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Interpretação Semiótica em Atividades de Modelagem Matemática

Semiotic Interpretation in Mathematical Modeling Activities

Resumo

No presente artigo interessa-nos capturar nas experiências dos alunos quando desenvolvem atividades de Modelagem Matemática elementos que nos permitam descrever a Modelagem Matemática em termos semióticos a partir dessas experiências. Nossos resultados levam em conta uma pesquisa empírica em que atividades de Modelagem Matemática são desenvolvidas por alunos de um curso de Licenciatura em Matemática. A interpretação semiótica nos permite inferir que as ações dos alunos se assentam nas categorias de Peirce caracterizadas como primeiridade, secundidade e terceiridade, compreendendo as perspectivas fenomenológica e ontológica destas categorias. Neste sentido, modelar matematicamente uma situação atende às peculiaridades de um fenômeno capaz de produzir conhecimento na perspectiva peirceana, segundo a qual a identificação de um continuum das três categorias é o indício desta construção. É justamente neste sentido que a experiência emanada de terceiridade faz com que o objeto, neste caso a Modelagem Matemática, já não seja para o intérprete, o aluno, como a coisa que era, mas como a coisa que se tornou depois do processo de experimentação mediado pelos signos interpretantes. A interpretação semiótica das experiências dos alunos nos leva a uma descrição da Modelagem Matemática em termos semióticos a qual assegura que, para que os alunos que se apropriem da Modelagem Matemática devem ter experiências relativas à identificação do que é Modelagem Matemática (ser Modelagem Matemática) ao mesmo tempo em que desenvolvem atividades de Modelagem (fazer Modelagem Matemática), ou seja, são interdependentes na constituição do fenômeno Modelagem Matemática as perspectivas fenomenológica e ontológica das categorias peirceanas.

Palavras-chave:
Modelagem Matemática; Semiótica Peirceana; Experiências dos Alunos

Abstract

In this article, we are interested in capturing students’ experiences when they develop mathematical modeling activities that allow us to describe mathematical modeling in semiotic terms from these experiences. Our results take into account an empirical research in which mathematical modeling activities are developed by students in a Mathematics Degree course. The semiotic interpretation allows us to infer that the students’ actions are based on the categories of Peirce characterized as firstness, secondness, and thirdness, understanding the phenomenological and ontological perspectives of these categories. In this sense, to mathematically model a situation meets the peculiarities of a phenomenon capable of producing knowledge in the Peircean perspective, according to which the identification of a continuum of the three categories is the indication of this construction. It is precisely in this sense that the experience emanating from thirdness makes the object, in this case, mathematical modeling, no longer for the interpreter, the student, as the thing it was, but as the thing that became after the experimentation process mediated by the interpretants signs. The semiotic interpretation of students’ experiences leads us to a description of mathematical modeling in semiotic terms which ensures that, in order for students who appropriate mathematical modeling to have experiences relating to the identification of mathematical modeling (to be mathematical modeling) at the same time when they develop modeling activities (to do mathematical modeling), the phenomenological and ontological perspectives of the Peircean categories are interdependent in the constitution of the mathematical modeling phenomenon.

Keywords:
Mathematical Modeling; Peircean Semiotics; Students’ Experiences

1 Introdução

Discussões relativas à Modelagem Matemática na sala de aula têm merecido atenção de pesquisadores e professores no âmbito da Educação Matemática. Um dos pontos de interesse nessas discussões refere-se aos procedimentos dos alunos quando desenvolvem atividades de Modelagem Matemática na tentativa de entender como o fazer Modelagem se incorpora às suas experiências.

A tentativa, ou até mesmo a experimentação, desse entendimento passa pela própria caracterização do que é Modelagem Matemática e do que se considera que atividades dessa natureza requerem de quem as desenvolve. Segundo Galbraith (2015)GALBRAITH, P. Modelling, education, and the epistemic fallacy. In: STILLMAN, G. A.; BLUM, W.; BIEMBENGUT, M. S. (Eds.). Mathematical Modelling in Education Research and Practice: Cultural, Social and Cognitive Influences. New York: Springer, 2015. p. 339–350., as tentativas de entendimento vêm ancoradas em uma lente epistemológica e, portanto, são delimitadas por uma perspectiva teórica. No presente artigo a margem da nossa delimitação é uma perspectiva semiótica. Conforme é apresentado em Almeida e Silva (2018)ALMEIDA, L. M. W; SILVA, K. A. P. Abordagens Semióticas em Educação Matemática. Boletim de Educação Matemática. Bolema, Rio Claro, v. 32, p. 696-726, 2018., nas últimas décadas diferentes perspectivas semióticas têm merecido atenção em pesquisas na área de Educação Matemática visando entender, entre outros aspectos, o ensino e a aprendizagem da Matemática. Neste contexto, nossas discussões neste texto estão fundamentadas na semiótica peirceana.

Charles Sanders Peirce (1839-1914) abriu um caminho fértil para buscar entendimento com relação ao que é conhecer e como isto se torna possível, fundamentando uma teoria dos signos, reconhecida como semiótica peirceana. Uma pergunta central que Peirce apresentou é: como os humanos podem conhecer (ou saber sobre) o mundo? Ele mesmo, em diferentes momentos da estruturação de sua teoria, indica que o ato de conhecer é mediado por signos considerados ora como ferramentas (de representação ou de referência) ora como elementos que requerem a produção de novos signos.

Para Peirce o signo não é somente linguístico, mas também lógico e pragmático, de tal modo que não podemos pensar fora de signos e, sendo inclusive o pensamento per si também um signo. Otte (2006)OTTE, M. Mathematical epistemology from a Peircean semiotic point of view. Educational studies in mathematics, v. 61, n. 1-2, p. 11-38, 2006., ao discutir e interpretar aspectos da semiótica peirceana, aponta a questão: o que é o signo? As argumentações do autor sinalizam que qualquer coisa, marca ou sinal pode ser um signo na medida em que orienta a nossa atenção para algo diferente dele mesmo. O signo tem um significado, enquanto o objeto, aquilo a que o signo se refere, por si só não tem significado.

É justamente essa ideia que, segundo Santaella (2018)SANTAELLA, L. Semiótica Aplicada. São Paulo: Cengage Learning, 2018., Peirce expressa ao afirmar que “o signo é um primeiro (algo que se apresenta à mente), ligando um segundo (aquilo que o signo indica, a que se refere ou representa) a um terceiro (o efeito que o signo provoca em um possível intérprete)” (SANTAELLA, 2018SANTAELLA, L. Semiótica Aplicada. São Paulo: Cengage Learning, 2018., p. 7).

Assim, em contraste ao modelo diádico de signo esquematizado pelo linguista Ferdinand de Saussure, a semiótica peirceana tem uma estrutura triádica. Peirce visa capturar a estrutura das nossas experiências por meio de três categorias por ele denominadas: primeiridade, secundidade e terceiridade. A partir da semiótica peirceana, todo e qualquer fenômeno se apresenta à mente e é compreendido em termos dessas três categorias. Peirce, como um observador do mundo a sua volta, tinha como um dos focos de suas formulações defender e concluir que todos os fenômenos, sejam eles sociais, culturais, cognitivos, individuais, interacionais, físicos ou emocionais, reais ou imaginários, deviam ter algo em comum. Esse aspecto comum refere-se justamente à identificação destas três categorias. Um fenômeno, por sua vez, é “o total coletivo de tudo aquilo que está de qualquer modo presente na mente, sem qualquer consideração se isso corresponde a alguma coisa real ou não” (IBRI, 2015IBRI, I. A. Kósmos Noétos: a arquitetura metafísica de Charles S. Peirce. São Paulo: Paulus, 2015., p. 22).

As aproximações do pensamento de Peirce dos contextos educacionais, e particularmente da Educação Matemática, têm sido recorrentes nas últimas décadas (ALMEIDA; SILVA, 2018ALMEIDA, L. M. W; SILVA, K. A. P. Abordagens Semióticas em Educação Matemática. Boletim de Educação Matemática. Bolema, Rio Claro, v. 32, p. 696-726, 2018.; PRESMEG; RADFORD; KADUNZ, 2016PRESMEG, N.; RADFORD, L.; KADUNZ, G. Semiotics in mathematics education. Rotterdam: Springer, 2016.; RADFORD; SCHUBRING; SEEGER, 2008RADFORD, L.; SCHUBRING, G.; SEEGER, F. Semiotics in Mathematics Education: Epistemology, history, classroom and culture. Rotterdam: Sense Publishers, 2008.; SÁENZ-LUDLOW; KANDUNZ, 2016)SÁENZ-LUDLOW, A.; KANDUNZ, G. Constructing Knowledge Seen as a Semiotic Activity. In: SÁENZ-LUDLOW, A.; KANDUNZ, G (Orgs.). Semiotics as a Tool for Learning Mathematics. Rotterdam: Sense Publishers, 2016. p. 1-24. No âmbito da Modelagem Matemática, mais especificamente, elementos da semiótica peirceana também vêm sendo usados (ALMEIDA, 2018ALMEIDA, L. M. W. Considerations on the use of mathematics in modeling activities. ZDM, v. 50, p.19-30, 2018.; ALMEIDA; SILVA, 2012ALMEIDA, L. M. W.; SILVA, K. A. P. Semiótica e as ações cognitivas dos alunos em atividades de modelagem matemática: um olhar sobre os modos de inferência. Ciência e Educação, Bauru, v. 18, p. 623-642, 2012.; SILVA; ALMEIDA, 2015SILVA, K. A. P.; ALMEIDA, L. M. W. Caminhos do Significado em Atividades de Modelagem Matemática: um olhar sobre os interpretantes. Bolema, Rio Claro, v. 29, p. 568-592, 2015.; SILVA; RAMOS, 2016RAMOS, D. C. O raciocínio abdutivo em atividades de Modelagem Matemática. Dissertação (Mestrado em Ensino de Ciências e Educação Matemática) – Universidade Estadual de Londrina, Londrina, 2016.; VERONEZ, 2013)VERONEZ, M. R. D. As funções dos signos em atividades de modelagem matemática. 2013. 175p. Tese (Doutorado em Ensino de Ciências e Educação Matemática) – Universidade Estadual de Londrina, Londrina, 2013.. Olhar para a ação e produção de signos, as funções dos signos e a busca pelo significado em atividades de Modelagem Matemática são aspectos investigados nestas pesquisas.

No presente artigo, à luz da semiótica de Peirce, interessa-nos capturar nas experiências dos alunos quando desenvolvem atividades de Modelagem Matemática elementos que nos permitam descrever a Modelagem Matemática em termos semióticos a partir dessas experiências. Esta descrição1 1 Essa descrição visa mostrar as estruturas em que a experiência relatada se dá, deixando transparecer nessa descrição estruturas universais. a partir das experiências dos alunos modeladores abrange dois aspectos, que embora formem a unidade daquilo que pretendemos descrever, têm traços específicos: o fazer Modelagem Matemática e o ser Modelagem Matemática identificados nas nossas interpretações das experiências dos alunos. Neste sentido, nossas deliberações relativas ao conhecer Modelagem Matemática são mediadas pela interpretação de signos usados e produzidos pelos alunos.

A nossa interpretação das experiências dos alunos se fundamenta, por um lado, nas teorizações de Peirce e seus interpretadores e, por outro lado, em uma pesquisa empírica em que alunos do quarto ano de um curso de Licenciatura em Matemática desenvolvem atividades de Modelagem Matemática na disciplina de Modelagem Matemática na Perspectiva da Educação Matemática oferecida no quarto ano desse curso.

2 Modelagem Matemática na Educação Matemática

Durante as últimas décadas muito se tem discutido sobre a Modelagem Matemática no âmbito da Educação Matemática. Parece haver um consenso na literatura da área de que uma atividade de Modelagem Matemática tem como ponto de partida um problema, advindo de um contexto em geral não matemático, para o qual se busca entendimento por meio da Matemática. Segundo Pollak (2011)POLLAK, H. O. What is Mathematical Modeling? Journal of Mathematics Education at Teachers College, v. 2, n. 1, 2011., a Matemática nessa busca é utilizada para entender e interpretar a situação. Nesse sentido, uma atividade de Modelagem Matemática se inicia em uma situação do contexto real e se finaliza em uma situação final, que consiste na solução de um problema identificado nessa situação (ALMEIDA, 2010)ALMEIDA, L. M. W. Um olhar semiótico sobre modelos e modelagem: metáforas como foco de análise. Zetetike, Campinas, v. 18, p. 379-406, 2010..

Em uma atividade de Modelagem Matemática a análise ou interpretação de situações do mundo real inicia-se com a identificação de um problema a ser estudado, mediada pela inteiração com a problemática identificada na situação da realidade. Uma vez identificado o problema, de modo geral, são requeridas simplificações, em consonância com o que pondera Blum (2015)BLUM, W. Quality teaching of mathematical modelling: What do we know, what can we do? In: S. J. CHO, S. J. (Ed.). The Proceedings of the 12th International Congress on Mathematical Education. New York: Springer, 2015. p. 73-96. de que a situação real, em geral, envolve muitas variáveis e é preciso decidir o que se deseja manter e o que não se pode levar em consideração na Modelagem Matemática. Estas simplificações orientam também a matematização da situação.

Na matematização, segundo Jablonka e Gellert (2007JABLONKA, E.; GELLERT, U. Mathematisation–demathematisation. In: GELLERT, U.; JABLONKA, E. (Eds.). Mathematisation and Demathematisation. Rotterdam: Sense Publishers, 2007. p. 1-19., p. 2), “a algo é associado mais matemática do que lhe havia sido associado até então”. Esta associação, conforme sugerem Almeida, Sousa e Tortola (2015)ALMEIDA, L. M. W; SOUSA, B. N. P.; TORTOLA, E. Desdobramentos para a modelagem matemática decorrentes da formulação de hipóteses. In: SEMINÁRIO INTERNACIONAL DE PESQUISA EM EDUCAÇÃO MATEMÁTICA – SIPEM, 6., 2015, Pirenópolis. Anais […] Rio de Janeiro: SBEM, 2015. p. 1-12, 2015. v. 1., vem ancorada fortemente nas hipóteses assumidas por aqueles que desenvolvem a atividade. Sobretudo, é dessa associação que se configura a elaboração de um modelo matemático o qual, segundo Lesh (2010)LESH, R. Tools, Researchable Issues & Conjectures for investigating what it means to Understand Statistics (or Other Topics) Meaningfully. Journal of Mathematical Modelling and Application, Blumenau, v. 1, n. 2, p.16-48, 2010., é um sistema conceitual, descritivo ou explicativo, expresso por meio de uma linguagem ou uma estrutura matemática que tem por finalidade descrever o comportamento de outro sistema e permitir a realização de previsões sobre este outro sistema. Esse modelo matemático possibilita encontrar resultados que são confrontados com a situação inicial, resultando na solução do problema.

Conforme sugerem Almeida e Vertuan (2014)ALMEIDA, L. M. W.; VERTUAN, R. E. Modelagem Matemática na Educação Básica. In: ALMEIDA, L. W.; SILVA, K.A. P. (Orgs.). Modelagem Matemática em Foco. Rio de Janeiro: Ciência Moderna, v. 1, 2014. p. 1-21., os procedimentos realizados durante o desenvolvimento de uma atividade de Modelagem Matemática podem ser caracterizados mediante quatro fases: inteiração, matematização, resolução, interpretação e validação. A estruturação dos procedimentos dos alunos ao desenvolver atividades de Modelagem Matemática, em conformidade com a identificação dessas fases, costuma ser associada a esquemas, em geral denominados ciclos de modelagem. Estes ciclos, além de representar um esforço de identificação das ações dos modeladores, também têm a intenção de indicar a não linearidade destas ações no decorrer do desenvolvimento de atividades de Modelagem Matemática.

A inclusão de atividades de Modelagem Matemática na sala de aula tem merecido atenção de professores e pesquisadores nas últimas décadas (ALMEIDA; SILVA, 2012ALMEIDA, L. M. W.; SILVA, K. A. P. Semiótica e as ações cognitivas dos alunos em atividades de modelagem matemática: um olhar sobre os modos de inferência. Ciência e Educação, Bauru, v. 18, p. 623-642, 2012.; ALMEIDA, 2018ALMEIDA, L. M. W. Considerations on the use of mathematics in modeling activities. ZDM, v. 50, p.19-30, 2018.; CARREIRA; BAIOA, 2018CARREIRA, S.; BAIOA, A. M. Mathematical modelling with hands-on experimental tasks: on the student’s sense of credibility. ZDM, v. 50, p. 201-215, 2018.; GALBRAITH, 2015GALBRAITH, P. Modelling, education, and the epistemic fallacy. In: STILLMAN, G. A.; BLUM, W.; BIEMBENGUT, M. S. (Eds.). Mathematical Modelling in Education Research and Practice: Cultural, Social and Cognitive Influences. New York: Springer, 2015. p. 339–350., entre outros). O que se pode perceber é que esta introdução em diferentes níveis de escolaridade pode ter diferentes finalidades para alunos e para professores. Neste contexto, Carreira, Baioa e Almeida (2020)CARREIRA, S., BAIOA, A. M., e ALMEIDA, L. M. W. Mathematical models and meanings by school and university students in a modelling task. Avances de Investigación en Educación Matemática, v.17, p. 67-83, 2020. relatam como se constituem diferentes configurações para atividades de modelagem considerando especificidades do contexto educacional, seja relativo ao ensinar Matemática por meio de atividades de Modelagem Matemática, seja em relação ao próprio aprender a fazer Modelagem Matemática. Ferri (2018)FERRI, R. B. Learning how to teach mathematical modelling in school and teacher education. Cham: Springer International Publishing AG, 2018., por sua vez, apresenta resultados que indicam que também os alunos, embora baseados em um ciclo de Modelagem, constituem diferentes rotas de modelagem quando desenvolvem as atividades na sala de aula, de forma que a Modelagem Matemática na sala de aula sempre pode ser associada a um movimento dos alunos perante as diferentes ações associadas ao desenvolvimento de atividades dessa natureza.

No presente artigo, um olhar para a Modelagem Matemática na sala de aula sob uma perspectiva semiótica coloca foco neste movimento dos alunos ao desenvolver atividades de Modelagem, visando capturar as experiências dos alunos e interpretá-las considerando as categorias peirceanas.

3 Semiótica peirceana

Almeida e Silva (2018ALMEIDA, L. M. W; SILVA, K. A. P. Abordagens Semióticas em Educação Matemática. Boletim de Educação Matemática. Bolema, Rio Claro, v. 32, p. 696-726, 2018., p. 697), a partir de uma retomada histórica com relação a aproximações da Matemática com a semiótica no decorrer do tempo, ponderam que “o desenvolvimento da Matemática não é independente do desenvolvimento dos signos”, considerando que a Matemática não pode ser desvinculada de uma linguagem sígnica.

Na teoria semiótica construída por Charles Sanders Peirce a caracterização do signo compreende uma relação triádica em que estão correlacionados três componentes: representâmen, objeto e o interpretante. Para Peirce o representâmen representa algo, o seu objeto, para alguém, um intérprete. O interpretante é um novo signo produzido pelo intérprete e corresponde ao efeito interpretativo que o signo produz na mente desse intérprete.

Os objetos, por sua vez, já não são para o intérprete como a coisa que eram, mas como a coisa que se tornaram depois do processo de experimentação mediado pelos interpretantes. Deely (1990)DEELY, J. Semiótica Básica. Tradução de Julio C. M. Pinto. São Paulo: Editora Ática, 1990. neste contexto pondera que

[…] o signo não é uma coisa nem um objeto, mas um padrão de acordo com o qual as coisas e os objetos se entrelaçam para criar a trama da experiência, na qual uma parte está por outra parte de modo a dar maior ou menor “sentido” ao todo, em tempos e contextos variados (DEELY, 1990DEELY, J. Semiótica Básica. Tradução de Julio C. M. Pinto. São Paulo: Editora Ática, 1990., p. 76).

É esta trama da experiência e a impossibilidade de definitivamente separar objeto, representâmen e interpretante que se vinculam ao aspecto fundamental do pensamento de Peirce de que a correlação triádica sempre responde às relações de: espontaneidade, em que o ser é apenas uma qualidade; existência em que já há referência a um correlato; generalidade ou convencionalidade que são mediados por uma reflexão.

Estas relações são o elemento fundamental da semiótica peirceana e sua estruturação ocupou Peirce por muito tempo (PEIRCE, 1972PEIRCE, C.S Semiótica e Filosofia: textos escolhidos. São Paulo: Cultrix, 1972.;1992)PEIRCE, C. S. The essential Peirce: selected philosophical writings. Bloomington: Indiana University, 1992. v. 1., configurando-as como sendo as três categorias básicas da sua teoria: a primeiridade, a secundidade e a terceiridade. Para Otte (2006OTTE, M. Mathematical epistemology from a Peircean semiotic point of view. Educational studies in mathematics, v. 61, n. 1-2, p. 11-38, 2006., p. 24) essas categorias são a base “para a compreensão, não apenas do conceito da ciência normativa de Peirce, mas de sua teoria dos signos e, de fato, de seu pensamento como um todo”.

A estruturação dessas três categorias perpassa grande parte da semiótica peirceana e, do mesmo modo que ocupou o pensamento de Peirce, também tem instigado seus interpretadores no decorrer do tempo. Sáenz-Ludlow e Kadunz (2016)SÁENZ-LUDLOW, A.; KANDUNZ, G. Constructing Knowledge Seen as a Semiotic Activity. In: SÁENZ-LUDLOW, A.; KANDUNZ, G (Orgs.). Semiotics as a Tool for Learning Mathematics. Rotterdam: Sense Publishers, 2016. p. 1-24 fazem uma tentativa de construir uma síntese de como o entendimento das três categorias fundamentais da semiótica peirceana pode ser percebido. Esta síntese pode ser visualizada no Quadro 1 em que cada coluna refere-se às possibilidades de interpretação de cada uma das três categorias especificadas nas linhas.

Quadro 1
Caracterização das categorias de Peirce

Embora a construção dessas categorias seja amplamente discutida na literatura considerando-as como categorias fenomenológicas, Sáenz-Ludlow e Kadunz (2016)SÁENZ-LUDLOW, A.; KANDUNZ, G. Constructing Knowledge Seen as a Semiotic Activity. In: SÁENZ-LUDLOW, A.; KANDUNZ, G (Orgs.). Semiotics as a Tool for Learning Mathematics. Rotterdam: Sense Publishers, 2016. p. 1-24 trazem para o campo da Educação Matemática a discussão dessas categorias levando em consideração duas perspectivas que a caracterização de Peirce lhes teria conferido: a perspectiva ontológica e a perspectiva fenomenológica. Segundo estes autores, a perspectiva ontológica refere-se à natureza do ser, enquanto a perspectiva fenomenológica diz respeito à experiência consciente, considerando como os fenômenos são apreendidos na consciência.

Na perspectiva fenomenológica a primeira categoria de Peirce, primeiridade, compreende as experiências sem reação, sem causa e efeito. Trata-se de um primeiro nível de significação, em geral decorrente de processos sensório-motores em que se identificam o puro sentimento, a percepção. A secundidade na perspectiva fenomenológica refere-se a uma condição de mediação sem reflexão e engloba as experiências e a reação que elas causam, sem haver, entretanto, uma ação reflexiva sobre essa reação. Assim, qualquer sensação já é secundidade, pois corresponde à ação de um sentimento sobre nós e nossa reação específica. Qualquer relação de dependência entre dois termos (qualidade e existência) é uma relação diádica, uma secundidade. A terceiridade, por sua vez, nesta perspectiva fenomenológica refere-se às condições de mediação com reflexão; trata-se das experiências e reações com reflexão sobre essas reações.

Segundo Balsemão (1993), ao perguntar “O que é” em seu texto On a new list of categories, Peirce se refere à determinação ontológica de suas categorias. Sob esta perspectiva ontológica, Peirce (1992)PEIRCE, C. S. The essential Peirce: selected philosophical writings. Bloomington: Indiana University, 1992. v. 1. caracteriza as categorias assim: a primeiridade é como uma qualidade, o modo de ser de algo exatamente como é sem referência a nada mais (apenas o representâmen é o que está presente); a secundidade diz respeito a uma relação (envolvendo um representâmen e um objeto); e a terceiridade é representação (que se refere a uma relação triádica entre representâmen, objeto e interpretante), ou ainda uma generalização.

Na perspectiva fenomenológica a primeiridade é um sentimento, uma percepção. Sob a perspectiva ontológica, a primeiridade pode ser um qualissigno que, segundo Balsemão (1993BALSEMÃO, E. Categorias e semiosis: Notas introdutórias ao pensamento do individual em Ch. S. Peirce. Revista Filosófica de Coimbra, Coimbra, v. 2, n. 3, p. 115-168, 1993., p. 155), “designa uma simples aparência ou qualidade” que intervém na relação do signo com ele mesmo. Pode ser também um sinsigno, isto é, um signo segundo em relação ao representâmen e representa um objeto ou um evento real. Por fim, pode ser um legissigno que é um signo de terceiridade e representa algo geral, uma lei e está relacionado à generalização.

A secundidade na perspectiva fenomenológica é uma reação, uma relação entre representâmen e objeto e pode desencadear a formação de signos de primeiridade (ícone), secundidade (índice) e terceiridade (símbolo). Segundo Balsemão (1993BALSEMÃO, E. Categorias e semiosis: Notas introdutórias ao pensamento do individual em Ch. S. Peirce. Revista Filosófica de Coimbra, Coimbra, v. 2, n. 3, p. 115-168, 1993., p. 156), “os ícones são signos que comunicam determinados efeitos”, eles se referem ao seu objeto por características do objeto, ou seja, por similaridade com o objeto. Os índices, segundo Peirce (1992)PEIRCE, C. S. The essential Peirce: selected philosophical writings. Bloomington: Indiana University, 1992. v. 1., são signos que indicam seu objeto por relação de proximidade. Um símbolo, por sua vez, é um signo que se refere ao seu objeto na forma de uma lei, de uma convenção socialmente reconhecida.

Já a terceiridade na perspectiva fenomenológica envolve reação, reflexão e ação, sendo possível observar formas ontológicas de primeiridade, secundidade e terceiridade, representadas, respectivamente, por signos remáticos, dicentes ou argumentativos. Um signo é um rema quando, para seu interpretante, ele é um signo de possibilidade. Um signo dicente é aquele que para o interpretante é um signo de existência. O argumento é um signo que para o interpretante é uma lei.

Sáenz-Ludlow e Kadunz (2016)SÁENZ-LUDLOW, A.; KANDUNZ, G. Constructing Knowledge Seen as a Semiotic Activity. In: SÁENZ-LUDLOW, A.; KANDUNZ, G (Orgs.). Semiotics as a Tool for Learning Mathematics. Rotterdam: Sense Publishers, 2016. p. 1-24 destacam que cada categoria na perspectiva fenomenológica pode ser co-construída considerando a perspectiva ontológica e vice-versa. Os autores destacam que, da mesma forma que podemos encontrar elementos ontológicos quando consideramos a perspectiva fenomenológica, podemos construir as categorias sob uma perspectiva ontológica a partir de elementos fenomenológicos.

A primeiridade enquanto uma qualidade tem aspectos fenomenológicos da primeiridade (qualissigno), da secundidade (ícone) e da terceiridade (rema). A secundidade enquanto uma relação necessita de um sinsigno para mostrar a existência de algo, de um índice que relaciona o signo com seu objeto e um dicente para representar a existência na mente do interpretante. A terceiridade, enquanto generalização, engloba aspectos fenomenológicos de primeiridade (legissigno), de secundidade (símbolo) e de terceiridade (argumento).

O Quadro 2 é a síntese de como as categorias primeiridade, secundidade e terceiridade na perspectiva fenomenológica (representada pelas linhas no quadro) se correlacionam quando vistas sob uma perspectiva ontológica (representada pelas colunas no quadro).

Quadro 2
As perspectivas fenomenológica e ontológica das categorias de Peirce

Para Santaella (2018)SANTAELLA, L. Semiótica Aplicada. São Paulo: Cengage Learning, 2018. todo e qualquer fenômeno que se apresenta à mente do intérprete é compreendido em termos das categorias peirceanas. Nesse sentido interessa-nos compreender a Modelagem Matemática pautados nas categorias peirceanas. Almeida, Silva e Vertuan (2011)ALMEIDA, L. W.; SILVA, K. P.; VERTUAN, R. E. Sobre a categorização dos signos na Semiótica Peirceana em atividades de Modelagem Matemática. Revista Electrónica de Investigación en Educación en Ciencias (En línea), v. 6, p. 8-17, 2011., buscando alcançar alguma compreensão relativa aos procedimentos realizados em uma atividade de Modelagem Matemática sob a perspectiva fenomenológica, sinalizam a identificação de primeiridade, secundidade e terceiridade a partir da interpretação de signos produzidos pelos alunos no desenvolvimento da atividade. Para os autores, nos procedimentos dos alunos há indícios de primeiridade, relacionada ao primeiro contato dos alunos com a situação inicial; a secundidade é inferida relativamente à identificação de um problema e à elaboração das hipóteses. Por fim a terceiridade é identificada pelos autores quando da obtenção e dedução do modelo matemático e sua interpretação pelos alunos.

Não obstante esta identificação no trabalho de Almeida, Silva e Vertuan (2011)ALMEIDA, L. W.; SILVA, K. P.; VERTUAN, R. E. Sobre a categorização dos signos na Semiótica Peirceana em atividades de Modelagem Matemática. Revista Electrónica de Investigación en Educación en Ciencias (En línea), v. 6, p. 8-17, 2011., é preciso ponderar que Pierce na estruturação dessas categorias tenta capturar a estrutura das nossas experiências relativas a qualquer fenômeno de modo que, para além da identificação de signos que podem ser de primeiridade, de secundidade ou de terceiridade, deve nos interessar a apreensão do fenômeno pela nossa consciência. É justamente neste sentido que no presente artigo nos orientamos pela estruturação peirceana considerando a complementaridade e a inter-relação entre as categorias interpretadas sob as duas perspectivas, ontológica e fenomenológica, com a finalidade de chegar ao que denominamos de uma descrição da Modelagem Matemática a partir das experiências dos alunos quando desenvolvem este tipo de atividades.

4 Apresentação dos dados

O processo analítico nesse trabalho é dirigido ao desenvolvimento de uma atividade de Modelagem realizada por alunos do quarto ano de um curso de Licenciatura em Matemática de uma universidade pública. A turma era composta por vinte alunos que cursavam a disciplina de Modelagem Matemática na Perspectiva da Educação Matemática. Ao longo da disciplina os alunos desenvolveram várias atividades de Modelagem em grupos que, de modo geral, eram depois apresentadas e discutidas com todos os alunos da disciplina. Além disso, os alunos também realizaram estudos e seminários relativos a aspectos teóricos da Modelagem Matemática na Educação Matemática. As autoras do presente artigo são a professora da disciplina e a pesquisadora, que participou das aulas visando assessorar os alunos no desenvolvimento das atividades.

A análise aqui empregada, à luz do quadro teórico estruturado nas seções anteriores do texto, é de cunho qualitativo e interpretativo. Os dados em que se fundamentam nossas deliberações foram coletados por meio de gravações em áudio e vídeo durante as aulas e durante a apresentação de uma das atividades pelos alunos do grupo para todos os alunos da turma e bem como do relatório escrito dessa atividade entregue pelos alunos.

A atividade de Modelagem Matemática a que nos referimos tem como temática de investigação Queda dos técnicos no campeonato brasileiro de futebol e foi desenvolvida por um grupo de seis alunos, todos do sexo masculino. A originalidade do tema investigado e a qualidade dos dados coletados no desenvolvimento dessa atividade justificam a nossa escolha para análise no presente artigo.

Os alunos do grupo justificaram a escolha dessa temática afirmando que “Os times no Brasil têm uma cultura de demitir seus técnicos se os resultados bons demorarem a acontecer. Nos outros países isso não é muito comum. E por essa razão, decidimos fazer um estudo referente à demissão de técnicos no futebol brasileiro; além disso, nós também gostamos de futebol!” (Registro dos alunos, 2018).

A temática escolhida e discutida pelos alunos do grupo levou-os a investigar “Qual é o número de derrotas seguidas que gera as demissões de técnicos de times que disputam o campeonato brasileiro?” (Registro dos alunos, 2018).

Durante a apresentação do trabalho na sala de aula, os alunos ponderaram que muitas variáveis influenciam a demissão do técnico, afirmando que “O técnico pode ser demitido porque, sei lá, pode ser que ele esteja jogando a Libertadores e perde um jogo importante ou perde um clássico, ou por pressão da torcida. Assim, como são muitas variáveis para a demissão do técnico, a gente vai fazer o estudo considerando somente as derrotas seguidas do time no período de 10 jogos” (Gravação do áudio da apresentação dos alunos, 2018).

Considerando o fato de que seriam analisados apenas os dez últimos jogos do time antes da demissão do técnico, os alunos buscaram informações sobre as demissões consecutivas dos técnicos do campeonato brasileiro da série A no período de 2013 a 2017. O Quadro 3 ilustra os dados coletados relativos ao ano de 2016. Na primeira coluna do quadro são descritos os times do campeonato que tiveram seus técnicos demitidos ao longo do campeonato; na segunda são apresentados os nomes dos técnicos demitidos; na terceira coluna é apresentada a rodada em que o técnico foi demitido; e na última coluna consta quantas derrotas seguidas aconteceram nos últimos 10 jogos do time sob o comando daquele técnico antes de ele ser demitido. Um dos alunos explica que “Se o técnico foi demitido antes de 10 jogos nós analisamos todos os jogos, agora se ele foi demitido com mais de 10 jogos nós analisamos somente as derrotas seguidas nos últimos 10 jogos” (Gravação do áudio da apresentação dos alunos, 2018).

Quadro 3
Dados coletados referente ao número de derrotas seguidas do ano de 2016

O número de derrotas seguidas nos últimos 10 jogos do técnico expresso na última coluna do Quadro 3 indica que o número de derrotas seguidas é um dos fatores que influenciam na demissão dos técnicos. Diante disso, esses alunos assumem a hipótese de que “Existe um intervalo de derrotas seguidas em que ocorre com maior frequência a demissão de técnicos de times que disputam o Campeonato Brasileiro” (Registro dos alunos, 2018).

Considerando as características dos dados bem como a hipótese definida, os alunos fizeram a matematização da situação mediante conceitos da área de Estatística e do uso de ferramentas computacionais. O primeiro passo foi encontrar a frequência relativa das demissões, usando a frequência absoluta das derrotas seguidas e dividindo esse número pelo número total de técnicos. Depois calcularam a média aritmética e o desvio padrão da quantidade de derrotas que o técnico teve nos últimos 10 jogos. O Quadro 4 ilustra este procedimento dos alunos para o ano de 2016.

Quadro 4
Dados da matematização da situação

O uso da média aritmética e do desvio padrão foi justificado pelos alunos como “uma maneira de usar métodos estatísticos para resolver o problema” (Registro dos alunos, 2018). Após a análise dos dados obtidos para o período de anos analisado, os alunos perceberam que “com uma ou duas derrotas seguidas é mais difícil ter demissão e com mais de seis derrotas seguidas também é” (Registro dos alunos, 2018).

Usando representação dos dados no software GeoGebra, os alunos analisaram para qual intervalo de derrotas seguidas há maior probabilidade do técnico ser demitido, utilizando o conceito de curva normal, visto que essa curva expressa matemática e geometricamente a distribuição normal de frequências e permite inferir sobre a probabilidade de um determinado evento ocorrer.

A ideia de usar a curva normal foi justificada pelos alunos assim: “Nós temos variáveis discretas, daí tivemos a ideia de fazer uma variável contínua para explicar aqueles pontos no intervalo de probabilidade. Queríamos descrever a função onde aquela média é maior” (Registro dos alunos, 2018).

Passando a considerar como variável contínua os dados discretos, os alunos construíram a função densidade de probabilidade dada por f(x)=1σ2πe12(xμσ)2, em que σ e μ são, respectivamente, o desvio padrão e a média aritmética do número de derrotas, já determinados pelos alunos. Para esse uso os alunos se fundamentaram em conceitos estatísticos conforme indicam Silva et al. (2018)SILVA, K. A. P.; ALMEIDA, L. M. W. The Exponential Function Meaning on Mathematical Modeling Activities: A Semiotic Approach. REDIMAT – Journal of Research in Mathematics Education, v. 7, p. 195-215, 2018., considerando que a integral definida dessa função sobre um determinado intervalo fornece a probabilidade de um evento ocorrer nesse intervalo. O intervalo usado para calcular a integral é delimitado pelo número mínimo e pelo número máximo de derrotas consecutivas observadas na coleta de dados. No caso do ano de 2016, conforme ilustra a Quadro 3, o número mínimo é duas derrotas e o número máximo é oito derrotas seguidas. De posse dessas informações e com o auxílio do software, os alunos obtiveram que, para o ano de 2016, a probabilidade de um técnico ser demitido no intervalo que compreende de duas até oito derrotas seguidas é de 91%, conforme ilustra a Figura 1. Neste caso, o gráfico da função corresponde ao modelo matemático da situação.

Figura 1
Modelo matemático criado para dados do ano de 2016

Para determinar o intervalo de derrotas seguidas que gera maior número de demissões de técnicos dos times que disputam o campeonato brasileiro, os alunos deveriam determinar um modelo matemático que permitisse responder a essa pergunta, uma vez que os valores obtidos até o momento se referiam a anos específicos. Assim os alunos criaram uma estratégia, ainda utilizando a ideia de curva normal, conforme explicam “Ao final, o que a gente fez, foi pegar todos os dados de 2013 até 2017 e somar. Observamos que houve 113 demissões de técnicos nesse período. E aí a gente fez uma curva normal padrão, para representar todos esses dados” (Registro dos alunos, 2018). Como resultado desse raciocínio, os alunos obtiveram o modelo matemático, o gráfico da curva normal bem como a função densidade, f(x), indicada na Figura 22 2 No registro entregue pelos alunos não é possível identificar todos os elementos da função densidade. A função densidade encontra-se no canto esquerdo da figura e foi destacada com um retângulo. A construção dessa função leva em consideração a média e o desvio padrão das derrotas seguidas no período de 2013 a 2017. .

A análise e interpretação da curva normal, representada na Figura 1, permitiu aos alunos concluir que, se um técnico acumular de 3 a 5 derrotas seguidas de seu time do Campeonato Brasileiro, ele terá maior probabilidade de ser demitido, considerando as 10 últimas partidas de permanência do técnico no time. Os alunos complementaram sua análise afirmando que “onde a curva tem seu valor máximo é o ponto crítico, então ele tem maior probabilidade de ser demitido, nesse caso ali (aponta para o slide) é de 4 derrotas consecutivas” (Gravação do áudio da apresentação dos alunos, 2018).

Figura 2
Modelo matemático final

Esse resultado matemático, quando confrontado com o problema que se propuseram a investigar, gera uma resposta satisfatória para os alunos diante dos dados coletados e da hipótese elaborada. Ou seja, o intervalo relativo ao número de derrotas seguidas que mencionam na formulação do problema, consiste em 3 a 5 derrotas seguidas do time sob o comando do técnico para que sua demissão seja apontada pelo clube.

5 Discussão e resultados

Para capturar das experiências dos alunos ao desenvolver a atividade de Modelagem Matemática elementos que nos permitam descrever a Modelagem Matemática em termos semióticos, nossa interpretação é referente a manifestações de pensamento, ações, falas e registros dos alunos no decorrer desse desenvolvimento. Interessa-nos, portanto, considerar as diferentes instâncias em que este desenvolvimento se deu, embora nem sempre nossas assertivas considerem a sequência cronológica em que as experiências dos alunos foram sendo constituídas.

Os alunos do grupo demonstraram interesse em investigar a temática envolvendo futebol desde suas primeiras interações e discussões relativas ao desenvolvimento da atividade de Modelagem. Embora ainda não houvesse um delineamento de como o problema da demissão de técnicos de futebol poderia ser estudado por meio da Matemática, havia um sentimento, mera sensação ainda sem reação, um primeiro contato que, conforme sugere Balsemão (1993BALSEMÃO, E. Categorias e semiosis: Notas introdutórias ao pensamento do individual em Ch. S. Peirce. Revista Filosófica de Coimbra, Coimbra, v. 2, n. 3, p. 115-168, 1993., p. 132), “corresponde a noção de um primeiro flash […] é algo de imediato, isolado em si”. A nossa identificação dessa mera sensação dos alunos em relação ao fenômeno de modelar matematicamente a relação da demissão de técnicos de times do campeonato brasileiro com a quantidade de derrotas seguidas do time nos últimos dez jogos nos leva a inferir que se caracteriza uma primeiridade no desenvolvimento da atividade pelos alunos.

Em relação à apreensão do fenômeno pela consciência, ou seja, sob a perspectiva fenomenológica, no universo da experiência, a primeiridade se expressa na espontaneidade, mero interesse. Já como medida ela diz respeito à vagueza dos interesses do grupo para definir como a situação seria investigada. De fato, neste instante os alunos apenas justificam sua escolha pelo tema, dizendo: “gostamos de futebol e podemos ver as frequentes demissões de técnicos” (Registro dos alunos, 2018). No que se refere aos elementos sígnicos, na apreensão pela consciência a situação demissão dos técnicos é um signo primeiro, um representâmen, sendo a relação do signo apenas consigo mesmo. Entretanto, essa investigação pressupõe uma relação entre a situação (o representâmen) e um problema a ser investigado (objeto). Além disso, o interesse do grupo pela situação da demissão dos técnicos de futebol proporciona que o aluno ative conceitos de curva normal e função densidade de probabilidade, os quais posteriormente seriam utilizados na elaboração do modelo matemático. Assim a situação inicial, enquanto um signo primeiro causa um efeito nos alunos, um interesse por estudar uma situação, que denota a existência de algo a ser estudado, um problema, interesse esse que leva os alunos a ativar conceitos estatísticos.

No que se refere ao ser Modelagem Matemática, o interesse dos alunos do grupo pela situação da demissão dos técnicos de futebol é algo espontâneo e, nesse sentido constitui uma qualidade. A situação inicial (demissão de técnicos) tem justamente as características evidenciadas no problema de modo que representa o problema por similaridade, ou seja, um signo icônico. Entretanto, já está constituída uma possibilidade de obter uma solução para a situação mediada por um modelo matemático a ser construído.

Nesse sentido, a primeiridade no desenvolvimento de uma atividade de Modelagem Matemática está relacionada à identificação da situação inicial advinda da realidade e aos signos produzidos neste primeiro contato com a situação. Podemos inferir que ao fazer Modelagem Matemática associa-se este sentimento primeiro a um primeiro contato com o que virá a ser estudado.

Esse sentimento primeiro é essencial na atividade de Modelagem Matemática, corroborando com a ideia de Pollak (2011) de que o diferencial da Modelagem Matemática é o seu início em uma situação advinda da realidade e na definição de um problema identificado nesta situação. Relativamente ao ser Modelagem Matemática, há indicativo de que os alunos identificam que a situação inicial é um elemento que caracteriza a atividade de Modelagem Matemática como tal, sobretudo se considerarmos a fala de um dos alunos registrada no áudio da apresentação da atividade: “Bom, como a gente sabia que nós podíamos escolher algo para estudar, nos reunimos para definir o que seria e predominou entre nós o tema dos técnicos de futebol” (Registro de áudio dos alunos, 2018).

O contato dos alunos com especificidades da situação da demissão de técnicos na fase de inteiração culmina na definição do problema a ser investigado. A definição desse problema, “Qual é o número de derrotas seguidas que gera a demissão de técnicos de times que disputam o campeonato brasileiro de futebol?” dá indicativo de uma relação diádica entre o estado de qualidade (a situação inicial) e um correlato, o objeto (o problema a ser estudado nessa situação). Neste sentido, o problema é um signo de secundidade que pode ser visto como um signo de existência. O problema, sobretudo, guarda uma similaridade com a situação e possibilita que os alunos percebam possibilidades de relações entre a situação e conceitos estatísticos.

Por outro lado, sob a perspectiva fenomenológica, o problema refere-se a uma reação perante a situação e é neste sentido um signo de secundidade. Este problema guarda similaridade com a situação e, portanto, tem características de ícone. Os indícios de experiência dos alunos com a situação revelados no problema conferem a ele características de índice. Por fim, o problema também traz consigo aspectos convencionados da linguagem e de conceitos estatísticos que são utilizados para mediar a análise da situação sobre a demissão de técnicos de futebol e, neste sentido, é um símbolo.

A ação investigativa dos alunos visando resolver o problema mediante a matematização da situação é mediada pela formulação da hipótese. A hipótese dá indícios da tomada de consciência de que a Matemática poderia fomentar a obtenção de uma resposta para o problema. Em sua hipótese os alunos admitem que existe um intervalo de derrotas seguidas em que há, com maior frequência, a demissão do técnico do time. Neste sentido, a hipótese corresponde, sob a perspectiva ontológica, a uma secundidade e mostra a existência de uma relação entre o problema e a Matemática, indicando caminhos para matematizar a situação.

No estudo de Almeida, Silva e Vertuan (2011)ALMEIDA, L. W.; SILVA, K. P.; VERTUAN, R. E. Sobre a categorização dos signos na Semiótica Peirceana em atividades de Modelagem Matemática. Revista Electrónica de Investigación en Educación en Ciencias (En línea), v. 6, p. 8-17, 2011., os autores concluem que a formulação do problema na atividade de Modelagem Matemática está relacionada à secundidade, pois mostra a existência de algo a ser estudado. Na presente pesquisa podemos inferir que, além da formulação do problema, a elaboração da hipótese também está relacionada à secundidade, visto que a hipótese determina o encaminhamento de uma atividade de Modelagem Matemática (ALMEIDA; SOUZA; TORTOLA, 2015ALMEIDA, L. M. W; SOUSA, B. N. P.; TORTOLA, E. Desdobramentos para a modelagem matemática decorrentes da formulação de hipóteses. In: SEMINÁRIO INTERNACIONAL DE PESQUISA EM EDUCAÇÃO MATEMÁTICA – SIPEM, 6., 2015, Pirenópolis. Anais […] Rio de Janeiro: SBEM, 2015. p. 1-12, 2015. v. 1.). Identificar um problema e formular uma hipótese relativa ao enfrentamento desse problema guardam similaridade entre si e são, portanto, aspectos que os alunos caracterizam relativamente ao ser Modelagem Matemática.

A matematização da situação a partir da hipótese vem permeada por reflexões dos alunos acerca da situação, do problema e da própria hipótese. Particularmente, nessa atividade essa reflexão foi ancorada em conhecimento e ferramentas estatísticas e conduziu à obtenção de um modelo matemático que, ao ser interpretado, indica o intervalo numérico que contém o número de derrotas consecutivas do time que podem levar à demissão do técnico.

A elaboração desse modelo matemático corresponde a uma experiência com características de terceiridade, uma vez que decorre de ação, reação e de reflexão sobre esta reação. Sob a perspectiva fenomenológica, o modelo é um signo interpretante de primeiridade, enquanto uma possibilidade de solução; um signo de secundidade indicando um fato com relação à problemática da demissão de técnicos de futebol; por fim um signo de terceiridade, que expressa um raciocínio do grupo para o enfrentamento do problema e a obtenção de uma solução.

Sob a perspectiva ontológica o modelo matemático elaborado pelos alunos é signo da primeiridade uma vez que expressa uma lei geral para a situação da demissão de técnicos de futebol. É um signo de secundidade que mostra uma relação com signos interpretantes, nesse caso a hipótese e o problema elaborados anteriormente. Além desses aspectos, o modelo matemático expressa os argumentos utilizados pelos alunos em sua construção, sendo, portanto, um signo de terceiridade.

O que se pode ponderar a partir dessa interpretação é que a experiência dos alunos no desenvolvimento dessa atividade de Modelagem Matemática perpassa as categorias peirceanas, seja relativamente ao identificar o que é Modelagem Matemática, seja com respeito ao que devem fazer no desenvolvimento da atividade. Sob esta égide, com base nas argumentações de Wall (2013)WALL, C. Peirce: a guide to the perplexed. New York: Bloomsbury, 2013. no que se refere à evidência das três categorias em qualquer fenômeno, podemos olhar para o fenômeno Modelagem Matemática.

Peirce (1992)PEIRCE, C. S. The essential Peirce: selected philosophical writings. Bloomington: Indiana University, 1992. v. 1., ao discutir a natureza de um fenômeno, considerando a perspectiva ontológica desse fenômeno, evidencia que ele é constituído por uma qualidade (primeiridade), uma relação (secundidade) e uma generalização (terceiridade). Essa constituição é determinada pela resposta à pergunta O que é? Ou o que efetivamente caracteriza algo? Assim, para determinar a partir das experiências dos alunos, como eles constituem a Modelagem Matemática sobre essa perspectiva devemos centrar nossas interpretações na questão: o que caracteriza a Modelagem Matemática para esses alunos? E então, podemos concluir que os alunos que desenvolveram a atividade estão cientes de que: a Modelagem Matemática visa estudar uma situação advinda da realidade, mera qualidade; a definição do problema e a formulação de hipótese medeiam o estudo da situação por meio da Matemática de modo que Modelagem Matemática compreende relação; por fim, a construção de um modelo matemático e seu uso para apresentar uma resposta ao problema compreende generalização. A construção do modelo e sua interpretação são signos criados a partir da reflexão sobre a qualidade e sobre a relação estabelecidas anteriormente. Neste sentido, a caracterização do ser Modelagem Matemática compreende primeiridade, secundidade e terceiridade.

Por outro lado, quando Peirce (1992)PEIRCE, C. S. The essential Peirce: selected philosophical writings. Bloomington: Indiana University, 1992. v. 1. visa elucidar o movimento de pensamento, isto é, quando nos conduz a olhar para o fenômeno sob a perspectiva fenomenológica, o fenômeno é um sentimento com referência a um representâmen (primeiridade), uma reação diádica que faz referência a um objeto (secundidade) e uma relação triádica que faz referência a um interpretante (terceiridade).

A perspectiva fenomenológica está relacionada ao fazer Modelagem Matemática, às ações que os alunos empregam no desenvolvimento de uma atividade dessa natureza. Nossa interpretação das experiências dá indícios de que a identificação de uma situação inicial, advinda da realidade, elucida um sentimento primeiro, um desejo desses alunos para investigar determinada temática, sendo assim a primeira ação. Ao elaborar um problema os alunos demonstram uma reação àquele sentimento primeiro, buscam uma relação entre a situação inicial e um objeto. A busca por uma relação entre o problema e um objeto matemático é explicitada na elaboração da hipótese, que nos dá indícios de que os alunos ponderam sobre quais relações existem entre o problema e possíveis procedimentos matemáticos. Assim, a elaboração do problema e da hipótese é uma segunda ação a ser realizada pelos alunos. A elaboração do modelo e sua respectiva interpretação é resultado da reflexão sobre o problema e a hipótese.

A partir de nossas intepretações sobre o fazer Modelagem Matemática, isto é, olhando para a modelagem e identificando as categorias peirceanas sob uma perspectiva fenomenológica, podemos associar as fases da Modelagem Matemática às categorias peirceanas. A identificação da situação inicial corresponde a uma primeiridade; a elaboração do problema, na fase de inteiração, a formulação de hipóteses relativa à fase matematização são as ações na secundidade; a elaboração do modelo matemático e sua intepretação, ações das fases de resolução e interpretação do resultado e validação, respectivamente, são os elementos de terceiridade.

O Quadro 5 ilustra a identificação desses elementos no que se refere a atividade de Modelagem Matemática. As linhas horizontais se referem à perspectiva fenomenológica que está relacionada ao fazer Modelagem Matemática dos alunos. Já as colunas nesse quadro referem-se à perspectiva ontológica, refletindo o que podemos inferir relativamente ao ser Modelagem Matemática no decorrer do desenvolvimento da atividade pelos alunos. O Quadro 5 explicita o fato de que o mundo categorial de Peirce implica na ideia de continuum, de modo que não há uma separação definitiva entre as três categorias em cada uma das perspectivas, ao mesmo tempo em que também há inter-relação entre as perspectivas fenomenológica e ontológica dessas categorias, em sintonia com o que ponderam Sáenz-Ludlow e Kadunz (2016)SÁENZ-LUDLOW, A.; KANDUNZ, G. Constructing Knowledge Seen as a Semiotic Activity. In: SÁENZ-LUDLOW, A.; KANDUNZ, G (Orgs.). Semiotics as a Tool for Learning Mathematics. Rotterdam: Sense Publishers, 2016. p. 1-24.

Quadro 5
Interpretação semiótica de uma atividade de modelagem matemática

A nossa análise da apreensão pela consciência dos alunos de ações específicas no desenvolvimento da atividade de Modelagem vem confirmar a primeiridade como base para secundidade e a terceiridade como fim último do que são as possibilidades dos alunos para, neste momento e neste contexto, deliberarem sobre a situação em estudo: a demissão de técnicos de times que disputam o campeonato brasileiro. Tal fato corrobora com a ideia de continuum de Peirce, visto que todas essas ações não são independentes umas das outras.

6 Considerações finais

Diante do nosso objetivo de descrever a Modelagem Matemática em termos semióticos interpretando as experiências dos alunos quando desenvolvem atividades dessa natureza, podemos ponderar que a perspectiva fenomenológica, relativamente ao como a Modelagem Matemática é apreendida pela consciência, refere-se ao fazer Modelagem Matemática. A apreensão do como fazer Modelagem Matemática se dá na conscientização dos alunos de que precisam se apropriar de uma situação e matematizá-la de modo que a solução encontrada seja aceita e possa ser validada por uma determinada comunidade, nesse caso os alunos da turma e as professoras. O fazer Modelagem Matemática é, nesta perspectiva, um fenômeno que é apreendido pela percepção, reação e reflexão de modo que a primeiridade é essa mera percepção do fenômeno, a secundidade refere-se a reações que possibilitam que o problema seja definido e que um ferramental matemático e tecnológico seja ativado para, na terceiridade, produzir o modelo matemático e interpretá-lo de modo que uma solução para o problema proposto possa ser apresentada.

Já sob a perspectiva ontológica das categorias peirceanas, capturamos das experiências dos alunos o que lhes parece necessário para caracterizar uma atividade de Modelagem Matemática, na direção de seu entendimento do ser uma atividade de Modelagem Matemática (e não ser outra atividade como uma resolução de problemas, por exemplo). Ou seja, reconhecer que para ser Modelagem Matemática a atividade deve ter seu início em uma situação problemática da realidade e ser viável, deve requerer a formulação de hipóteses, e deve ser matematizada sem que esquemas prévios estejam definidos para indicar qual Matemática deve ser usada e qual é o resultado que deve ser obtido, são nesta perspectiva ontológica ações que se assentam na primeiridade, na secundidade e na terceiridade.

Neste sentido, a interpretação semiótica das experiências dos alunos ao desenvolver uma atividade de Modelagem Matemática indica, por um lado, que percepção, ação, reação e reflexão viabilizam investigar uma situação inicial, definindo um problema, apresentando uma resposta para este problema e validando esta resposta. Por outro lado, ao mesmo tempo em que estes estágios da experiência se constituem, as ações dos alunos são mediadas por uma variedade de signos que são, na verdade, expressões de uma linguagem matemática que é identificada, explorada e usada pelos alunos para apresentar uma resposta para um problema que não tem, a priori, natureza matemática.

A construção de conhecimento em atividades de Modelagem Matemática, como se discute em Schukajlow e Krawitz (2018)SCHUKAJLOW, S; KRAWITZ, J. Do students value modelling problems, and are they confident they can solve such problems? Value and self-efficacy for modelling, word, and intra-mathematical problems. ZDM, v. 50, p. 143-157, 2018., é corroborada no presente artigo mediante uma interpretação semiótica que nos permite afirmar que o fenômeno de modelar matematicamente uma situação atende às peculiaridades de um fenômeno capaz de produzir conhecimento na perspectiva peirceana segundo a qual a identificação de um continuum das três categorias é o indício desta construção.

É justamente neste sentido que a experiência emanada de terceiridade faz com que o objeto, neste caso a Modelagem Matemática, já não seja para o intérprete, o aluno, como a coisa que era, mas como a coisa que se tornou depois do processo de experimentação mediado pelos interpretantes. Os signos e o objeto se entrelaçaram para criar a trama da experiência de caracterizar o que é Modelagem Matemática (o ser Modelagem Matemática) e de identificar procedimentos associados ao desenvolvimento de atividades dessa natureza (o fazer Modelagem Matemática).

A interpretação semiótica das experiências dos alunos ao desenvolver atividades de modelagem matemática nos leva a uma descrição da Modelagem Matemática em termos semióticos a qual assegura que, para que os alunos se apropriem da Modelagem Matemática devem ter experiências relativas à identificação do que é Modelagem Matemática (ser Modelagem Matemática) ao mesmo tempo em que desenvolvem atividades de Modelagem (fazer Modelagem Matemática), ou seja, são interdependentes na constituição do fenômeno Modelagem Matemática as perspectivas fenomenológica e ontológica das categorias peirceanas, conforme sugerem Sáenz-Ludlow e Kadunz (2016)SÁENZ-LUDLOW, A.; KANDUNZ, G. Constructing Knowledge Seen as a Semiotic Activity. In: SÁENZ-LUDLOW, A.; KANDUNZ, G (Orgs.). Semiotics as a Tool for Learning Mathematics. Rotterdam: Sense Publishers, 2016. p. 1-24.

Neste sentido, se discussões relativas às condições para o ensino da Modelagem Matemática (como apresentadas em Florensa, García e Sala, (2020)FLORENSA, I.; GARCÍA, F. J.; SALA, G. Condiciones para la enseñanza de la modelización matemática: Estudios de caso en distintos niveles educativos. Avances de Investigación en Educación Matemática, v. 17, p. 21-37, 2020., por exemplo) podem ser vinculadas àquelas que discutem o impacto de perspectivas teóricas relativas ao design de atividades de Modelagem Matemática (como apresentado em Barquero e Jenssen, (2020)BARQUERO, B.; JESSEN, B. E. Impact of theoretical perspectives on the design of mathematical modelling tasks. Avances de Investigación en Educación Matemática, v. 17, p. 98–113, 2020., por exemplo), a interpretação semiótica lança luz para como estes vínculos podem ser, mesmo que espontaneamente, construídos pelos alunos.

A identificação das categorias peirceanas (primeiridade, secundade, terceiridade) é um indício de que, ainda que as circunstâncias das experiências dos alunos com modelagem matemática sejam diversas, a sensação, a reação, a reflexão e a generalização permeiam a formação do aluno em Modelagem Matemática e para a Modelagem Matemática. Vislumbrar, portanto, a descrição da Modelagem Matemática considerando as perspectivas ontológica e fenomenológica das categorias semióticas, sinaliza para a relevância da introdução da Modelagem Matemática nas aulas de Matemática com a expectativa de que, nessas atividades, se viabilize, de forma articulada, construção de conhecimento matemático, conhecimento em relação à situação em estudo conhecimento relativo ao próprio fazer Modelagem Matemática.

7 Limitações do estudo

No presente artigo a pesquisa empírica em que se fundamenta a análise refere-se a uma atividade de Modelagem Matemática desenvolvida pelos alunos. Embora os dados tenham sido coletados no decorrer de todas as aulas em que se deu esse desenvolvimento, algumas argumentações aqui apresentadas podem ser complementadas em pesquisas futuras mediante a realização de entrevistas no decorrer do desenvolvimento da atividade bem como na análise do envolvimento dos alunos em um conjunto maior de atividades de Modelagem Matemática. Além disso, a análise aqui realizada é interpretativa de modo que nossas inferências relativamente ao que investiga decorrem, por um lado, do quadro teórico em que se fundamenta o artigo e, por outro lado, dos dados da pesquisa empírica realizada. Pesquisas futuras podem complementar os resultados aqui obtidos.

  • 1
    Essa descrição visa mostrar as estruturas em que a experiência relatada se dá, deixando transparecer nessa descrição estruturas universais.
  • 2
    No registro entregue pelos alunos não é possível identificar todos os elementos da função densidade. A função densidade encontra-se no canto esquerdo da figura e foi destacada com um retângulo. A construção dessa função leva em consideração a média e o desvio padrão das derrotas seguidas no período de 2013 a 2017.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Jan 2022
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2021

Histórico

  • Recebido
    30 Mar 2020
  • Aceito
    22 Jun 2021
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