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O Uso de Vídeos na Formação Inicial e o Desenvolvimento do Conhecimento do Conteúdo e do Ensino para Ensinar Estatística

The Use of Videos in Pre-service Teacher Education and the Development of Content Knowledge and Teaching to Teach Statistics

Resumo

Este artigo decorre de um estudo sobre uma experiência de formação, envolvendo o uso de vídeos sobre o desenvolvimento de investigações estatísticas em contexto real, realizada no âmbito da lecionação de uma Unidade Curricular de Estatística de um curso de formação inicial de educadoras e professoras do 1.º ciclo do ensino básico. Este estudo procura analisar o contributo do uso destes vídeos para o desenvolvimento do conhecimento do conteúdo e do ensino das futuras docentes para ensinar estatística. A metodologia é interpretativa e os dados foram recolhidos através de relatórios reflexivos, produzidos pelas futuras docentes após o visionamento dos vídeos. A análise dos dados permite concluir que a exploração destes vídeos nas sessões de formação contribuiu para o desenvolvimento do conhecimento do conteúdo e do ensino das futuras docentes relacionado com diferentes tipos de pensamento estatístico ( necessidade dos dados, transnumeração, raciocínio com modelos e integração da estatística e o contexto) e com o ciclo investigativo e o ciclo interrogativo .

Conhecimento do conteúdo e do ensino; Ensino da estatística; Vídeos na formação inicial de docentes

Abstract

This article results from a study about a training experience that involves the use of videos about the development of statistical investigations in a real context and that was carried out in a Statistics Course for pre-service kindergarten and elementary school teachers. This study aims to analyze the contribution of using these videos to develop content knowledge and teaching of pre-service teachers to teach statistics. The methodology is interpretative, and the data were collected through reflective reports produced by the pre-service teachers after watching the videos. Data analysis allowed us to conclude that the exploration of these videos in the training sessions contributed to develop content knowledge and teaching of the pre-service teachers related with different types of statistical thinking (need for data, transnumeration, reasoning with models, and integration of statistical and contextual) and with the investigative cycle and interrogative cycle.

Content knowledge and teaching; Statistical teaching; Videos in pre-service teacher training

1 Introdução

O valor da estatística, enquanto área de conhecimento fundamental para uma cidadania ativa e participada, é amplamente reconhecido e tem constituído um argumento importante para a sua crescente presença nos currículos de matemática (FRANKLIN et al ., 2005). Atualmente, em Portugal, constitui uma das componentes na abordagem à Matemática nas Orientações Curriculares para a Educação Pré-escolar (OCEPE) (SILVA et al ., 2016) e um dos domínios de conteúdo do Programa e Metas curriculares de Matemática para o Ensino Básico (BIVAR et al. , 2013), sob a designação de Organização e Tratamento de Dados (OTD).

Nas OCEPE (SILVA et al ., 2016, p. 78) realça-se a importância de incentivar as crianças a “recolher informação pertinente para dar resposta a questões colocadas” e a “utilizar gráficos e tabelas simples para organizar a informação recolhida e interpretá-los de modo a dar resposta às questões colocadas”. Mais recentemente, as Orientações de Gestão Curricular para o Programa e Metas Curriculares de Matemática do Ensino Básico ( ME-DGE, 2018MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO - DIREÇÃO GERAL DA EDUCAÇÃO (ME-DGE). Orientações de gestão curricular para o Programa e Metas Curriculares de Matemática Ensino Básico: dos 1.º ao 9.º anos de Escolaridade. Lisboa: ME-DGE, 2018. , p. 29) sublinham que é “importante que os alunos trabalhem dados que eles próprios recolham e, assim, se consigam identificar com estes e com o contexto”.

Estas indicações incluem ideias fundamentais que estão subjacentes à realização de investigações estatísticas e que têm sido amplamente defendidas/sugeridas por diversos educadores matemáticos como forma de desenvolver o pensamento estatístico dos alunos ( BATANERO; DÍAZ, 2010BATANERO, C.; DÍAZ, C. Training teachers to teach statistics: what can we learn from research? Statistique et enseignement, Paris, v. 1, n. 1, p. 5 - 20, apr. 2010. ; FRANKLIN et al ., 2005; PFANNKUCH; BEN-ZVI, 2011PFANNKUCH, M.; BEN-ZVI, D. Developing teachers’ statistical thinking. In: BATANERO, C.; BURRILL, G.; READING, C. (ed.). Teaching statistics in school mathematics – Challenges for teaching and teacher education: A joint ICMI/IASE study. Dordrecht: Springer, 2011. p. 323 - 333. ). Trata-se de envolver os alunos num processo investigativo, que inclui formular questões, planear a recolha de dados adequados para dar resposta a essas questões, recolher os dados, analisá-los e interpretar os resultados ( WILD; PFANNKUCH, 1999WILD, C. J.; PFANNKUCH, M. Statistical Thinking in Empirical Enquiry. International Statistical Review, The Hague, v. 67, p. 223 - 265, 1999. ).

Paralelamente à discussão sobre a importância das investigações estatísticas no desenvolvimento do pensamento estatístico, procuram-se razões pelas quais ainda são poucos os docentes que recorrem a este processo para ensinar estatística. Avança-se com a justificação de que a formação inicial de grande parte dos docentes não ter contemplado situações do seu envolvimento no processo de investigação estatística e, em alguns casos, nomeadamente na formação de professores dos primeiros anos de escolaridade, de não os ter dotado de conhecimentos adequados de estatística ( BATANERO; DÍAZ, 2010BATANERO, C.; DÍAZ, C. Training teachers to teach statistics: what can we learn from research? Statistique et enseignement, Paris, v. 1, n. 1, p. 5 - 20, apr. 2010. ).

Mesmo os manuais escolares, que habitualmente constituem um instrumento importante de apoio às práticas do professor, não constituem, neste caso, um bom suporte para práticas de sala de aula ( BATANERO; DÍAZ, 2010BATANERO, C.; DÍAZ, C. Training teachers to teach statistics: what can we learn from research? Statistique et enseignement, Paris, v. 1, n. 1, p. 5 - 20, apr. 2010. ). Na sua maioria, apresentam-se como materiais estruturados segundo os conteúdos estatísticos, que surgem sequencialmente e numa lógica de aplicação de procedimentos, em que é difícil compreender como é que os conceitos se relacionam entre si ( PFANNKUCH; BEN-ZVI, 2011PFANNKUCH, M.; BEN-ZVI, D. Developing teachers’ statistical thinking. In: BATANERO, C.; BURRILL, G.; READING, C. (ed.). Teaching statistics in school mathematics – Challenges for teaching and teacher education: A joint ICMI/IASE study. Dordrecht: Springer, 2011. p. 323 - 333. ). Em algumas situações, os docentes não reconhecem a importância de envolver os alunos em investigações estatísticas por desconhecerem as potencialidades deste processo na aprendizagem da estatística ( RODRIGUES; PONTE, 2020RODRIGUES, B. M. B.; PONTE, J. P. Desenvolvimento do conhecimento didático de professores em Estatística: uma experiência formativa. Zetetiké, Campinas, v. 28, p. 1 - 20, jan. 2020. ).

Apesar de alguns estudos realizados sobre o desenvolvimento do conhecimento profissional do professor, focados nas investigações estatísticas, salientarem a necessidade de os professores aprofundarem o seu conhecimento do conteúdo associado à estatística, Ponte e Noll (2017)PONTE, J. P.; NOLL, J. Building capacity in statistics teacher education. In: BEN-ZVI, D.; MAKAR, K.; GARFIELD J. (ed.). International Handbook of Research in Statistics Education. Cham: Springer International Publishing, 2017. p. 433 - 455. advertem que tal não garante, só por si, a realização de investigações estatísticas na sala de aula de uma forma robusta. O principal desafio é a transformação do conhecimento sobre os tópicos da estatística no conhecimento pedagógico do conteúdo, que permita aos professores propor a realização de investigações e promover oportunidades para desenvolver o raciocínio inferencial dos alunos ( LEAVY, 2010LEAVY, A. The challenge of preparing preservice teachers to teach informal inferential reasoning1. Statistics Education Research Journal, The Hague, v. 9, n. 1, p. 46 - 67, may. 2010. ).

Torna-se, assim, importante compreender como é que a formação inicial poderá contribuir para um maior conhecimento da realização de investigações estatísticas, envolvendo os futuros docentes na análise de aspetos do trabalho das crianças e das decisões dos docentes durante esse processo. Este artigo tem como foco o uso de vídeos sobre investigações estatísticas na formação inicial, procurando analisar o seu contributo para o desenvolvimento do conhecimento do conteúdo e do ensino das futuras docentes para ensinar estatística. Essa dimensão do conhecimento engloba a capacidade de pensar numa sequência apropriada dos conteúdos a ensinar, de reconhecer as vantagens e desvantagens de recorrer a determinadas representações e de encontrar respostas adequadas para lidar com situações inesperadas ( BURGESS, 2009BURGESS, T. A. Teacher knowledge and statistics: What types of knowledge are used in the primary classroom? The Montana Mathematics Enthusiast, Missoula, v. 6, n. 1-2, p. 3 - 24, jan. 2009. ).

2 Conhecimento do professor para ensinar estatística

Vários são os autores que se têm debruçado sobre o conhecimento do professor para ensinar matemática, identificando diferentes dimensões desse conhecimento (HILL; SCHILLING; BALL, 2004; SHULMAN, 1986SHULMAN, L. Those who understand: the knowledge growth in teaching. Educational Researcher, Washington, v. 15, n. 2, p. 4 -14, feb. 1986. ). Burgess (2009)BURGESS, T. A. Teacher knowledge and statistics: What types of knowledge are used in the primary classroom? The Montana Mathematics Enthusiast, Missoula, v. 6, n. 1-2, p. 3 - 24, jan. 2009. apoia-se na estrutura apresentada por Hill, Shilling e Ball (2004), de análise do conhecimento do professor para ensinar matemática, para construir um modelo de análise específico do conhecimento do professor para ensinar estatística. Nesse modelo, como na estrutura que o origina, o conhecimento do professor é dividido em duas dimensões principais: o Conhecimento do Conteúdo e o Conhecimento Pedagógico do Conteúdo.

A primeira é subdividida em Conhecimento Comum do Conteúdo (CCC) e em Conhecimento Especializado do Conteúdo (CEC) e, a segunda, em Conhecimento do Conteúdo e dos Alunos (CCA) e em Conhecimento do Conteúdo e do Ensino (CCE). Este último, que assume no qual se foca este artigo, relaciona-se com a capacidade de o professor de sequenciar os conteúdos que pretende ensinar, de reconhecer quer as vantagens quer as desvantagens de recorrer a determinadas representações e de ser capaz de usar estratégias adequadas para lidar com as respostas/questões dos alunos ( BURGESS, 2009BURGESS, T. A. Teacher knowledge and statistics: What types of knowledge are used in the primary classroom? The Montana Mathematics Enthusiast, Missoula, v. 6, n. 1-2, p. 3 - 24, jan. 2009. ).

Contudo, para Burgess (2009)BURGESS, T. A. Teacher knowledge and statistics: What types of knowledge are used in the primary classroom? The Montana Mathematics Enthusiast, Missoula, v. 6, n. 1-2, p. 3 - 24, jan. 2009. , só por si, as quatro dimensões acima apresentadas mostram-se insuficientes para analisar o conhecimento do professor para ensinar estatística dada a natureza dessa área do conhecimento, mais subjetiva e incerta, comparando-a com a matemática. Salienta, também, que o conhecimento do professor é organizado de forma particular tendo em conta o conteúdo de ensino, pelo que, para analisar o conhecimento do professor para ensinar estatística, é necessário ter em conta as especificidades do ensino e da aprendizagem da estatística.

Esse autor propõe um quadro conceptual de análise do conhecimento estatístico do professor para ensinar ( Quadro 1 ), no qual entrecruza as dimensões do conhecimento do professor para ensinar matemática do modelo de Hill, Shilling e Ball (2004) com as componentes do modelo proposto por Wild e Pfannkuch (1999)WILD, C. J.; PFANNKUCH, M. Statistical Thinking in Empirical Enquiry. International Statistical Review, The Hague, v. 67, p. 223 - 265, 1999. para analisar o pensamento estatístico no contexto de uma investigação estatística. Dado que este artigo se foca na análise do conhecimento do conteúdo e do ensino (CCE) para ensinar estatística de futuros docentes, explicita-se, em seguida, o modo como Burgess (2009)BURGESS, T. A. Teacher knowledge and statistics: What types of knowledge are used in the primary classroom? The Montana Mathematics Enthusiast, Missoula, v. 6, n. 1-2, p. 3 - 24, jan. 2009. entrecruza essa dimensão do conhecimento com as diferentes componentes, associadas especificamente à estatística, apresentadas por Wild e Pfannkuch (1999)WILD, C. J.; PFANNKUCH, M. Statistical Thinking in Empirical Enquiry. International Statistical Review, The Hague, v. 67, p. 223 - 265, 1999. .

Quadro 1
– Quadro conceptual de análise do conhecimento estatístico do professor para ensinar

O modelo de Wild e Pfannkuch (1999)WILD, C. J.; PFANNKUCH, M. Statistical Thinking in Empirical Enquiry. International Statistical Review, The Hague, v. 67, p. 223 - 265, 1999. envolve quatro componentes (tipos de pensamento, ciclo investigativo, ciclo interrogativo e disposições), que se interligam, não devendo, portanto, ser alvo de uma leitura hierárquica e linear. A primeira componente inclui cinco tipos fundamentais de pensamento estatístico: necessidade de dados, transnumeração, variação, raciocínio com modelos e Integração da estatística e o contexto . Apresenta-se, em seguida, a que se refere cada uma dessas componentes e como se caracteriza o CCE do professor associado a cada uma delas.

A necessidade de dados corresponde à compreensão sobre a importância dos dados no desenvolvimento do raciocínio estatístico. Trata-se de, no âmbito de uma investigação estatística e, perante uma questão (ou problema), reconhecer a necessidade de recolher dados e de compreender que dados deverão ser recolhidos para dar resposta a essa questão ou problema. Envolve, assim, o reconhecimento que é inadequado procurar respostas nas experiências pessoais ou em evidências insignificantes ( WILD; PFANNKUCH, 1999WILD, C. J.; PFANNKUCH, M. Statistical Thinking in Empirical Enquiry. International Statistical Review, The Hague, v. 67, p. 223 - 265, 1999. ).

O CCE: necessidade dos dados não é descrito por Burgess (2009)BURGESS, T. A. Teacher knowledge and statistics: What types of knowledge are used in the primary classroom? The Montana Mathematics Enthusiast, Missoula, v. 6, n. 1-2, p. 3 - 24, jan. 2009. , dado que o seu quadro conceptual é desenvolvido tendo por base uma investigação estatística que emerge de um conjunto prévio de dados. Ainda assim, pela descrição desse tipo de pensamento acima apresentada por Wild e Pfannkuch (1999)WILD, C. J.; PFANNKUCH, M. Statistical Thinking in Empirical Enquiry. International Statistical Review, The Hague, v. 67, p. 223 - 265, 1999. , o CCE: necessidade dos dados relaciona-se com a capacidade de o docente levar as crianças a reconhecer a inevitabilidade de recolher dados para responder às questões de natureza estatística, incentivá-las a fazê-lo e apoiá-las na planificação dessa fase de uma investigação estatística, caso ela ocorra.

A transnumeração refere-se à capacidade de lidar com os dados de forma adequada, no sentido de representar, de modo apropriado, as situações reais e de recorrer à mudança de representações que permitam dar mais significado aos dados. Inclui, por exemplo, construir tabelas e gráficos e/ou usar medidas estatísticas que captem elementos importantes do conjunto de dados, tornando-os mais compreensíveis ( WILD; PFANNKUCH, 1999WILD, C. J.; PFANNKUCH, M. Statistical Thinking in Empirical Enquiry. International Statistical Review, The Hague, v. 67, p. 223 - 265, 1999. ). O CCE: transnumeração relaciona-se com a capacidade de o docente identificar quais as representações que poderão ajudar ou dificultar o desenvolvimento das competências de transnumeração das crianças, apoiando-as nas decisões, adequadas do ponto de vista da estatística, da escolha de representações e do seu uso ( BURGESS, 2009BURGESS, T. A. Teacher knowledge and statistics: What types of knowledge are used in the primary classroom? The Montana Mathematics Enthusiast, Missoula, v. 6, n. 1-2, p. 3 - 24, jan. 2009. ).

A variação corresponde a ter em conta a variação dos dados, apesar dos padrões e tendência de comportamento que possam ser identificados num conjunto de dados. Passa, por exemplo, por compreender que, as asserções com base num conjunto de dados devem ser entendidas e expressas como prováveis e não como certezas. Wild e Pfannkuch (1999)WILD, C. J.; PFANNKUCH, M. Statistical Thinking in Empirical Enquiry. International Statistical Review, The Hague, v. 67, p. 223 - 265, 1999. advertem que mesmo quando se recolhem dados de toda a população é necessário ter em conta que estes dados não serão exatamente os mesmos se recolhidos noutro momento. O CCE: variação refere-se à capacidade de o docente colocar questões adequadas às crianças que as levem a identificar a presença de variação dos dados e a refletir se as generalizações que produzem acerca dos dados são apropriadas ( BURGESS, 2009BURGESS, T. A. Teacher knowledge and statistics: What types of knowledge are used in the primary classroom? The Montana Mathematics Enthusiast, Missoula, v. 6, n. 1-2, p. 3 - 24, jan. 2009. ).

O raciocínio com modelos corresponde a, a partir de modelos simples (como tabelas e gráficos) ou mais complexos, encontrar padrões para raciocinar mais aprofundadamente sobre o problema em estudo. O CCE: raciocinar com modelos prende-se com o modo como o docente estrutura o trabalho com as crianças de modo a incentivá-las a recorrer a modelos (tabelas, gráficos etc.) para analisar e/ou comparar conjuntos de dados ( BURGESS, 2009BURGESS, T. A. Teacher knowledge and statistics: What types of knowledge are used in the primary classroom? The Montana Mathematics Enthusiast, Missoula, v. 6, n. 1-2, p. 3 - 24, jan. 2009. ).

Por fim, a integração da estatística e o contexto estão relacionados com a capacidade de ligação do conhecimento da situação real que está a ser investigada e o conhecimento estatístico relacionado com os dados recolhidos associados a essa situação. A articulação entre esses dois aspetos contribui para uma compreensão profunda dos dados e para lhes atribuir mais significado, o que é indiciador de um maior nível de pensamento estatístico ( WILD; PFANNKUCH, 1999WILD, C. J.; PFANNKUCH, M. Statistical Thinking in Empirical Enquiry. International Statistical Review, The Hague, v. 67, p. 223 - 265, 1999. ). O CCE: integração da estatística e o contexto prende-se com a capacidade de o docente perceber como é que os alunos compreendem determinados aspetos do contexto e de que modo essas perceções podem influenciar/afetar as interpretações que fazem dos dados ( BURGESS, 2009BURGESS, T. A. Teacher knowledge and statistics: What types of knowledge are used in the primary classroom? The Montana Mathematics Enthusiast, Missoula, v. 6, n. 1-2, p. 3 - 24, jan. 2009. ).

As restantes três dimensões do modelo proposto por Wild e PfannKuch (1999)WILD, C. J.; PFANNKUCH, M. Statistical Thinking in Empirical Enquiry. International Statistical Review, The Hague, v. 67, p. 223 - 265, 1999. envolvem tipos de pensamento mais gerais (não especificamente de estatística), inerentes à resolução de problemas: ciclo investigativo, ciclo interrogativo e disposições . O ciclo investigativo (problema, plano, dados, análise e conclusões) “diz respeito à maneira como se age e o que se pensa durante o decurso de uma investigação estatística” ( WILD; PFANNKUCH, 1999WILD, C. J.; PFANNKUCH, M. Statistical Thinking in Empirical Enquiry. International Statistical Review, The Hague, v. 67, p. 223 - 265, 1999. , p. 225). Mais concretamente, engloba compreender e colocar em prática as cinco fases que estruturam a realização de uma investigação. Incentivar as crianças a desenvolver cada fase da investigação e antecipar e lidar com eventuais problemas na concretização dessas fases, relaciona-se com o CCE: ciclo investigativo ( BURGESS, 2009BURGESS, T. A. Teacher knowledge and statistics: What types of knowledge are used in the primary classroom? The Montana Mathematics Enthusiast, Missoula, v. 6, n. 1-2, p. 3 - 24, jan. 2009. ).

O ciclo interrogativo “é um processo de pensamento genérico em uso constante na resolução de problemas de estatística” ( WILD; PFANNKUCH, 1999WILD, C. J.; PFANNKUCH, M. Statistical Thinking in Empirical Enquiry. International Statistical Review, The Hague, v. 67, p. 223 - 265, 1999. , p. 231). O CCE: ciclo interrogativo relaciona-se com a capacidade de o docente gerar e gerir discussões com as crianças que as levem a interrogar-se acerca da adequação de aspetos associados às diferentes fases de uma investigação estatística (como por exemplo, pensar em possibilidades de causas e explicações suscitadas pelo contexto ou pelos dados, procurar informação adequada que permita dar resposta a determinada questão de investigação, interpretar e criticar os resultados obtidos, tomar decisões finais sobre o que se aceita, rejeita, ignora e o que se precisa de saber mais etc.) ( BURGESS, 2009BURGESS, T. A. Teacher knowledge and statistics: What types of knowledge are used in the primary classroom? The Montana Mathematics Enthusiast, Missoula, v. 6, n. 1-2, p. 3 - 24, jan. 2009. ).

Finalmente, a componente Disposições refere-se a atitudes/predisposições que inibem ou impulsionam as outras dimensões do pensamento estatístico (como por exemplo, ceticismo, imaginação, curiosidade, abertura, perseverança etc.) ( WILD; PFANNKUCH, 1999WILD, C. J.; PFANNKUCH, M. Statistical Thinking in Empirical Enquiry. International Statistical Review, The Hague, v. 67, p. 223 - 265, 1999. ). Essa componente não emerge associada a nenhuma das dimensões individuais do conhecimento do professor, correspondendo à sua predisposição para pensar sobre os dados e de levar os alunos a fazê-lo ( BURGESS, 2009BURGESS, T. A. Teacher knowledge and statistics: What types of knowledge are used in the primary classroom? The Montana Mathematics Enthusiast, Missoula, v. 6, n. 1-2, p. 3 - 24, jan. 2009. ).

3 O uso de vídeos na formação inicial

O aparente abismo que, frequentemente, se observa entre a formação inicial e o ensino nas escolas, que se traduz numa separação entre teoria e prática, conduziu à valorização do que acontece na sala de aula real , sendo o recurso a casos apresentado como uma via para atenuar essa separação (BENCZE; HEWITT; PEDRETTI, 2001). Um caso é um documento de investigação, descritivo, de uma situação real da vida ou evento ( MERSETH, 1996MERSETH, K. Cases and Case Methods in Teacher Education. In: SIKULA, J. (ed.). Handbook of Research on Teacher Education. New York: MacMillan Publishing Company, 1996. p. 722 - 744. ), sendo o seu principal potencial fornecer dados e informação para discussão ( OZKAN, 2002OZKAN, B. The Use of Video Cases in Teacher Education. The Turkish Online Journal of Educational Technology – TOJET, Sakarya, v. 1, n. 1, p. 37 – 40, out. 2002. ).

No contexto da formação de docentes, os casos, para além de fornecerem importantes informações sobre a prática e de estimular a discussão, “promovem o pensamento reflexivo sobre diferentes quadros conceptuais, paradigmas e métodos de ensino e de aprendizagem” ( OZKAN, 2002OZKAN, B. The Use of Video Cases in Teacher Education. The Turkish Online Journal of Educational Technology – TOJET, Sakarya, v. 1, n. 1, p. 37 – 40, out. 2002. , p. 37). Em particular, no que se refere à formação inicial de professores, ajudam a desenvolver a capacidade de resolver futuros problemas da prática, a tomar decisões, e aumentam o conhecimento acerca de diferentes contextos ( MERSETH, 1996MERSETH, K. Cases and Case Methods in Teacher Education. In: SIKULA, J. (ed.). Handbook of Research on Teacher Education. New York: MacMillan Publishing Company, 1996. p. 722 - 744. ).

Destacam-se os casos em registro vídeo, comparativamente aos de registro escrito, por permitirem aos futuros docentes ver a complexidade e a riqueza do contexto real da aula, “capturando as vozes, a linguagem corporal, interações e uma imagem mais real do ambiente de aprendizagem” (KOC; PEKER; OSMANOGLU, 2009, p. 1159). Efetivamente, os vídeos têm sido recursos cada vez mais utilizados na formação inicial de professores ( SANTAGATA; GUARINO, 2011SANTAGATA, R.; GUARINO, J. Using video to teach future teachers to learn from teaching. ZDM Mathematics Education, Berlin, v. 43, n. 1, p. 133 - 145, 2011. ), por favorecerem a reflexão sobre a prática tendo em conta o contexto educativo, e por permitirem focar essa reflexão em aspetos específicos dessa prática, analisando-os sob diversas perspetivas ( LIN, 2005LIN, P. J. Using research-based video-cases to help pre-service primary teachers conceptualize a contemporary view of mathematics teaching. International Journal of Science and Mathematics Education, Taiwan, v. 3, p. 351-377, sep. 2005. ). Para além do foco em determinados aspetos dessas práticas, o uso de vídeos neste contexto de formação pode ajudar os futuros docentes a conhecer e apreciar alternativas aos métodos tradicionais de ensino e de aprendizagem que, provavelmente, vivenciaram durante o seu percurso escolar ( KELLOGG; KERSAINT, 2004KELLOGG, M.; KERSAINT, G. Creating a vision for the Standards using online videos in an elementary mathematics methods course. Contemporary Issues in Technology and Teacher Education, Waynesville, v. 4, n. 1, p. 23 - 34, 2004. ).

Santagata e Guarino (2011)SANTAGATA, R.; GUARINO, J. Using video to teach future teachers to learn from teaching. ZDM Mathematics Education, Berlin, v. 43, n. 1, p. 133 - 145, 2011. desenvolveram um estudo sobre o uso de vídeos na promoção do conhecimento e competências de futuros docentes para analisar e refletir sobre o ensino da matemática. Estes autores salientam que a exploração dos vídeos melhorou a capacidade dos futuros professores de analisar a aprendizagem dos alunos e as ações do professor que contribuem para essa aprendizagem. Para além de observarem o impacto das decisões do professor na aprendizagem dos alunos, esses autores salientam, também, a espontaneidade com que os futuros professores fazem propostas alternativas ao que observam nos vídeos, constituindo uma forma de construção e desenvolvimento do conhecimento sobre o ensino.

Também Oliveira, Canavarro e Menezes (2014) discutem as potencialidades de casos multimédia (nos quais o vídeo tem um papel central) no âmbito de experiências de formação de docentes. Essas experiências foram desenvolvidas no projeto Práticas Profissionais dos Professores de Matemática (P3M) e focadas no ensino exploratório. Esses autores salientam que o uso desses recursos contribuiu para o desenvolvimento de uma perspetiva realista sobre essa abordagem de ensino, possibilitando, aos futuros docentes, anteciparem possíveis desafios com que se podem confrontar na prática e compreenderem o impacto das ações do professor na aprendizagem dos alunos.

Oliveira, Canavarro e Menezes (2014) sugerem como metodologias de formação, que devem ser articuladas com a exploração desse tipo de recursos, o trabalho em pequenos grupos na produção de um documento escrito, resultante da observação e análise dos casos, e orientado por um conjunto de questões. Ao ser em grupo, permite o confronto da análise das situações observadas, contribuindo para o enriquecimento das suas perspetivas de ensino. Assim, observam que “A análise que é realizada pelos formandos, suscitada por questões que são colocadas ao longo do caso, é passada à escrita, a qual é encarada, neste contexto, como um importante processo de construção de conhecimento” (OLIVEIRA; CANAVARRO; MENEZES, 2014, p. 455).

4 Metodologia

A investigação que deu origem a este artigo segue uma metodologia interpretativa ( ERICKSON, 1986ERICKSON, F. Qualitative methods in research on teaching. In: WITTROCKK, M. (ed.). Handbook of research on teaching. New York: MacMillan, 1986. p. 119 - 161. ). Tem subjacente uma experiência de formação associada à Unidade Curricular (UC) Estatística e Probabilidades do 3.º ano do curso da Licenciatura em Educação Básica de uma Escola Superior de Educação de Portugal. Os participantes são futuras educadoras de infância e professoras do 1.º ciclo, de uma turma constituída por 24 estudantes (designadas, neste artigo, por futuras docentes ), que frequentaram essa UC entre fevereiro e junho de 2019.

Essa UC é da responsabilidade da autora deste artigo e visa, entre outros aspetos, a compreensão de conceitos estatísticos e o desenvolvimento de competências de recolha, organização e análise de dados que permitam aos futuros docentes, por um lado, interpretar e efetuar investigações estatísticas e, por outro, aprofundar o seu conhecimento do conteúdo para ensinar estatística. Visa, ainda, desenvolver o conhecimento pedagógico associado ao ensino da estatística, nomeadamente, no que se refere à compreensão do que envolvem as diferentes etapas de uma investigação estatística e do papel do educador/professor em cada uma delas.

Para responder a esse último propósito, foi realizada uma experiência de formação, no sentido de se incluir uma nova metodologia de ensino. Essa experiência envolveu o visionamento e análise de vídeos que reportam a realização de investigações estatísticas protagonizadas por crianças do Jardim de Infância e por alunos do 3.º ano de escolaridade do 1.º ciclo do Ensino Básico. Esses vídeos foram concebidos no âmbito de um projeto colaborativo realizado pela autora deste artigo e com uma educadora e uma professora do 1.º ciclo que realizaram investigações estatísticas com as crianças das suas salas. Cada um dos vídeos tem a duração de cerca de 30 minutos e correspondem à seleção, pela autora deste artigo e pelas docentes anteriormente referidas, de excertos de vídeo representativos das várias etapas de uma investigação estatística e que ilustram as ações quer das crianças quer da educadora, ou da professora durante cada uma dessas fases.

O trabalho das futuras docentes em torno de cada um dos vídeos envolveu várias fases: (i) o visionamento de cada vídeo tendo disponível um guião orientador da sua visualização e de análise, (ii) a discussão, em grupos de três, dos aspetos indicados no guião e com o apoio do conjunto de notas que, individualmente, foram registando durante o visionamento do vídeo, (iii) o visionamento novamente dos vídeos, o que permitiu completar os registros iniciais com aspetos que, eventualmente, não foram atendidos ou identificados durante a primeira fase de visionamento e (iv) a elaboração de um relatório escrito, pelos mesmos grupos, orientada pelo referido guião.

Esse guião apela à identificação das etapas de uma investigação estatística, à explicitação do que as caracteriza e à reflexão sobre as ações da educadora/professora durante o seu desenvolvimento. Neste artigo, os dados analisados decorrem dos relatórios sobre a investigação estatística realizada no Jardim de Infância, focada nos animais de estimação, um tema do interesse das crianças e que surge, naturalmente, na conversa das crianças. Esses relatórios, identificados pelo número do respectivo grupo (de G1 a G8), são alvo de uma análise focada no conhecimento do conteúdo e do ensino das futuras docentes para ensinar estatística recorrendo ao modelo de Burgess (2009)BURGESS, T. A. Teacher knowledge and statistics: What types of knowledge are used in the primary classroom? The Montana Mathematics Enthusiast, Missoula, v. 6, n. 1-2, p. 3 - 24, jan. 2009. , apresentado na Quadro 1 . Embora esse modelo tenha sido inicialmente pensado para analisar o conhecimento estatístico de professores para ensinar estatística, Oliveira e Henriques (2014OLIVEIRA, H.; HENRIQUES, A. C. Um Quadro de Análise do Conhecimento Estatístico para Ensinar de Futuros Professores. GEPEM, Seropédica, v. 64, p. 1 - 14, jun. 2014. , p. 14) referem que, no contexto da formação inicial, pode “permitir ao formador analisar como estão os FP [Futuros Professores] a desenvolver o seu conhecimento estatístico para ensinar e que aspetos necessitam aprofundar”. Uma vez que este estudo decorre de uma experiência realizada na formação inicial no âmbito de uma UC que não inclui a possibilidade de os futuros docentes desenvolverem investigações estatísticas com crianças em contexto real, a componente Disposições não será incluída na análise.

5 Conhecimento do conteúdo e do ensino para ensinar estatística de futuras docentes

O CCE relativo à necessidade de dados é evidenciado em metade dos relatórios (G1, G2, G3 e G7), mostrando que as futuras docentes valorizam o momento em que a educadora incentiva a recolha de dados para responder às questões de investigação que as crianças vão sugerindo e que vão sendo afinadas/reformuladas à medida que a investigação progride. Em três desses relatórios (G1, G2 e G7) não são feitas considerações explícitas sobre a intencionalidade da educadora em suscitar a necessidade de recolha de dados, mas é selecionado para descrição esse momento, tal como exemplifica o texto do G7:

“Quem tem animais de estimação?”. Em conversa, tentou-se saber a resposta, mas, como seria de esperar, a confusão imperou neste momento. Então a educadora perguntou como é que poderiam saber quantos animais é que cada um tinha, até que uma criança responde “Podemos por num papel!” (…). A educadora começa por orientar o grupo, procurando saber o que estes iriam perguntar aos colegas (Excerto do relatório do G7, 2019).

O G3 explicita a intencionalidade da educadora em incentivar as crianças a realizarem uma recolha de dados para se poder responder à questão de investigação considerada num determinado momento, tal como ilustra o seguinte excerto:

A educadora incita as crianças a recolher dados: “Como poderemos fazer para saber quantos animais cada um de nós tem?”. Esta pergunta permite que as crianças se sintam envolvidas no processo de recolha de dados. (…) Em consenso, decidem anotar no papel as respostas (Excerto do relatório do G3, 2019)

A Figura 1 pretende ilustrar o momento de recolha de dados referido no excerto anterior.

Figura 1
– Registro efetuado por uma criança durante o momento de recolha de dados[1]

O CCE associado à transnumeração é evidenciado em quatro dos relatórios (G1, G2, G4 e G7), mas refere-se a dois momentos distintos da investigação. O G4 salienta o propósito da educadora em melhorar os registros efetuados pelas crianças, através da construção de tabelas distintas, por forma a não confundir os registros relativos ao número de cães com os do número de gatos, tal como ilustra o seguinte excerto:

A educadora dialogou com o grupo e ajudou-o a analisar os resultados que obtiveram. Consequentemente, apercebem-se de que é melhor criarem duas tabelas distintas, ou seja, fazer uma tabela que tenha todos os valores referentes a quem tinha cães como animais de estimação, como também, uma outra tabela que tenha todos os valores referentes a quem tinha gatos como animais de estimação (Excerto do relatório do G4, 2019).

A Figura 2 ilustra o momento em que as crianças organizam os dados com o apoio da educadora, referido no excerto acima.

Figura 2
Momento de organização de dados

Os restantes grupos focam-se na importância de a educadora ter sugerido a construção de gráficos por permitir uma melhor leitura dos dados, tal como exemplifica o excerto do relatório G1:

A educadora sugere a construção de dois gráficos – um para os gatos e outro para os cães. (…) Uma das principais vantagens da construção de gráficos está relacionada com a facilidade e rapidez de leitura dos dados, sendo por isso uma boa forma de organizar os dados de qualquer investigação que se faça nesta faixa etária (Excerto do relatório do G1, 2019).

O CCE relativo ao raciocínio com modelos manifesta-se em sete dos relatórios (todos, exceto no G5). Nesses relatórios é salientado o facto de a educadora promover a leitura e interpretação dos gráficos que foram sendo construídos ao longo da investigação, como mostra o excerto do G8:

Com o objetivo de ver se o grupo tinha realmente percebido as coisas, a educadora começa a fazer-lhes perguntas do género: “Quantas crianças têm x gatos? E quantos cães? Existe alguma criança que não tenha gatos? E cães?”. Depois de concluir que realmente o grupo já tinha percebido como se analisava o gráfico, a educadora pergunta ao grupo se este já lhe conseguia dizer quantos gatos e quantos cães tinham os meninos e as meninas da sala (Excerto do relatório do G8, 2019).

Ainda, são salientadas as possibilidades criadas pela educadora de comparação entre dois gráficos (G4 e G7) e do estabelecimento da relação entre o número total de crianças e o número de dados representados em cada um dos gráficos (G7), tal como ilustra o excerto do G7:

Depois de construídos os gráficos, com a ajuda da educadora, o grupo começa a encontrar relações entre os dados recolhidos, sozinhos e com auxílio da educadora. (…) pode-se destacar a análise comparada entre os dois gráficos e a relação entre o total de dados presentes nos gráficos com o total de crianças (Excerto do relatório do G7, 2019).

A Figura 3 ilustra o momento em que as crianças apresentam o seu trabalho ao restante do grupo, comparando os dois gráficos construídos.

Figura 3
Momento de partilha e análise dos gráficos construídos

Também o CCE relativo à componente integração da estatística e o contexto se manifesta em sete dos relatórios (todos, exceto no G5). Há uma valorização do facto de a educadora ter proporcionado que as questões a investigar emergissem de um interesse das crianças e de estarem relacionadas com a sua realidade. Contudo, o modo como justificam a importância que atribuem a esses aspetos é diferente. O G7 salienta a importância de atribuição de significado

Este tipo de atividade proporciona aprendizagens significativas para as crianças, uma vez que o tema é algo que está interligado com o seu quotidiano (Excerto do relatório do G7, 2019).

Os restantes grupos remetem para a motivação e o envolvimento das crianças no desenvolvimento da investigação, como exemplifica o seguinte excerto do G2:

Com tudo isto percebemos que a tarefa proposta pela educadora foi bem concebida porque as crianças mostraram sempre interesse e motivação durante toda a realização da investigação estatística. O tema de investigação pode ter tido alguma influência no empenho que estas tiveram pois era um tema que as crianças gostavam e que lhes interessava (Excerto do relatório do G2, 2019).

Todos os grupos evidenciam CCE na componente ciclo investigativo , quando defendem e justificam a importância da realização dessa investigação estatística para a aprendizagem das crianças. Alguns grupos (G2, G3 e G5) apresentam justificações de âmbito geral, referindo-se à modalidade de trabalho usada (valorizando o trabalho de grupo), ao facto de ser uma forma de trabalhar a matemática no contexto de jardim de infância e por se relacionar com situações do quotidiano das crianças, tal como exemplifica o excerto do relatório do G5:

Consideramos esta investigação estatística importante no desenvolvimento cognitivo e educacional da criança, pois desenvolve o pensamento matemático, aprender a trabalhar em conjunto com os outros e a analisar situações quotidianas (Excerto do relatório do G5, 2019).

Os restantes grupos apresentam justificações para a importância da realização de investigações focadas nos processos que uma investigação dessa natureza permite desenvolver. Também aqui, há diferenças na completude com que o fazem. Os G1, G4 e G6 focam a importância de envolver as crianças no registro e na interpretação de dados, sobretudo, associados às suas vivências diárias, tal como ilustra o excerto do G6:

Ao realizar o projeto, a educadora tencionava atingir certas metas (…) promover a aprendizagem da estatística nas crianças de modo a que possam aprender a ler e a interpretar dados o mais cedo possível; estimular as crianças a fazer registros de dados estatísticos através de experiências que surgem nas suas rotinas (Excerto do relatório do G6, 2019).

Os G7 e G8 explicitam, ainda, a possibilidade de as crianças lidarem/construírem novas representações gráficas dos dados (como gráficos de barras) e a importância de se envolverem num processo de planejamento do que devem fazer para progredir na investigação, tal como exemplifica o excerto do G7:

(…) a exploração desta investigação estatística possibilita desenvolver a capacidade de registro, interpretação (e comparação) e organização de dados; (…) a introdução de novas formas de organização de dados (gráfico de barras); fomentar o pensamento crítico e estatístico; e desenvolver competências de planejamento (como recolher os dados, como registrar, como apresentar) (Excerto do relatório do G7, 2019).

Nos seus relatórios, todos os grupos de estudantes identificam e caracterizam as cinco fases do ciclo investigativo. Uns indicam explicitamente as suas designações habituais ou próximas destas (formulação de questões, recolha de dados, organização e análise dos dados e interpretação dos resultados). Outros, pelo modo que descrevem o que observaram e de como organizam o texto (em parágrafos separados referentes a cada uma das fases), revelam também identificá-las. Essas futuras docentes parecem evidenciar, assim, conhecimento especializado do conteúdo sobre as fases que compõem uma investigação estatística. Três dos grupos (G1, G7 e G8) evidenciam, também, o conhecimento de estratégias didáticas para orientar uma investigação estatística, quando se referem às intenções e ações da educadora em cada uma das fases, tal como ilustra a seguinte sequência de excertos do relatório do G7:

Numa primeira fase, a educadora, num momento em que o grupo se encontra todo reunido, pergunta “Quem é que viu o gato preto hoje na sala?”, começando assim a captar a atenção das crianças, fazendo ponte para aquela que viria a ser a questão-problema embrionária da investigação estatística.(…) A educadora começa por orientar o grupo, procurando saber o que estes iriam perguntar aos colegas. (…) os elementos do grupo dividem-se entre as áreas da sala para questionar todas as crianças da sala – população do estudo – sendo este o método escolhido para a recolha de dados – segunda fase. (…) orientadas pela educadora, as crianças optam por registrá-los numa tabela rudimentar, na qual colocaram as fotografias de cada criança a questionar e escreveram à frente o número e tipo de animal que tinha.

(…) Concluída a recolha de dados, a educadora orienta a organização dos mesmos, tendo ficado definido que se iriam fazer dois gráficos, um para os cães e outro para os gatos (…). O intuito desta terceira fase de investigação – análise e tratamento de dados – prende-se com o promover a autonomia da criança e a sua capacidade de organização de dados em representações gráficas.

Ao longo deste processo, a educadora ia interpelando as crianças com algumas questões, até mesmo corrigindo possíveis erros “(…) algo não está correto, verifiquem!”, “Quem é que não tem cães?” e “Quantos existem no total?”, fazendo esta análise parte para a quarta fase – interpretação de resultados – que pretende fomentar a competência de análise das crianças.

(…) Finalizando, chega-se à quinta fase da investigação – a comunicação de resultados –, e estando a construção dos gráficos terminada, apresentaram-se os dados ao grande grupo, salientando o facto de se optar por deixar os colegas interpretarem os dados (Excerto do relatório do G7, 2019)

Nessa sequência de excertos são valorizadas as seguintes ações e estratégias da educadora na orientação da investigação estatística, tendo em conta cada uma das suas fases: (i) suscitar o interesse das crianças pelo estudo de um determinado tema e de orientar a formulação do problema de investigação, (ii) clarificar o que se vai perguntar e como se vão registar os dados, (iii) apoiar na escolha de formas de organizar os dados, (iv) colocar questões de forma a suscitar a análise dos dados e (v) valorizar momentos de apresentação dos resultados do estudo estatístico, envolvendo as restantes crianças na análise das representações gráficas construídas durante a investigação.

Todos os grupos (exceto o G5) referem aspectos que mostram valorizar elementos do ciclo interrogativo . Um desses elementos relaciona-se com a procura de informação e identificam-se nos relatórios dos grupos G1, G2, G3 e G7. O CCE é, nesse caso, evidenciado pelo valor atribuído ao facto de a educadora incentivar as crianças a recolher dados e a pensar no modo como o poderão fazer, tal como é exemplificado no excerto do G1:

A educadora tentou encontrar uma estratégia para cativar as crianças de modo a que estas conseguissem fazer uma recolha de dados, incentivando-as a pensar que métodos poderiam utilizar para a recolha dos mesmos (Excerto do relatório do G1, 2019).

Um outro elemento do ciclo interrogativo valorizado por todos os grupos (exceto pelo G5) é a importância conferida pela educadora à interpretação da informação/resultados, tal como se exemplifica na penúltima transcrição da sequência de excertos do G7 apresentada no tópico anterior. Esse excerto inclui, ainda, a valorização, por parte das futuras docentes, do incentivo dado pela educadora a uma análise crítica dos dados, no sentido de levar as crianças a verificarem se os resultados a que vão chegando estão certos e se fazem sentido. O G2 salienta, ainda, o incentivo dado pela educadora a que as crianças julguem o trabalho que estão a realizar, no sentido de tomarem decisões sobre os caminhos que pretendem seguir para levar a cabo a investigação:

A educadora apenas intervinha quando era mesmo necessário, tal como aconteceu durante toda a investigação pois esta apenas ia levantando algumas dúvidas e fazendo algumas questões, sem nunca responder às mesmas, ou seja, esta deixava que fossem as crianças a solucionar os problemas e a decidir o que queriam fazer e como queriam fazer (Excerto do relatório do G2, 2019).

6 Conclusões

A Tabela 1 apresenta a contabilização da identificação do CCE relativo às componentes do modelo de Burgess (2009)BURGESS, T. A. Teacher knowledge and statistics: What types of knowledge are used in the primary classroom? The Montana Mathematics Enthusiast, Missoula, v. 6, n. 1-2, p. 3 - 24, jan. 2009. , analisadas neste estudo, tendo por base os relatórios produzidos pelos oito grupos de futuras educadoras e professoras do 1.º ciclo do ensino básico.

Tabela 1
– CCE das futuras docentes, por grupos

De uma primeira análise da Tabela 1 sobressai a existência de um grupo cujo relatório evidencia um fraco conhecimento do conteúdo e do ensino para ensinar estatística, das futuras docentes que o constituem. Efetivamente, trata-se de um relatório que se limita a descrever o processo de investigação estatística observável no vídeo, estando ausente qualquer reflexão sobre as estratégias da educadora no desenvolvimento dessa investigação com as crianças. Contudo, uma análise global da Tabela 1 permite afirmar que as restantes futuras docentes identificam estratégias de ensino importantes, que potenciam a aprendizagem da organização e tratamento de dados.

Relativamente ao desenvolvimento do pensamento estatístico das crianças, todos os grupos de futuras docentes revelam valorizar as ações da educadora que desencadeiam o raciocínio com modelos, por esta incentivar a leitura e/ou a comparação de diferentes representações de dados. Também, salientam a importância de a investigação estatística realizada pelas crianças facilitar a integração da estatística e o contexto, por ser uma investigação que decorre dos seus interesses, que recorre a dados do seu contexto e que facilita a atribuição de significado por parte das mesmas.

Metade das futuras docentes valorizam o facto da educadora tentar levar as crianças a compreender que necessitam de recolher dados para se poder dar resposta às questões a investigar, e valorizam, explicitamente, as ações da educadora que promovem a capacidade de transnumeração das crianças, ao incentivá-las a construir tabelas e gráficos que se mostrem adequados à representação dos dados recolhidos. O CCE: variação é a única categoria do conhecimento relacionada com o pensamento estatístico que não está presente nos relatórios das futuras docentes. Efetivamente, nas suas reflexões, nenhum dos grupos destaca uma situação em que a educadora encoraja as crianças a refletirem se algumas generalizações poderiam ou não ser feitas.

Relativamente ao ciclo investigativo, as futuras docentes, embora apresentando argumentos de natureza diferente, mostram valorizar a realização de investigações estatísticas como metodologia de ensino de organização e tratamento de dados, revelam conhecimento sobre as várias fases de uma investigação estatística e, cerca de metade, explicitam ações da educadora importantes no desenvolvimento de cada uma dessas fases. Quanto ao ciclo interrogativo, quase a totalidade das futuras docentes salientam a importância de a educadora incentivar as crianças a tomar decisões e a analisar criticamente as decisões tomadas, identificando o questionamento como estratégia fundamental para as levar a justificar o que fazem ou dizem e para as ajudar a avançar na sua investigação.

O recurso ao vídeo como forma de ilustrar o desenvolvimento de investigações estatísticas parece, assim, ter contribuído para o desenvolvimento do conhecimento do conteúdo de ensino para ensinar estatística das futuras docentes, tendo em conta as diferentes componentes do modelo de Burgess (2009)BURGESS, T. A. Teacher knowledge and statistics: What types of knowledge are used in the primary classroom? The Montana Mathematics Enthusiast, Missoula, v. 6, n. 1-2, p. 3 - 24, jan. 2009. . Realça-se como fundamental o facto de o vídeo retratar as várias fases de uma investigação estatística, de evidenciar ações da educadora que visam o desenvolvimento das diferentes capacidades de pensamento estatístico e de poder ser observável uma postura questionadora da educadora. A ausência do CCE associado à variação pode relacionar-se com o facto de, no vídeo analisado, ser identificável apenas uma situação que se associa a esse tipo de pensamento.

Nossos resultados sugerem, assim, a necessidade de garantir que os vídeos a analisar pelos futuros docentes incluam situações ricas de desenvolvimento dessa componente do pensamento estatístico. Ainda assim, é de referir que também no estudo realizado de Oliveira e Henriques (2014)OLIVEIRA, H.; HENRIQUES, A. C. Um Quadro de Análise do Conhecimento Estatístico para Ensinar de Futuros Professores. GEPEM, Seropédica, v. 64, p. 1 - 14, jun. 2014. a componente variação não foi identificada nas reflexões de futuros docentes sobre tarefas de estatística, o que reforça a necessidade de uma maior atenção na formação de professores sobre esse aspeto do pensamento estatístico.

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  • 1
    Todas as imagens apresentadas nas figuras foram retiradas do vídeo.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Maio 2022
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2022

Histórico

  • Recebido
    01 Set 2020
  • Aceito
    27 Ago 2021
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