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Três Viagens por Planolândia: estudos interdisciplinares

Three Trips through Flatland: interdisciplinary studies

Resumo

O escopo deste artigo é apresentar três análises feitas no campo da interdisciplinaridade, a partir da obra literária Planolândia – um romance de muitas dimensões , de Edwin A. Abbott. O livro, cujas personagens são entes matemáticos, é tratado, aqui, como potencial recurso pedagógico para colocar a Matemática em diálogo com assuntos humanísticos de interesse histórico, sociológico e filosófico, dentre outras interpretações possíveis favorecidas pela apropriação pedagógica dessa obra. Num horizonte mais amplo, o artigo advoga por um ensino não compartimentalizado, que estimule o desenvolvimento do pensamento complexo e de uma postura crítica frente à sociedade, apontando a literatura como uma via de acesso a esse intento.

Matemática e Literatura; Interdisciplinaridade; Planolândia

Abstract

The scope of this article is to present three analyses elaborated in the interdisciplinarity field, based on the literary work Flatland – a romance of many dimensions , by Edwin A. Abbott. The book, whose characters are mathematical entities, is dealt here as a potential pedagogical resource to put Mathematics in dialogue with humanistic issues of historical, sociological, and philosophical interest, among other possible interpretations favored by its pedagogical appropriation. In a wider horizon, the article advocates a non-compartmentalized education that stimulates the development of complex thinking and a critical attitude towards society, pointing out literature as a way of reaching this intent.

Mathematics and Literature; Interdisciplinarity; Flatland

1 Um convite a outros mundos

Em trabalhos anteriores, temos investigado como, por vezes, a Literatura e a Matemática se articulam para dar conta dos aspectos/conteúdos a serem ensinados da Matemática ou, ainda, para permitir reflexões, a partir de um território-literário de onde emergem saberes científicos. Nesses territórios, chamados por Fux (2011FUX, J. Literatura e Matemática: Jorge Luis Borges, Georges Perec e o OULIPO. Belo Horizonte: Tradição Planalto, 2011. , p. 244) de “entrelugares” e categorizados por Montoito (2019)MONTOITO, R. Entrelugares: pequeno inventário inventado sobre matemática e literatura. Bolema, Rio Claro, v. 33, n. 64, p. 892-915, ago. 2019. , os saberes matemáticos se dão a conhecer de maneira diferente de como aparecem nos livros didáticos, o que possibilita compreensões outras, ligadas à disciplina, e que, muitas vezes, envolvem diferentes aspectos do conhecimento humano, podendo ser de ordem social, filosófica, epistemológica, ideológica etc. Para problematizar – e potencializar – esse acercamento, propomos, neste artigo, um olhar direcionado e interpretativo do livro Planolândia – um romance de muitas dimensões , de Edwin A. Abbott (1838-1926), reconhecendo-o como um desses possíveis entrelugares, como um “romance matemático” ( Montoito, 2011MONTOITO, R. Chá com Lewis Carroll: a Matemática por trás da Literatura. Jundiaí: Paco, 2011. ).

Planolândia é uma obra do final do século XIX, cujo enredo é desenvolvido em um universo geométrico ficcional: num mundo de duas dimensões, as personagens são retas e polígonos imersos em uma sociedade estruturada por outros tantos conceitos e definições matemáticas. A escolha da Matemática, por Abbott, como território literário, bem como o modo em que os conteúdos dessa disciplina aparecem na obra, faz de Planolândia , ao nosso olhar, um possível recurso didático que permite o estudo escolar da geometria euclidiana – além de outros conteúdos matemáticos curriculares – em meio a discussões de importantes questões humanísticas e de conteúdos próprios de outras disciplinas.

Sendo assim, nossa intenção principal com este artigo é empreender três viagens através do livro de Abbott para evidenciar diálogos interdisciplinares entre a Matemática com assuntos humanísticos de interesse histórico, sociológico, filosófico, dentre outras interpretações possíveis favorecidas pela literatura. Essa integração de saberes, conforme argumentamos no correr do texto, permite tomar essa narrativa literária, destarte sua época de publicação, como substrato para evidenciar e problematizar assuntos ainda atinentes e considerados relevantes na perspectiva de uma formação plena e cidadã. Todavia, não vamos propor sequências didáticas específicas para a sala de aula, tomando recortes do livro. Ainda que reconheçamos a exequibilidade dessa tarefa, este artigo volta-se às discussões acerca da interdisciplinaridade, à medida que a toma como um constructo teórico, tal qual um guia para as três viagens propostas: a primeira debruça-se sobre o papel das mulheres em Planolândia, a segunda escala a pirâmide social planolandesa e a terceira conquista dimensões além do plano.

Na busca por evidenciar os aspectos interdisciplinares aludidos ao longo de nossa tripla viagem por Planolândia , o presente artigo emerge como resultado de uma pesquisa1 1 A pesquisa que produziu o presente trabalho foi realizada com o apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio Grande do Sul (FAPERGS). qualitativa, de cunho bibliográfico, que, a fim de contemplar a potencialidade do emprego da literatura para o ensino de Matemática, estabelece diálogos dos referenciais da Educação Matemática com outros, de diversos pesquisadores, sobre livros, literatura e a relação escritor-leitor. Tais referenciais aparecem mais discretamente nos três olhares que direcionamos ao romance (nossas viagens) sem serem, por isso, menos importantes, e ajudam no cotejamento do texto abbottiano com variadas fontes de outros campos do saber, na elaboração de uma hermenêutica da obra.

Assim, na composição deste texto, primeiramente exploramos, um pouco mais, a importância da interdisciplinaridade para advogar sobre como a literatura lança-se como um recurso de aproximação da Matemática a outros contextos e saberes. Num segundo momento, faremos uma breve descrição sobre o livro de Abbott para fins de analisar, em melhor perspectiva e contextualização, as qualidades interdisciplinares percebidas em Planolândia ; após, comentamos como a Matemática aparece nessa obra literária impregnada de outros saberes e conteúdos acadêmicos, e convidamos o leitor a pensar de que maneira ela pode contribuir para ensiná-los, diminuindo a compartimentalização usual do cotidiano escolar.

2 Considerações sobre interdisciplinaridade

Ao falarmos em interdisciplinaridade, ou invocá-la como um caminho atraente para o ensino, se faz conveniente expor nossa motivação. De partida, acenamos na direção da construção de um pensamento complexo, que ponha em diálogo todas as disciplinas, sem ranqueá-las hierarquicamente e sem limitá-las àquilo que a escola dá destaque, pois há um mundo extramuros que se conecta com ela e com o ser aprendente ( MORIN, 2003MORIN, E. A cabeça bem-feita: repensar a reforma, reformar o pensamento. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003. , 2011MORIN, E. Os setes saberes necessários à educação do futuro. São Paulo: Cortez, 2011. ). O que se busca aqui é o diálogo entre disciplinas, traduzido em práticas concretas no processo de aprendizagem, que deve prevalecer sobre um ensino compartimentado se almejamos uma educação significativa na construção da cidadania ( D’AMBROSIO, 2016D’AMBROSIO, U. Educação para uma sociedade em transição. São Paulo: Livraria da Física, 2016. ). Ademais, as disciplinas devem convergir para abordar em suas grades temas contemporâneos que se integrem à realidade e percepção de mundo dos alunos, o que implica práticas pedagógicas dinâmicas e, se possíveis, originais.

Trata-se, essa, de uma necessidade alavancada pela inserção dos educandos em um mundo pós-moderno, onde as fronteiras dos campos do conhecimento aparecem cada vez menos delineadas e em constantes mudanças. Como bem descreve Zdradek (2019)ZDRADEK, A. C. S. Juventudes líquido-modernas: uma análise a partir dos estudos culturais em educação. Curitiba: Appris, 2019. , com esta geração inquieta e sempre conectada o professor precisa estabelecer diálogos outros, que minimizem o plano vigente de transformar a juventude em eternos consumidores2 2 Bauman (1994) e Bauman e Leoncini (2018) dizem que os jovens têm sido tratados como a lata de lixo da indústria do consumo à medida que são constantemente incentivados a se desfazerem dos objetos que já possuem, mesmo quando esses ainda funcionam, para comprarem um substituto novo e mais moderno. . Portanto, visando estimular o despertar da criticidade necessária para enfrentar as constantes mutações e urgências dos tempos atuais, em um mundo cada vez mais fragmentado, cada educando deve, sob o ponto de vista cognitivo,

[...] aprender a observar, esquematizar os elementos de um problema, sintetizar, generalizar, deduzir, decidir, julgar, avaliar, informar-se, comunicar-se e ter uma curiosidade intelectual/cultural e, através da leitura 3 3 O autor refere-se à leitura num caráter amplo. Dentre os diferentes tipos de textos que podem ser lidos e que auxiliam o aluno a desenvolver sua leitura de mundo, a literatura é, aqui, tratada com mais destaque. , fazer uma aventura capaz de multiplicar suas perspectivas ( LAMBERT, 2005LAMBERT, E. (org.). Pós-modernidade e conhecimento: educação, sociedade, ambiente e comportamento humano. Porto Alegre: Sulina, 2005. , p. 45, grifos nossos).

Com a Matemática não deve ser diferente. D’Ambrosio (1990)D’AMBROSIO, U. Etnomatemática. São Paulo: Editora Ática, 1990. já alertava para a necessidade de a Matemática encontrar eco nos cotidianos individuais, assim como os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) que propunham:

Desenvolver um ensino de Matemática que permita ao aluno compreender a realidade em que está inserido, desenvolver suas capacidades cognitivas e sua confiança para enfrentar desafios, de modo a ampliar os recursos necessários para o exercício da cidadania, ao longo de seu processo de aprendizagem (BRASIL, 1998a, p. 60).

O reconhecimento de uma abordagem interdisciplinar e a contextualização dos conteúdos como competência pedagógica para as áreas do conhecimento estão contemplados na Base Nacional Comum Curricular (BNCC). A BNCC, como documento que rege atualmente a educação, retoma vários pontos que já eram abordados em documentos anteriores; nesse sentido, o ensino de Matemática – num viés que fomente a educação matemática crítica e contextualizada, que valorize os diferentes saberes e culturas e que esteja em diálogo com outros saberes – é retomado4 4 Dizemos retomado porque entendemos a BNCC como um documento em sua temporalidade histórica. Como tal, ele propõe algumas modificações, tanto no conteúdo a ser ensinado quanto na forma de ensiná-lo, ao mesmo tempo que mantém algumas ideias discutidas anteriormente pelos PCN e pelos Temas Transversais (BRASIL, 1998b). na BNCC, que incorpora às antigas sugestões de tópicos e metodologias outras novas, além de incitar a abordagens mais atuais à medida que dá destaque às tecnologias digitais e ao protagonismo do estudante que, em uma sociedade hiperconectada, consome, produz e dissemina informações, participando de uma rede de construção do conhecimento individual e coletivo.

Destarte, ao dispor sobre os currículos, a BNCC aponta que “a educação tem um compromisso com a formação e o desenvolvimento humano global, em suas dimensões intelectual, física, afetiva, social, ética, moral e simbólica” ( BRASIL, 2017BRASIL. Base Nacional Comum Curricular. Brasília: MEC, 2017. Disponível em: http://basenacionalcomum.mec.gov.br/. Acesso em: 17 mar. 2020.
http://basenacionalcomum.mec.gov.br/...
, p. 16), o que perpassa as competências específicas apresentadas pelo documento para a área de Matemática.

A partir dessas considerações e aliados com Gonçalves e Pires (2014)GONÇALVES, H. J. L.; PIRES, C. M. C. Educação Matemática na Educação Profissional de Nível Médio: análise sobre possibilidades de abordagens interdisciplinares. Bolema, Rio Claro, v. 28, n. 48, p. 230-254, abr. 2014. , dentre outros autores,

[...] vislumbramos a interdisciplinaridade como uma exigência dada por uma sociedade repleta de saberes/conhecimentos que foram fragmentados em nome da ciência moderna para o entendimento da realidade antropossocial e natural. Para tanto, na busca de uma reaproximação destes saberes/conhecimentos diante do necessário e urgente entendimento da realidade a partir de uma ótica de superação de um paradigma cartesiano, o quebra-cabeça precisa ser remontado para uma visão, sempre multirreferencial, do mundo complexo ( GONÇALVES; PIRES, 2014GONÇALVES, H. J. L.; PIRES, C. M. C. Educação Matemática na Educação Profissional de Nível Médio: análise sobre possibilidades de abordagens interdisciplinares. Bolema, Rio Claro, v. 28, n. 48, p. 230-254, abr. 2014. , p. 245).

Indo além, consideramos que o pensar práticas pedagógicas outras deve coadunar olhares aos princípios éticos em Educação, sendo mister que esses princípios se posicionem, pois é falaciosa a ideia de uma Educação desprovida de interesse ideológico, político ou social. Machado (2012)MACHADO, N. J. Matemática e educação: alegorias, tecnologias, jogo, poesia. 6. ed. São Paulo: Cortez, 2012. Coleção questões da nossa época. v. 43. , em reflexão sobre as ideias de neutralidade em Educação, argumenta que apenas um agente a-histórico pode ser neutro. Ainda, uma formação nessa concepção, segundo o autor, só seria possível a partir de um sistema educacional independente dos mecanismos de poder, o que não se verifica. “Na verdade, em nenhum momento histórico a Educação constituiu-se em um sistema autônomo, independente do poder político ou econômico, aqui ou em qualquer outro lugar” ( MACHADO, 2012MACHADO, N. J. Matemática e educação: alegorias, tecnologias, jogo, poesia. 6. ed. São Paulo: Cortez, 2012. Coleção questões da nossa época. v. 43. , p. 101) – esse poder, veremos, está nas entrelinhas de Planolândia e encontra ecos na sociedade atual.

Não é possível, por conseguinte, nos furtarmos a uma ética política porque “educar eticamente através da Matemática significa educar problematizando eticamente – e multidimensionalmente – os diferentes modos como a Matemática tem sido produzida e utilizada em diferentes práticas sociais, no passado e no presente” ( MIGUEL, 2006MIGUEL, A. Pesquisa em Educação Matemática e mentalidade bélica. Bolema, Rio Claro, v. 19, n. 25, p. 1-16, maio 2006. , p. 12, grifos nossos). Assim, quando consideramos que o ensino formal se manifesta nas escolas com currículos estipulados – e um tanto quanto extirpados , uma vez que muitos deles negligenciam e silenciam outras práticas culturais ( SANTOMÉ, 2013SANTOMÉ, F. T. As culturas negadas e silenciadas no currículo. In: SILVA, T. T. (org.). Alienígenas na sala de aula: uma introdução aos estudos culturais em Educação. Petrópolis: Vozes, 2013. p. 155-172. ) –, nos parece necessário acercar as ideias de multidimensionalidade às de interdisciplinaridade .

Em meio a tudo isso, queremos apontar Planolândia como um território onde se inserem possíveis reflexões dialéticas entre a Matemática e outros campos do saber. Os ligames interdisciplinares estabelecidos por nós ao transpassar o universo abbottiano, obviamente, não são estanques e não são únicos: elencamos apenas três viagens possíveis entre tantas, limitadas apenas pela imaginação. Dessa forma, antes de criar sequências didáticas particulares para serem empregadas no processo educativo – aventura que incentivamos os educadores a incursionar como um exercício de criatividade5 5 Algumas sugestões de atividades de geometria para o ensino fundamental baseadas em Planolândia – um romance de muitas dimensões podem ser encontradas em Brito (2015) . –, desejamos apontar zonas no território planolandês em que outros conteúdos escolares/outras áreas do conhecimento habitam.

Percebemos a literatura como potencial recurso não comum nas aulas de Matemática e vemos, no romance multidensional de Abbott, uma materialização desse potencial – um exemplo, um exercício pedagógico que, inegavelmente, pode ser pensado a partir de outras obras literárias.

3 Planolândia 6 6 Para melhor entendimento, doravante a grafia Planolândia – em itálico – será empregada em referência ao romance de Abbott, enquanto que a grafia sem destaque, Planolândia, será usada para apontar o mundo que a obra retrata. e além: a projeção do pensamento

Nosso interesse em investigar Planolândia 7 7 No título original, Flatland – a romance of many dimensions . Abbott, seu autor, foi um clérigo e professor inglês que se notabilizou pela organização de novos métodos de instrução e por inserir muitas inovações no currículo escolar do que seria o Ensino Médio na Inglaterra de sua época. Dentre suas várias obras, a mais conhecida é Planolândia , livro que possui dezenas de edições no Reino Unido e que já foi traduzido para, ao menos, nove idiomas ( O’CONNOR; ROBERTSON, 2005 ). , obra publicada originalmente em 1884, na Inglaterra, se dá pela caracterização de um universo geométrico enquanto cenário da narrativa, que abriga entes matemáticos como personagens. A obra descreve um mundo bidimensional (um plano), habitado por pessoas que estão metamorfoseadas em entes geométricos de uma ou duas dimensões. A história é narrada em primeira pessoa por uma de suas personagens, o Quadrado, que diz:

Imagine uma grande folha de papel sobre a qual linhas retas, triângulos, quadrados, pentágonos, hexágonos e outras figuras, em vez de ficarem fixos em seus lugares, movem-se livremente em uma superfície, mas sem o poder de se elevarem sobre ela ou de mergulharem abaixo dela, assim como as sombras – só que com bordas firmes e luminosas. Assim você terá uma noção bem correta de meu país e de meus compatriotas ( ABBOTT, 2002ABBOTT, E. A. Planolândia: um romance de muitas dimensões. São Paulo: Conrad, 2002. , p. 6).

A narrativa é separada em dois momentos: Parte I – Este Mundo e Parte II – Outros Mundos . Desde o início, o tecer da trama evoca definições geométricas estabelecidas por Euclides (2009)EUCLIDES. Os Elementos. São Paulo: UNESP, 2009. , cujo Elementos era, amiúde, utilizado para o ensino de geometria na sociedade e época nas quais Abbott se inseria8 8 Trata-se da Inglaterra vitoriana, período entre 1837 e 1901, de grandes mudanças intelectuais, sociais e culturais (CHASTENET, s/d). (HOWSAM et al ., 2007). Abbott era um educador que conhecia bem esse trabalho euclidiano ( STEWART, 2002STEWART, I. Preface. In: ABBOTT, E. The annotated Flatland: A Romance of Many Dimensions. New York: Basic Books, 2002. p. ix-xii. ), e se apropria do seu conteúdo para manuseá-lo na concepção de sua própria obra.

A vida em Planolândia é descrita na primeira parte do livro, em que são apresentadas as estruturas físicas e as dinâmicas de relacionamentos das personagens. Adentrando à história, descobrimos os homens planolandeses como sendo triângulos, quadrados, pentágonos, hexágonos, e outros polígonos. As mulheres, porém, distinguem-se deles por seus corpos não encerrarem uma área – os corpos femininos são segmentos de linhas retas.

Existe uma rigorosa e praticamente insuperável estratificação social em Planolândia, que é ditada pela gradação e regularidade dos polígonos: quanto maior o número de lados possuídos pela figura, mais alta é sua posição na sociedade. Os “soldados e as classes mais baixas de trabalhadores são triângulos com dois lados iguais, de uns 28 centímetros de extensão, e uma base ou terceiro lado tão curto [...] que eles formam nos vértices um ângulo agudo e perigoso” ( ABBOTT, 2002ABBOTT, E. A. Planolândia: um romance de muitas dimensões. São Paulo: Conrad, 2002. , p. 25). Os isósceles são discriminados pelos demais homens planolandeses por não serem regulares, e possuem vidas pobres e indignas, sendo desprezados pelos polígonos/homens superiores que os consideram como indivíduos reles, praticamente párias.

Pela exposição do Quadrado, percebemos que as figuras regulares, por sua vez, possuem mais prestígio:

Nossa classe média consiste de triângulos equiláteros, ou de lados iguais.

Nossos profissionais e cavalheiros são quadrados (a cuja classe eu pertenço) e figuras de cinco lados, ou pentágonos.

Acima deles, temos a nobreza, que possui vários graus, começando com as figuras de seis lados, ou hexágonos, e daí em diante aumentando o número de lados até que recebem o título honorífico de polígono, ou figura de muitos lados. Finalmente, quando o número de lados fica tão grande, e os próprios lados tão pequenos, que a figura não pode ser distinguida de um círculo, ela é incluída na ordem circular, ou sacerdotal, e essa é a classe mais alta de todas ( ABBOTT, 2002ABBOTT, E. A. Planolândia: um romance de muitas dimensões. São Paulo: Conrad, 2002. , p. 25).

As relações e acontecimentos envolvendo as personagens na superfície bidimensional de Planolândia, descritas na parte I do livro ( Este mundo ), são mais que apenas uma fantasia em que a geometria ganha protagonismo: de acordo com Stewart (2002STEWART, I. Preface. In: ABBOTT, E. The annotated Flatland: A Romance of Many Dimensions. New York: Basic Books, 2002. p. ix-xii. , p. ix), “logo abaixo da superfície, no entanto, [Planolândia] é uma sátira mordaz aos valores vitorianos – especialmente no que diz respeito às mulheres e ao status social”.

Já a parte II ( Outros Mundos ) trata de realidades transcendentais a Planolândia. Até então, tudo que o acontece à volta do personagem Quadrado está dentro das duas dimensões do mundo que ele conhece, e ele acredita que o plano em que vive constitui todo o Universo. Contudo, o Quadrado tem uma série de experiências que o fazem conhecer outros mundos dimensionais: primeiro, mundos de menor dimensão, como Linhalândia (de uma única dimensão, onde os seres são somente segmentos de retas e pontos) e Pontolândia (sem dimensão, um mero ponto); depois, surge uma nova personagem, a Esfera, que ajuda o Quadrado a perceber que existe um mundo além, de três dimensões, chamado Espaçolândia, que é onde ela vive.

O Quadrado, inicialmente, tem dificuldades de aceitar a origem da Esfera, pois ele a percebe apenas como um círculo, ou seja, percebe apenas a projeção dela no plano, que é tudo que o Quadrado tem sentidos para captar. Mas a história se desenrola até que a personagem consegue transcender e apreender o mundo acima de Planolândia. A aventura dimensional realizada por essas figuras, uma do plano e a outra do espaço, produz entre elas uma interessante reflexão sobre a existência de dimensões ainda mais altas, mundos que vão além de largura, comprimento e altura: afinal, se a esfera projeta um círculo em um plano, o que projeta uma esfera no espaço a partir de um mundo de quatro dimensões? A busca pela resposta a essa pergunta gera, por pura analogia, a conjectura da existência de infinitas dimensões ocultas que nos fogem aos sentidos.

Figura 1
– Planolândia e Espaçolândia

Este curto percurso pelas duas partes de Planolândia visa apresentar, brevemente, a obra ao leitor não familiarizado com ela. Considerando a Matemática que a permeia, acenamos a potencialidade didática do livro para abordar conteúdos de Matemática tanto do ensino fundamental (figuras geométricas planas, por exemplo) quanto do ensino superior (projeções e espaço n-dimensionais, dentre outros). Todavia, o escopo deste artigo não é falar apenas da matemática nessa obra literária, mas colocá-la em uma relação interdisciplinar com outros componentes do currículo escolar, motivo este que nos leva a seguirmos a viagem pelo diálogo realidade-ficção que impregna Planolândia.

4 Três viagens interdisciplinares pelo território planolandês

A interdisciplinaridade é uma temática discutida há algum tempo no meio escolar, mas pouco se tem avançado quando se tenta trabalhar a Matemática junto com outros conteúdos escolares, principalmente aqueles que não comungam, com ela, as características das ciências exatas ( TOMAZ; DAVID, 2008TOMAZ, V. S.; DAVID, M. M. M. S. Interdisciplinaridade e aprendizagem da matemática em sala de aula. Belo Horizonte: Autêntica, 2008. ; D’AMBROSIO, 2005D’AMBROSIO, U. Sociedade, Cultura, Matemática e seu Ensino. Educação e pesquisa, São Paulo, v. 31, n. 1, p. 99-120, jan./abr. 2005. ). Na busca por contribuir para a aproximação escolar de diversos saberes e conteúdos, tendo Planolândia como exemplo de como a literatura pode intermediar a inserção da Matemática nessa aproximação, apresentamos, a seguir, alguns destaques de possíveis temas interdisciplinares presentes no romance de Edwin Abbott, os quais se inserem em problematizações de questões históricas, sociológicas, filosóficas, educacionais, éticas, entre outras.

4.1 Viagem acerca do feminino

Talvez, o principal mote da primeira parte do livro, que trata da vida em Planolândia como uma sátira da própria cultura nativa do autor, seja a inserção das mulheres na sociedade. Chama a atenção o modo como o feminino é colocado à parte na classificação social baseada no número de lados das figuras geométricas (que, lembremos, representam os planolandeses, as pessoas ), pois as mulheres são linhas retas e não polígonos: à ausência de lados corresponde o rechaço de uma gradação para o feminino na pirâmide social de Planolândia. Essa distinção entre as personagens já denotaria, de imediato, uma posição de inferioridade para os seres femininos, posição que emerge, ainda mais claramente, quando o autor frisa o status submisso das mulheres, que tinham suas falas menosprezadas ou ignoradas quando os assuntos escapavam do limite de suas casas e dos afazeres domésticos.

A leitura atenta da obra, que retrata a unidimensionalidade feminina em suas personagens como sintoma de um intelecto inferior, nos permite vislumbrar que o autor leva para a sua ficção a realidade de seu entorno social e histórico ao transportar, até Planolândia, a convicção vitoriana de que as mulheres não deveriam ser ativas nas decisões da sociedade9 9 Importante frisar que Abbott não compactuava com a discriminação feminina própria de sua época, tanto que ele utiliza seu livro Planolândia como arauto de sua crítica ao satirizar, mordazmente, sua sociedade ( STEWART, 2002 ). . “Os vitorianos construíram, em todas as partes, um muro entre as esferas público e privada” ( GAY, 1993GAY, P. A experiência burguesa da rainha Vitória a Freud: o cultivo do ódio. São Paulo: Companhia das Letras. 1993. , p. 293), que acarretou um comportamento idealizado responsável por levar “à separação da vida cotidiana em duas esferas distintas de atuação: uma, regida pelo homem e o trabalho fora de casa, outra, completamente diferente, em que atuava a mulher com seus deveres de esposa e dona de casa” ( MORAIS, 2004MORAIS, F. C. Literatura vitoriana e educação moralizante. Campinas: Alínea, 2004. , p. 28).

O retrato da – normalizada/estabelecida – inferiorização intelectual das mulheres é inequívoco na obra de Abbott, conforme podemos depreender das duas passagens a seguir:

Não tendo qualquer pretensão a um ângulo, por serem inferiores, nesse aspecto, ao mais baixo dos isósceles, são por consequência totalmente desprovidas de capacidade mental, e não têm ponderação, discernimento nem premeditação e quase nenhuma memória ( ABBOTT, 2002ABBOTT, E. A. Planolândia: um romance de muitas dimensões. São Paulo: Conrad, 2002. , p. 15).

O tato e a habilidade necessários para desviar o ferrão10 10 A ideia de ferrão enquanto arma mortal está associada à forma física das mulheres, uma vez que, sendo linhas retas, elas “são consideradas de difícil visualização em Planolândia, pois se estivermos olhando para elas a prumo, identificaremos apenas um ponto [...]. As linhas femininas são tão esguias e afiadas que podem, ao colidirem de ponta, perfurar e atravessar as demais figuras geométricas, acarretando suas mortes” ( MINKS; MONTOITO, 2018 , p. 716); por esse motivo se entende, também, que as mulheres são entes perigosos, capazes de ameaçar os homens. de uma mulher não estão à altura da tarefa de calar a boca feminina, e como a esposa não tem absolutamente nada a dizer e absolutamente nenhuma inteligência, senso ou consciência que a impeçam de falar, não poucos cínicos asseguram preferir o perigo do ferrão mortífero, mas inaudível, à sonoridade do outro extremo da mulher ( ABBOTT, 2002ABBOTT, E. A. Planolândia: um romance de muitas dimensões. São Paulo: Conrad, 2002. , p. 18).

Também na realidade inglesa, à época da publicação de Planolândia , a resistência machista a um papel efetivo e contundente das mulheres na vida social era baseada na sexista argumentação de que os assuntos intelectuais e os problemas políticos da comunidade não poderiam ser entendidos pela mente feminina. Tentava-se amenizar o discurso discriminatório, alegando que à alma feminina cabia, de forma nata, a nobre incumbência de cuidar das questões afetivas e familiares, ponto fulcral para que entendamos que “as percepções vitorianas dominantes eram variações, a maioria delas corriqueiras, de uma única e simples tese: os sexos diferem tão radicalmente em mentalidade como em corpo” ( GAY, 1993GAY, P. A experiência burguesa da rainha Vitória a Freud: o cultivo do ódio. São Paulo: Companhia das Letras. 1993. , p. 294).

Ao cotejarmos o relato ficcional de Abbott com a historiografia que aborda os hábitos e pensamentos da Inglaterra vitoriana (CHASTENET, s.d.; FLORES; VASCONCELOS, 2000FLORES, E. C.; VASCONCELOS, I. H. G. A era vitoriana: a duração de um reinado. São Paulo: FTD, 2000. ; GAY, 1993GAY, P. A experiência burguesa da rainha Vitória a Freud: o cultivo do ódio. São Paulo: Companhia das Letras. 1993. ; MORAIS, 2004MORAIS, F. C. Literatura vitoriana e educação moralizante. Campinas: Alínea, 2004. ), é possível traçar uma relação bijetora entre os dogmas sociais britânicos da segunda metade do século XIX e a trama de Planolândia . Afinal,

Os anos vitorianos assistiram a um apreciável abandono dos postos avançados que as mulheres haviam co meçado a conquistar nos tempos do Iluminismo. A espetacular difusão da prosperidade e do tempo ocioso entre as classes médias que acompanhou esses explosivos levantes11 11 O autor refere-se à Revolução Industrial. permitiram que um número cada vez maior de maridos mantivesse suas esposas em casa ( GAY, 1993GAY, P. A experiência burguesa da rainha Vitória a Freud: o cultivo do ódio. São Paulo: Companhia das Letras. 1993. , p.293).

Esse cenário narrativo nos remete às barreiras, muitas vezes instransponíveis, no decorrer da História da civilização ocidental, que constatamos à participação isonômica das mulheres nas esferas social, política, produtiva e intelectual das sociedades. Quando seguimos o percurso das mulheres das/nas ciências, de Hipátia de Alexandria até hoje, percebemos que o caminho feminino sempre foi muito mais tortuoso.

Ao mesmo tempo que se pode trabalhar, a partir de Planolândia , conteúdos de geometria (como ângulos, segmentos de retas e polígonos), é possível convidar o aluno a refletir sobre a desigualdade social entre os gêneros, suas lutas e conquistas. Esse movimento pode ajudá-lo a compreender por que, ao olharmos as atividades e saberes desenvolvidos em nível institucional pelas sociedades ao longo do tempo, “deparamo-nos com um conceito pré-estabelecido e repetidamente presente nos discursos: a incapacidade intelectual das mulheres para entender as ciências mais abstratas, como a Matemática, a Física e a Filosofia” (KOVALESKI; TORTATO; CARVALHO, 2013, p. 10).

As implicações desses discursos não ficam alheias, de modo geral, ao mundo do trabalho, pois, “da variação salarial à intimidação física, da desqualificação intelectual ao assédio sexual, [as mulheres] tiveram sempre de lutar contra inúmeros obstáculos para ingressar em um campo definido – pelos homens – como naturalmente masculino” ( CALIL, 2000CALIL, L. E. S. História do trabalho da mulher: aspectos histórico-sociológicos do início da república ao final deste século. São Paulo: LTr Editora, 2000. , p. 21).

Assumimos que a obra de Abbott não aborda, de maneira explícita, o modo como os rudimentos de geometria podem contribuir para favorecer, nos alunos, o despertar da criticidade no que concerne à desigualdade histórica e social de gênero; entretanto, e de acordo com a proposta interdisciplinar trazida antes, não há nenhum óbice em utilizar um assunto para invocar o estudo do outro, uma vez que a trama de Planolândia favorece essa ação.

Desse modo, acreditamos que Planolândia apresenta-se como um recurso pedagógico possível para aproximar a Educação Matemática das questões de gênero ao discutir, dentro das práticas educativas, a importante questão do papel da mulher na sociedade. A despeito de o romance estar ligado a acontecimentos que remontam quase um século e meio, os temas da inclusão feminina e do reconhecimento das mulheres ainda são atuais e caros à discussão da feitura do tecido social em muitos países, inclusive no Brasil ( ONU, 2017ONU. 16 fatos sobre desigualdades entre homens e mulheres. Nações Unidas, 30 nov. 2017. Disponível em: https://nacoesunidas.org/onu-16-fatos-sobre-desigualdades-entre-homens-e-mulheres/. Acesso em: 15 abr. 2020.
https://nacoesunidas.org/onu-16-fatos-so...
)12 12 Em 2015, a Organização das Nações Unidas (ONU) estabeleceu dezessete objetivos para o Desenvolvimento Sustentável, a serem alcançados pelos países até 2030; a igualdade entre mulheres e homens é o de número 5 dessa lista: Igualdade de gênero – Alcançar a igualdade de gênero e empoderar todas as mulheres e meninas ( ONU, 2015 ). , o que reforça a pertinência do romance de Abbott para gerar debates sobre diferentes culturas, em diferentes momentos históricos.

Assim, trazer essas reflexões para a sala de aula é mister e a abordagem interdisciplinar – sob o prisma da História, Sociologia, Ética, dentre outros saberes que fomentem o pensar sobre o feminino na sociedade – apresenta-se para ajudar a pavimentar uma educação para uma sociedade que, sempre em transição, requer hoje, mais do que nunca, uma visão holística do conhecimento e amplos espaços para a criatividade e para as justas relações humanas e éticas ( D’AMBROSIO, 2016D’AMBROSIO, U. Educação para uma sociedade em transição. São Paulo: Livraria da Física, 2016. ), sem qualquer preconceito de gênero.

4.2 Viagem pela pirâmide social

A Inglaterra, no período do lançamento de Planolândia , era uma sociedade aristocrática que padecia, em grande medida, de profundas desigualdades sociais e educacionais. Uma análise sobre as dinâmicas de convívio e de acesso cívico daquela época revela “que os critérios de uma instrução genuína eram destinados apenas a uns poucos; o ódio entre as gerações e as classes era profundo, ainda que muitas vezes silencioso” (STEINER, 1991 apudMORAIS, 2004MORAIS, F. C. Literatura vitoriana e educação moralizante. Campinas: Alínea, 2004. , p. 20).

Da mesma forma, em Planolândia , os indivíduos pertencentes às classes ditas superiores consideram as figuras com menor número de lados como seres desprezíveis, frequentemente explorando-os e excluindo-os da vida social para além do trabalho, muito em particular a classe dos Isósceles. Conforme analisa Brito (2015BRITO, R. B. Um elo possível entre matemática e literatura: alguns conteúdos de geometria do ensino fundamental presentes no livro Planolândia. 2015. Trabalho de Conclusão de Curso (Licenciatura em Matemática) – Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Caicó, 2015. , p. 15), dentre os planolandeses

Não existe ascensão social, a figura geométrica permanecia na sua forma até o fim da vida, e nesse ponto percebe-se a analogia com a sociedade inglesa da época vitoriana, pois uma criança que nascia numa família de classe baixa continuava até o fim da vida pertencendo a tal classe.

Nessa perspectiva, “um comerciante [planolandês] comum não pode arcar com as despesas de manter seu filho um terço de sua vida em estudos abstratos” ( ABBOTT, 2002ABBOTT, E. A. Planolândia: um romance de muitas dimensões. São Paulo: Conrad, 2002. , p. 44), o que pode ser percebido como um retrato da Inglaterra oitocentista: as classes dirigentes, de modo semelhante às de Planolândia, por regra pouco se interessavam com a instrução das crianças das classes mais pobres, cujos pais não podiam pagar os custos das instituições privadas, às quais as famílias de posses faziam ingressarem seus filhos.

Estudos historiográficos sobre o período revelam que, apenas em 1867 (menos de duas décadas antes da primeira publicação de Planolândia ), o quadro de descaso para com a escolarização em massa começou paulatinamente a mudar. Primeiro, surgiu a chamada Lei da Reforma , com o apoio de políticos que consideravam “haver chegado a hora em que o país deveria preocupar-se com a educação” ( MORAIS, 2004MORAIS, F. C. Literatura vitoriana e educação moralizante. Campinas: Alínea, 2004. , p. 57); posteriormente, a Lei Educacional de 1870, que tornou compulsório (mas não necessariamente gratuito) o ensino para crianças até onze anos. No entanto, o governo manteve-se bastante negligente no cumprimento dessa lei no que se referia às crianças pobres, de maneira que poucas destas tiveram seu cotidiano modificado. Em outros casos, havia ainda um grande número de crianças que moravam em localidades em que se desconhecia totalmente a promulgação da lei ( MONTOITO, 2013MONTOITO, R. “Euclid and his modern rivals” (1879), de Lewis Carroll: tradução e crítica. 2013. 447f. Tese (Doutorado em Educação para a Ciência) – Universidade Estadual Paulista, Bauru, 2013. ).

Dada essa conjuntura, muitas crianças abandonavam os estudos e empenhavam seu tempo em atividades laborativas. Conforme Cambi (1999)CAMBI, F. História da Pedagogia. São Paulo: UNESP, 1999. , somente em 1833 a Inglaterra fixou a idade mínima de nove anos para o trabalho, de forma a aliviar a pesada carga à que a mão de obra infantil era sujeita largamente no país. A falta de escolarização e o trabalho infantil estavam enormemente entrelaçados durante os anos vitorianos, como nos indicam Morais (2004)MORAIS, F. C. Literatura vitoriana e educação moralizante. Campinas: Alínea, 2004. e Gay (1993)GAY, P. A experiência burguesa da rainha Vitória a Freud: o cultivo do ódio. São Paulo: Companhia das Letras. 1993. ao apontarem as atividades de crianças nas minas de carvão da Inglaterra (combustível da Revolução Industrial), durante o século XIX: elas eram “condenadas a passar doze e às vezes dezesseis horas por dia a empurrar, puxar, dirigir vagões pesados por caminhos subterrâneos, escuros, lamacentos e fortemente inclinados” ( MORAIS, 2004MORAIS, F. C. Literatura vitoriana e educação moralizante. Campinas: Alínea, 2004. , p. 19).

O enfoque em Planolândia sobre as desigualdades sociais vitorianas, que aparecem imersas no livro em forma de sátira, se mostra atinente, ao menos, à análise histórica e sociológica. Mas o mais contundente é que os fatos acima que entretecem o romance ainda tisnam, em certa medida, nossa época e sociedade atual: são notórias as dificuldades do Brasil em ofertar, ainda hoje, um ensino de qualidade com ampla inclusão, e são as classes pobres as que mais sofrem com o descaso de governantes com a Educação no país. Ao final de um processo, lá na frente, no futuro pós-escola, o mercado de trabalho condiciona e cria situações e necessidades que exigem capacidades profissionais cada vez mais seletas, e acaba por deixar a grande maioria à margem do que almeja ( MÜLLER, 1997MÜLLER, M. Orientar para un mundo em transformación: jóvenes entre la educación y eltrabajo. Buenos Aires: Bonum, 1997. ; MÉSZÁROS, 2008MÉSZÁROS, I. A educação para além do capital. São Paulo: Boitempo, 2008. ).

A atualidade e gravidade dessas questões são claras nas estatísticas sobre a situação educacional brasileira. Recentes estudos mostram que entre os adolescentes de 15 a 17 anos que compõem os 20% mais pobres, 11,8% evadiram da escola sem concluir ao menos o ensino básico. Entre os 20% mais ricos desse grupo etário, apenas 1,4% tinham abandonado os estudos nessas condições ( AMORIM; NEDER, 2019AMORIM, D.; NEDER, V. IBGE: 11,8% da população entre 15 e 17 anos está fora da escola. O Estado de S. Paulo. Rio de Janeiro, edição virtual, 06 nov. 2019. Caderno de Economia & Negócios. Disponível em: https://economia.estadao.com.br/noticias/geral,ibge-11-8-da-populacao-entre-15-e-17-anos-esta-fora-da-escola,70003077925. Acesso em: 06 nov. 2019.
https://economia.estadao.com.br/noticias...
). Para os que permanecem na escola, o Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (PISA) mostra que 68,1% dos estudantes brasileiros, com 15 anos de idade, não possuem nível básico de matemática, o que seria condição mínima para o amplo exercício da cidadania; em ciências, os números alcançam 55% e, em leitura, 50%. Tais índices não se alteram desde 2009 ( BRASIL, 2019BRASIL. Pisa 2018 revela baixo desempenho escolar em leitura, matemática e ciências no Brasil. Brasília: MEC, INEP, 2019. Disponível em: http://portal.inep.gov.br/artigo/-/asset_publisher/B4AQV9zFY7Bv/content/pisa-2018-revela-baixo-desempenho-escolar-em-leitura-matematica-e-ciencias-no-brasil/21206. Acesso em: 15 abr. 2020.
http://portal.inep.gov.br/artigo/-/asset...
).

Todas essas constatações nos fazem perceber Planolândia como um instrumento para colocar a Matemática em meio a olhares necessários, destinados aos sensíveis temas sociais que apontamos, do passado e do presente. Isso é possível porque os textos possuem transtextualidade , isto é, apresentam relações com outros textos e saberes (ADAM; HEIDMAN, 2011), o que permite que sejam abordados, analisados e trabalhados através de um viés matemático, aqui possibilitando a elaboração de observações sistemáticas de aspectos quantitativos e qualitativos presentes nas práticas sociais e culturais. Um olhar dirigido à questão da interdisciplinaridade, que aqui evoca o espaço da escola e das políticas públicas, bem como a questão das lutas de classe, é o que dá subsídios para que o professor busque

[...] novas informações e combinações que ampliam e transformam os conhecimentos anteriores de cada disciplina. Assim, criam-se novos conhecimentos que se agregam a cada uma das disciplinas ou se situam na zona de intersecção entre elas, partindo das interações dos sujeitos no ambiente e de elementos de uma prática comunicativa que eles desenvolvem entre as disciplinas ( TOMAZ; DAVID, 2008TOMAZ, V. S.; DAVID, M. M. M. S. Interdisciplinaridade e aprendizagem da matemática em sala de aula. Belo Horizonte: Autêntica, 2008. , p. 26-27).

Portanto, a partir de um trabalho em sala de aula dirigido à ficção de Abbott, pode-se alcançar, pelos caminhos transtextuais , a abordagem de temas de urgência social nas aulas de Matemática. É mais um favorecimento interdisciplinar a que se presta a literatura.

4.3 Viagem por outras dimensões

A segunda parte de Planolândia ( Outros Mundos ) trata do personagem Quadrado descobrindo que o plano em que ele vive não é a totalidade do Universo. Durante suas interações com a personagem Esfera, o Quadrado passa a perceber que existe uma realidade que lhe foge aos sentidos imediatos, sendo a existência da terceira dimensão o ponto de partida para suas lucubrações.

Conforme a história se desenrola, as personagens refletem sobre a validade de se considerar como única verdade aquilo que se experimenta, através dos sentidos, no plano físico. O Quadrado fica instigado pela descoberta de Espaçolândia que, outrora, fora um mundo inconcebível para ele, e conjectura, por analogia, sobre outras realidades dimensionais, de quatro, cinco, infinitas dimensões. Essa epifania que o leva a considerar a possibilidade de existir mundos superiores, embora não tenha sentidos físicos para alcançá-los, se cristaliza quando ele concebe a noção de Pensamentolândia – mundo sondável pela mente.

Essa postura do Quadrado remete ao pensamento do filósofo grego Platão (2019b), que distinguia a existência entre o mundo material e o mundo das ideias. Para ele, o homem é essencialmente alma (imortal e existente antes do corpo), e a fusão desta ao corpo seria acidental. Assim, o lugar próprio da alma não seria o mundo material, que Platão considera instável e enganoso, mas, sim, o mundo inteligível, o mundo das ideias. É nesse lugar que o pensamento platônico situa as ideias perfeitas, a verdade, e a evolução ontológica em direção ao mundo inteligível se dá, segundo o grego, mediante a dialética e não através do mundo sensível. Essa conexão entre Pensamentolândia e o mundo das ideias da filosofia clássica também é identificada por Stewart (2002STEWART, I. Preface. In: ABBOTT, E. The annotated Flatland: A Romance of Many Dimensions. New York: Basic Books, 2002. p. ix-xii. , p.191, tradução nossa), que afirma:

Abbott agora amplia o escopo de sua visão. Não apenas os espaços de dimensões superiores podem ser pensados como novos universos, mas também há um universo mais amplo que incorpora todos os conceitos concebíveis, reais ou imaginários. [...] A grande questão aqui é em qual sentido esse “universo” de conceitos existe? Há muitos paradigmas filosóficos relativos ao significado da existência matemática. Os dois mais populares são o platonismo, que sustenta que todos os conceitos matemáticos preexistem em um mundo “ideal”, mas não físico; e o construtivismo social, que considera um conceito matemático nada mais do que uma crença que é compartilhada por várias mentes humanas diferentes. “Pensamentolândia”, apesar do nome, é muito próxima do platonismo. Na filosofia de Platão (427-347 a.C.), o mundo humano é apenas uma imagem, ou projeção, do reino superior das formas ideais, como ele descreve na famosa passagem no Livro 7 de sua República.

A passagem aludida diz respeito à alegoria (ou mito) da caverna, que é a mais conhecida das muitas alegorias criadas por Platão para expor suas doutrinas. Baseando-se em formas e sombras, ou seja, na forma real de um objeto e na da sua projeção perceptível, o filósofo grego apresenta homens em uma caverna subterrânea desde a infância, acorrentados de costas à única abertura ao mundo exterior, condenados a olhar, em meio à escuridão, para uma parede onde projetam-se as sombras dos acontecimentos lá de fora. Esse mito é desdobrado, na República (PLATÃO, 2019b), num diálogo entre Sócrates e Gláucon, em que a maiêutica da dialética socrático-platônica aponta, como conclusão, que é muito mais fácil aos indivíduos tomarem como Verdade apenas aquilo que experimentam no mundo sensível, embora possa haver uma realidade mais profunda:

[Sócrates:] Considera, então, de que caráter seria a libertação dessas correntes e a cura dessa insensatez se algo naturalmente assim acontecesse: quando um deles fosse libertado e subitamente obrigado a se levantar, virar o pescoço, caminhar e – erguendo o olhar – fitar a luz, experimentaria dor devido à ofuscação da vista e ficaria incapacitado de ver as coisas cujas sombras vira antes. O que achas que ele diria se lhe fosse dito que o que vira antes era tudo uma tolice, mas que agora, estando ele próximo da realidade e voltado para as coisas mais reais, ele vê mais corretamente? E se apontássemos para cada uma das coisas que passam diante dele e perguntássemos imperiosamente o que é cada uma delas, não achas que ele ficaria confuso e que acreditaria que os objetos que havia visto antes eram mais reais do que os que agora lhe eram mostrados?

[Gláucon:] Muitíssimo mais reais (PLATÃO, 2019b, p. 325).

A partir dessa alegoria, a própria consequência de apropriar-se do conhecimento da verdade tem ecos no texto abbottiano. Na sequência do diálogo, Sócrates reflete com Gláucon que o retorno do liberto à caverna, munido de um novo horizonte de percepções, provocaria a inveja daqueles que, entre os prisioneiros, são venerados e poderosos. É o que sucede ao Quadrado quando ele volta a Planolândia e tenta relatar aos seus conterrâneos a existência de um mundo além de plano – leia-se fora da caverna . Ele conta: “em um discurso inflamado, exortei todos os meus ouvintes a se despirem dos preconceitos e se tornarem adeptos da Terceira Dimensão. Preciso dizer que fui imediatamente detido e levado perante o Conselho?” ( ABBOTT, 2002ABBOTT, E. A. Planolândia: um romance de muitas dimensões. São Paulo: Conrad, 2002. , p. 124).

Ridicularizado e acusado de tentar subverter a ordem social de Planolândia e da natureza, o Quadrado escapa por pouco de sofrer a pena capital, sendo condenado à prisão perpétua, realizando quase inteiramente a previsão de Sócrates (enquanto personagem de Platão) do que aconteceria se o liberto retornasse e tentasse abrir, à verdade, os olhos dos que continuavam cativos na caverna:

[...] se tivesse ele de competir de novo com os perpétuos prisioneiros no reconhecimento das sombras, não atrairia o ridículo sobre si? Não se comentaria acerca de sua pessoa que retornara de sua viagem à região superior com sua visão arruinada e que não valia a pena sequer fazer a tentativa da viagem à região mais elevada? E no caso de alguém libertar prisioneiros e conduzi-los para cima, se fosse apanhado eles não o matariam? (PLATÃO, 2019b, p. 326)

O lamentável destino sofrido pelo Quadrado nos faz pensar no próprio filósofo Sócrates, de quem Platão foi discípulo e amigo por oito anos, que foi condenado à morte em Atenas devido às suas ideias e práticas filosóficas. Sócrates foi obrigado a tomar cicuta, acusado de ser injusto com os deuses da cidade e de corromper a juventude (PLATÃO, 2019a).

Uma releitura da alegoria da caverna nos nossos dias, interpretando-a no sentido do descobrimento da verdade , ganha pertinência ao considerarmos a disseminação de fake news e as agressões contra o conhecimento científico que se intensificaram, nos últimos anos, pela desinformação propagada pelas redes sociais virtuais. Discernir entre os fatos e as sombras projetadas na parede – sombras que ganham, a todo momento, incontáveis distorções na era da comunicação instantânea de massa – é uma necessidade premente da atualidade, pois,

[...] as consequências do analfabetismo científico são muito mais perigosas em nossa época do que em qualquer outro período anterior. É perigoso e temerário que o cidadão médio continue a ignorar o aquecimento global, por exemplo, ou a diminuição da camada de ozônio, a poluição do ar, o lixo tóxico e radioativo, a chuva ácida, a erosão da camada superior do solo, o desflorestamento tropical, o crescimento exponencial da população. Os empregos e os salários dependem da ciência e da tecnologia. [...] Considerem-se as ramificações sociais da energia de fissão e fusão, dos supercomputadores, das “rodovias” de informações, do aborto, do radônio, das reduções maciças de armas estratégicas, do vício das drogas, da intromissão do governo nas vidas de seus cidadãos, da TV de alta resolução, da segurança das linhas aéreas e dos aeroportos, dos transplantes de tecidos fetais, dos custos da saúde, dos aditivos alimentares, dos remédios para melhorar a mania, a depressão ou a esquizofrenia, dos direitos dos animais, da supercondutividade, das pílulas anticoncepcionais tomadas após a relação sexual, das alegadas predisposições antissociais hereditárias, das estações espaciais, da ida a Marte, da procura de curas para a AIDS e o câncer ( SAGAN, 2006SAGAN, C. O mundo assombrado pelos demônios: a ciência vista como uma vela no escuro. 3. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. , p. 22).

Todos os exemplos elencados por Sagan no excerto anterior trazem aspectos matemáticos intrínsecos (como a elaboração de modelos matemáticos, pesquisas estatísticas etc.), e o entendimento deles relaciona-se com um apoderar-se criticamente da Matemática para fazer uma leitura de mundo, o que deve contemplar questões de urgência social, com base em princípios éticos e democráticos. Portanto, a possibilidade que textos literários propiciam de almagamar a Matemática Pura com outros elementos do fazer humano, quando utilizados em sala de aula, permite que a disciplina de Matemática também se constitua como um espaço aberto ao trânsito desses outros elementos. Reciprocamente o emprego, em outras disciplinas, de literaturas que tenham componentes matemáticos significativos, faz dessas literaturas portais por onde a Matemática pode se inserir. Tudo isso, a nosso ver, é afim com o anseio de um ensino dimensionalmente global dos alunos, preconizado nos referenciais sobre interdisciplinaridade.

5 Desembarque: considerações finais

De Planolândia , percebemos que o subtítulo da obra – um romance de muitas dimensões – não alude apenas às dimensões geométricas ou às infinitas dimensões possíveis para um espaço euclidiano genérico, mas vai além: as muitas dimensões preconizadas por Abbott sugerem os múltiplos graus de leitura que podem ser depreendidos da narrativa. Às muitas dimensões matemáticas estão envolvidas tantas outras dimensões de caracteres educacionais, históricas, sociais, culturais e éticas, em maior ou menor grau, o que aponta para – e também sugere e permite – se pensar em aproximações interdisciplinares.

Com os exemplos elencados ao longo das viagens – que certamente não são os únicos, dada a riqueza da obra tratada –, ensejamos contribuir para a identificação e o entendimento de como a Matemática, por vezes, aparece na literatura impregnada de outros saberes e conteúdos escolares: Planolândia é apenas uma narrativa, dentre tantas, que pode ajudar a diminuir a compartimentalização usual do cotidiano escolar, vindo a contribuir para a construção de olhares críticos sobre a escolaridade e a sociedade.

Além dos benefícios pedagógicos, há, também, um viés de educação cidadã em abordagens interdisciplinares que utilizam obras literárias, pois “[...] assim como o mundo se articula hoje, sobre uma extraordinária presença da escrita, e um fluxo de dimensão incalculável, assim também ele pede, conclama, exige um leitor de olhar plural e interesses os mais variados: um ser formado em leitura” ( MARIA, 2009MARIA. L. O clube do livro: ser leitor, que diferença faz? São Paulo: Globo, 2009. , p. 106-107).

Nesse sentido, Maria (2009)MARIA. L. O clube do livro: ser leitor, que diferença faz? São Paulo: Globo, 2009. e Neves et al. (2011) sugerem que todas as disciplinas façam uso de textos literários, quando possível, para abordar alguns conteúdos, contribuindo para a formação leitora do aluno, entendida aqui não somente como aquele que lê publicações de determinada área do conhecimento, mas que também consegue percebê-la em outras e em diversos tipos de textos literários. Acreditamos que os professores de Matemática do ensino básico, ao desejarem dar destaque ao desenvolvimento da criticidade e da postura cidadã de seus alunos, podem encontrar na literatura – com Planolândia constituindo-se como um exemplo interessante – alternativas criativas para problematizar temas importantes que perpassam aspectos concretos da vida, superando as lacunas que, muitas vezes, são deixadas pelas seções específicas dos livros didáticos.

Em Planolândia , durante nossas viagens – aqui feitas por vários mundos geométricos e outros ainda apenas imagináveis – percebemos que a Matemática, além de estar a serviço da narrativa abbottiana, possibilita exercícios reflexivos sobre as relações sociais e de poder. O combate às questões de preconceito, opressão e manipulação de dados e informações, tão presentes em tempos de mídias sociais e fake news , passa pelo uso que se faz das ciências e de suas linguagens – o que inclui a Matemática – e o professor não deveria se furtar de investir em abordagens pedagógicas que auxiliem os alunos a desenvolver uma leitura mais ampla e crítica do mundo que os cerca. O livro de Abbott, ao tomar lugar na sala de aula, pode configurar-se como metáfora para o processo de desvelamento dessas questões e, ainda, pode despertar reflexões no campo do pensamento complexo e da autoética, pois a literatura é a forma de arte que mais se presta a isso ( MORIN, 2003MORIN, E. A cabeça bem-feita: repensar a reforma, reformar o pensamento. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003. ).

Tendo essa obra como objeto de estudo, o possível exercício de interdisciplinaridade é evidente e interessante: a Matemática não é mais importante do que as outras disciplinas, mas serve a elas e/ou serve-se delas para dar conta do mundo à nossa volta, para gerar novos conhecimentos e para estabelecer conexões mais reais entre o homem e os saberes e o homem e a sociedade ( D’AMBROSIO, 2016D’AMBROSIO, U. Educação para uma sociedade em transição. São Paulo: Livraria da Física, 2016. ; MORIN, 2011MORIN, E. Os setes saberes necessários à educação do futuro. São Paulo: Cortez, 2011. ).

Referências

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  • TOMAZ, V. S.; DAVID, M. M. M. S. Interdisciplinaridade e aprendizagem da matemática em sala de aula. Belo Horizonte: Autêntica, 2008.
  • ZDRADEK, A. C. S. Juventudes líquido-modernas: uma análise a partir dos estudos culturais em educação. Curitiba: Appris, 2019.
  • 1
    A pesquisa que produziu o presente trabalho foi realizada com o apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio Grande do Sul (FAPERGS).
  • 2
    Bauman (1994)BAUMAN, Z. Sobre educação e juventude. Rio de Janeiro: Zahar, 1994. e Bauman e Leoncini (2018)BAUMAN, Z.; LEONCINI, T. Nascidos em tempos líquidos: transformações no terceiro milênio. Rio de Janeiro: Zahar, 2018. dizem que os jovens têm sido tratados como a lata de lixo da indústria do consumo à medida que são constantemente incentivados a se desfazerem dos objetos que já possuem, mesmo quando esses ainda funcionam, para comprarem um substituto novo e mais moderno.
  • 3
    O autor refere-se à leitura num caráter amplo. Dentre os diferentes tipos de textos que podem ser lidos e que auxiliam o aluno a desenvolver sua leitura de mundo, a literatura é, aqui, tratada com mais destaque.
  • 4
    Dizemos retomado porque entendemos a BNCC como um documento em sua temporalidade histórica. Como tal, ele propõe algumas modificações, tanto no conteúdo a ser ensinado quanto na forma de ensiná-lo, ao mesmo tempo que mantém algumas ideias discutidas anteriormente pelos PCN e pelos Temas Transversais (BRASIL, 1998b).
  • 5
    Algumas sugestões de atividades de geometria para o ensino fundamental baseadas em Planolândia – um romance de muitas dimensões podem ser encontradas em Brito (2015)BRITO, R. B. Um elo possível entre matemática e literatura: alguns conteúdos de geometria do ensino fundamental presentes no livro Planolândia. 2015. Trabalho de Conclusão de Curso (Licenciatura em Matemática) – Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Caicó, 2015. .
  • 6
    Para melhor entendimento, doravante a grafia Planolândia – em itálico – será empregada em referência ao romance de Abbott, enquanto que a grafia sem destaque, Planolândia, será usada para apontar o mundo que a obra retrata.
  • 7
    No título original, Flatland – a romance of many dimensions . Abbott, seu autor, foi um clérigo e professor inglês que se notabilizou pela organização de novos métodos de instrução e por inserir muitas inovações no currículo escolar do que seria o Ensino Médio na Inglaterra de sua época. Dentre suas várias obras, a mais conhecida é Planolândia , livro que possui dezenas de edições no Reino Unido e que já foi traduzido para, ao menos, nove idiomas ( O’CONNOR; ROBERTSON, 2005O’CONNOR, J. J.; ROBERTSON, E. F. Edwin Abbott Abbott. 2005. Disponível em: http://www.history.mcs.standrews.ac.uk/Biographies/Abbott.html. Acesso em: 10 nov. 2018.
    http://www.history.mcs.standrews.ac.uk/B...
    ).
  • 8
    Trata-se da Inglaterra vitoriana, período entre 1837 e 1901, de grandes mudanças intelectuais, sociais e culturais (CHASTENET, s/d).
  • 9
    Importante frisar que Abbott não compactuava com a discriminação feminina própria de sua época, tanto que ele utiliza seu livro Planolândia como arauto de sua crítica ao satirizar, mordazmente, sua sociedade ( STEWART, 2002STEWART, I. Preface. In: ABBOTT, E. The annotated Flatland: A Romance of Many Dimensions. New York: Basic Books, 2002. p. ix-xii. ).
  • 10
    A ideia de ferrão enquanto arma mortal está associada à forma física das mulheres, uma vez que, sendo linhas retas, elas “são consideradas de difícil visualização em Planolândia, pois se estivermos olhando para elas a prumo, identificaremos apenas um ponto [...]. As linhas femininas são tão esguias e afiadas que podem, ao colidirem de ponta, perfurar e atravessar as demais figuras geométricas, acarretando suas mortes” ( MINKS; MONTOITO, 2018MINKS, R.; MONTOITO, R. Projeções sociais e educacionais no universo geométrico do livro Planolândia, de Edwin Abbott: elos entre Literatura e Matemática. In: Encontro Gaúcho de Educação Matemática, 13., 2018, Santa Maria. Anais[...] Santa Maria: UFSM, 2018. v. 4, n. 1, p. 711-719. , p. 716); por esse motivo se entende, também, que as mulheres são entes perigosos, capazes de ameaçar os homens.
  • 11
    O autor refere-se à Revolução Industrial.
  • 12
    Em 2015, a Organização das Nações Unidas (ONU) estabeleceu dezessete objetivos para o Desenvolvimento Sustentável, a serem alcançados pelos países até 2030; a igualdade entre mulheres e homens é o de número 5 dessa lista: Igualdade de gênero – Alcançar a igualdade de gênero e empoderar todas as mulheres e meninas ( ONU, 2015ONU. Objetivo de desenvolvimento sustentável 5: igualdade de gênero. Nações Unidas, 2015. Disponível em: https://brasil.un.org/pt-br/sdgs/5. Acesso em: 17 abr. 2021.
    https://brasil.un.org/pt-br/sdgs/5...
    ).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Maio 2022
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2022

Histórico

  • Recebido
    13 Jul 2021
  • Aceito
    22 Nov 2021
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