matemáticos podem ser construídos ou reconstruídos.

Todavia, os objetos em Matemática têm natureza simbólica e o acesso a eles é mediado por representações. Segundo Correia (2007)CORREIA, C. M. C. Fundamentos da semiótica peirceana. In: FÓRUM DE ESTUDOS LINGUÍSTICOS, 9., 2007, Rio de Janeiro. Atas… Rio de Janeiro, UERJ, 2007. p. 1–8., uma das características primordiais do ser humano é a capacidade de abstração, a condição de simbolização por meio da manipulação de signos, entidades representativas que têm a capacidade de gerar entendimento a partir da representação e da experiência no mundo que cerca o ser humano.

A abordagem dessas representações e essa capacidade de simbolização remetem ao arcabouço teórico da Semiótica na qual argumentações contemporâneas são destacadas por Charles Sanders Peirce. Investigações da abordagem peirceana em Matemática e, particularmente, na modelagem matemática, já podem ser percebidas na literatura. Podemos citar, por exemplo, Almeida; Silva (2012)ALMEIDA, L. M. W.; SILVA, K. A. P. Semiótica e as ações cognitivas dos alunos em atividades de modelagem matemática: um olhar sobre os modos de inferência. Ciência & Educação. Bauru, v. 18, n. 3, p. 623–642, jul./set. 2012., Silva (2013)SILVA, K. A. P. Uma interpretação semiótica de atividades de Modelagem Matemática: implicações para a atribuição de significado. 2013. 285 f. Tese (Doutorado em Ensino de Ciências e Educação Matemática) – Universidade Estadual de Londrina, Londrina, 2013., Miskulin, (2007)MISKULIN, R. G. S. et al. A semiótica como campo de análise para as representações de conceitos matemáticos. Cadernos de Semiótica Aplicada, Araraquara, v. 5, n. 2, p. 1–18, dez. 2007., Kehle; Cunningham (2000)KEHLE, P. E.; CUNNINGHAM, D. J. Semiotics and mathematical modeling. International Journal of Applied Semiotics, Madison, v. 3, n. 1, p. 113–129, 2000., Kehle; Lester (2003)KEHLE, P.; LESTER JR., F. K. A semiotic look at modeling behavior. In: LESH, D.; DOERR, H. Beyond Constructivism: models and modeling perspectives on mathematics problem solving, learning, and teaching. Hillsdale: Ed. Erlbaum, 2003. p. 97–122..

Neste artigo, em particular, nos propomos a discutir a relação entre a ação e produção de signos em atividades de modelagem matemática e o conhecimento dos alunos. Para delimitar o nosso objeto de análise nessa pesquisa, tratamos do conceito retomado por Peirce ao longo de seus trabalhos e que tem recebido a atenção de inúmeros de seus seguidores e interpretadores: a semiose.

A semiose, caracterizada como ação dos signos, constitui o processo transformador, que envolve signo, objeto e interpretante e, segundo Nöth (2008)NÖTH, W. Panorama da Semiótica: de Platão a Peirce. 4. ed. São Paulo: Annablume, 2008. 150 p., ela faz com que o signo tenha um efeito cognitivo sobre o intérprete e gere novos signos. Assim, nos apoiamos em aspectos da semiótica peirceana que nos possibilitam articular os conhecimentos dos alunos viabilizados por meio de signos, matemáticos ou não matemáticos, que produzem ou mobilizam no desenvolvimento de uma atividade de modelagem matemática.

Levando em consideração elementos relativos ao nosso entendimento de modelagem matemática e à luz de alguns aspectos da teoria peirceana, olhamos para o desenvolvimento de uma atividade de modelagem realizado por alunos de um curso de Licenciatura em Química durante aulas de Cálculo Diferencial e Integral.

2 Semiótica – semiose e construção do conhecimento

A ideia de signo, do latim signum, segundo Abbagnano (2007)ABBAGNANO, N. Dicionário de Filosofia. 5. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007. 1014 p., provavelmente tem origem na doutrina formulada pelos estóicos 1 1 Filósofos da época do estoicismo – doutrina filosófica fundada em Atenas por Zenão de Cítio no início do século III a.C. que se referiam ao signo como “aquilo que parece revelar alguma coisa, e em sentido específico chamavam de signo aquilo que é indicativo de uma coisa obscura, não manifesta” (ABBAGNANO, 2007ABBAGNANO, N. Dicionário de Filosofia. 5. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007. 1014 p., p. 905).

A referência ao uso de signos também não é exclusiva da contemporaneidade. A origem da prática semiótica, segundo Nöth (2008)NÖTH, W. Panorama da Semiótica: de Platão a Peirce. 4. ed. São Paulo: Annablume, 2008. 150 p., é tão antiga quanto o próprio homem, que desde sempre percebeu, transmitiu e interpretou signos. Estudos sobre signos se revelam ao longo da história da filosofia nas obras de Platão (427–347) e Aristóteles (384–322), por exemplo, que já desenvolviam e manifestavam suas ideias considerando a necessidade de signos. A palavra grega semeiotiké, com o significado de ciência geral dos signos, os signos da linguagem, no entanto, teria sido introduzida na filosofia com esta designação pelo filósofo empirista inglês John Locke (1632–1704) em seu Essay on Human Understanding no século XVII.

Charles Sanders Peirce (1839–1914), filósofo e matemático americano, a partir de 1857, tratou da semiótica em sintonia com a Lógica, então percebida como uma filosofia da linguagem. Na semiótica peirceana podemos identificar, em termos gerais, duas frentes de construção teórica, contudo estreitamente interligadas:

Uma taxonomia, que se ocupa da sistematização e classificação exaustiva dos diferentes tipos de signo possíveis; e uma lógica, que se ocupa do seu modo de funcionamento (como significam os signos) e do papel que estes desempenham na cognição humana e no acesso do homem ao mundo da experiência e do vivido (FIDALGO; GRADIM, 2005FIDALGO, A; GRADIM, A. Manual de Semiótica. 1. ed. Portugal: UBI, 2005. 224 p. Disponível em: <www.ubi.pt>. Acesso em: 14 maio 2015.
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, p. 142).

Nossos interesses nesse artigo direcionam-se para a segunda frente referida pelos autores. Neste contexto, consideramos a ideia de Peirce (1998PEIRCE, C. S. The essential Peirce: selected philosophical writings. HOUSER, N. et al. (Ed.). Bloomington: Ed. Indiana University Press, 1992–1998. 448 p. Citado como EP seguido do número do volume., p. 13) de que “O signo é algo que serve para produzir conhecimento sobre alguma outra coisa, para a qual o signo está (stands for) ou representa. Essa outra coisa é chamada de objeto 2 2 Para Peirce (2005), o objeto não pode se restringir à noção de um existente. Uma ideia, um conjunto de coisas, um evento ou uma ocorrência pode ser objeto de uma dada relação sígnica. do signo”.

Considerando que o ato de representar é uma função do signo, Peirce (2005PEIRCE, C. S. Semiótica. 3. ed. São Paulo: Perspectiva, 2005. 340 p., p. 61) afirma que representar é “estar em lugar de, isto é, estar numa relação com um outro que, para certos propósitos, é considerado por alguma mente como se fosse esse outro”.

Ao interpretar a relação entre signo e objeto enunciada por Peirce, Otte (2001)OTTE, M. Mathematical epistemology from a semiotic point of view. In: PME INTERNATIONAL CONFERENCE, 25., 2001, Utrecht. PME… Utrecht: University of Utrecht, 2001. p. 1–32. Unpublished manuscript., conclui que os signos são possíveis, os objetos não. Essa possibilidade, entretanto, só ocorre na presença de um outro, o intérprete, ou seja, a ação do signo de estar no lugar de só se completa se houver alguém ou algo capaz de interpretar essa relação. Assim, reconhecemos os objetos pelo fato de representá-los de alguma forma.

É nesse sentido que Peirce indica que o signo é o elemento por meio do qual um intérprete pode conhecer, modificar ou ampliar o entendimento de algo – o objeto do signo. Lúcia Santaella, vislumbrando caracterizar signo, afirma que:

signo é qualquer coisa de qualquer espécie (uma palavra, um livro, uma biblioteca, um grito, uma pintura, um museu, uma pessoa, uma mancha de tinta, um vídeo etc.) que representa outra coisa, chamada de objeto do signo, e que produz um efeito interpretativo em uma mente real ou potencial (SANTAELLA, 2004SANTAELLA, L. Contribuições do pragmatismo de Peirce para o avanço do conhecimento. Revista de Filosofia, Curitiba, v. 18, n. 18, p. 75–86, jan./jun., 2004., p. 8).

Fidalgo e Gradim (2005FIDALGO, A; GRADIM, A. Manual de Semiótica. 1. ed. Portugal: UBI, 2005. 224 p. Disponível em: <www.ubi.pt>. Acesso em: 14 maio 2015.
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, p. 147), interpretando assertivas de Peirce, consideram que o signo é “algo que ao ser conhecido por nós, faz com que conheçamos algo mais”. Desse modo, parece se configurar um processo de geração de signos de modo que, na medida em que conhecemos mais ou temos a intenção de conhecer mais, novos signos são produzidos e interpretados. Isso remete à definição de signo apresentada por Peirce, referindo-se à relação triádica signo, objeto e interpretante.

Um signo é aquilo que, sob certo aspecto ou modo, representa algo para alguém. Dirige-se a alguém, isto é, cria na mente dessa pessoa, um signo equivalente, ou talvez um signo mais desenvolvido. Ao signo assim criado denomino interpretante do primeiro signo. O signo representa alguma coisa, seu objeto. Representa esse objeto não em todos os seus aspectos, mas com referência a um tipo de ideia que eu, por vezes, denominei fundamento do signo (PEIRCE, 2005PEIRCE, C. S. Semiótica. 3. ed. São Paulo: Perspectiva, 2005. 340 p., p. 46).

Uma característica do interpretante, portanto, é ser ele próprio um signo e gerar um novo interpretante, sendo assim a geração de interpretantes é dinâmica na mente do intérprete, conforme indica a assertiva de Peirce:

O signo cria algo na mente do Intérprete, algo esse que foi também, de maneira relativa e mediada, criado pelo Objeto do Signo, embora o Objeto seja essencialmente diverso do Signo. Ora, esta criatura do Signo chama-se Interpretante. Ele é criado a partir do signo e é também signo (PEIRCE, 2005PEIRCE, C. S. Semiótica. 3. ed. São Paulo: Perspectiva, 2005. 340 p., p. 74).

Como fundador do pragmatismo, Peirce formula suas definições sobre signo com um indiscutível zelo em relação a uma ação possível, à experiência, e, embora primem pela abstração, segundo Santaella (2008)SANTAELLA, L. A Teoria Geral dos Signos: como as linguagens significam as coisas. 2. reimpr. da 1. ed. São Paulo: Cengage Learning, 2008. 154 p., suas formulações acabam por dar conta das mais diversas situações concretas. Assim, não obstante a consideração da classificação triádica estabelecida por Peirce, neste artigo ocupamo-nos do funcionamento de signos em uma situação particular, a dizer, a ação e produção de signos em uma atividade de modelagem matemática e a construção de conhecimento associada a essa produção.

Nesse contexto é relevante considerar a relação entre signo e representação. Fazemo-lo, abreviadamente, usando as argumentações do próprio Peirce. Para Peirce (2005PEIRCE, C. S. Semiótica. 3. ed. São Paulo: Perspectiva, 2005. 340 p., p. 61) “representar é estar em lugar de, isto é, estar numa relação com um outro que, para certos propósitos, é considerado por alguma mente como se fosse esse outro”. Peirce faz então uma relação entre signo e representação: “Quando se deseja distinguir entre aquilo que representa e o ato de representar, pode-se denominar o primeiro de ‘signo’ e o último de ‘representação’” (PEIRCE, 2005PEIRCE, C. S. Semiótica. 3. ed. São Paulo: Perspectiva, 2005. 340 p., p. 61). Assim, na verdade, operamos com o que usamos para representar – as representações – o que nos permite usar o termo para nos referirmos àquilo com que lidamos em atividades de modelagem matemática.

Steinbring (2006)STEINBRING, H. What makes a sign a Mathematical Sign? An epistemological perspective on mathematical interaction. Educational Studies in Mathematics. New York: Ed. Springer, v. 61, n. 1, p.133–162, feb. 2006. ressalta que o conhecimento matemático não pode ser traduzido e interpretado por uma mera leitura de signos. É preciso que a leitura seja carregada de experiência e conhecimento implícito, isto é, não podemos entender os signos sem alguns pressupostos de tal conhecimento ou de maneiras de utilizá-lo. Este é o caso, por exemplo, da introdução de números irracionais. Se para definir números racionais é possível considerar algum outro signo, para além da própria representação do número, visando elucidar o que o número significa, o mesmo procedimento não é viável para falar de 2.

Neste sentido, construção de conhecimentos não coincide exatamente com a apreensão simbólica das representações, de modo que Peirce pondera:

Conhecer, contudo, não tem por finalidade dominar o objeto e esgotá-lo em sua representação, mas oferecer uma linha de conduta suficientemente boa para que nosso ardente desejo de comungar com o objeto possa com o tempo, e cada vez melhor, se realizar (CP 2. 227) 3 3 Collected Papers of Charles Sanders Peirce, Ed. Charles Hartshorne e Paul Weiss (vols. I-IV: 1931/35). Harvard University Press, Cambridge, Mass., 1965; Ed. Arthur Burks (vols. VII-VIII: 1958), id., 1966. Para a citação cf. 2.227 (o primeiro dígito sinaliza o volume da obra referida e os demais o parágrafo. A obra é denotada usualmente pela sigla CP). .

Essa expectativa de relação entre objeto, signos e intérprete, que na perspectiva peirceana constitui a construção do conhecimento, é mediada pela semiose. A semiose é, por assim dizer, uma ação que envolve signo, objeto e interpretante e, segundo Nöth (2008)NÖTH, W. Panorama da Semiótica: de Platão a Peirce. 4. ed. São Paulo: Annablume, 2008. 150 p., ela faz com que o signo tenha um efeito cognitivo sobre o intérprete e gere novos signos. De acordo com a definição de Peirce, o conceito de semiose, a ação do signo, é caracterizado como uma atividade eminentemente evolutiva. Santaella (1992)SANTAELLA, L. Peirce's semioses and the logic of evolution. In: DELEDALLE, G. Signs of Humanity L'homme et ses Signens. Berlim: Ed. Mouton de Gruyter, 1992. p. 1305–1309., analisando as questões lógicas implícitas nesse conceito peirceano, refere-se a um engendramento lógico, como a função primordial do complexo de relações que existe entre os três elementos da tricotomia sígnica: signo, objeto e interpretante.

Drigo (2007DRIGO, M. O. Comunicação e Cognição: semiose na mente humana. 1. ed. Porto Alegre: Sulina, 2007. 142 p., p. 85) sugere, neste contexto, que “a semiose se desencadeia quando da atualização da mente”. Ou seja, a geração de um novo signo, um interpretante, coincide com a identificação de um desconforto ou uma instabilidade, cuja superação é mediada pela semiose. Segundo Thibaud (1975)THIBAUD, P. La Logique de Charles S. Peirce: de l'Algébre aux Graphes, aix-em-provence. 1. ed. Universite de Provence, 1975. 185 p., a semiose constitui, na mente do intérprete, o modo como cresce o conhecimento com relação ao objeto, aliando experiências colaterais para a produção de interpretantes para o objeto que se deseja como fim.

Isto nos permite ponderar que interpretantes revelam também atos interpretativos particulares, associados a especificidades e experiências pessoais, de modo que o intérprete é capaz de produzir entendimentos a partir de experiências e de signos de naturezas diversas.

Essa nossa ponderação está também fundamentada nas indicações de Peirce de que os interpretantes são construídos de acordo com o efeito do signo no intérprete. Peirce distingue assim três classes de interpretantes: o interpretante imediato, que consiste na qualidade de impressão que o signo pode produzir no intérprete; o interpretante dinâmico que se refere ao efeito produzido pelo signo e corresponde à interpretação do signo pelo intérprete; o interpretante final, que, segundo Peirce (2005PEIRCE, C. S. Semiótica. 3. ed. São Paulo: Perspectiva, 2005. 340 p., p 164), “é aquilo que finalmente se decidiria ser a interpretação verdadeira se se considerasse o assunto de um modo tão profundo que se pudesse chegar a uma opinião definitiva”.

Drigo (2007)DRIGO, M. O. Comunicação e Cognição: semiose na mente humana. 1. ed. Porto Alegre: Sulina, 2007. 142 p. considera que há um caminhar dos interpretantes rumo ao interpretante final. Neste sentido “o interpretante final não é algo que está determinado antes do processo iniciar, mas um interpretante que cresce também na semiose” (DRIGO, 2007DRIGO, M. O. Comunicação e Cognição: semiose na mente humana. 1. ed. Porto Alegre: Sulina, 2007. 142 p., p. 90).

Entretanto, este interpretante final, sendo signo, como tal representa o objeto em alguns de seus aspectos. Assim, pode ainda gerar outros interpretantes. Peirce (2005PEIRCE, C. S. Semiótica. 3. ed. São Paulo: Perspectiva, 2005. 340 p., p. 74) refere-se a este processo como sendo: “Qualquer coisa que conduz alguma outra coisa (seu interpretante) a referir-se ao objeto ao qual ela mesma se refere (seu objeto) de modo idêntico, transformando-se o interpretante, por sua vez, em signo, e assim sucessivamente ad infinitum”. Considerando o esquema da tríade peircena esquematizado por Otte (2006)OTTE, M. Mathematical epistemology from a Peircean semiotic point of view. Educational Studies in Mathematics, New York, v.61, n. 1, p.11–38, feb. 2006., a semiose como processo de geração ad infinitum de interpretantes pode ser representada conforme ilustra a figura 1.

Figura 1
Semiose

Seeger (2004)SEEGER, F. Beyond the dichotomies: semiotics in mathematics education research. Zentralblattfür Didaktik der Mathematik, Karlsruhe, v. 36, n. 6, p. 206–216, 2004., pautado nessa assertiva de Peirce, associa o processo de geração de interpretantes a uma trama no sentido de que ela é constituída a partir de redes em que signo gera interpretante, que sendo signo integra nova tríade, configurando nova semiose. Além disso, esse novo signo – o interpretante – pode passar a constituir ele próprio um objeto e indicar novo signo, outra semiose.

No âmbito da Matemática, considerando a natureza simbólica dos objetos, a construção de conhecimentos é mediada pelas representações, ou pela construção e uso dessas representações, conforme argumenta Lins (2004LINS, R. C. Matemática, Monstros, Significados e Educação Matemática. In: BICUDO, M. A. V. BORBA, M. C. Educação Matemática: pesquisa em movimento. São Paulo: Ed. Cortez, 2004. p. 92–120., p. 96) de que os objetos em Matemática “são conhecidos, não no que eles são, mas apenas em suas propriedades, no que deles se pode dizer”.

Neste artigo, em particular, interessa-nos discutir a relação entre a ação e a produção de signos em atividades de modelagem matemática e o conhecimento dos alunos. Com esta finalidade olhamos para a ação e produção de interpretantes, ou seja, olhamos para o processo de semiose, em atividades de modelagem matemática.

3 Modelagem Matemática

Embora possa se reconhecer uma pluralidade de ideias, ou até mesmo de concepções, sobre o que vem a ser modelagem na Educação Matemática, pautamo-nos no entendimento, compartilhado por diversos autores, de que ela é orientada pela busca de solução para um problema cuja origem está, de modo geral, associada a uma situação que, a priori, não é da Matemática.

Neste contexto argumentamos que a modelagem matemática viabiliza uma leitura, ou até mesmo uma interpretação, ainda que parcial e idiossincrática, de fenômenos do mundo ou da vida, muitas vezes identificados fora do ambiente escolar, com o apoio da Matemática.

A introdução e o uso da modelagem matemática nos diversos níveis de escolaridade e em diferentes cursos e disciplinas remete, entretanto, ao uso, à aplicação e à construção de conhecimento em Matemática.

Nesse artigo, considerando a assertiva de Perrenet e Zwaneveld (2012PERRENET, J.; ZWANEVELD, B. The many faces of the mathematical modeling cycle. Journal of Mathematical Modelling and Application, Blumenau, v. 1, n. 6, p. 3–21, 2012., p. 3) de que “a modelagem matemática é, em primeiro lugar, sempre sobre algo, uma situação e um problema decorrente dessa situação, e que a matemática é ‘apenas’ uma parte de todo o processo”, ao argumentamos que a modelagem matemática é, em geral, sobre algo que não é propriamente do campo da Matemática, mas o conhecimento com relação a este algo é mediado pelo conhecimento que se tem da Matemática.

Neste sentido, trata-se de um procedimento criativo e interpretativo que estabelece uma estrutura matemática que deve incorporar, com certo nível de fidelidade, características essenciais do fenômeno que pretende representar. A essa estrutura matemática referimo-nos como modelo matemático, que segundo Doerr e English (2003)DOERR, H. M.; ENGLISH. L. D. A modeling perspective on students' mathematical reasoning about data. Journal for Research in Mathematics Education. NCTM, Coverage, v. 34, n. 2, p. 110–136, mar. 2003., consiste em um sistema conceitual, descritivo ou explicativo cuja finalidade é prover meios para descrever, explicar e mesmo predizer o comportamento do fenômeno, por meio de representações que podem incluir desde símbolos, diagramas e gráficos, até expressões algébricas ou geométricas.

Os procedimentos dos alunos (porque estamos nos referindo à modelagem matemática na sala de aula) no decorrer da atividade são mediados pelo uso, pela interpretação e produção de representações. Assim, as representações ocupam um papel importante no desenvolvimento de atividades de modelagem matemática e oferecem elementos para que a obtenção e a interpretação da solução sejam viabilizadas. Além disso, elas são a forma de acesso aos objetos matemáticos e favorecem a compreensão, seja da própria Matemática, seja do fenômeno em estudo.

Para Almeida, Silva e Vertuan (2012)ALMEIDA, L. W.; SILVA, K. P.; VERTUAN, R. E. Modelagem Matemática na Educação Básica. 1. ed. São Paulo: Contexto, 2012. 158 p., é possível identificar elementos que, de modo geral, constituem uma atividade de modelagem. Segundo os autores

[…] o início é uma situação-problema; os procedimentos de resolução não são predefinidos e as soluções não são previamente conhecidas; ocorre a investigação de um problema; conceitos matemáticos são introduzidos ou aplicados; ocorre a análise da solução (ALMEIDA; SILVA; VERTUAN, 2012ALMEIDA, L. W.; SILVA, K. P.; VERTUAN, R. E. Modelagem Matemática na Educação Básica. 1. ed. São Paulo: Contexto, 2012. 158 p., p. 17).

Pensar a abordagem de objetos matemáticos no desenvolvimento de atividades de modelagem matemática, entretanto, requer considerar a natureza simbólica destes objetos. Aquilo a que se tem acesso são representações dos objetos e é a partir delas e por meio delas que se pode abordar a construção de conhecimento por aqueles envolvidos na atividade de modelagem matemática. Daí a investigação da ação e da produção de signos nestas atividades.

4 A ação dos signos na atividade de modelagem matemática

Para investigar a ação e a produção de signos em atividades de modelagem matemática e o conhecimento dos alunos, analisamos uma atividade desenvolvida por alunos em curso de Licenciatura em Química na disciplina de Cálculo Diferencial e Integral (CDI) ministrada por uma das autoras deste texto.

Referimo-nos aos signos escritos, falados e gesticulados acionados ou produzidos pelos alunos e que foram obtidos por meio de vídeos, gravações em áudio e relatório da atividade entregue pelos alunos. Do ponto de vista metodológico, trata-se de uma pesquisa qualitativa e de análise interpretativa. Os dados analisados referem-se à atividade desenvolvida por um dos grupos de alunos da disciplina. Os nomes (fictícios) de alunos usados no decorrer da nossa descrição são dos integrantes deste grupo.

A atividade de modelagem diz respeito ao fenômeno carregamento da bateria do telefone celular. O encaminhamento da atividade, durante um período de cinco horas/aula, se deu a partir de dados coletados pelos alunos com seus respectivos celulares em período anterior ao desenvolvimento da atividade na aula de CDI. Na sala de aula, portanto, a atividade teve início com os dados trazidos pelos alunos em ficha conforme indica o quadro 1.

Quadro 1
Ficha de coleta de dados para o desenvolvimento da atividade

Com os dados do quadro 1 em mãos, os alunos iniciariam o desenvolvimento da atividade. Todavia, não havia ainda clareza de como esses dados poderiam favorecer o entendimento do fenômeno carregamento da bateria do telefone celular e nem como Matemática, mais especificamente o CDI, poderia subsidiar esse entendimento. Havia, no entanto, uma aparente satisfação pela possibilidade de aliar a coleta de dados empíricos recorrente na área de Química, com o que deveriam realizar em aulas de CDI. Assim, inicialmente, os alunos reunidos em grupos discutiram a situação visando buscar elementos para definir o que, de fato, estariam interessados em saber com relação a este fenômeno. O diálogo do grupo analisado apresenta parte dessa discussão.

Prof:
Quantas horas o telefone de vocês levou para carregar?
Maria:
O meu levou quase duas horas Luiz: O meu levou quase 90 minutos.
Prof:
Hum… isso para carregar completamente a bateria, certo? Os 100%! E para carregar 45%, qual foi o tempo que o seu levou Maria?
Maria:
Entre 45 minutos e uma hora, mas mais perto de 45…
Luiz:
O meu foi em torno de trinta e poucos minutos.
Prof:
[olhando para a tabela com os dados coletados] Parece que para carregar metade do total da carga, ou seja, 50%, não usou a metade do tempo. Certo?
Alunos:
Sim.
Prof:
E o que isso significa?
Carlos:
Ah, acho que o crescimento do percentual não é linear então!
Prof:
Mas então, como será que é esse crescimento?
Carlos:
É assim [fez um gesto com as mãos indicando como seria o crescimento do percentual] Mas dá para calcular o tempo em que o carregamento chega a 50%, não é professora? Acho que precisa achar uma expressão matemática!
Prof:
Expressão matemática…
Carlos:
É porque se a gente tem o percentual de acordo com o tempo então basta a gente escrever uma expressão… uma função, acho, que usa essas variáveis
Prof:
Certo, então o que temos que estudar?
Maria:
Ah, eu acho que o tempo que o celular leva para carregar os cinquenta por cento!
Luiz:
Bom, no meu esse 50%fica próximo de 40 minutos. Mas não sei. Acho que eu prefiro saber a porcentagem de carregamento em 40 minutos porque assim já sei o que acontece quando deixo carregando esse tempo.
(Gravação áudio-visual, 2015).

Essa interação entre os participantes do grupo e a professora com foco nos dados coletados traria a temática da atividade para o campo da Matemática, conduzindo à formulação de duas questões a serem respondidas: 1) Em quanto tempo a bateria do telefone celular carrega, aproximadamente, 50%?; 2) Qual é o percentual de carregamento da bateria do telefone celular após 40 minutos de conexão na tomada de energia elétrica?

Nesse caso, os dados do quadro 1, constituem um signo que produz nesses alunos uma primeira impressão com relação ao fenômeno em estudo. As discussões no grupo passam a ser, assim, um interpretante imediato que revela essa impressão. As questões, por sua vez, indicam a interpretabilidade do signo, rumo ao que poderiam conhecer com relação ao carregamento da bateria do celular por meio destes dados, tendo assim características de interpretante dinâmico.

Os investimentos dos alunos direcionaram-se então para a busca de respostas a essas duas questões. No entanto, eles perceberam que para respondê-las seria necessário conhecer a relação entre tempo e percentual de carregamento. Neste instante sentiram a necessidade e a importância da matematização para a interpretação do fenômeno. Essa abordagem matemática, por sua vez, seria mediada pelo uso da tecnologia, mais especificamente por um software já conhecido pelos alunos (Curve Expert 4 4 Software livre usado para ajuste de curvas. ). As representações geradas com o apoio do software referem-se aos dados coletados e representados sob a forma de tabela e de pontos no plano cartesiano e constam na figura 2.

Figura 2
Representações geradas com o uso do software

A produção desses signos interpretantes (tabela e pontos plotados no plano) revela experiências pessoais visando o entendimento, neste instante ainda em configuração, com relação às possibilidades para a obtenção de resposta às questões formuladas. Essa, entretanto, viria a se estabelecer por intermédio da construção do modelo matemático que se deu também com o uso da ferramenta computacional enquanto software de ajuste de curvas. Todavia os alunos teriam que discutir e chegar a um termo com relação à função que melhor se ajusta aos dados, mas que ao mesmo tempo também corresponde ao comportamento do fenômeno. O diálogo a seguir sinaliza como conduziram a escolha.

Maria:
Parece linear.
Prof.:
Mas o que acontece com o modelo linear, no decorrer do tempo?
Maria:
Vai para o infinito.
Prof.:
E é isso que acontece na situação?
Maria:
Não, porque se deixar cinco horas vai ficar sempre em 100 por cento.
João:
Qual função vamos usar então?
Carlos:
É exponencial, então! Vocês concordam?
Paulo:
Eu acho que a função exponencial está boa.
Maria:
Vamos ver a exponencial.
Carlos:
Como é o gráfico da função exponencial do programa? Quais são os parâmetros para a função exponencial?

(Gravação áudio-visual, 2015).

O diálogo revela como a semiose, nesse caso, associada à tríade fenômeno, funções sugeridas pelo software e interpretações dessas funções, atua sobre o intérprete (alunos), fomentando a geração de novos signos, bem como a construção de conhecimento, seja com relação à função, seja com relação ao fenômeno. Nesse caso, o efeito cognitivo do signo deveria gerar compreensão de como a Matemática poderia ser usada nessa situação.

O diálogo indica que o grupo chegou ao consenso de que uma função exponencial é um modelo matemático apropriado para a representação do fenômeno e o obteve usando o software Curve, conforme consta na figura 3. Já para a construção da representação gráfica (figura 4) os alunos usaram o software Geogebra 5 5 Software livre de uso frequente em aulas de Cálculo Diferencial e Integral. Link para download: <http://www.geogebra.org/download>. Acesso em: 30 jun. 2016. .

Figura 3
Modelo matemático
Figura 4
Representação gráfica do modelo

Para responder às questões inicialmente definidas, os alunos usaram somente a representação algébrica do modelo como consta na figura 3. De fato, fazendo P(t)=50, chegaram à conclusão de que o carregamento de 50% se daria depois de, aproximadamente, 47 min. Também, com relação à questão dois, fazendo t=40, concluíram que depois de 40 min o percentual de carregamento seria de, aproximadamente, 42%.

Do ponto de vista do desenvolvimento matemático da atividade, o modelo nas duas representações, provavelmente, corresponde a um interpretante final. De fato, conforme assertiva de Peirce apresentada na seção anterior, o modelo poderia constituir uma interpretação verdadeira, que satisfaz e é suficiente para a obtenção das respostas para as questões.

Todavia, na atividade parece ter se configurado um crescimento na semiose e, mais uma vez, experiências colaterais e conhecimentos, tanto matemáticos quanto do fenômeno, gerariam nova semiose. Isto se pode inferir, considerando que os alunos buscaram um “nível de fidelidade” entre modelo e fenômeno e identificaram que, no caso do gráfico da figura 4, Matemática e fenômeno, na verdade, têm especificidades. De fato, a assíntota em P=100% no gráfico é verdadeira para o fenômeno (100% é a bateria cheia!!) todavia, não corresponde ao que a representação algébrica do modelo matemático indica uma vez que limt306(1e0.00371t)=306 e não igual a 100, como indica a figura 4.

Assim, se o modelo é interpretante final com relação à construção matemática, não é interpretante final do fenômeno. A ação desse interpretante (semiose), sobretudo, viria a buscar ou indicar relações entre Matemática e fenômeno. Além de obter as respostas para as questões e, reconhecendo que a função que descreve o carregamento é crescente, os alunos tinham interesse em analisar como se comporta o crescimento no decorrer dos 110 minutos. Três informações seriam fundamentais para orientar seus pensamentos nesse sentido: em 40 min a bateria carrega 42%; para carregar 50% são necessários 47 min; depois de 110 min a bateria estava completamente carregada.

Os alunos puderam observar nesses resultados que a variação do crescimento não é linear no decorrer dos 110 minutos. Isso gerou instabilidade, desconforto cuja superação seria mediada por nova semiose. Assim, novo signo interpretante foi gerado. A função derivada pode ser aqui a necessidade de conhecer mais sobre o que o signo pode gerar no intérprete. A derivada do modelo P(t) = 306 (1−e−0.00371 t), dada por P ′(t) = 1.13526e−0.00371 t, é um interpretante que traz à tona a interpretação de como se comporta o fenômeno. Os alunos determinaram então a derivada de P(t), bem como o gráfico da derivada conforme indica a figura 5.

Figura 5
A derivada do modelo

O que os alunos teriam que interpretar é o que significa para a função P(t) o fato de a derivada P ′(t) ser uma função decrescente. Fizeram-no a partir de uma discussão entre os membros do grupo olhando para a função que descreve o carregamento da bateria, analisando seu crescimento em relação ao decrescimento da função derivada. Registraram sua conclusão conforme mostra a figura 6.

Figura 6
Explicação dos alunos

A análise, não somente no que se refere à obtenção de resposta para as duas questões, mas também em relação ao comportamento do fenômeno no decorrer do tempo, em certa medida, foi associada à dinâmica da geração de interpretantes. O funcionamento dos signos, por vezes, pode ser associado à trama semiótica caracterizada por Seeger (2004)SEEGER, F. Beyond the dichotomies: semiotics in mathematics education research. Zentralblattfür Didaktik der Mathematik, Karlsruhe, v. 36, n. 6, p. 206–216, 2004.. Considerando a relação triádica objeto, signo e interpretante, conforme figura 7(a), podemos construir tramas que são representativas da semiose dos alunos para o desenvolvimento da atividade de modelagem matemática. A figura 7(b) e figura 7(c) ilustram algumas das tramas que podemos caracterizar.

Figura 7
Tríade semiótica e tramas semióticas

5 Discussões e resultados

A análise da relação entre a ação e a produção de signos em atividades de modelagem matemática e o conhecimento dos alunos nos permite afirmar que os encaminhamentos no desenvolvimento da atividade são, por um lado, amparados nos conhecimentos acerca da situação e dos objetos matemáticos utilizados para encontrar uma solução para o problema definido. Por outro lado, esta ação dos signos, semiose, gera novos signos que desencadeiam a construção de novos conhecimentos. Nesse sentido, a semiose representa o processo característico da capacidade humana de produção e entendimento de signos de naturezas diversas.

De fato, os signos, produzidos e mobilizados pelos alunos, têm relação, ora com a situação, ora com o problema em estudo, ora com os objetos matemáticos e ora com a resposta reconhecida como uma solução para o problema. Ou seja, os signos se configuram como meios pelos quais os alunos manifestam e articulam seus conhecimentos enquanto buscam encontrar uma solução para o problema advindo da situação. Assim, podemos ponderar que, para além de o interpretante expressar a ideia que o intérprete tinha do signo original, como considera Miskulin (2007)MISKULIN, R. G. S. et al. A semiótica como campo de análise para as representações de conceitos matemáticos. Cadernos de Semiótica Aplicada, Araraquara, v. 5, n. 2, p. 1–18, dez. 2007., a geração de interpretantes proporciona a ampliação dessa ideia.

Neste sentido, ao analisar a ação e geração de signos em uma atividade de modelagem matemática podemos evidenciar que a semiose, como ação que envolve signo, objeto e interpretante não é, de fato, limitada, como já pondera Drigo (2007)DRIGO, M. O. Comunicação e Cognição: semiose na mente humana. 1. ed. Porto Alegre: Sulina, 2007. 142 p.. Em vez disso, não sendo a situação inicial na atividade um problema matemático, os signos (interpretantes) gerados na atividade revelam que fenômeno e Matemática são indissociáveis no decorrer do desenvolvimento da atividade. O funcionamento dos signos proporciona e, ao mesmo tempo descreve, uma interação contínua entre signos, fenômeno e novos signos gerados da interpretação de anteriores ou de relações percebidas pelo intérprete entre signo e fenômeno, constituindo uma sequência de semiose e indicando que a semiose é, de fato, evolutiva. Essa trama assim constituída dá indicativos de que no caso dessa atividade as questões iniciais, como instabilidades dos alunos, geram novas instabilidades que vão sendo superadas pela semiose, buscando entendimento para o fenômeno e para a Matemática.

Ainda que atividades de modelagem matemática possam, sob certa ótica, simplificar a complexidade inerente aos problemas da realidade, quando olhamos para as articulações que estes alunos perceberam entre o fenômeno e a Matemática com a qual estavam se familiarizando nas aulas de CDI, podemos conjecturar que o conhecimento com relação ao problema e o conhecimento matemático são interdependentes. Assim, a dinâmica da semiose é que pode proporcionar que em atividades de modelagem os conceitos e as ferramentas matemáticas não sejam apenas corretas no domínio da Matemática, mas sejam também adequadas no contexto do problema a que estão sendo associadas, como argumentam Carrejo; Marshall (2007)CARREJO, D. J.; MARSHALL, J. What is mathematical modelling? Exploring prospective teachers' use of experiments to connect mathematics to the study of motion. Mathematics Education Research Journal, Coverage, v. 19, n.1, p. 45–76, 2007..

O que a atividade também indica é que aulas de Cálculo Diferencial e Integral mediadas por atividades de modelagem matemática, em grande medida, requerem a articulação com conhecimento tecnológico, em particular, com o uso de softwares projetados com propósitos educativos. De fato, nesta atividade diversos signos produzidos pelos alunos foram mediados pelo uso de software. Seja para ajustar a função (Curve Expert), seja para fazer as representações gráficas e calcular a derivada (GeoGebra), os softwares proporcionaram a compreensão de diferentes características do fenômeno em estudo. Neste caso, o uso do software promoveu uma reorganização da atividade intelectual dos estudantes uma vez que a compreensão do problema foi apoiada também nas representações produzidas.

Em termos gerais, podemos afirmar que nessa atividade, a relação entre signos e conhecimento dos alunos parece se configurar como uma rede em que signos são produzidos ou acionados pelo conhecimento e também geram novo conhecimento. Nesta rede, podemos caracterizar uma estrutura que associa conhecimento matemático, conhecimento sobre o problema em estudo e conhecimento tecnológico (no caso dessa atividade o uso e a interpretação de determinados signos produzidos com o apoio computacional).

Estes três “conhecimentos” são interdependentes na medida em que Matemática e tecnologia auxiliam na compreensão de situações da realidade, favorecendo a elaboração de respostas para determinadas questões associadas a estas situações. Ao mesmo tempo, a compreensão do problema favorece a compreensão da Matemática, como é o caso, por exemplo, da interpretação da derivada de uma função.

Atividades de modelagem matemática, pela sua caracterização conforme considerada nesse texto, viabilizam esta articulação de “conhecimentos”. Neste sentido, a semiose, como ação dos signos, produz o efeito cognitivo que gera novos signos interpretantes e que estrutura e re-estrutura estes conhecimentos. Ou seja, se as tramas semióticas, caracterizadas por Seeger (2004)SEEGER, F. Beyond the dichotomies: semiotics in mathematics education research. Zentralblattfür Didaktik der Mathematik, Karlsruhe, v. 36, n. 6, p. 206–216, 2004., podiam representar como os elementos da tríade peircena podem se movimentar, neste artigo podemos ponderar que estas tramas associadas a atividades de modelagem matemática também contemplam uma reestruturação que articula conhecimentos matemáticos e não matemáticos.

Assim, se por um lado, levamos em consideração que a construção de conhecimento é associada às especificidades das atividades que os alunos realizam nas aulas, por outro lado, podemos pontuar neste artigo, à luz de elementos da semiótica peirceana, que atividades de modelagem matemática desencadeiam semiose e, semiose realiza construção de conhecimento.

  • *
    Artigo produzido em projeto financiado pelo CNPq.
  • 1
    Filósofos da época do estoicismo – doutrina filosófica fundada em Atenas por Zenão de Cítio no início do século III a.C.
  • 2
    Para Peirce (2005)PEIRCE, C. S. Semiótica. 3. ed. São Paulo: Perspectiva, 2005. 340 p., o objeto não pode se restringir à noção de um existente. Uma ideia, um conjunto de coisas, um evento ou uma ocorrência pode ser objeto de uma dada relação sígnica.
  • 3
    Collected Papers of Charles Sanders Peirce, Ed. Charles Hartshorne e Paul Weiss (vols. I-IV: 1931/35). Harvard University Press, Cambridge, Mass., 1965; Ed. Arthur Burks (vols. VII-VIII: 1958), id., 1966. Para a citação cf. 2.227 (o primeiro dígito sinaliza o volume da obra referida e os demais o parágrafo. A obra é denotada usualmente pela sigla CP).
  • 4
    Software livre usado para ajuste de curvas.
  • 5
    Software livre de uso frequente em aulas de Cálculo Diferencial e Integral. Link para download: <http://www.geogebra.org/download>. Acesso em: 30 jun. 2016.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Apr 2017

Histórico

  • Recebido
    Jun 2016
  • Aceito
    Nov 2016
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