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Os Números Racionais na Matemática Acadêmica: uma discussão visando à formação matemática de professores

Rational Numbers in Academic Mathematics: a discussion towards teachers’ mathematical training

Resumo

O objetivo do presente artigo é discutir os números racionais na Matemática Acadêmica – no sentido de classes de equivalência de pares ordenados de números inteiros e como elementos de um corpo de frações de um domínio de integridade ℤ – com vistas a favorecer o debate acerca da formação matemática do professor. Para tanto, investigamos aspectos históricos mais recentes (a partir do século XVIII) dos números racionais, bem como tecemos discussões conceituais a partir de abordagens trazidas por livros didáticos voltados para o Ensino Superior. Nas análises, destacamos, principalmente, dissonâncias entre os números racionais na Matemática Acadêmica e na Matemática Escolar e evidenciamos a intencionalidade enquanto uma característica do modo de se fazer Matemática da Matemática Acadêmica. Por fim, questionamos em que medida os números racionais na Matemática Acadêmica servem aos propósitos da formação matemática do professor que irá atuar na Educação Básica.

Palavras-chave:
Formação Matemática de Professores; Números Racionais; Matemática Acadêmica; Classe de Equivalência; Corpo de Frações

Abstract

The purpose of this paper is to discuss rational numbers in Academic Mathematics - in the sense of equivalence classes of integers ordered pairs and as elements of a domain field of fractions of integrity ℤ - in order to favor the debate about teachers’ mathematical training. To this end, we investigate more recent historical aspects (from the eighteenth century) on rational numbers, as well as conceptual discussions based on approaches brought by textbooks aimed at Higher Education. In the analysis, we highlight, mainly, dissonances between rational numbers in Academic Mathematics and in School Mathematics, and we highlight the intentionality as a characteristic of the mathematical way of doing Academic Mathematics. Finally, we question to what extent the rational numbers in Academic Mathematics serve the purposes of middle and high school teachers’ mathematics training.

Keywords:
Teachers’ Mathematical Training; Rational Numbers; Academic Mathematics; Equivalence Class; Field of Fractions

1 Introdução

Qual é a Matemática do professor de Matemática? Perguntas como essa têm permeado muitas pesquisas (VIOLA DOS SANTOS; LINS, 2016VIOLA DOS SANTOS, J. R.; LINS, R. C. Uma Discussão a Respeito da(s) Matemática(s) na Formação Inicial de Professores de Matemática. Educação Matemática Pesquisa, São Paulo, v. 18, n. 1, p. 351-372, 2016.; FIORENTINI; OLIVEIRA, 2013FIORENTINI, D.; OLIVEIRA, A. T. C. C. O lugar das Matemáticas na Licenciatura em Matemática: que matemáticas e práticas formativas? Bolema, Rio Claro, v. 27, n. 47, p. 917-938, 2013.; MOREIRA; FERREIRA, 2013MOREIRA, P. C.; FERREIRA, A. C. O Lugar da Matemática na Licenciatura em Matemática. Bolema, Rio Claro, v. 27, n. 47, p. 981-1005, dez. 2013.) no âmbito da Educação Matemática, especialmente aquelas que se preocupam com a formação inicial do professor de Matemática. Respondê-la não nos parece uma tarefa simples, pelo contrário. Discuti-la, contudo, é essencial.

Tanto é difícil responder à pergunta que o debate sobre a Matemática na formação do professor vem de anos, beirando um século. Felix Klein, no início do século XX, já alertava para o que chamou de “dupla descontinuidade”, um problema evidenciado nos cursos de formação de professores de sua época. Havia, segundo Klein (2009)KLEIN, F. Matemática Elementar de um Ponto de Vista Superior. Volume I, Parte I: Aritmética. Lisboa: Sociedade Portuguesa de Matemática, 2009., uma ruptura entre a Matemática escolar e a Matemática superior, uma vez que a maneira como os cursos estavam organizados fazia com que os graduandos se ocupassem exclusivamente com esta, sem se preocupar em estabelecer conexões com aquela. A “dupla descontinuidade” fica explícita quando Klein afirma:

Os jovens estudantes universitários são confrontados com problemas que nada têm a ver com as coisas que estudaram na escola e, naturalmente, esquecem-nas rapidamente. Quando, depois de completarem o curso, se tornam professores, são confrontados com a necessidade de ensinar a matemática elementar na forma adequada ao grau de ensino, primário ou secundário, a que se dedicam, e, como não conseguem estabelecer praticamente nenhuma conexão entre esta tarefa e a matemática que aprenderam na universidade, facilmente aceitam o ensino tradicional, ficando seus estudos universitários como uma memória mais ou menos agradável que não tem influência na sua forma de ensinar (KLEIN, 2009KLEIN, F. Matemática Elementar de um Ponto de Vista Superior. Volume I, Parte I: Aritmética. Lisboa: Sociedade Portuguesa de Matemática, 2009., p. 1).

A primeira descontinuidade se configura na formação do professor, pois a Matemática lá trabalhada não se desenvolveu a partir daquela conhecida pelos graduandos na escola básica. A segunda descontinuidade se dá na prática docente, quando o professor, já formado, retorna à escola e percebe que a Matemática da universidade parece não ter conexões com aquela que está ensinando.

Debater a Matemática na formação do professor, como dissemos, é essencial para buscar evitar interpretações equivocadas para a solução do problema da “dupla descontinuidade”. É o caso de Vieira (2015)VIEIRA, V. L. Álgebra Abstrata para Licenciatura. 2. ed. Campina Grande: EDUEPB, 2015., um livro cujo título é Álgebra Abstrata para Licenciatura, em tese voltado para a formação de professores, mas que logo nas primeiras páginas já indica sua perspectiva que, ao nosso ver, é equivocada:

Espera-se que a maneira com a qual os conteúdos teóricos aqui explorados seja diferente da forma de como eles são apresentados no Bacharelado. Nessa perspectiva, faz-se necessário destacar ao menos dois critérios essenciais: o primeiro é que os exemplos sejam considerados com mais detalhes e com grau de dificuldade crescente; e o segundo é que expressões como “fácil ver” e “é imediato”, tão comuns em textos matemáticos, não sejam usadas com desprezo para com o estudante, mas que tenham a finalidade de sinalizá-lo de que alguns detalhes superficiais de um determinado resultado foram compactados (VIEIRA, 2015VIEIRA, V. L. Álgebra Abstrata para Licenciatura. 2. ed. Campina Grande: EDUEPB, 2015., p. 8).

Esperamos que, ao longo deste artigo, o leitor perceba que a perspectiva adotada aqui é completamente diferente dessa apontada por Vieira (2015)VIEIRA, V. L. Álgebra Abstrata para Licenciatura. 2. ed. Campina Grande: EDUEPB, 2015., pois acreditamos que o problema esteja na relação da Álgebra Abstrata com a prática docente e, por isso, não pode ser resolvido facilitando a escrita de um texto matemático, como se a diferença entre o Bacharelado e a Licenciatura em Matemática fosse uma mera questão de simplificar o conteúdo. Nós combatemos essa perspectiva.

Nossa visão para a discussão sobre a Matemática na formação do professor se alinha com a de Moreira e David (2003MOREIRA, P. C.; DAVID, M. M. M. S. Matemática escolar, matemática científica, saber docente e formação de professores. Zetetiké, Campinas, v. 11, n. 19, p. 57-80, 2003.; 2010MOREIRA, P. C.; DAVID, M. M. M. S. A formação matemática do professor: Licenciatura e prática docente. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2010. (Coleção Tendências em Educação Matemática).; 2011MOREIRA, P. C.; DAVID, M. M. M. S. Matemática Acadêmica e Matemática Escolar: dissonâncias e conflitos. In: LOPES, E. M. T.; PEREIRA, M. R. (Org.). Conhecimento e inclusão social: 40 anos de pesquisa em Educação. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011. p. 193-222.), quando estabelecem uma distinção entre a Matemática Escolar e a Matemática Acadêmica. Consideramos essa distinção fundamental, pois, ao estabelecer dissonâncias e conflitos (MOREIRA; DAVID, 2011MOREIRA, P. C.; DAVID, M. M. M. S. Matemática Acadêmica e Matemática Escolar: dissonâncias e conflitos. In: LOPES, E. M. T.; PEREIRA, M. R. (Org.). Conhecimento e inclusão social: 40 anos de pesquisa em Educação. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011. p. 193-222.) entre essas matemáticas, evidencia aspectos da Matemática Acadêmica que parecem não se relacionarem com a Matemática necessária ao professor da Educação Básica, apesar de estarem no currículo de muitos cursos de Licenciatura em Matemática. Moreira e David (2010MOREIRA, P. C.; DAVID, M. M. M. S. A formação matemática do professor: Licenciatura e prática docente. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2010. (Coleção Tendências em Educação Matemática).; 2011MOREIRA, P. C.; DAVID, M. M. M. S. Matemática Acadêmica e Matemática Escolar: dissonâncias e conflitos. In: LOPES, E. M. T.; PEREIRA, M. R. (Org.). Conhecimento e inclusão social: 40 anos de pesquisa em Educação. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011. p. 193-222.) estabelecem esse debate a partir dos sistemas numéricos, sugerindo que a abordagem dos conjuntos numéricos a partir dos “valores da matemática acadêmica é conflitante com o tipo de conhecimento matemático que o professor precisa mobilizar em sua prática docente na escola básica” (p. 218).

É nesse contexto que o presente artigo se situa, uma pesquisa que visa colocar em debate a Matemática Acadêmica na formação inicial do professor e, para isso, investigamos os números racionais na Matemática Acadêmica. Vale destacar, antes de tudo, que usamos a expressão números racionais na Matemática Acadêmica para indicar os significados atribuídos aos números racionais em disciplinas de conteúdo matemático do Ensino Superior e em livros destinados a esse nível de ensino, além de ser o modo como os matemáticos profissionais usualmente compreendem esses números. São exemplos os números racionais como classe de equivalência de pares ordenados de números inteiros, os números racionais como elementos de um corpo ordenado ou como o corpo das frações do domínio de integridade ℤ.

De maneira análoga, entendemos números racionais na Matemática Escolar como os significados dos números racionais atribuídos no contexto da Educação Básica, seja do ponto de vista do conhecimento do professor, de pesquisas sobre ensino e aprendizagem ou de livros didáticos. São exemplos os números racionais entendidos como uma divisão de números inteiros ou uma razão entre duas quantidades. Não estamos usando números racionais “da” Matemática Escolar ou “da” Matemática Acadêmica, pois entendemos que o conceito de número racional não pertence a um ou a outro contexto, mas tem diferentes significados atribuídos em cada um deles.

Dito isso, podemos enunciar o objetivo do presente artigo, a saber: discutir aspectos conceituais dos números racionais na Matemática Acadêmica. Para tanto, organizamos o artigo da seguinte maneira: na próxima seção, antes de entrarmos em discussões específicas sobre os números racionais, debatemos a formação matemática do professor, explicitando as bases teóricas que sustentam esta pesquisa. Na seção seguinte, apresentamos um estudo acerca da história recente (a partir do século XVIII) dos números racionais e, na sequência, fazemos apontamentos conceituais sobre os números racionais na Matemática Acadêmica a partir de abordagens trazidas por livros didáticos voltados para o Ensino Superior. Por fim, apresentamos nossas considerações finais, levantando questionamentos gerados pela pesquisa em tela.

2 A formação matemática do professor

Concordamos com Fiorentini e Lorenzato (2009)FIORENTINI, D; LORENZATO, S. Investigação em Educação Matemática: Percursos Teóricos e Metodológicos. Campinas, SP: Autores Associados, 2009. (Coleção Formação de Professores). quando estabelecem uma diferença entre a atividade do matemático e do educador matemático. Para esses autores,

[…] o matemático, por exemplo, tende a conceber a matemática como um fim em si mesma, e, quando requerido a atuar na formação de professores de matemática, tende a promover uma educação para a matemática, priorizando os conteúdos formais e uma prática voltada à formação de novos pesquisadores em matemática (p. 3, grifo dos autores).

Enquanto

[…] o educador matemático, em contrapartida, tende a conceber a matemática como um meio ou instrumento importante à formação intelectual e social das crianças, jovens e adultos e também do professor de matemática do ensino fundamental e médio e, por isso, tenta promover uma educação pela matemática. Ou seja, o educador matemático, na relação entre educação e matemática, tende a colocar a matemática a serviço da educação, priorizando, portanto, esta última, mas sem estabelecer uma dicotomia entre elas (p. 3-4, grifo dos autores).

Nós, enquanto educadores matemáticos, estamos interessados em uma formação matemática que permita ao licenciando exercer sua futura atividade profissional como professor da Educação Básica, que é o objetivo primeiro dos cursos de Licenciatura. Como afirmam Fiorentini e Oliveira (2013)FIORENTINI, D.; OLIVEIRA, A. T. C. C. O lugar das Matemáticas na Licenciatura em Matemática: que matemáticas e práticas formativas? Bolema, Rio Claro, v. 27, n. 47, p. 917-938, 2013., a Licenciatura, assim como a odontologia, a engenharia etc., também é um curso profissionalizante. Portanto, antes de pensarmos em formação matemática sólida, que prioriza uma educação para a Matemática e que busca formar novos pesquisadores em Matemática, pretendemos, neste artigo, pôr em debate uma formação matemática que ofereça maneiras de lidar com as demandas da prática docente e que priorize os valores da Matemática Escolar em suas múltiplas possibilidades.

Assumimos a diferenciação feita por Moreira e David (2010)MOREIRA, P. C.; DAVID, M. M. M. S. A formação matemática do professor: Licenciatura e prática docente. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2010. (Coleção Tendências em Educação Matemática). entre a Matemática Acadêmica e a Matemática Escolar. Para esses autores, a Matemática Acadêmica é tida como “um corpo científico de conhecimentos, segundo a produzem e a percebem os matemáticos profissionais” (p. 20). Já a Matemática Escolar é entendida como um conjunto de saberes associados ao exercício da profissão docente (MOREIRA; DAVID, 2010MOREIRA, P. C.; DAVID, M. M. M. S. A formação matemática do professor: Licenciatura e prática docente. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2010. (Coleção Tendências em Educação Matemática).). Nesse sentido, a Matemática Escolar refere-se ao conjunto de saberes:

[…] “validados”, associados especificamente ao desenvolvimento do processo de educação escolar básica em Matemática. Com essa formulação, a Matemática Escolar inclui tanto saberes produzidos e mobilizados pelos professores de Matemática em sua ação pedagógica na sala de aula da escola, quanto resultados de pesquisas que se referem à aprendizagem e ao ensino escolar de conceitos matemáticos, técnicas, processos etc. (MOREIRA; DAVID, 2010MOREIRA, P. C.; DAVID, M. M. M. S. A formação matemática do professor: Licenciatura e prática docente. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2010. (Coleção Tendências em Educação Matemática)., p. 20-21).

Os autores assumem, portanto, a ideia de Matemática Escolar como aquela que não se refere tão somente às práticas efetivas que ocorrem no interior da escola e nem se reduza a uma adaptação da Matemática Acadêmica. Não se reduzir a uma adaptação da Matemática Acadêmica significa, em outras palavras, que a Matemática Escolar não está sujeita a uma “vigilância epistemológica” (MOREIRA; DAVID, 2010MOREIRA, P. C.; DAVID, M. M. M. S. A formação matemática do professor: Licenciatura e prática docente. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2010. (Coleção Tendências em Educação Matemática).) que não permita “desvios” em relação ao conhecimento matemático científico.

Estabelecer que a Matemática Escolar não está sujeita a uma vigilância epistemológica da Matemática Acadêmica coloca em xeque, e isso é essencial, o argumento simplista de que a Matemática Acadêmica está presente nos cursos de Licenciatura em Matemática porque ela fundamenta o trabalho docente na Educação Básica. Apesar de prevalecer nos discursos daqueles que defendem a Matemática Acadêmica na formação de professores, esse argumento é bastante questionado quando se busca perceber as conexões entre a Matemática Acadêmica e a prática docente que têm sido estabelecidas ao longo da formação matemática dos professores.

Quando olhamos especificamente para os números racionais na formação do professor, encontramos pesquisas que argumentam em favor de um repensar a Matemática Acadêmica na formação inicial, sugerindo que há uma valorização desta matemática em detrimento daquela que efetivamente se relaciona com a prática docente. Damico (2007)DAMICO, A. Uma investigação sobre a formação inicial de professores de matemática para o ensino de números racionais no ensino fundamental. 2007. 313 f. Tese (Doutorado em Educação Matemática) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2007., por exemplo, chama a atenção para a necessidade de se refletir sobre os “conteúdos de Matemática Pura e Aplicada de nível superior versus conteúdos da Matemática ‘elementar’ ensinada na Educação Básica” (DAMICO, 2007DAMICO, A. Uma investigação sobre a formação inicial de professores de matemática para o ensino de números racionais no ensino fundamental. 2007. 313 f. Tese (Doutorado em Educação Matemática) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2007., p. 260). Em sua conclusão, o autor considera que o modelo atual de formação se mostrou ineficaz aos participantes da sua pesquisa, uma vez que reiteradas vezes ficou explícito o despreparo dos futuros professores para o ensino de conteúdos relacionados aos números racionais (seu tema de pesquisa) que futuramente terão que ensinar.

Moreira e David (2004)MOREIRA, P. C.; DAVID, M. M. M. S. Números Racionais: conhecimentos da formação inicial e prática docente na escola básica. Bolema, Rio Claro, v. 21, p. 1-19, 2004., por sua vez, apresentam uma análise do conhecimento matemático veiculado no processo de formação inicial do professor, confrontando-o com as questões que se colocam na prática docente na escola básica. Os autores afirmam que o conjunto dos números racionais é visto, ao longo de toda a formação matemática na Licenciatura, como um objeto extremamente simples, enquanto as pesquisas mostram que, em termos da prática docente, a sua construção pode ser considerada uma das mais complexas operações da Matemática Escolar.

Ao analisarem disciplinas ofertadas no curso de Licenciatura em Matemática da Universidade Federal de Minas Gerais e livros usados como referência nessas disciplinas, Moreira e David (2004)MOREIRA, P. C.; DAVID, M. M. M. S. Números Racionais: conhecimentos da formação inicial e prática docente na escola básica. Bolema, Rio Claro, v. 21, p. 1-19, 2004. detalham aspectos fundamentais que distinguem as construções formais de ℤ, ℚ e ℝ – a partir de ℕ, ℤ e ℚ, respectivamente – das sucessivas extensões dos conjuntos numéricos que se desenvolvem no processo de escolarização básica. Para eles, as construções da Matemática Acadêmica visam produzir uma “abstração que expresse formalmente as características ‘essenciais’ de um objeto que, a menos da construção formal, já é, de certo modo, conhecido” (p. 6), enquanto que, na escola, as extensões numéricas têm natureza totalmente diferente, já que o conjunto numérico e a estrutura que resultam do processo de extensão são um universo genuinamente novo para o estudante, exigindo um tratamento didático-pedagógico específico das várias etapas desse processo (MOREIRA; DAVID, 2004MOREIRA, P. C.; DAVID, M. M. M. S. Números Racionais: conhecimentos da formação inicial e prática docente na escola básica. Bolema, Rio Claro, v. 21, p. 1-19, 2004.).

Como afirmam Viola dos Santos e Lins (2016)VIOLA DOS SANTOS, J. R.; LINS, R. C. Uma Discussão a Respeito da(s) Matemática(s) na Formação Inicial de Professores de Matemática. Educação Matemática Pesquisa, São Paulo, v. 18, n. 1, p. 351-372, 2016., é preciso mais pesquisas a respeito da formação matemática de professores de Matemática e, nelas, “é crucial que haja uma discussão mais conceitual e menos política/corporativista envolvendo educadores matemáticos e matemáticos, discutindo em conjunto as disciplinas da Licenciatura e construindo outras possibilidades” (p. 369-370). Para além das posições políticas que se instauram nas escolhas curriculares dos cursos de formação de professores, é necessário desenvolver pesquisas que nos permitam tirar conclusões sobre a pertinência, ou não, de se olhar para aspectos de um conceito específico da Matemática trabalhada na escola do ponto de vista da Matemática Acadêmica na formação do professor.

3 Aspectos históricos dos números racionais na Matemática Acadêmica

Uma etapa importante para compreender os números racionais na Matemática Acadêmica é conhecer como se deu a criação desses modos (acadêmicos) de significar os números racionais.

Por uma questão de espaço e de objetivo, a história dos números racionais que apresentamos aqui é uma história recente, a partir do século XVIII, quando a Matemática se fortalece enquanto um sistema lógico-formal-dedutivo e a ideia de número passa a ser mais abstrata, deixando de ser relacionada, necessariamente, a uma quantidade.

Iniciamos falando sobre o rigor na Matemática. Com os avanços nos estudos envolvendo o Cálculo Infinitesimal, o século XIX ficou conhecido como “a idade do rigor”. Segundo Roque (2012)ROQUE, T. História da matemática: uma visão crítica, desfazendo mitos e lendas. 1. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2012.,

A noção de rigor se transformou na virada do século XVIII para o século XIX porque os matemáticos da época se baseavam em crenças e técnicas que não eram mais capazes de resolver os problemas que surgiram no interior da própria matemática. Ou seja, isso não se deu por preocupações formalistas, nem por um interesse metamatemático de fundamentar essa disciplina. O rigor é um conceito histórico, e a noção de rigor de Lagrange era diferente da de Cauchy, que, por sua vez, também seria criticado por Weierstrass, baseado em sua própria concepção aritmética (p. 407).

Nessa perspectiva, o rigor (atual) da Matemática deu-se devido a necessidades internas, pela insuficiência dos argumentos da época para responder às questões que se apresentavam aos matemáticos. Um desses problemas internos a demandar uma nova noção de rigor, segundo Roque (2012)ROQUE, T. História da matemática: uma visão crítica, desfazendo mitos e lendas. 1. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2012., surgiu da crítica à concepção de números como quantidades. Associar números a quantidades passou a impedir o desenvolvimento da Matemática; por exemplo, a discussão sobre quantidades negativas mostra que somente os números absolutos eram aceitos. Portanto, para avançar, “era preciso migrar para um conceito abstrato de número não subordinado à ideia de quantidade” (ROQUE, 2012ROQUE, T. História da matemática: uma visão crítica, desfazendo mitos e lendas. 1. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2012., p. 407).

Além da demanda interna, outro fator foi essencial para esse novo pensar: o momento histórico vivido pela Matemática. Os séculos XVIII e XIX foram marcados pelo desenvolvimento da lógica simbólica, fundamental para o desenvolvimento das geometrias não euclidianas, por volta de 1820. Na lógica simbólica, diferentemente da lógica aristotélica, não existem evidências intuitivas e os axiomas, aceitos por conveniência, não tratam da verdade. Se, por um lado, esse contexto gerou uma busca por novos fundamentos da Matemática, uma vez que a certeza da geometria euclidiana, há mais de dois mil anos considerada o paradigma do rigor, fora questionada, por outro, permitiu o desenvolvimento de novos conceitos abstratos, como as estruturas algébricas. Como afirma Einstein (2005)EINSTEIN, A. Geometria e Experiência (1921). Tradução de Valter Alnis Bezerra. Scientiae Studia, São Paulo, v. 3, n. 4, p. 665-675, 2005., “o progresso alcançado pela axiomática consiste em ter separado claramente aquilo que é lógico-formal daquilo que constitui o seu conteúdo objetivo ou intuitivo” (p. 665).

Roque (2012)ROQUE, T. História da matemática: uma visão crítica, desfazendo mitos e lendas. 1. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2012. nos conta que essa abstração e formalização da Matemática, impostas pelas reflexões sobre os fundamentos da Matemática do século XIX, transformou a relação dessa disciplina com a Física, tornando-se independente desta última. Por exemplo, os matemáticos da época sabiam que o progresso da Matemática dependia de uma extensão do conceito de número, uma vez que estar associado a quantidades geométricas não os permitia conceber operações abstratas e arbitrárias sobre eles (ROQUE, 2012ROQUE, T. História da matemática: uma visão crítica, desfazendo mitos e lendas. 1. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2012.).

A ordem da construção formal dos números é bastante distinta da ordem da criação dos mesmos. Vamos apresentar essa discussão de forma bastante breve1 1 Para mais detalhes sobre a transição entre noção de número relacionado a quantidade e número abstrato, recomendamos o livro de Roque (2012). .

Os números complexos, foram os primeiros a ter uma fundamentação mais precisa, como par ordenado de números reais, atribuída a Hamilton, em 1833. Isso não significa que outros matemáticos não consideravam os números complexos em seus trabalhos. Gauss, por exemplo, na demonstração do Teorema Fundamental da Álgebra, afirmou que toda equação polinomial com coeficientes reais admite pelo menos uma raiz complexa.

Os números complexos estavam bem definidos a partir dos reais. Contudo, o que eram os números reais? Tais números só foram formalmente construídos anos depois, em 1872, com Dedekind. Segundo Roque (2012)ROQUE, T. História da matemática: uma visão crítica, desfazendo mitos e lendas. 1. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2012., em meados do século XIX, algumas questões sobre os números reais começaram a surgir: como esses números se distribuem na reta? Que números podem ser encontrados no meio do caminho? Até esse momento, segue a autora, supunha-se que (e, portanto, ainda não era provado) a reta contivesse todos os números reais, por isso não havia preocupação em definir os números reais. Porém, a intenção de Dedekind de caracterizar a continuidade da reta o levou à proposição dos chamados “cortes de Dedekind”. Os estudos de Dedekind e de Cantor foram essenciais para caracterizar os números reais, estabelecendo a impossibilidade de se realizar uma correspondência biunívoca entre os elementos do novo conjunto dos números reais e os números naturais.

A construção dos números reais foi feita a partir dos números racionais, que, para Dedekind, eram considerados dados (ou seja, não tinham sido formalmente construídos). Mas, naquele momento, a Matemática não podia admitir os números racionais sem uma construção lógico-formal. Tal construção, então, baseou-se nos números inteiros que, por sua vez, fundamentaram-se na construção axiomática dos números naturais, cujo conjunto de cinco axiomas fora precisamente organizado pelo matemático italiano Giuseppe Peano, em 1889.

Entretanto, como afirma Barker (1969)BARKER, S. F. Filosofia da Matemática. Tradução de Leônidas Hegenberg e Octanny Silveira da Mota. 1. ed. Rio de janeiro: Zahar Editores, 1969., os axiomas de Peano não bastavam, por si só, para elaborar “outras espécies mais elevadas de números” (BARKER, 1969BARKER, S. F. Filosofia da Matemática. Tradução de Leônidas Hegenberg e Octanny Silveira da Mota. 1. ed. Rio de janeiro: Zahar Editores, 1969., p. 81), como é o caso dos números racionais. Um dos motivos era que Peano não incluiu, em seus termos primitivos, as noções de conjuntos e de par ordenado. A base para a construção dos números inteiros e dos números racionais estaria completa com o desenvolvimento da teoria dos conjuntos e dos pares ordenados. Os números racionais são construídos, então, como classes de equivalência de pares ordenados de números inteiros2 2 A criação do conceito de classe de equivalência e seu uso para a construção dos números inteiros a partir dos naturais, e dos racionais a partir dos inteiros não ficou explícita em nosso estudo histórico. Em Katz (2010), notamos que Hamilton, por volta de 1840, fez uso desse conceito para sua construção de número inteiro e, também, de número racional. .

Dessa maneira, por uma demanda interna da Matemática, os números tornam-se abstratos e deixam de estar necessariamente ligados a uma quantidade ou a uma grandeza. O século XIX inventa a Matemática “pura” e os números estão na base dessa invenção.

Esse é o contexto em que o conceito de número, desvinculado da noção de quantidade e de qualquer associação com a realidade externa, tornou-se um dos objetos principais da matemática. As tentativas anteriores de assegurar as bases ontológicas dos conceitos fundamentais da matemática a partir da relação com uma certa realidade, não importa qual fosse, colocavam os alicerces dessa disciplina no mundo externo. No entanto, as dificuldades encontradas na legitimação das operações com números negativos e na conceitualização dos imaginários, juntamente com discussões epistemológicas sobre o cálculo infinitesimal, levaram ao desenvolvimento de uma matemática baseada em conceitos abstratos que passou a ser designada de “pura” (ROQUE, 2012ROQUE, T. História da matemática: uma visão crítica, desfazendo mitos e lendas. 1. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2012., p. 422).

A teoria dos conjuntos, da forma como passa a ser praticada pelos matemáticos do século XIX, começa a ser cada vez mais conceitual e abstrata, diferente dos conjuntos concretos tradicionalmente utilizados até então. Os estudos das estruturas algébricas, com Dedekind, e as propriedade abstratas de cardinalidade e ordem, com Cantor, são exemplos disso.

Chegamos, então, a uma parte da história que nos interessa: a criação das estruturas algébricas. Para Milies (2004)MILIES, F. C. P. Breve História da Álgebra Abstrata. Minicurso apresentado na II Bienal da Sociedade Brasileira de Matemática – SBM. Salvador, Universidade Federal da Bahia, 2004., o processo que levou à introdução de um ponto de vista verdadeiramente abstrato em álgebra teve início em 1815, quando matemáticos da Universidade de Cambridge, como Charles Babbage, George Peacock e John Herschel, fundaram a Analytical Society3 3 Uma sociedade cuja finalidade imediata era reformar o ensino do Cálculo, adotando as notações em uso no continente, mas cuja principal contribuição foi a discussão sobre os fundamentos da Álgebra. . Peacock, em seu Treatise on Algebra, publicado em 1830, tenta dar à Álgebra uma estrutura lógica comparada à da Geometria em Os Elementos, de Euclides. Ele e outros matemáticos da mesma época “tentaram axiomatizar as ideias fundamentais da álgebra e determinar até que ponto as propriedades dos inteiros se podem generalizar a outros tipos de quantidades” (KATZ, 2010KATZ, V. J. História da matemática. 1. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2010., p. 836). Entretanto, os axiomas utilizados são aqueles abstraídos da Aritmética e eles não perceberam que a escolha poderia ser feita livremente, tornando a Álgebra independente da experiência aritmética, tal como a Geometria não euclidiana tinha se tornado independente da experiência sensorial, com a adoção de axiomas que não são “verdades evidentes” (MILIES, 2004MILIES, F. C. P. Breve História da Álgebra Abstrata. Minicurso apresentado na II Bienal da Sociedade Brasileira de Matemática – SBM. Salvador, Universidade Federal da Bahia, 2004.).

O século XIX foi favorável ao desenvolvimento das estruturas algébricas. A busca por fundamentos, o conceito abstrato de número, os estudos sobre resolução de equação, enfim, tudo isso convergiu para o desenvolvimento da Álgebra Abstrata. Segundo Katz (2010)KATZ, V. J. História da matemática. 1. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2010., os estudos dos números determinados pelas soluções de uma equação algébrica conduziram à definição de corpo de números, por Kronecker e Dedekind. Contudo, nos trabalhos de Galois, por volta de 1830, a noção de corpo como um conjunto fechado para as operações de adição e multiplicação, em que existem oposto e inverso de todo elemento (com exceção do inverso do zero), já era conhecida por Galois (MILIES, 2004MILIES, F. C. P. Breve História da Álgebra Abstrata. Minicurso apresentado na II Bienal da Sociedade Brasileira de Matemática – SBM. Salvador, Universidade Federal da Bahia, 2004.). O próprio corpo dos números racionais era conhecido por ele, mas sem sentir a necessidade de nomear esse conceito. Foi Kronecker, na década de 1850, que construiu efetivamente este corpo (KATZ, 2010KATZ, V. J. História da matemática. 1. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2010.).

Uma definição para o conceito de corpo aparece em um trabalho de Dedekind: “Um sistema A de números reais ou complexos α é chamado um corpo se a soma, diferença, produto e quociente de cada par destes números pertence ao mesmo sistema” (DEDEKIND, 1893 apud KATZ, 2010KATZ, V. J. História da matemática. 1. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2010., p. 873). Segundo Katz (2010)KATZ, V. J. História da matemática. 1. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2010., Dedekind observou que 0 não pode ser denominador em nenhum quociente e que um corpo deve conter ao menos um número além do zero.

Como apresenta Katz (2010)KATZ, V. J. História da matemática. 1. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2010., tanto para Dedekind como para Kronecker, qualquer corpo continha o corpo dos números racionais e nenhum desses dois matemáticos buscou estender a definição de corpo para outros corpos, embora Galois já descrevesse corpos finitos em um de seus artigos. A definição abstrata de corpo veio com Heinrich Weber, que combinou as versões de Dedekind-Kronecker de corpo com os sistemas finitos de Galois (KATZ, 2010KATZ, V. J. História da matemática. 1. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2010.). Para Weber, um corpo

era um conjunto com duas formas de composição, adição e multiplicação, que para a primeira era um grupo comutativo e para a segunda o conjunto de elementos não nulos formava um grupo comutativo. Além disso, as duas formas de composição estavam relacionadas pelas seguintes regras: a(−b)=-ab;a(b+c)=ab+ac;(−a)(−b)=ab;e a·0=0. Weber observou ainda que, num corpo, um produto só pode ser zero quando um dos factores é zero (KATZ, 2010KATZ, V. J. História da matemática. 1. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2010., p. 874).

A definição apresentada por Dedekind, posteriormente refinada por Weber e, em 1903, melhor estabelecida por Leonard Dickson, caminha para a definição de corpo tal como a conhecemos hoje e que é apresentada em livros destinados ao ensino da Álgebra Abstrata para cursos de Ensino Superior.

Não podemos finalizar esse relato histórico sem deixar de pontuar o papel do grupo Bourbaki na Matemática contemporânea, que também influenciou na educação, como foi o caso do Movimento da Matemática Moderna, nos anos 1960. Como afirma Roque (2012)ROQUE, T. História da matemática: uma visão crítica, desfazendo mitos e lendas. 1. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2012., Bourbaki é o pseudônimo adotado por um grupo de matemáticos franceses dos anos 1930, que buscava “elaborar livros atualizados sobre todos os ramos da matemática, que pudessem servir de referência para estudantes e para pesquisadores” (p. 473). Esse grupo foi responsável por popularizar a imagem da Matemática como um saber axiomatizado baseado nas noções de conjunto e estrutura, com a publicação, em 1939, do livro Elementos da matemática: as estruturas fundamentais da análise.

Os trabalhos desse grupo, certamente, influenciaram a visão da Matemática Acadêmica contemporânea, a qual se preocupa mais com a estrutura e com as leis que a regem do que com a natureza do número. No caso do número racional, entendê-lo como elemento de um corpo ordenado, passa a ser mais interessante, do ponto de vista da Matemática Acadêmica, do que se preocupar com sua natureza. Tirar o foco da natureza do elemento permite ao matemático produzir novos conhecimentos considerando a estrutura em questão, por exemplo, reconhecer que o conjunto ℚ com as propriedades adição e multiplicação usuais constitui um corpo permite, ao matemático profissional, retirar novas características, como: (ℚ,+,∙) é o menor corpo que contém o anel (ℤ,+,∙ ). Assim, (ℚ,+,∙) é chamado de corpo das frações do domínio de integridade (ℤ,+,∙). Outros corpos importantes podem ser construídos a partir de uma extensão de um domínio de integridade, por exemplo: seja (ℤ[X],+,·) o anel dos polinômios com coeficientes inteiros, (ℚ(X),+,·) é seu corpo das frações.

O recorte histórico que aqui fizemos nos mostra que os números racionais na Matemática Acadêmica têm uma origem puramente matemática, isto é, a demanda por sua criação veio de uma necessidade interna da Matemática. Além disso, a história explicita a forma intencional de fazer Matemática, no sentido de que muitas das construções lógico-formais feitas são do modo que são porque já se sabia onde se queria chegar. Como veremos na próxima seção, essa característica intencional da Matemática Acadêmica pode ser objeto de questionamento se pensarmos na formação matemática do professor.

4 Problematizando os números racionais na Matemática Acadêmica a partir de livros didáticos

A discussão que estamos propondo neste artigo é uma discussão conceitual e, para isso, vamos nos pautar em livros didáticos utilizados em disciplinas de cursos de Licenciatura em Matemática. Nosso objetivo não é analisar ou julgar esses livros, mas sim usá-los como ponto de partida para a discussão matemática que estamos dispostos a fazer. Por esse motivo, não temos um critério rigoroso de escolha para usar um ou outro livro. Vamos abordar e discutir aspectos da construção lógico-formal dos números racionais como pares ordenados de números inteiros e, também, a noção do corpo dos números racionais. Durante as discussões, levantamos indagações a respeito da relevância (ou não) dos números racionais na Matemática Acadêmica para a formação inicial do professor, em particular, para o conhecimento profissional docente, com a expectativa de ser útil ao debate sobre a formação matemática do professor.

Carvalho, Lopes e Souza (1984)CARVALHO, M. S; LOPES, M. L. M. L.; SOUZA, J. C. M. Fundamentação da Matemática Elementar. 1. ed. Rio de Janeiro: Câmpus, 1984., no livro Fundamentação da Matemática Elementar, apresentam a necessidade de um novo conjunto numérico (o conjunto ℚ dos números racionais) a partir da deficiência do conjunto ℤ com relação à operação de divisão. A abordagem tomada é:

A operação (−12) ÷ (+3) equivale à pergunta “qual o número inteiro que devemos multiplicar por (+3) para se obter (−12)?”. Tal pergunta se traduz pela seguinte equação:

+ 3 · x = 12

Se houver solução em ℤ para essa equação, temos a resposta para a pergunta formulada. Uma equação de primeiro grau b · x=a tem solução em ℤ, quando a for um múltiplo de b, o que nos leva a concluir, no caso da equação 3x=−12, que x=123, em que o símbolo 123 indica o quociente de −12 por 3, que é −4.

Nesse caso, tal “símbolo, denominado fração, não passa de uma maneira convencional de se escrever o par (−12,3), que responde à pergunta: ‘qual o número que devemos multiplicar por 3 para obter −12?’” (CARVALHO; LOPES; SOUZA, 1984CARVALHO, M. S; LOPES, M. L. M. L.; SOUZA, J. C. M. Fundamentação da Matemática Elementar. 1. ed. Rio de Janeiro: Câmpus, 1984., p. 136).

Assim, continuam os autores, tanto o par ordenado (5,7), como a fração 57, nos perguntam: qual o número x que multiplicado por 7 fornece como produto 5?

É claro que existem outros pares ordenados de números inteiros cujo mesmo número x seja quociente. Por exemplo, o inteiro −4 é quociente de 123 e, também, de 246 ou de 287. Nesses casos, dizemos que os pares ordenados (−12,3), (−24,6), (−28,7) se equivalem, uma vez que seus quocientes são iguais a −4. Para expressar essa equivalência entre pares ordenados é usual o símbolo ~ e, segundo o livro, lê-se “equiquociente”.

Diante desses termos, uma fração pode ser definida como “um par ordenado de números inteiros (a, b), o segundo elemento b diferente de 0. O 1º elemento do par é denominado numerador, e o segundo, denominador” (CARVALHO; LOPES; SOUZA, 1984CARVALHO, M. S; LOPES, M. L. M. L.; SOUZA, J. C. M. Fundamentação da Matemática Elementar. 1. ed. Rio de Janeiro: Câmpus, 1984., p. 137). Nesse sentido, uma fração é um elemento do produto cartesiano ℤ×ℤ*, onde ℤ*=ℤ−{0}. Assim, se definirmos sobre o conjunto ℤ×ℤ* a relação equiquociente ~ dada por:

( a , b ) ~ ( c , d ) a d = b c ou a b ~ c d a . d = b . c

então essa relação ~ entre elementos de ℤ×ℤ* é uma relação de equivalência, pois goza das propriedades reflexiva, simétrica e transitiva. Tal relação divide o conjunto em classes de equivalência4 4 Definição: seja R uma relação de equivalência sobre um conjunto E. Dado a, com a∈E, chama-se classe de equivalência determinada por a, módulo R, o subconjunto de ā de E constituído pelos elementos x tais que x R a. Em símbolos: ā={x∈E| x R a} (DOMINGUES; IEZZI, 2003). No caso do nosso contexto, temos (ab) (em vez de (a−b)¯ a classe de equivalência: (ab)={(x, y)∈ℤ×ℤ* | a y=x b}. e o conjunto das classes de equivalência de ℤ×ℤ* pela relação de equivalência ~ é o conjunto quociente denotado por ℤ×ℤ*/~. Cada classe de equivalência construída por frações equiquocientes define um número racional (CARVALHO; LOPES; SOUZA, 1984CARVALHO, M. S; LOPES, M. L. M. L.; SOUZA, J. C. M. Fundamentação da Matemática Elementar. 1. ed. Rio de Janeiro: Câmpus, 1984.).

Por exemplo, as frações 12,24,48,816 são equiquocientes e constituem uma classe de equivalência, que podemos representar pela fração 12 (qualquer elemento da classe de equivalência pode ser usado para representá-la). Temos, então, que: (12)={12,24,48,816,}.

Segundo Carvalho, Lopes e Souza (1984)CARVALHO, M. S; LOPES, M. L. M. L.; SOUZA, J. C. M. Fundamentação da Matemática Elementar. 1. ed. Rio de Janeiro: Câmpus, 1984., o conjunto dos números racionais, denotado por ℚ, é definido pelo conjunto quociente ℤ×ℤ*/~, isto é, ℚ=ℤ×ℤ*/~.

Apresentada a definição, os autores definem as operações (adição e subtração, multiplicação e divisão) e provam (ou deixam como exercício) as propriedades dessas operações, que, ao final do livro, são relacionadas à estrutura algébrica corpo.

Carvalho, Lopes e Souza (1984)CARVALHO, M. S; LOPES, M. L. M. L.; SOUZA, J. C. M. Fundamentação da Matemática Elementar. 1. ed. Rio de Janeiro: Câmpus, 1984., ao proporem a necessidade de um novo conjunto numérico ℚ e de construí-lo formalmente a partir dos números inteiros, apresentam uma tentativa de articular a percepção formal dos números racionais e a ideia de resolução de equações do primeiro grau do tipo ax=b, que é algo familiar ao licenciando e é um tema da Educação Básica.

No entanto, há aspectos que evidenciam conflitos com os números racionais na Matemática Escolar. Como afirmam Carvalho, Lopes e Souza (1984)CARVALHO, M. S; LOPES, M. L. M. L.; SOUZA, J. C. M. Fundamentação da Matemática Elementar. 1. ed. Rio de Janeiro: Câmpus, 1984., há um abuso de linguagem de professores e livros didáticos quando escrevem, por exemplo, 12=24, quando o correto (dentro da Matemática Acadêmica) seria (12)=(24), pois estamos falando da mesma classe de equivalência, só que com representantes diferentes. Ou, outra maneira formalmente correta de escrever seria 1224, pois são frações equivalentes, não iguais. Chamamos a atenção, aqui, para a diferença entre a Matemática Escolar e a Matemática Acadêmica. Enquanto na Matemática Escolar escrever 12=24 é natural, o formalismo da Matemática Acadêmica não considera o mesmo.

Por mais que, em nosso entendimento, seja relevante ao professor da Educação Básica ter clareza sobre a distinção entre igualdade e equivalência de frações, pensamos que não seja a supracitada explicação via Matemática Acadêmica que fornecerá ao docente condições para ensinar frações no contexto escolar. A Matemática Escolar exige, por exemplo, que o professor saiba discutir com seus estudantes que dividir uma pizza ao meio e pegar 1 dos pedaços, isto é, 12, não é “igual” a dividi-la em 4 pedaços e pegar 2 pedaços, isto é, 24, mas que, em um contexto puramente matemático, é comum escrever 12=24, mesmo que se fale que as frações 12e24 são equivalentes.

É interessante perceber, também, que a notação utilizada pelo livro didático pode conduzir a outros modos de interpretar. Em Fundamentos de Aritmética, Domingues (2009DOMINGUES, H. H. Fundamentos de Aritmética. 8. ed. Florianópolis: Editora da UFSC, 2009., p. 218), por exemplo, escreve: mn={(x, y)∈ℤ×ℤ* | (x, y)~(m, n) }={(x, y)∈ℤ×ℤ*| n x=m y}.

É evidente que o símbolo mn está sendo usado como um representante de uma classe de equivalência, apesar de não usar uma notação específica para ela (um traço em cima, m¯n, ou parênteses, (m2)). Para esse autor, mn não é uma maneira convencional de se escrever o par (m, n), isto é, (m, n) não é o mesmo que mn (diferente do que consideram Carvalho, Lopes e Souza (1984)CARVALHO, M. S; LOPES, M. L. M. L.; SOUZA, J. C. M. Fundamentação da Matemática Elementar. 1. ed. Rio de Janeiro: Câmpus, 1984.); mn é um símbolo que representa a classe do par (m, n). Seguindo essa interpretação, faz sentido considerar, por exemplo, que 12=24, pois 12e24 são representantes de uma mesma classe de equivalência e a igualdade 12=24 está se referindo à igualdade da classe e não aos pares (1,2) e (2,4). Para representar a equivalência destes usamos o símbolo ~. Neste caso, temos: mn=rs⇔(m, n)~(r,s).

Nesse contexto, mn é um número racional. Mas, ficam-nos os seguintes questionamentos: um número racional mn é uma classe de equivalência? Isto é, um número racional é um conjunto? Como podemos operar (adicionar, subtrair, multiplicar e dividir) conjuntos? Do ponto de vista do estudante/futuro professor que está começando a compreender a construção dos números racionais, isso faz sentido? Do ponto de vista do ensino, como podemos abordar o número mn como uma classe de equivalência de pares ordenados de número inteiros considerando a noção anterior que o estudante tem desses números da Educação Básica? Como associar esse novo significado àqueles que o estudante da Licenciatura traz consigo ao longo de anos de Educação Básica para o símbolo mn?

Moreira e David (2003)MOREIRA, P. C.; DAVID, M. M. M. S. Matemática escolar, matemática científica, saber docente e formação de professores. Zetetiké, Campinas, v. 11, n. 19, p. 57-80, 2003. nos trazem um exemplo semelhante a esse, mas com os nùmerous reais. Esses números

[…] são cortes de Dedekind? São classes de equivalência de seqüências de Cauchy? São seqüências de intervalos encaixantes? Para o matemático profissional, a distinção entre essas formas de conceber o número real não é relevante. O mesmo objeto matemático — número real — pode ser pelo menos três “coisas” completamente diferentes (p. 65).

Para o matemático profissional não importa o que significa o número, importa que satisfaça a estrutura que o contém. No contexto da prática do professor de Matemática da escola básica, essa forma de compreender os números racionais enquanto classes de equivalência (ou os números reais, enquanto cortes de Dedekind) pode não fazer sentido.

Dando sequência à discussão, trazemos uma citação do livro Introdução à Álgebra Abstrata, de Evaristo e Perdigão (2013)EVARISTO, J.; PERDIGÃO, E. Introdução à Álgebra Abstrata. 2. ed. Formato Digital/Versão 01.2013. Maceió, 2013, quando afirmam:

No ensino fundamental aprendemos que um número racional é todo número que pode ser escrito na forma de uma fração pq com q≠0. Naturalmente, esta “definição” não é satisfatória porque não se define anteriormente o que é uma fração nem consegue explicar por que os “números racionais” 34e68, por exemplo, são iguais. A definição formal de números racionais é: o conjunto dos números racionais ℚ é o corpo de frações de ℤ (p. 108-109).

Nesse trecho do livro, os autores expressam uma insatisfação com a maneira como os números racionais são apresentados no Ensino Fundamental e, como alternativa às insuficiências citadas, propõem a definição formal: o conjunto dos números racionais ℚ é o corpo de frações de ℤ. Gonçalves (2001)GONÇALVES, A. Introdução à Álgebra. 5. ed. Rio de Janeiro: Associação Instituto Nacional de Matemática Pura e Aplicada, 2001. sugere a mesma ideia quando apresenta a “(…) construção do corpo de frações ℚ={mnm, n∈ℤ,n≠0} a partir do domínio ℤ” (p. 60).

A noção de ℚ como o corpo das frações de ℤ precisa ser explorada aqui, pois, como apresentado na parte histórica, trata-se de um modo de pensar que nos permite, ao menos do ponto de vista da Matemática Acadêmica, perceber que a estrutura que envolve os racionais é análoga à estrutura das expressões algébricas, assim como a dos polinômios é análoga à estrutura dos inteiros.

Para construir ℚ como o corpo das frações do domínio de integridade ℤ, vamos tomar o livro Álgebra Moderna, de Domingues e Iezzi (2003)DOMINGUES, H. H.; IEZZI, G. Álgebra Moderna. 4. ed. reform. São Paulo: Atual, 2003.. Primeiro, os autores definem quociente em um corpo. Em um corpo K, a equação a x=b, com a≠0 (ou 0k) tem uma única solução, que é o elemento a−1b=b a−1 (sendo a−1 o inverso multiplicativo de a em K). Um elemento de K escrito na forma a−1b=b a−1 é chamado de quociente de b por a e é denotado por ba. Por outro lado, todo elemento a de K é um quociente, pois, se b≠0 é um elemento de K, então a=(a b)b−1=abb.

Antes de prosseguirmos, vale destacar que: i) o corpo K é qualquer, não se trata, necessariamente, de ℚ; ii) a notação de quociente tomada aqui é aquela mesma conhecida e utilizada para representar frações ab com a, b∈ℤ e b≠0 ou expressões algébricas do tipo ax+bcx2+d. Isto é, a notação de quociente de b por a utilizada aqui para denotar ba não deve ser confundida com um número racional, pois pode ser ou não.

Dentro desse contexto, sejam a, b, c e d elementos de um corpo K, se b≠0 e d≠0, as seguintes proposições podem ser demonstradas, como, por exemplo, ab±cd=ad+bcbdeabcd=acbd. Após apresentar tais propriedades e operações válidas para qualquer corpo K, Domingues e Iezzi (2003)DOMINGUES, H. H.; IEZZI, G. Álgebra Moderna. 4. ed. reform. São Paulo: Atual, 2003. dedicam-se a construir um corpo K a partir de um anel de integridade A, dado de modo que este seja um subanel unitário de K. Dado um anel de integridade A, consideremos a relação ~ sobre o conjunto A×A* definida por: (a, b)~(c, d) se, e somente se, a d=b c. Como sabemos, tal relação é uma relação de equivalência. Toma-se a notação ab para representar a classe de equivalência determinada pelo par (a, b) em vez da notação genérica (a,b)¯. Assim, os elementos do conjunto quociente K=(A×A*)/~, com a notação adotada, são as fraçõesab (aA e bA*). Agora sim cumpre-se a exigência feita por Evaristo e Perdigão (2013)EVARISTO, J.; PERDIGÃO, E. Introdução à Álgebra Abstrata. 2. ed. Formato Digital/Versão 01.2013. Maceió, 2013: está definido o que é fração. Perceba que a fraçãoab não considera somente a∈ℤ e b∈ℤ*, mas sim a, b de qualquer anel de integridade A.

Notemos que K não é dito ainda um corpo. É preciso chegar a essa conclusão. Para tanto, define-se “soma” e “produto” de duas frações ab,cdK, inspirado no que já fora demonstrado na forma de proposição: ab±cd=ad+bcbdeabcd=acbd. Feita essa escolha pelas operações (intencionalmente), demonstra-se que (K,+,∙ ) é um corpo, mostrando que são válidas as propriedades necessárias. Nesse caso, (K,+,∙ ) é chamado de corpo das frações do domínio de integridade A.

Contudo, pela forma como os elementos de K são construídos, como classes de equivalência, temos que sua natureza é diferente da natureza dos elementos do anel de integridade A. Por exemplo, tomando ℚ o corpo das frações de ℤ, o elemento 21 de ℚ é, na verdade, a classe de equivalência determinada pelo par (2,1), o que é, claramente, diferente do elemento 2 de ℤ em sua natureza, uma vez que os elementos de ℤ são construídos a partir de uma outra relação de equivalência sobre ℕ×ℕ. Esse fato nos conduziria a dizer que ℤ não está contido em ℚ, contrariando o que usualmente é feito na Educação Básica. Se 21∈ℚ é diferente de 2∈ℤ, então não poderíamos afirmar que ℤ⊂ℚ. Ou, escrito de uma forma mais geral, não poderíamos considerar A um subanel unitário de K. Entretanto, a própria Matemática Acadêmica tem uma saída para isso. Define-se um subanel L de K da forma: L={a1|aK}. Para completar, define-se uma aplicação f: AL que associa a cada elemento aA à fração a1. É possível mostrar que f é um isomorfismo de anéis. Assim, identifica-se A com sua cópia L em K por meio do isomorfismo f, permitindo-nos afirmar que AK. Ou, no caso mais particular, ℤ⊂ℚ.

Podemos dizer, assim, que os matemáticos perceberam que aquela construção do conjunto ℚ dos números racionais por uma ampliação do conjunto ℤ dos números inteiros (por meio de uma relação de equivalência) poderia ser estendida para outros casos, levando à noção mais geral de corpo das frações de um domínio de integridade A. Desse modo, o fato de ℚ ser o corpo das frações do domínio de integridade ℤ o torna “semelhante” ao conjunto ℚ(X), uma vez que este é o corpo das frações do domínio de integridade ℤ[X]. Notemos que o destaque agora está sobre o corpo das frações e não mais sobre a natureza dos elementos. Na Matemática Acadêmica, notar essa “semelhança” é importante, pois permite ao matemático lidar com coisas distintas (ℚ e ℚ(X)) como se fossem a mesma coisa (corpo de frações). Dessa maneira, os elementos 23ex+1x2+1 têm algo que os aproxima: são elementos de um corpo de frações de um domínio de integridade A.

Na Matemática Escolar, é relevante que o professor tenha consciência de que 23ex+1x2+1 são frações, pois, muitas vezes, frações e números racionais são tomados como sinônimos pelos estudantes. Entretanto, mais do que reconhecer semelhanças entre 23ex+1x2+1 por meio da noção avançada de corpo de frações, acreditamos que seja importante a esse professor ter conhecimento, por exemplo, de que o próprio currículo da Educação Básica pode conduzir a tal modo de pensar frações e que as frações mais usuais são as frações de números inteiros.

Nesse sentido, acreditamos que a Matemática Escolar, enquanto o conjunto de saberes associados ao exercício da profissão docente, não deve se pautar nos valores da Matemática Acadêmica, como se deles fosse proveniente. Pelo contrário, a Matemática Escolar deve ter autonomia para compreender fração como uma forma de representar números que independa da definição de corpo das frações, afastando-se da vigilância epistemológica da Matemática Acadêmica (MOREIRA; DAVID, 2010MOREIRA, P. C.; DAVID, M. M. M. S. A formação matemática do professor: Licenciatura e prática docente. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2010. (Coleção Tendências em Educação Matemática).) que parece incidir sobre a Matemática da escola.

Por fim, queremos destacar mais um aspecto da construção lógico-formal dos números racionais: a intencionalidade das escolhas na Matemática Acadêmica. Consideremos o caso da relação de equivalência ~ tomada para a definição de ℚ como o conjunto quociente de ℤ×ℤ*por ~. Tal relação é definida como (m, n)~(p, q) se, e somente se, m q=n p. Nosso questionamento é: por que definimos a relação ~ dessa forma? Por que não outra? É óbvio que essa forma de definir nos permite construir os números racionais e lidar com suas operações tal como já as conhecíamos. Relembrando Moreira e David (2004)MOREIRA, P. C.; DAVID, M. M. M. S. Números Racionais: conhecimentos da formação inicial e prática docente na escola básica. Bolema, Rio Claro, v. 21, p. 1-19, 2004., as construções da Matemática Acadêmica visam produzir uma “abstração que expresse formalmente as características ‘essenciais’ de um objeto que, ao menos da construção formal, já é, de certo modo, conhecido” (p. 6). Certamente, a “escolha” por definir a relação de tal forma é uma maneira de produzir uma abstração para algo que já era conhecido. O breve relato da história recente dos números racionais nos evidenciou isso, mostrando que “a lógica não dita o conteúdo da matemática; o uso é que determina a estrutura lógica. A organização lógica é posterior e constitui, essencialmente, um ornamento” (KLEIN, 1974 apud MOREIRA; DAVID, 2010MOREIRA, P. C.; DAVID, M. M. M. S. A formação matemática do professor: Licenciatura e prática docente. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2010. (Coleção Tendências em Educação Matemática)., p. 66).

Reconhecendo essa característica da Matemática Acadêmica (a intencionalidade de suas escolhas) e estando a mesma presente em diversos currículos de Licenciatura em Matemática, será que trazê-la para discussão em cursos de formação não pode favorecer a compreensão de futuros professores sobre Matemática? Entendemos que explicitar essa lógica ou esses valores da Matemática Acadêmica seja, muitas vezes, mais importante para a formação de professores do que o conteúdo em si, no sentido de que permite ao futuro professor conhecer as maneiras como as verdades matemáticas são estabelecidas, para se ter consciência de como se tratar as verdades construídas dentro da Matemática Escolar.

5 Considerações finais

O presente artigo buscou discutir aspectos conceituais dos números racionais na Matemática Acadêmica. De algum modo, entendemos que nossa pesquisa se alinha às de Moreira e David (2003MOREIRA, P. C.; DAVID, M. M. M. S. Matemática escolar, matemática científica, saber docente e formação de professores. Zetetiké, Campinas, v. 11, n. 19, p. 57-80, 2003.; 2011MOREIRA, P. C.; DAVID, M. M. M. S. Matemática Acadêmica e Matemática Escolar: dissonâncias e conflitos. In: LOPES, E. M. T.; PEREIRA, M. R. (Org.). Conhecimento e inclusão social: 40 anos de pesquisa em Educação. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011. p. 193-222.) ao tentarmos evidenciar dissonâncias entre a Matemática Acadêmica e a Matemática Escolar no contexto dos números racionais.

A apresentação da história recente dos números racionais mostrou-nos que o desenvolvimento de uma Matemática lógico-formal-dedutiva, em particular a construção dos números racionais, se deu por uma demanda da própria Matemática. Esta característica internalista de fazer Matemática é própria do matemático profissional, que concebe a Matemática como um fim em si mesma (FIORENTINI; LORENZATO, 2009FIORENTINI, D; LORENZATO, S. Investigação em Educação Matemática: Percursos Teóricos e Metodológicos. Campinas, SP: Autores Associados, 2009. (Coleção Formação de Professores).).

Podemos nos questionar, portanto, em que medida essas construções formais (recentes) são pertinentes à formação inicial de professores? Ao longo deste texto, trouxemos casos que podem, inclusive, apresentar conflitos entre os números racionais na Matemática Acadêmica e os números racionais na Matemática Escolar.

A perspectiva que temos assumido em nossas investigações é a de que a Matemática a ser trabalhada na Licenciatura deve ter como ponto de partida e de chegada a Matemática Escolar. Enquanto ponto de partida, a Matemática Escolar se colocar como aquilo a ser tratado, o objeto de estudo. Enquanto ponto de chegada, a Matemática Escolar deve estar impregnada de novas reflexões do licenciando como futuro professor e não mais como ex-estudante da Educação Básica. Mais do que conteúdos, essas reflexões, como aquelas apontados neste texto, significam, por exemplo, discutir a intencionalidade característica da Matemática Acadêmica, evidenciando as matemáticas (seja a Matemática Escolar, Acadêmica ou do Cotidiano) como conjuntos de práticas sociais situadas em contextos específicos e com objetivos e critérios de validação próprios.

O debate acerca do papel da Matemática Acadêmica na formação do professor demanda muitas pesquisas, mas é preciso reconhecer que, aos poucos, elas estão caminhando. Este artigo visa ser uma pequena contribuição para essa ampla discussão.

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    Para mais detalhes sobre a transição entre noção de número relacionado a quantidade e número abstrato, recomendamos o livro de Roque (2012)ROQUE, T. História da matemática: uma visão crítica, desfazendo mitos e lendas. 1. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2012..
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    A criação do conceito de classe de equivalência e seu uso para a construção dos números inteiros a partir dos naturais, e dos racionais a partir dos inteiros não ficou explícita em nosso estudo histórico. Em Katz (2010)KATZ, V. J. História da matemática. 1. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2010., notamos que Hamilton, por volta de 1840, fez uso desse conceito para sua construção de número inteiro e, também, de número racional.
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    Uma sociedade cuja finalidade imediata era reformar o ensino do Cálculo, adotando as notações em uso no continente, mas cuja principal contribuição foi a discussão sobre os fundamentos da Álgebra.
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    Definição: seja R uma relação de equivalência sobre um conjunto E. Dado a, com aE, chama-se classe de equivalência determinada por a, módulo R, o subconjunto de ā de E constituído pelos elementos x tais que x R a. Em símbolos: ā={xE| x R a} (DOMINGUES; IEZZI, 2003DOMINGUES, H. H.; IEZZI, G. Álgebra Moderna. 4. ed. reform. São Paulo: Atual, 2003.). No caso do nosso contexto, temos (ab) (em vez de (ab)¯ a classe de equivalência: (ab)={(x, y)∈ℤ×ℤ* | a y=x b}.

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Ago 2018

Histórico

  • Recebido
    14 Set 2017
  • Aceito
    15 Fev 2018
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