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O software IRAMUTEQ e a Análise de Narrativas (Auto)biográficas no Campo da Educação Matemática

The IRAMUTEQ software and the analysis of autobiographical narratives in the field of Mathematics Education

Resumo

Objetiva-se neste artigo evidenciar as contribuições do uso do software IRAMUTEQ como ferramenta de análise de narrativas (auto)biográficas no campo da Educação Matemática. O corpus de análise é composto por 34 narrativas, em que futuros pedagogos da Universidade Federal de Ouro Preto narram suas trajetórias com a Matemática, desde a Educação Infantil até o Ensino Superior. Tais narrativas foram produzidas durante o desenvolvimento de uma disciplina do curso de Pedagogia em que se discutem os processos de ensino e aprendizagem da Matemática. Como estratégia de análise, selecionaram-se a nuvem de palavras e a análise de similitude. A utilização desses recursos analíticos possibilitou ampliar o olhar para as características das narrativas, por meio da formação de categorias e subcategorias, que emergem das ligações entre as palavras com maior frequência. Concluiu-se que o uso de softwares como o IRAMUTEQ precisa ser ampliado e discutido no âmbito da Educação Matemática, sobretudo em pesquisas com fontes (auto)biográficas.

Palavras-chave:
IRAMUTEQ; Narrativas (Auto)biográficas; Formação de Professores que Ensinam Matemática; Análise Narrativa

Abstract

This article aims at highlighting the contributions of using the IRAMUTEQ software as a tool for analyzing (auto)biographical narratives in the field of mathematics education. To this end, we opted for selecting discussions about the initial course of teachers’ education who will teach mathematics in the early years of elementary school. The resulting corpus of analysis contained 34 narratives, written by future pedagogues from University of Ouro Preto, in which they narrate their trajectories with mathematics, from early childhood education to higher education. Such narratives were produced in a course that discussed the processes of teaching and learning mathematics. We chose word cloud and similarity analysis as a strategy for the analyses. The use of these analytical resources enabled a more encompassing examination of the narratives’ features, through the creation of categories and subcategories, which emerged from the links between the most frequently used words. We concluded that the use of a software such as IRAMUTEQ should be expanded and discussed within the scope of mathematical education, especially in research with (auto)biographical sources.

Keywords:
IRAMUTEQ; Autobiographical Narratives; Teacher Education that Teach Mathematics; Narrative Analysis

1 Introdução

O movimento de produção nacional dos educadores matemáticos, considerando pesquisas que têm aproximações com os estudos (auto)biográficos, foi objeto de investigação de Nacarato, Moreira e Custódio (2019)NACARATO, A. M.; MOREIRA, K. G.; CUSTÓDIO, I. A. Educação matemática e estudos (auto)biográficos: um campo de investigação em construção. Revista Brasileira de Pesquisa (Auto)Biográfica, Salvador, v. 4, n. 10, p. 21-47, jan./abr. 2019., que consideraram o recorte temporal de 2010 a 2018 e tomaram como fonte de dados os Anais das edições do Congresso Internacional de Pesquisa (Auto)biográfica – CIPA (cinco, no total) –, os Anais do GT19 da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (Anped) e os periódicos qualificados em Educação e Educação Matemática.

Ao analisarem as pesquisas da área de Educação Matemática, Nacarato, Moreira e Custódio (2019)NACARATO, A. M.; MOREIRA, K. G.; CUSTÓDIO, I. A. Educação matemática e estudos (auto)biográficos: um campo de investigação em construção. Revista Brasileira de Pesquisa (Auto)Biográfica, Salvador, v. 4, n. 10, p. 21-47, jan./abr. 2019. apontam para a polissemia que envolve os termos desse campo de inquérito – ainda em construção na área – e ponderam que a abordagem narrativa possibilita um movimento de escutar os professores e reconhecê-los como protagonistas de suas práticas. Ademais, defendem uma prática que supere a visão das narrativas meramente como instrumento de coleta de dados, assumindo-as como objeto de (re) significação, problematização e reflexão.

Nesse direcionamento, a publicação dos Dossiês intitulados A mobilização das narrativas como fonte e/ou como recurso metodológico para a pesquisa em Educação Matemática (NACARATO; PASSOS; SILVA, 2014NACARATO, A. M.; PASSOS, C. L. B; SILVA, H. Narrativas na pesquisa em Educação Matemática: caleidoscópio teórico e metodológico. Bolema, Rio Claro, v. 28, n. 49, p. 701-716, ago. 2014.) e Percursos narrativos em Educação Matemática (NACARATO; PASSOS; LOPES, 2019NACARATO, A. M.; MOREIRA, K. G.; CUSTÓDIO, I. A. Educação matemática e estudos (auto)biográficos: um campo de investigação em construção. Revista Brasileira de Pesquisa (Auto)Biográfica, Salvador, v. 4, n. 10, p. 21-47, jan./abr. 2019.) possibilita um olhar para esse campo em construção.

Acerca dessa questão, Nacarato, Passos e Silva (2014)NACARATO, A. M.; PASSOS, C. L. B; SILVA, H. Narrativas na pesquisa em Educação Matemática: caleidoscópio teórico e metodológico. Bolema, Rio Claro, v. 28, n. 49, p. 701-716, ago. 2014. já sinalizavam que o uso das narrativas vinha ganhando espaço nas pesquisas em Educação Matemática, de modo especial no tocante à formação docente. Por ser esse um campo em construção, as autoras chamam a atenção para os diferentes usos e entendimentos presentes nas pesquisas desenvolvidas na área. E sinalizam que as narrativas são utilizadas ora como prática de formação, ora como objeto ou gênero de pesquisa, ou, ainda, como pesquisa – no caso, a pesquisa narrativa.

Em consonância com esses apontamentos, o dossiê organizado por Nacarato, Passos e Lopes (2019)NACARATO, A. M.; MOREIRA, K. G.; CUSTÓDIO, I. A. Educação matemática e estudos (auto)biográficos: um campo de investigação em construção. Revista Brasileira de Pesquisa (Auto)Biográfica, Salvador, v. 4, n. 10, p. 21-47, jan./abr. 2019. indica que os percursos investigativos que se alicerçam nas narrativas têm se constituído em um caminho promissor nas pesquisas em Educação Matemática, pelo fato de favorecer um movimento de escuta de estudantes e professores, ou seja, “as vozes daqueles que, historicamente, têm sido silenciados” (NACARATO; PASSOS; LOPES, 2019NACARATO, A. M.; PASSOS, C. L. B.; LOPES, C. E. Percursos narrativos em Educação Matemática. Revista Brasileira de Pesquisa (Auto)Biográfica, Salvador, v. 4, n. 10, p. 21-47, jan./abr. 2019., p. 14). Para as autoras, esse movimento de escuta se constitui em um ato político e de valorização. Além disso, sinaliza que o uso de narrativas pode auxiliar o processo de formação de professores que ensinam Matemática, pelo fato de favorecer processos de (re)conhecimento e (re)significação das experiências com a Matemática e seu ensino.

Embora pareça ser elementar a utilização de narrativas nas pesquisas em Educação Matemática, há de se destacar que essa abordagem exige muito do pesquisador, sobretudo no que tange à organização de um volume considerável de dados qualitativos. Para ilustrar esse desafio, tomamos como exemplo a pesquisa de Bolognani (2013)BOLOGNANI, M. S. F. Narrativas de professoras dos anos iniciais do ensino fundamental: marcas da escola e da matemática escolar. 2013. Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade São Francisco, Itatiba, 2013., que analisou as narrativas produzidas por um grupo de dez professores. A autora destacou que tais entrevistas foram longas e, em função do número de participantes, a produção dos dados gerou um volume significativo de informações que, de acordo com ela, dificultou o processo de organização e análise dos dados.

Desse modo, pensar em ferramentas que auxiliem na otimização da organização e do tratamento de dados têm se mostrado como uma discussão que merece atenção por parte dos pesquisadores que desenvolvem pesquisas na perspectiva (auto)biográfica na Educação e na Educação Matemática. Tais ferramentas, atreladas a diferentes perspectivas metodológicas (Análise de Conteúdo; Análise de Discurso; Análise Categorial, dentre outras), podem contribuir com o processo analítico de um volume considerável de dados qualitativos oriundos de narrativas, por exemplo.

Ultimamente, o uso de ferramentas tecnológicas para o tratamento de material textual tem sido cada vez mais frequente em diversas áreas do conhecimento, principalmente por possibilitar a rápida organização dos dados da pesquisa (DE PAULA; LORI; GUIMARÃES, 2015DE PAULA, M. C.; LORI, V.; GUIMARÃES, G. T. D. Análise textual discursiva com apoio do software SPHINX. Investigação Qualitativa em Educação – Atas CIAIQ, Aracajú, v. 2, n. 2, p. 352-357, 2015.; DE PAULA; LORI; GUIMARÃES, 2016DE PAULA, M. C.; LORI, V.; GUIMARÃES, G. T. D. A pesquisa qualitativa e o uso de CAQDAS na análise textual: levantamento de uma década. Internet Latent Corpus Journal, Aveiro, v. 6, n. 2, p. 65-78, 2016.; NASCIMENTO-SCHULZE; CAMARGO, 2000NASCIMENTO-SCHULZE, C. M.; CAMARGO, B. V. Psicologia social, representações sociais e métodos. Temas Psicol, Ribeirão Preto, v. 8, n. 33, p.287-299, 2000. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-389X2000000300007. Acesso em: 10 dez. 2020.
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).

O software IRAMUTEQ tem sido muito utilizado no Brasil desde 2013 e suas características principais são o rigor estatístico, a análise de grande volume de dados, a objetividade, as diferentes possibilidades de análises, a interface simples e a gratuidade. Seu ferramental permite ao pesquisador analisar estatísticas sobre corpus textuais, com o intuito de comparar e relacionar variáveis específicas presentes no texto, ampliando sua visão para possíveis níveis de categorização e tomada de decisão (CAMARGO; JUSTO, 2013CAMARGO, B. V.; JUSTO, A. M. IRAMUTEQ: um software gratuito para análise de dados textuais. Temas Psicol., Ribeirão Preto, v. 21, n. 2, p. 513-518, 2013.).

Com efeito, ao realizarmos uma busca no Banco de Dissertações e Teses da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), considerando o descritor “IRAMUTEQ”, foram encontradas 426 pesquisas. Ao aplicarmos o filtro “área de conhecimento” para as Ciências Humanas, obtivemos um total de 160 pesquisas, sendo 70 delas vinculadas à área de Educação e todas foram analisadas por nós na íntegra. Com esse processo analítico, verificamos que nenhuma foi desenvolvida no âmbito da Educação Matemática e nenhuma tampouco envolveu professores que ensinam Matemática. Entretanto, compreendemos que a ausência do descritor indicado nos resumos e nas palavras-chaves das pesquisas dificulta o mapeamento de estudos que se utilizaram deste software ou mesmo de recursos analíticos que ele possibilita. No entanto, o resultado do levantamento que realizamos evidencia a relevância do presente artigo, que se propõe a refletir sobre a utilização do software IRAMUTEQ como ferramenta de análise de narrativas (auto)biográficas.

Para tanto, propomos as seguintes seções: narrativas (auto)biográficas e as pesquisas sobre formação de professores que ensinam Matemática; aspectos metodológicos; análise de dados; análise de narrativas (auto)biográficas por meio da nuvem de palavras; análise de narrativas (auto)biográficas por meio da análise de similitude; e, por fim, considerações finais do presente artigo.

2 As narrativas (auto)biográficas e as pesquisas sobre formação de professores que ensinam Matemática

A área da Educação Matemática tem realizado investigações que consideram as narrativas como método de pesquisa (BRIÃO, 2017BRIÃO, G. F. A pesquisa narrativa autobiográfica de uma professora de matemática: aproximações com a insubordinação criativa. REnCiMa, São Paulo, v. 8, n. 4, p. 31-49, 2017.; KAASILA, 2007KAASILA, R. Using narrative inquiry for investigating the becoming of a mathematics teacher. The International Journal on Mathematics Education, Heidelberg, v. 39, n. 3, p. 205-213, 2007.; NACARATO; MOREIRA; CUSTÓDIO, 2019NACARATO, A. M.; MOREIRA, K. G.; CUSTÓDIO, I. A. Educação matemática e estudos (auto)biográficos: um campo de investigação em construção. Revista Brasileira de Pesquisa (Auto)Biográfica, Salvador, v. 4, n. 10, p. 21-47, jan./abr. 2019.; SILVA, 2013SILVA, H. Integrando história oral e narrativas a abordagens pedagógicas problematizadoras na formação inicial de professores de matemática. Revista de Educação PUC-Campinas, Campinas, v. 18, n. 3, p. 269-285, set./dez. 2013.). O movimento ocorrido nessas pesquisas pauta-se no processo de escuta aos professores em formação, valorizando e empoderando os profissionais da educação, seja na etapa inicial, seja na contínua.

A pesquisa narrativa, como um estudo biográfico, coloca o foco sobre a experiência do sujeito, ampliando o espaço para a expressão de sua subjetividade. Trata-se de investigar as histórias que as pessoas vivem e, ao contar suas histórias, elas podem apoderar-se da sua experiência profissional, reafirmar ou redimensionar aspectos de suas identidades profissionais e também criar outras histórias.

Ao considerar tais pressupostos, a produção científica em Educação Matemática tem se pautado em discutir as experiências vividas por professores durante cursos de formação, em analisar as trajetórias profissionais e os percursos em processos de formação contínua e/ou grupos de estudos e pesquisas, normalmente centrados em trabalhos colaborativos.

Nesse contexto, a superação da invisibilidade do professor que luta diariamente pela sua identidade e reconhecimento subjaz a tais pesquisas. Em muitas ocasiões o professor entra na sala de aula e se sente invisível, para ele e para os alunos. Jenlink (2014)JENLINK, P. M. Teacher identity and the struggle for recognition: meeting the challenges of a diverse society. Lanham: Rowman & Littlefield Education, 2014. pondera que nós, professores, somos invisíveis para muitos, e isso não é uma escolha nossa. O autor considera que a invisibilidade é “construída pela ausência de imaginação – a ausência de habilidade para ver o narrador como um ser humano vivo, uma pessoa, como todas as outras pessoas; parte da humanidade e, ao mesmo tempo, lutando para ser reconhecido pela humanidade” (JENLINK, 2014JENLINK, P. M. Teacher identity and the struggle for recognition: meeting the challenges of a diverse society. Lanham: Rowman & Littlefield Education, 2014., p. 17, tradução nossa).

Essas considerações de Jenlink (2014)JENLINK, P. M. Teacher identity and the struggle for recognition: meeting the challenges of a diverse society. Lanham: Rowman & Littlefield Education, 2014. o encaminham a considerar que formadores de professores precisam praticar uma pedagogia da identidade, quando examinam criticamente as consequências que discursos e práticas dominantes têm na criação de suas próprias vidas e nas vidas de seus estudantes. Esse processo requer que esses profissionais compreendam a formação das identidades dos estudantes como individuais e, também, compreendam a formação de suas próprias identidades.

Essa análise crítica sugerida pelo autor auxilia na escolha da pesquisa narrativa de forma pessoal, prática e social, como aponta Clandinin (2013)CLANDININ, D. J. Engaging in narrative inquiry. California: Left Coast Press, 2013., já que ela possibilita ao sujeito se formar, se informar e se transformar. Essa perspectiva remete a se pensar o exercício da profissão professor de modo mais autêntico e consciente, minimizando as contradições entre crenças e práticas. Isso “impulsiona outros professores a fazerem o mesmo, retirando-os de uma posição de invisibilidade profissional” (BRIÃO, 2017BRIÃO, G. F. A pesquisa narrativa autobiográfica de uma professora de matemática: aproximações com a insubordinação criativa. REnCiMa, São Paulo, v. 8, n. 4, p. 31-49, 2017., p. 37).

Complementando tais ideias, Nacarato (2010)NACARATO, A.M. A formação matemática das professoras das séries iniciais: a escrita de si como prática de formação. Bolema, Rio Claro, v. 23, p. 905-930, 2010. assinala que a escrita autobiográfica, quando tomada como objeto de problematização e reflexão, pode contribuir para o rompimento de práticas e crenças tradicionais do ensino da Matemática e permitir ao futuro professor (re)significar suas aprendizagens e construir um repertório de saberes que subsidiam a sua atuação em outra perspectiva, diferente daquelas que vivenciou.

Emerge, então, a justificativa para se utilizar a narrativa de formação com o objetivo de evidenciar a experiência de formação como uma dinâmica de organização que revela um fragmento de vida. Ela integra e transcende o vivido, pois, quando o indivíduo em formação “passa” pela narrativa, ele pode reapropriar-se da sua experiência em formação e “encontrar-se-á a si próprio” (CHENÉ, 2014CHENÉ, A. A narrativa de formação e a formação de formadores. In: NÓVOA, A.; FINGER, M. (org.). O método (auto)biográfico e a formação. Natal: EDUFRN, 2014. p. 121-132., p. 127).

Encontramos, na narrativa de formação,

o antes e o depois, o fora e o dentro da experiência presente, com o distanciamento próprio da escrita. Para mais, os percursos narrativo e discursivo tecem no texto a dinâmica da relação com o saber, da relação com os outros e também da relação com os diferentes aspectos do eu (CHENÉ, 2014CHENÉ, A. A narrativa de formação e a formação de formadores. In: NÓVOA, A.; FINGER, M. (org.). O método (auto)biográfico e a formação. Natal: EDUFRN, 2014. p. 121-132., p. 129).

Com isso podemos verificar as potencialidades da narrativa para a formação do professor. A pesquisa narrativa se reverte em histórias vividas e contadas, propiciando encontros daquele que narra consigo mesmo, ao mesmo tempo que permite ao pesquisador uma ruptura com a objetividade e a neutralidade.

Passeggi e Souza (2014)PASSEGGI, M. C.; SOUZA, E. C. O método (auto)biográfico: pesquisa e formação. In: NÓVOA, A.; FINGER, M. (org.). O método (auto)biográfico e a formação. Natal: EDUFRN, 2014. p. 29-55. defendem o método (auto)biográfico, considerando que as inquietações com a formação ao longo da vida são

exacerbadas pelas mutações sociais, que exigem do adulto que se auto(trans)forma, mais do que nunca, a capacidade de tomar entre suas mãos a própria vida e empreender a conquista da consciência histórica de sua formação. Para os autores, se esta é uma tarefa da Educação, o método (auto)biográfico é via passível de produzir conhecimentos que favoreçam o aprofundamento teórico sobre a formação do humano e, enquanto prática de formação, conduzir o diálogo de modo mais proveitoso consigo mesmo, com o outro e com a vida (PASSEGGI; SOUZA, 2014PASSEGGI, M. C.; SOUZA, E. C. O método (auto)biográfico: pesquisa e formação. In: NÓVOA, A.; FINGER, M. (org.). O método (auto)biográfico e a formação. Natal: EDUFRN, 2014. p. 29-55., p. 14).

Tais considerações têm sido absorvidas por pesquisadores da Educação Matemática. Nacarato, Moreira e Custódio (2019)NACARATO, A. M.; MOREIRA, K. G.; CUSTÓDIO, I. A. Educação matemática e estudos (auto)biográficos: um campo de investigação em construção. Revista Brasileira de Pesquisa (Auto)Biográfica, Salvador, v. 4, n. 10, p. 21-47, jan./abr. 2019. apresentam uma síntese interpretativa do percurso de aproximação do método (auto)biográfico e destacam que, no cenário da produção científica brasileira em Educação, há grupos de pesquisas em universidades de vários estados que têm se debruçado sobre esta opção teórica e metodológica. Ao focalizar as investigações relacionadas à Educação Matemática a partir dos trabalhos apresentados e publicados em Congressos Internacionais de Pesquisa (Auto)Biográfica; no GT19 das reuniões nacionais da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação; nos periódicos Boletim de Educação Matemática, Zetetiké, Revista Eletrônica de Educação, Perspectivas em Educação Matemática, Revista Educação PUC-Campinas, Revista Brasileira de Pesquisa (Auto)Biográfica e Educar em Revista, podemos considerar que a opção pela pesquisa (auto)biográfica se relaciona ao interesse em explorar a historicidade, aspecto marcante das narrativas e das práticas pedagógicas, e vincula-se também à busca da compreensão de práticas sociais relativas à Educação Matemática. Evidenciam-se estudos sobre histórias de vida de educadores, narrativas de trajetórias profissionais, narrativas de estudantes, narrativas de práticas docentes, memoriais de formação.

O ato de narrar, nas pesquisas em Educação Matemática, tem sido considerado como dispositivo de formação e o processo reflexivo provocado pelas narrativas orais e escritas tem possibilitado aos depoentes vivenciarem processos de (auto)formação. Também tem se revelado singularidades no âmbito da pesquisa educacional e emergem contribuições para as diferentes compreensões sobre o ensinar e o aprender Matemática, assim como sobre as dimensões da profissão do professor que ensina Matemática.

Cabe destacar que uma narrativa biográfica não é um relatório de acontecimentos, mas uma ação social pela qual um indivíduo copila sinteticamente a sua vida e a interação social em curso. “Não há mais verdade biográfica numa narrativa oral espontânea do que num diário, numa autobiografia ou num livro de memórias” (FERRAROTTI, 2014FERRAROTTI, F. Sobre a autonomia do método biográfico. In: NÓVOA, A.; FINGER, M. (Orgs.). O método (auto)biográfico e a formação. Natal: EDUFRN, 2014. p. 29-55., p. 44). Para o autor, o método biográfico tem especificidades que ultrapassam o quadro lógico-formal e o modelo mecanicista que predominam na produção científica.

Kaasila (2007)KAASILA, R. Using narrative inquiry for investigating the becoming of a mathematics teacher. The International Journal on Mathematics Education, Heidelberg, v. 39, n. 3, p. 205-213, 2007. considera a investigação narrativa como um método de pesquisa no ensino de Matemática. Para ele, o foco particular está em como podemos aplicar uma abordagem narrativa ao estudar o desenvolvimento das crenças e das emoções dos professores em serviço em relação à Matemática. Ele pondera que as narrativas são importantes porque vivemos em um mundo de narrativas e as pessoas organizam e gerenciam seu conhecimento do mundo de forma paradigmática (lógico-científica), para o tratamento de coisas físicas, e por modos narrativos de pensamento, para tratar as pessoas e suas vidas.

Essa perspectiva dialoga com Bruner (2002)BRUNER, J. Realidade mental, mundos possíveis. Porto Alegre: Artmed, 2002., ao considerar que o objetivo do conhecimento narrativo é entender a conduta humana real. Na medida em que entendemos nosso mundo narrativamente, faz sentido estudá-lo narrativamente. Podemos considerar que os estudos educacionais são uma forma de experiência e a narrativa é uma maneira muito adequada, por representar e entender essa experiência.

Contudo, a pesquisa narrativa reflete contexto cultural e social específicos, o que a torna atraente para os pesquisadores em Educação Matemática que se aproximam mais de compreender como os processos de ensino e aprendizagem em Matemática dialogam com a vida humana. Somos seres históricos, contamos nossa história; nela somos protagonistas e interagimos com outros personagens, que também contam suas histórias.

3 Metodologia

O presente artigo tem por objetivo evidenciar as contribuições do software IRAMUTEQ como ferramenta de análise de narrativas (auto)biográficas no campo da Educação Matemática. Para tanto, elegemos a abordagem qualitativa (CRESWELL; CLARK, 2013CRESWELL, J. W.; CLARK, V. L. P. Pesquisa de métodos mistos. São Paulo: Penso, 2013.) e a seguinte questão norteadora: de que modo esse software pode contribuir para procedimentos de análises baseadas em fontes (auto)biográficas na Educação Matemática?

Para evidenciar tais contribuições, consideramos uma amostra composta por 34 narrativas escritas por ingressantes do curso de Pedagogia da Universidade Federal de Ouro Preto, que serão denominadas de S1, S2, …, S34. Dessa forma, o conjunto de dados mencionado será assumido, neste estudo, como um cenário, que ajudará a ilustrar as diferentes ações desencadeadas pelo pesquisador, com o auxílio do IRAMUTEQ, para analisar e interpretar dados. Nesse sentido, é importante destacar que recorreremos a recortes das narrativas para ilustrar as análises elegidas, sem a pretensão de analisá-las teoricamente. Não obstante, elas serão objeto de pesquisas futuras.

A produção dos dados do cenário ocorreu ao longo de uma disciplina – obrigatória na grade curricular do curso de Pedagogia da referida universidade – que aborda os processos de ensino e de aprendizagem em Matemática na Educação infantil. Para iniciar o processo de escrita das narrativas na primeira aula da disciplina, o professor responsável1 1 O primeiro autor do presente artigo. pela turma explicou como seriam feitas as narrativas, de modo a nortear a produção dos alunos. O docente também salientou que a participação na pesquisa seria voluntária e, para manter o sigilo dos participantes, as narrativas produzidas não precisariam ser identificadas.

Para o tratamento das narrativas escritas considerou-se como ferramenta o software IRAMUTEQ (Interface de R por les Analyses Multidimensionnalles de Textes et de Questionnaires), por ser totalmente gratuito e possuir uma interface com o software R, permitindo a realização de análises estatísticas sobre corpus textuais, gerados por meio de segmentos de textos. Além disso, esse software permite diferentes tipos de análises, como, por exemplo, estatísticas textuais clássicas, nuvem de palavras e análise de similitude, que serão utilizados no presente artigo. Ademais, o IRAMUTEQ (CARMAGO; JUSTO, 2013CAMARGO, B. V.; JUSTO, A. M. IRAMUTEQ: um software gratuito para análise de dados textuais. Temas Psicol., Ribeirão Preto, v. 21, n. 2, p. 513-518, 2013.) realiza análise fatorial de correspondência (ACF) e especificidade e classificação hierárquica descendente (CHD), que não serão exploradas no presente artigo em função da limitação de páginas.

Considerando que no presente artigo pretendemos explorar o uso do software IRAMUTEQ como ferramenta de análise de narrativas (auto)biográficas, tal escolha se justifica pelo fato de analisarmos um significativo volume de dados e de esse recorte permitir uma análise mais focada, sem desconsiderar a amplitude dos dados coletados.

As análises pautaram-se nas estatísticas textuais clássicas, em nuvem de palavras, que permite uma visualização estruturada das frequências absolutas, e, por fim, na análise de similitude, que possibilita verificar as ligações existentes entre as palavras do corpus textual por meio de grafos.

Convém destacar que as estatísticas textuais clássicas compõem uma ferramenta que propicia ao pesquisador identificar a quantidade de palavras, sua frequência média e número de hápax (palavras com frequências unitárias); pesquisa o vocabulário; e reduz palavras com base na lematização, criando um dicionário de formas reduzidas. O diagrama de nuvem de palavras é um recurso que evidencia as palavras com maiores frequências no texto, agrupa-as e organiza-as graficamente em função da sua frequência observada. Trata-se de uma análise lexical simples, interessante e que promove uma rápida visualização das palavras-chaves de um texto. Já a análise de similitude é uma representação que se baseia na teoria dos grafos e possibilita ao pesquisador identificar co-ocorrências e conexidade entre as palavras, e seus resultados auxiliam o pesquisador a identificar a estrutura de um corpus textual (CARMAGO; JUSTO, 2013CAMARGO, B. V.; JUSTO, A. M. IRAMUTEQ: um software gratuito para análise de dados textuais. Temas Psicol., Ribeirão Preto, v. 21, n. 2, p. 513-518, 2013.).

A escolha dessas técnicas se deu pelo fato de permitirem ao pesquisador uma organização do vocabulário de forma simples, compreensível e focalizada (CAMARGO; JUSTO, 2013CAMARGO, B. V.; JUSTO, A. M. IRAMUTEQ: um software gratuito para análise de dados textuais. Temas Psicol., Ribeirão Preto, v. 21, n. 2, p. 513-518, 2013.; RATINAUD, 2009RATINAUD, P. IRAMUTEQ: Interface de R pour lês Analyses Multidimensionnelles de Textes et de Questionnaires [Computer Software]. 2009. Disponível em: www.iramuteq.org. Acesso em: 25 mar. 2020.
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). Além disso, do ponto de vista analítico, permitem a integração de análises quantitativas e qualitativas, com vistas a minimizar a subjetividade e possibilitar avanços na interpretação dos dados.

Diante do exposto, apresentaremos a seguir as análises do corpus das narrativas produzidas por 34 estudantes de Pedagogia.

4 Análise de dados

Nesta seção buscamos evidenciar as contribuições do IRAMUTEQ a partir de três análises oportunizadas pelo software: estatísticas textuais clássicas, nuvem de palavras e análise de similitude. Assim, tomamos como referência, para explorar suas funcionalidades, uma amostra de narrativas de futuros professores da Educação Infantil e dos Anos Iniciais do Ensino Fundamental.

4.1 Análise de narrativas (auto)biográficas por meio da estatística textual clássica

Inicialmente, analisamos o corpus lexical das narrativas produzidas pelos alunos universitários que revelam suas trajetórias com a Matemática desde a Educação Infantil até o nível superior. Os resultados das estatísticas textuais evidenciaram 34 textos com um total de 14661 ocorrências de palavras, sendo 1909 formas distintas presentes no corpus, com 1006 hápax – número de palavras que aparecem apenas uma vez em todos o corpus – e uma média de 431,21 palavras (número de ocorrências/número de textos) por ocorrências de texto. Ampliando a análise para a descrição dos participantes, observamos que 32 (94,1%) dos estudantes são mulheres e 2 (5,9%) são homens.

4.2 Análise de narrativas (auto)biográficas por meio da nuvem de palavras

Dentre as palavras mais citadas nas narrativas, temos “professor” (208 ocorrências), “matemática” (168 ocorrências), seguidas pelas palavras: “aluno” (74 ocorrências), “matéria” (66 ocorrências), “aprender” (64 ocorrências) e “lembrar” (59 ocorrências). Essas palavras com maiores frequências, evidenciadas no gráfico e citadas anteriormente, permitem ampliar discussões, reflexões e contextos apresentados dentro de cada narrativa escrita. Uma visão geral das frequências de todas as palavras escritas nas narrativas está representada na Figura 1, que permite apontar que as palavras com maiores frequências foram: “professor”, “matemática”, seguidas de “matéria”, “aluno”, “aprender”, “lembrar”, “escola” e “passar”. Consequentemente, podemos evidenciar algumas palavras com baixa frequência, como, por exemplo, “prático”, “casa”, dentre outras.

Figura 1
Nuvem de palavras das frequências das palavras das narrativas dos alunos do curso de Pedagogia da UFOP.

A palavra “professor” é levada em consideração nas narrativas analisadas, respeitando os diferentes níveis de atuação docente. Desse modo, ao aprofundarmos a análise, considerando apenas a palavra “professor”, foi possível observar que as narrativas revelam diferentes olhares para o papel e a atuação docentes.

Na Educação Infantil e nos Anos Iniciais do Ensino Fundamental, por exemplo, o professor, geralmente, é apresentado como um parceiro/amigo que socializa seus conhecimentos por meio de atividades lúdicas e práticas, inclusive fora da sala de aula. Por outro lado, ao narrarem as experiências que tiveram nos Anos Finais e no Ensino Médio, os relatos revelam uma postura docente mais tecnicista, despreocupada de criar conexões com a realidade dos alunos.

É importante sinalizar que, além de possibilitar uma visão ampla de uma determinada palavra, o IRAMUTEQ permite identificar essa recorrência na narrativa individual dos sujeitos. Nesse sentido, apresentamos a seguir o recorte de uma das narrativas que se mostrou representativa para ilustrar o contexto aqui descrito.

S15: Já nos anos iniciais do ensino fundamental, até o sexto ano, gostava da disciplina. Porém, mais para frente começou a complicar, não via a matemática como algo prazeroso. Minhas irmãs passaram a me ensinar o dever de casa, pois ficava cada vez mais difícil. Do lúdico, da afetividade, a matemática se transformava em números, contas, decoreba, tabuada, cobranças, cópias e mais cópias. Nossa, que agonia que me dava! Um sentimento de incapacidade me rodeava, ainda mais quando alguns professores chamavam para ir na lousa. As mãos ficavam geladas e dava um frio na barriga. Carrego isso comigo, até hoje! No ensino médio foi mais difícil ainda. Professores diferentes e o trauma em relação a matemática continuava. O professor explicava e eu não entendia nada. Nossa, que disciplina ruim! Mais tarde vinha a avaliação e a nota baixa (Narrativa produzida por S15 no primeiro semestre de 2019).

A palavra “matemática” obteve uma alta frequência, atrelada a diferentes situações e contextos. Na Educação Infantil e nos Anos Iniciais do Ensino Fundamental, por exemplo, as narrativas apontam para uma Matemática mais lúdica (músicas, contagem dos dedos etc.) e próxima ao cotidiano. Além disso, remete a lembranças dos nomes dos professores que marcaram essas fases.

Já nos Anos Finais do Ensino Fundamental e no Ensino Médio, por vezes, a Matemática está vinculada a medos e traumas. Além disso, são expressivas a comparação entre o modo como a Matemática era ensinada anteriormente e a forma empregada nesses dois segmentos e a descrição do quão distantes os professores eram dos alunos nesses estágios mais avançados de escolaridade. Com efeito, as narrativas revelam que os professores desses segmentos não privilegiavam abordagens contextualizadas e lúdicas como as vivenciadas nos Anos Iniciais de escolaridade. Para ilustrar o exposto, selecionamos três recortes das narrativas produzidas:

S16: Começando na educação infantil a matemática era algo prazeroso, lembro-me da minha primeira professora Solange me apresentando os números, me incentivava a aprender e a gostar da matemática[…] (Narrativa produzida por S16 no primeiro semestre de 2019).

S17: […]Nos anos iniciais do Ensino Fundamental estive mais perto do mundo matemático, foi marcado por uma experiência enriquecedora onde eu me familiarizei melhor com a matéria, principalmente pela professora que se empenhava em sua função para melhor nos ajudar[…] (Narrativa produzida por S17 no primeiro semestre de 2019).

S31: […]no ensino médio as metodologias abordadas não são diferentes, continua a figura imponente do professor e os seus recursos como material didático são quadro e apagador. É válido pontuar que os conteúdos aumentam de acordo com o currículo escolar sem a preocupação do tempo de absorção de cada aluno (Narrativa produzida por S31 no primeiro semestre de 2019).

Dando continuidade ao processo analítico, exporemos a seguir uma técnica que permite verificar, por meio de grafos e indicações de conexidade entre as palavras, as ligações existentes entre as palavras do corpus textual.

4.2 Análise de narrativas (auto)biográficas por meio da análise de similitude

A análise de similitude tem como intuito identificar estruturas e núcleos centrais presentes nas narrativas. Além disso, do ponto de vista de tratamento dos dados, o uso desse recurso proporciona uma otimização do tempo dedicado ao reconhecimento de padrões e recorrências em grande volume de dados, oriundo de narrativas. Haja vista que, se um pesquisador tiver que realizar esse processo sem o auxílio de um software apropriado, despenderá um tempo considerável para realizar as leituras individuais das narrativas, buscando identificar, subjetivamente, possíveis categorias de análises (CRESWELL; CLARK, 2013CRESWELL, J. W.; CLARK, V. L. P. Pesquisa de métodos mistos. São Paulo: Penso, 2013.).

Portanto, o IRAMUTEQ, além de auxiliar o pesquisador na identificação de categorias que emergem dos dados, possibilita reorganizar as informações, de modo a favorecer um aprofundamento interpretativo por meio de subcategorias.

Desse modo, assim como evidenciado na análise estatística clássica e na nuvem de palavras, a análise de similitude das narrativas produzidas considerou como categorias centrais: “matemática” e “professor”. A Figura 2 apresenta dois núcleos centrais, um referente ao professor e outro à Matemática, o que está coerente com as frequências dessas palavras ao longo da leitura das narrativas.

Figura 2
Análise de similitude monotemática2 2 Existem duas maneiras de preparar as linhas de um corpus: a monotemática e a temática, que se distinguem pela possibilidade de a segunda utilizar mais de um tema na mesma análise (CAMARGO; JUSTO, 2015). das narrativas dos estudantes do curso de Pedagogia da UFOP sobre a trajetória em Matemática3 3 A construção deste gráfico tomou como referência palavras com frequências maior ou igual a 17 ocorrências. .

Se considerarmos o eixo Matemática, a Figura 2 permite observar a presença de algumas características que poderiam originar uma subcategoria, denominada, por exemplo, “sentimentos negativos em relação a matemática e seu ensino”. Nessa subcategoria estariam presentes, por exemplo, as palavras “trauma, “sentir”, “medo”, “difícil”, dentre outras. Esse agrupamento possibilitaria compreender os sentimentos que permearam os processos de ensino e aprendizagem da Matemática ao longo de suas trajetórias.

Além disso, como já anunciamos anteriormente, o IRAMUTEQ permite a identificação dessa recorrência (subcategoria) na narrativa individual do sujeito. Desse modo, apresentamos abaixo o recorte de uma das narrativas, que se mostrou representativo para ilustrar possíveis episódios narrados, que vão ao encontro da subcategorização realizada.

S22: Tive a oportunidade de estagiar e trabalhar com crianças de 1 a 5 anos, e foi uma experiência transformadora para mim. Ali eu vi, também, o quanto os meus medos e traumas influenciam a minha maneira de ensinar e a importância de trabalhar esses problemas, para que eles (alunos) não passem pelo mesmo que eu passei. Nossa! que disciplina ruim! Mais tarde vinha a avaliação e consequentemente a nota baixa (Narrativa produzida por S22 no primeiro semestre de 2019).

Ao refletirmos sobre a relevância de se eleger uma subcategorização como essa, para evidenciar os sentimentos negativos em relação aos processos de ensino e aprendizagem que emergem das narrativas analisadas, encontramos respaldo, por exemplo, nos apontamentos de Nacarato (2010)NACARATO, A.M. A formação matemática das professoras das séries iniciais: a escrita de si como prática de formação. Bolema, Rio Claro, v. 23, p. 905-930, 2010. e Nacarato e Passeggi (2013)NACARATO, A. M.; PASSEGGI, M. C. Narrativas autobiográficas produzidas por futuras professoras: representações sore a matemática escolar. Revista de Educação PUC-Campinas, Campinas, v. 3, n. 18, p. 287-299, dez. 2013. Disponível em: http://periodicos.puc-campinas.edu.br/seer/index.php/reveducacao/article/view/2365. Acesso em: 06 mai. 2020.
http://periodicos.puc-campinas.edu.br/se...
. Para além do movimento de pesquisa, essas autoras defendem que a escrita e a problematização de narrativas (auto)biográficas possibilitariam aos futuros professores uma oportunidade de revisitar representações e crenças construídas ao longo da escolarização, de modo a (re)significar práticas de ensinar Matemática que vivenciaram e que, muitas vezes, deixaram-lhes marcas negativas em relação a essa disciplina.

Para gerar um contraponto analítico, seria possível, por exemplo, criar uma subcategoria denominada um “novo olhar para a matemática e seu ensino”. Essa subcategoria incluiria palavras como: “querer”, “expectativa”, “acreditar”, “gostar”, “conseguir”, dentre outras, e possibilitaria, por exemplo, analisar se as experiências vivenciadas na disciplina cursada contribuíram para superação dos “sentimentos negativos” evidenciados na análise anterior.

Por conseguinte, essa subcategoria permitiria direcionar a leitura individual das narrativas, possibilitando identificar episódios que auxiliem na análise e na interpretação. O pesquisador poderia, por exemplo, buscar trechos que traduzam a importância de conduzir uma disciplina voltada para os processos de ensino e aprendizagem da Matemática na formação inicial. Haja vista que, em várias narrativas, há expressões que sinalizam que a disciplina cursada tem se constituído em uma nova oportunidade de (re)significar a Matemática e seu ensino.

S13: […] espero (com a disciplina) acabar com o bloqueio que tenho com a matemática e quem sabe aprender a gostar, para no futuro encarar uma sala com várias crianças, expressando o meu melhor em relação a minha didática e meus conhecimentos sobre essa matéria (Narrativa produzida por S13 no primeiro semestre de 2019).

Assim, esses sentimentos narrados pelos futuros professores propiciam a reflexão sobre as práticas pedagógicas discutidas durante toda a sua formação e também revelam a importância de aproximar a Matemática do cotidiano do aluno, para que esses sentimentos de medo e trauma possam ser substituídos por expectativas positivas.

Cabe relembrar que a análise de similitude indicou a presença de duas categorias: “matemática” e “professor”. Porém, após analisar uma delas, o pesquisador tem a opção de ampliar suas interpretações, explorando também o processo de subcategorização.

Dessa forma, em relação à categoria “professor”, a análise de similitude indica a expressividade das seguintes palavras: “chamar”, “tabuada”, “dificuldade”, “didático”, “trauma”, “época”, “conteúdo”, “ajudar”, “aluno”, “recordar”, “mãe”, “pai” e “ensinar”. Considerando tais palavras, seria possível, por exemplo, criar uma subcategoria denominada “práticas pedagógicas”, que agruparia palavras relacionadas com a ação dos professores de Matemática. Ao realizarmos esse movimento, evidenciamos que os recortes a seguir ajudam a ilustrar o exposto.

S8: Sempre fui uma criança muito tímida no âmbito escolar, e esse comportamento é um reflexo em minha vida até hoje. Recordar da minha educação escolar na infância especificamente na matemática, foi muito mágico. Percorrer com os lápis de cores naquelas folhas em branco, e reviver os momentos que eu tive com os meus queridos professores. É uma mistura de nostalgia e alento! Daquele tempo bom, ficaram as lembranças…. Ah! Infância… (Narrativa produzida por S8 no primeiro semestre de 2019).

S2: Me recordo bem de que nos anos iniciais a nova professora fazia a turma decorar a tabuada e esse ato foi com certeza um dos que marcou bastante a vida de todos os alunos, muitos negativamente e poucos positivamente. Me lembro de ficar toda tarde estudando a tabuada porque em determinado dia a professora iria tomar a tabuada de todos os alunos e isso para mim era muito constrangedor pois eu sempre fui uma criança muito tímida (Narrativa produzida por S2 no primeiro semestre de 2019).

S33: Nos anos finais era costume o professor chamar aluno no quadro para resolver alguma questão e um dia eu fui chamada, montei a conta inteira no quadro e para eu chegar na resposta final, eu deveria dividir 12 por 3, mas não consegui, o professor me ridicularizou na frente da turma, eu sabia dividir, usando o método que aprendi antes, que era a divisão com pauzinho, eu fazia pauzinho no caderno e apagava por vergonha dos outros colegas e até mesmo pela exigência do professor, pois o sistema que nós tínhamos que usar para fazer divisão era outro (Narrativa produzida por S33 no primeiro semestre de 2019).

S29: O ensino médio começou a complicar porque era muito conteúdo passado. Uma série de fórmulas e cálculos. Eram tantas coisas que não me lembro de quase nada. Lembro mais de cálculo de área, volume, altura, largura e comprimento, gráficos, probabilidade de A e de U e muitas coisas (Narrativa produzida por S29 no primeiro semestre de 2019).

Tal movimento pode contribuir para um olhar focalizado para as narrativas individuais, buscando evidenciar as diferentes estratégias e práticas desenvolvidas pelos professores de Matemática, que se fazem presentes na memória dos narradores.

5 Considerações finais

Com a intenção de evidenciar as contribuições do software IRAMUTEQ como ferramenta de análise de narrativas (auto)biográficas no campo da Educação Matemática, buscou-se responder a seguinte questão: de que modo esse software pode contribuir para procedimentos de análises baseadas em fontes (auto)biográficas na Educação Matemática?

Para isso, exploramos os seguintes recursos do IRAMUTEQ: análise estatísticas clássicas, nuvens de palavras e análise de similitude.

Essa exploração possibilitou identificar algumas contribuições desse software: (a) oferece um rápido panorama dos conteúdos presentes nas narrativas, (b) permite ao pesquisador trabalhar com grandes volumes de dados, de forma ágil, (c) apresenta uma rápida identificação de categorias de análises oriundas de fontes (auto)biográficas, em consonância com conhecimentos analíticos, teóricos e práticos dos pesquisadores.

Identificadas tais contribuições, é importante sinalizar que o uso dessa ferramenta de maneira alguma substitui a importância do pesquisador na condução da pesquisa. Trata-se de um recurso de otimização do processo de organização de dados que pode ser útil, se acompanhado de um estudo sobre o significado das análises textuais geradas pelo software, haja vista que, por exemplo, a ferramenta de análise de similitude indica a conexidade das palavras, porém a tomada de decisão de quais serão os eixos ou categorias analíticas compete ao pesquisador.

Desse modo compreendemos que a ampliação do uso de um software como o IRAMUTEQ, nas pesquisas em Educação Matemática, que se estruturam na perspectiva (auto)biográfica, permitiria realizar estudos envolvendo um número maior de participantes, pois temos percebido que pesquisas dessa natureza tendem a considerar um número reduzido de sujeitos.

Para além das contribuições, é importante destacar que, embora o IRAMUTEQ seja um software gratuito, sua instalação nos computadores está condicionada à do software R, pois é preciso configurar a integração entre eles.

Além disso, o seu manuseio não é intuitivo e demanda do pesquisador um investimento de tempo de estudo para conhecer os recursos e compreendê-los. Haja vista que o IRAMUTEQ dispõe de diferentes níveis analíticos, que vão desde as lexicográficas básicas até as análises multivariadas.

Nesse contexto, caso o pesquisador queira ter uma percepção ampla das narrativas, poderá utilizar tanto a nuvem de palavras quanto a análise de similitude. Por outro lado, para poder identificar pontos de aproximação e distanciamento das narrativas, ele poderá fazer uso, por exemplo, das técnicas de Classificação Hierárquica Descendente (CHD) ou da Análise Fatorial Correspondente (ACF). Desse modo, considerando o foco analítico de seu estudo, o pesquisador poderá optar pelas diferentes possibilidades de análises disponíveis, mas deverá estar ciente de que o conjunto de resultados da técnica eleita demandará tempo de estudo e interpretação, além da tomada de decisão.

Dessa forma, compreendemos que recorrer a um software como o IRAMUTEQ para o processamento de dados qualitativos favorece o aprimoramento das análises, sobretudo quando se faz uma pesquisa com um corpus textual grande. Possibilita ainda análises lexicais conectadas com o contexto analisado na pesquisa, integrando níveis quantitativos e qualitativos e favorecendo uma menor subjetividade nas análises. Tal constatação nos impulsiona a desenvolver estudos futuros que contribuam para o aprofundamento metodológico para a utilização deste tipo de software em pesquisas qualitativas.

Considerando que a discussão presente neste artigo tem sido debatida amplamente em outras áreas de conhecimento, tais como Ciências Sociais e Saúde, porém ainda é pouco explorada na Educação Matemática, esperamos que os resultados aqui apresentados e discutidos não sejam entendidos como conclusivos, mas como um ponto de partida que contribua para o aperfeiçoamento e o desenvolvimento de pesquisas (auto)biográficas.

  • 1
    O primeiro autor do presente artigo.
  • 2
    Existem duas maneiras de preparar as linhas de um corpus: a monotemática e a temática, que se distinguem pela possibilidade de a segunda utilizar mais de um tema na mesma análise (CAMARGO; JUSTO, 2015CAMARGO, B. V.; JUSTO, A. M. Tutorial para uso do software IRAMUTEQ. 2015. Disponível em: http://www.laccos.com.br/index.php?option=com_content&view=article&id=208%3Atutorial-do-software-iramuteq-em-portugues&catid=40%3Aoutros&Itemid=9&lang=br. Acesso em: 06 mai. 2020.
    http://www.laccos.com.br/index.php?optio...
    ).
  • 3
    A construção deste gráfico tomou como referência palavras com frequências maior ou igual a 17 ocorrências.

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Abr 2021
  • Data do Fascículo
    Abr 2021

Histórico

  • Recebido
    24 Maio 2020
  • Aceito
    21 Set 2020
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