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Gênero, Discurso e Docência em Matemática no Ensino Superior: Um olhar para o Norte de Minas Gerais

Gender, Discourse, and Teaching in Mathematics in Higher Education: A Look at the North of Minas Gerais

Resumo

O presente artigo busca problematizar a formação e atuação de professoras de Matemática no Ensino Superior Norte-Mineiro, considerando a Universidade Estadual de Montes Claros (Unimontes) e o Instituto Federal do Norte de Minas Gerais (IFNMG) como loci de investigação. Foram entrevistadas cinco professoras que lecionam disciplinas de Matemática nos cursos de Licenciatura em Matemática dessas instituições. Entre elas, duas encontram-se lotadas na Unimontes e três no IFNMG. Para nosso estudo, mobilizamos a metodologia da História Oral, utilizando um roteiro de entrevistas que nos possibilitou ouvir, conhecer e aprofundar nas histórias de vida das professoras, revelando-nos seus saberes e fazeres, além de como esses foram e são perpassados pelas relações de gênero. Destacamos que, de modo recorrente, ouvimos nas narrativas das professoras que os discursos naturalistas e cartesianos, a divisão social e sexual do trabalho e o habitus masculino da Matemática foram e continuam sendo os desafios que elas encontram para manterem-se e progredirem na carreira, uma vez que foram estabelecidos, assimetricamente, segundo o molde da cultura machista, patriarcal e androcêntrica que perpassa a esfera do conhecimento.

Docência; Ensino Superior de Matemática; Gênero; Mulheres

Abstract

This article seeks to problematize the formation and performance of Mathematics teachers in Higher Education in North Minas Gerais, considering the State University of Montes Claros (Unimontes) and the Federal Institute of Northern Minas Gerais (IFNMG) as a research locus. Five teachers who teach Mathematics subjects in the Mathematics Degree courses at these institutions were interviewed. Among them, two are located in Unimontes, and three in the IFNMG. For our study, we mobilized the Oral History methodology, using an interview script that allowed us to hear, know, and deepen in the teachers' life stories, revealing their knowledge and practices, as well as how these were and are permeated for gender relations. We emphasize that, in a recurring way, we heard in the teachers' narratives that the naturalistic and Cartesian discourses, the social and sexual division of work and the masculine habitus of Mathematics were and continue to be the challenges they encounter to maintain themselves and progress in their careers, since they were established, asymmetrically, according to the mold of the macho, patriarchal, and androcentric culture that permeates the sphere of knowledge.

Teaching; Mathematics Higher Education; Gender; Women

1 Palavras introdutórias

Problematizar as relações de gênero na docência do Ensino Superior em Matemática foi o desafio a que nos propusemos neste trabalho. Desse modo, muito havia a se pesquisar e compartilhar sobre as relações existentes entre mulheres e homens, professoras e professores, que estão inseridas/os nesse espaço, uma vez que esses enlaces são perpassados, dicotomicamente, por questões de gênero.

Decorre disso uma inquietação primeira que versa sobre o porquê de os discursos pertencentes à docência em Matemática no Ensino Superior ainda se manterem, de certo modo, adversos às mulheres, a ponto de estagnar seu desenvolvimento na carreira profissional. Embora as mulheres, à custa de muita luta, tenham conquistado seu espaço neste lugar dito masculino , ainda são recorrentes os discursos arcaicos que tendem a perpetuar o status quo e o imaginário social de que a mulher e a Matemática estão situadas em dois polos opostos, fixos, antagônicos e imutáveis. A vista disso, temos como indagação inicial: em que sentido esses discursos geram prejuízos e/ou empecilhos no processo de atuação e desenvolvimento das mulheres que estão inseridas na docência superior em Matemática?

Com o intuito de entender e contribuir para essa discussão, apresentamos, neste artigo, um estudo que tem, única e exclusivamente, as mulheres como colaboradoras, levando em consideração seus saberes e fazeres como professoras de Matemática no Ensino Superior. Para isso, utilizamos um roteiro de entrevista fundamentado na metodologia da História Oral (HO), a qual nos possibilitou aprofundar as subjetividades das colaboradoras, construindo com elas suas histórias e refletindo sobre seus desafios.

Para isso, entrevistamos cinco mulheres professoras que possuem não apenas o curso de Licenciatura em Matemática como formação inicial, mas também que lecionam no Ensino Superior de Matemática em duas instituições públicas de formação universitária no Norte de Minas Gerais.

A pesquisa tem como princípio dar destaque às percepções, falas e histórias das professoras, e, por isso, optamos, mediante consentimento formal das colaboradoras, em não fazer uso de codinomes, e sim registrar os nomes verdadeiros, com exceção de uma professora que vetou esse registro. Segundo a professora, tal veto foi gerado pelo receio em compartilhar, academicamente, sua vida pessoal e profissional, visto que, de certo modo, ela denuncia algumas violências de gênero ocorridas no exercício da docência em Matemática, na instituição em que atua.

Sendo assim, intencionamos, neste trabalho, problematizar a formação e atuação de mulheres docentes em Matemática no Ensino Superior nos dois maiores polos de formação de professores do Norte de Minas Gerais: a Universidade Estadual de Montes Claros, campus Darcy Ribeiro, e o Instituto Federal do Norte de Minas Gerais, campi Salinas e Januária, tendo o gênero como uma categoria de análise.

Portanto, sem tencionar a uma fatigante leitura, gostaríamos de tecer os fios do presente artigo, estruturando-o em três seções, além deste texto introdutório e dos encaminhamentos finais. Na primeira, descrevemos como foram construídos os procedimentos metodológicos que nortearam o desenvolvimento desta investigação. Posteriormente, apresentamos, historicamente, uma revisão teórica sobre as mulheres e o processo de inserção no espaço público através do exercício da docência. Já na última seção, apresentamos a análise das narrativas de nossas colaboradoras, coletadas por meio das entrevistas.

Por fim, gostaríamos de salientar que, nesse trabalho, não temos a intenção de procurar no passado uma chave fictícia que norteia a compreensão do presente, porém procuramos “clarear o passado pelo presente, esperando que a luz refletida pelo passado assim iluminado revele áreas do presente que persistem obscuras” ( CUNHA, 2007CUNHA, A. C. A universidade crítica : o ensino superior na república populista. São Paulo: SciELO – Editora UNESP, 2007. , p. 15).

2 Tessituras históricas: as mulheres e a docência

O século XIX foi marcado por sua importância na sociedade brasileira, sobretudo, no que diz respeito à inserção das mulheres nos processos formativos e, consequentemente, na carreira docente. As descobertas positivistas cunhadas pelas Ciências Sociais e da Saúde, fomentaram discursos que incutiram nas figuras mulher e homem, características inatas a cada um dos gêneros. Para Maia e Souto (2020MAIA, C. J; SOUTO, B. F. Maria, Maria: histórias de vida de mulheres no sertão do São Francisco (MG). Outros tempos , São Luís, v. 17, n. 29, p. 138-156, 2020. , p. 139), esses discursos pautados na medicina, na legislação e na intelectualidade disciplinavam “os novos cidadãos, [assegurando] a maternidade e [disseminavam] um modelo de feminilidade baseado na domesticidade e na submissão das mulheres”. Se, por um lado, tem-se a ideia de que aos homens foram atribuídos o cérebro, a inteligência, a razão lúdica e a capacidade de decisão, por outro, o coração, a sensibilidade, os sentimentos e a irracionalidade foram características legadas às mulheres ( PERROT, 2001PERROT, M. As mulheres ou os silêncios da história . Tradução de Viviane Ribeiro. São Paulo: Edusc, 2001. ; SOUZA; FONSECA, 2010SOUZA, M. C. R. F.; FONSECA, M. C. F. R. Relações de gênero, Educação Matemática e discurso : enunciados sobre mulheres, homens e matemática. Belo Horizonte: Autêntica, 2010. ).

De forma antagônica, começaram a ser construídos no espaço público os papéis sociais desempenhados por ambas as figuras, uma vez que o espaço privado, ambiente doméstico, que até então pertencia à mulher burguesa ou de classe média, se estende à sociedade em geral; porém preservando as suas características . Nesse sentido, é a partir desse período que as mulheres começam a desempenhar no espaço público, especialmente no Magistério, por meio do tratamento com as crianças/alunos, seus labores afetivos: “suas atividades de prover, cuidar e interagir” ( FRASER, 2020FRASER, N. Contradições entre capital e cuidado. Princípios: Revista de Filosofia, Natal, v. 27, n. 53, p. 261 – 288, maio/ago. 2020. , p. 264).

Apesar disso, como esperado pelas noções modernizadoras então em voga, houve, ainda no século XIX, a necessidade de universalizar a instrução, o que resultou na organização dos sistemas nacionais de ensino. Como efeito disso, eclodiu o problema quantitativo em vias da disponibilidade do professorado e da quantidade de escolas criadas, resultando na demanda por mais profissionais para atuarem nesses espaços.

O caminho para equacionar essa questão foi encontrado, no ano de 1835, com a criação das primeiras Escolas Normais, as quais tinham como objetivo a formação de professores primários ( LOURO, 2004LOURO, G. L. Mulheres na sala de aula. In: PRIORE, M, D. (org.). História das mulheres no Brasil . São Paulo: Contexto, 2004. p. 443–481. ), bem como produzir e reproduzir “o corpo de saberes e do sistema de normas da profissão docente” ( NÓVOA, 1992NÓVOA, A. O passado e o presente dos professores. In: NÓVOA, A. (org). Profissão professor . 2. ed. Porto Editora, 1992. , p. 18, grifos da autora).

Partindo de Louro (2004)LOURO, G. L. Mulheres na sala de aula. In: PRIORE, M, D. (org.). História das mulheres no Brasil . São Paulo: Contexto, 2004. p. 443–481. , podemos argumentar que as relações de trabalho eram bem demarcadas pela desigualdade de gênero, dado que as meninas e meninos só poderiam ser ensinadas/os por docentes dos seus respectivos gêneros, o que mostrava, sobretudo, a importância significativa atribuída à formação dos garotos, uma vez que somente eles tinham aulas de Matemática avançada.

Nessa perspectiva, são convergentes os pensamentos de Almeida (1998)ALMEIDA, J. S. Mulher e educação : a paixão pelo possível. São Paulo: UNESP, 1998. e Curi (2000)CURI, E. Formação de professores de Matemática : realidade presente e perspectivas futuras. 2000. 244f. Dissertação (Mestrado em Educação Matemática) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2000. , no que concerne ao produto da associação do trabalho desempenhado no magistério às práticas tidas como femininas. O marco profissional conquistado pelas mulheres cedeu lugar ao símbolo de desprestígio social, por estar alocada no gênero feminino a desvalorização da profissão. Para a visão e divisão sexista presente ainda hoje, o trabalho do homem valia/vale mais que o da mulher, sendo este considerado parcial e complementar ao salário dos pais ou dos maridos.

Pensando especificamente sobre a formação da/o profissional habilitado para lecionar Matemática na Educação Básica, foi criado, no ano de 1934, na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (FFCL) da Universidade de São Paulo (USP), o curso superior de Matemática que, segundo Beatriz D’Ambrósio (1993, p. 35), era marcado pelo teor “absolutista [...] em que a disciplina se caracteriza[va] pela lógica formal e pelo predomínio da razão absoluta ” (grifos nossos). Assim, semelhante às escolas normais, o curso foi aberto para ambos os gêneros, porém foi iniciado com exatos 29 alunos matriculados, sendo que entre eles não havia uma única mulher (CECCO; BERNARDI; DELIZOICOV, 2017). Logo, ficam implícitas, de certo modo, as marcas das desigualdades e estereótipos de gênero da época , que corroboravam o falso discurso/noção de que mulher e racionalidade ocupavam, de forma fixa e natural, polos distintos e antagônicos.

Hodiernamente, quando nos debruçamos sobre os números de concluintes em universidades públicas, deparamo-nos com dados que mostram que, em algumas áreas, como, por exemplo, das Ciências da Natureza, Matemática e Estatística, as mulheres superam os homens com uma taxa significativa de 54,1% ( INEP, 2018INSTITUTO NACIONAL DE ESTUDO E PESQUISAS EDUCACIONAIS ANÍSIO TEIXEIRA (INEP). Censo da educação superior 2018 . Brasília: MEC, 2018. ). De certo modo, numericamente, é um avanço para o público feminino, visto que rompe com a tradicional visão de que tais campos são única e exclusivamente de atuação masculina.

Entretanto, esse percentual não se mantém quando se analisa a docência no Ensino Superior. Segundo a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Capes (BRASIL, 2007), embora as mulheres possuam 15% a mais dos títulos de doutorado em relação aos homens, elas ainda são minorias entre os professores no Brasil, visto que, no período de 2006 a 2016, sua participação cresceu apenas 1%; de 44,5% para 45,5%. Além disso, conforme aponta o relatório da Capes, essa diferença se intensifica ainda mais no que concerne ao campo das Ciências Exatas: prova disso é que as áreas de conhecimento que são tidas tradicionalmente como masculinas, por exemplo, Engenharias, Computação e Matemática, continuam, mesmo com perspectivas de crescimento da participação feminina, com a presença majoritária de homens.

Refletindo, quantitativamente, sobre essas informações nos loci investigados, conforme apresentado na Tabela 1 , exceto no IFNMG/Januária, a diferença numérica entre mulheres e homens que lecionam na Licenciatura em Matemática, à época em que a pesquisa foi realizada (2020), é consideravelmente significativa e, no caso do IFNMG/Salinas, existe uma disparidade ainda maior, visto que cem por cento dos professores eram homens. A única professora entrevistada foi convidada para participar da pesquisa pelo fato de ter sido professora do autor principal, durante a graduação em Licenciatura em Matemática. Contudo, hoje, ela encontra-se lotada em outro campus .

Tabela 1
Distribuição docente por instituição, gênero e professoras entrevistadas (2020)

Sendo assim, pode-se constatar que esse processo – desde a instrução inicial das meninas à sua inserção no Ensino Superior – é perpassado por questões políticas e históricas, sendo permeado pelas desigualdades de gênero que se fazem presentes nas relações de mulheres imersas em áreas tipicamente masculinas. Nesse sentido, essas relações são demarcadas pelo habitus da Matemática que entende como masculinas as práticas exercidas em seu interior. Portanto, interessa-nos, na próxima seção, discutir à luz dos estudos de gênero, como essas relações se desdobram na docência superior em Matemática nas IES pesquisadas.

3 Procedimentos metodológicos

Por ser este um trabalho de cunho qualitativo, debruçamo-nos, na análise, sobre as narrativas orais produzidas por cinco professoras, tidas aqui como colaboradoras, que lecionam, como supracitado, em cursos superiores de Matemática nos dois maiores polos de formação de professoras/es de Matemática no Norte de Minas Gerais. Entre elas, duas atuam no curso de Licenciatura em Matemática na Unimontes, duas no IFNMG/Januária e uma 2 2 Atualmente, encontra-se lotada em outro campus do IFNMG. no IFNMG/Salinas.

Para a escolha das colaboradoras, consideramos, a priori , dois critérios de inclusão e um de exclusão. Como critérios de inclusão, definimos a formação inicial em Matemática — Licenciatura ou Bacharelado — e a docência de disciplinas específicas do curso de Matemática. Quanto ao critério de exclusão, definimos a regência em disciplinas de práticas pedagógicas do curso e/ou instrumentais, como as de Física e/ou de Informática, por exemplo.

No intento de construir narrativas plausíveis sobre as histórias das colaboradoras, fizemos uso da entrevista semiestruturada orientada pela metodologia da História Oral (HO), por termos, como discorrem Garnica e Gomes (2020GARNICA, A. V. M.; GOMES, M. L. M. História Oral: diversidade, pluralidade e narratividade em educação matemática. In: GONÇALVES, H. J. L. (org). Educação Matemática e Diversidade(s) . Porto Alegre: Fi, 2020. p. 15–42. , p. 16), “a intenção de registrar perspectivas subjetivas narradas por depoentes que o pesquisador julga serem fundamentais para compreender determinado tema”. Ademais, ao lançarmos mãos dessa metodologia, temos por objetivo compreender a realidade — passado e presente — das mulheres professoras, evidenciando seus mitos, visões de mundo, histórias pessoais e profissionais, suas práticas sociais e como estas relações se processam ( MEIHY, 2005MEIHY, J. C. S. B. Manual de história oral . São Paulo: Loyola, 2005. ).

Inicialmente, tínhamos a intenção de entrevistar, pessoalmente, as cinco professoras. Contudo, devido à disseminação do novo Coronavírus (Covid-19), que, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS) 3 3 https://www.paho.org/pt/covid19 . Acesso em 20 de agosto de 2020. , constitui-se como uma Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional, a qual demanda como medida de proteção o distanciamento/isolamento social, fizemos uso do aplicativo Google Meet para a realização das entrevistas, objetivando não somente a coleta das informações, mas, também, o respeito pelas professoras e a observação das orientações da OMS.

No que se refere à realização das entrevistas, foram respeitadas as disponibilidades e limitações de tempo das professoras, sendo realizadas entre os dias 12 de maio a 6 de julho de 2020, com duração média de 40 a 90 minutos cada uma.

Por fim, após a realização das entrevistas, iniciamos o processo de transcrição na íntegra, seguido pela textualização que, posteriormente, foi submetida a cada uma das colaboradoras para apreciação e devolutiva. Por tratar de uma construção feita a quatro mãos , entre pesquisadores e pesquisadas, o processo final da textualização foi feito conjuntamente, no qual os participantes trocaram e fizeram “supressões e acréscimos por ocasião da verificação da textualização”, para, ao final desse processo, ceder o direito de publicização ( CASTRO e ALMEIDA, 2015CASTRO e ALMEIDA, Shirley Patrícia Nogueira de. Um lugar: o processo de formação de professores de Matemática na primeira Instituição de Ensino Superior da região de Montes Claros/ Norte de Minas Gerais. 2015. 403f. Tese (Doutorado em Educação) – Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2015. , p. 57).

4 A experiência encarnada: narrativas orais das professoras

Romper silêncios. Tornar visível. Mudar a ordem das coisas. É nesse sentido que destacamos, nesta seção, as experiências e histórias de vida das professoras entrevistadas, levando em consideração suas relações com o espaço, tempo e contextos que foram/são marcantes na formação e atuação profissional. Para isso, apresentamos, inicialmente, o perfil das professoras com o intuito de corporificar suas experiências narradas e, ao identificá-las, fazer suas vozes ecoarem. Na construção dessa jornada , discorremos sobre os anseios e desafios enfrentados pelas professoras, que tornaram possível a escolha pelo curso e carreira profissional. Na seção dedicada ao dilema da jornada , discutimos sobre a tensão da vida tripla das professoras: ser esposa, mãe e professora, além de como isso agrega considerações no que diz respeito ao desenvolvimento da carreira. Por fim, na última categoria, discutimos como o habitus masculino , que perpassa o campo da Matemática, sujeita as mulheres a experiências sexistas que, por serem tão comuns e culturais, passam despercebidas.

4.1 Rompendo silêncios: o perfil das professoras

“Escrever a história das mulheres é sair do silêncio em que elas estavam confinadas”, escreveu Michelle Perrot (2016PERROT, M. Minha história das mulheres . Tradução de Angela M. S. Côrrea. 2. ed. 3. reimpressão. São Paulo: Contexto, 2016. , p. 16), ao iniciar seu livro Minha história das mulheres . É por esse viés que apresentamos, inicialmente, o perfil das mulheres, professoras, nossas colaboradoras, tendo em vista sua orientação sexual, cor, idade, estado civil, filhos, formação, a quantidade de professoras de Matemática que tiveram na Educação Básica e o ano de ingresso como docentes na universidade. Nossas entrevistadas narraram:

Sou parda, heterossexual, tenho 41 anos, sou casada e tenho dois filhos. Cursei Licenciatura Plena em Matemática na Unimontes e me formei em 2003. Tenho Mestrado em Ensino de Ciências e Matemática e sou doutoranda em Educação Matemática. Atualmente sou coordenadora de um projeto de pesquisa que envolve o ensino de Matemática com o uso da tecnologia. Durante minha formação básica, tive apenas três professoras de Matemática. Em 2007, ingressei na Unimontes como professora (Entrevista com Janine Freitas Mota , 12/05/2020).

Sou parda, heterossexual e casada. No ano de 2016 me graduei no curso de Licenciatura Plena em Matemática, sou pós-graduada, a nível de especialização, e atualmente estou no Mestrado. Na minha formação básica tive unicamente duas professoras de Matemática. (Entrevista com Joana Fortunato Lopes, 18/05/2020).

Sou branca, heterossexual, casada, tenho 36 anos de idade e sou mãe de dois filhos. Em 2007 me licenciei em Matemática, pela Unimontes, e em 2010 ingressei no corpo docente do IFNMG/Januária. Tenho Pós-Graduação Latu Sensu em Matemática e Estatística e sou Mestra em Matemática (PROFMAT). No Ensino Fundamental e Médio, nas aulas de Matemática, tive apenas um professor homem, e o restante foram mulheres (Entrevista com Adenise Vieira de Souza, 22/05/2020).

Sou parda, heterossexual, tenho 43 anos, sou casada e mãe de duas filhas. No ano de 2006, me graduei em Licenciatura em Matemática, pela Universidade Federal de Viçosa (UFV). Tenho especialização em Educação Matemática e Pós-Graduação Stricto Sensu em Modelagem Computacional e Sistema. Na disciplina de Matemática, em minha educação básica, tive dois professores homens e o restante mulheres. Em 2009 ingressei no IFNMG/Januária como professora (Entrevista com Celimar Reijane Alves Damasceno Paiva, 25/05/2020).

Sou branca, heterossexual, tenho 52 anos, sou casada e tenho quatro filhas. Cursei Licenciatura em Ciências, com habilitação em Matemática, pela Unimontes, me formando em 1988. Sou Mestra em Educação Matemática e, atualmente, doutoranda na mesma área. Durante minha formação na escola básica, tive somente uma professora de Matemática. Enquanto professora, ingressei na Unimontes em 1997, e, por razões familiares, saí em 2001. Retornei em 2015 e aqui estou desde então (Entrevista com Rieuse Lopes Pinto, 06/07/2020).

Em síntese, nota-se, a partir dessas autobiografias, que, exceto a professora Rieuse, todas concluíram o curso de Matemática a partir dos anos 2000 e que, de certa forma, todas possuem formação continuada na área de Ensino ou Educação Matemática. Além disso, nenhuma se autoconsidera negra, todas são heterossexuais, casadas e somente a professora Joana, no momento da entrevista, não possui filhos.

4.2 Construção de uma jornada: a escolha da docência

Para compreendermos a trajetória das colaboradoras, precisamos conhecer as relações com o espaço, tempo e contexto que tornaram possível o exercício da docência. Quando indagadas sobre a escolha da licenciatura, as professoras Rieuse, Janine, Adenise e Joana chamaram nossa atenção para o fato de terem sido incentivadas e inspiradas, inicialmente, por suas professoras de Matemática, ainda na Educação Básica. Além disso, essa escolha foi transpassada pela facilidade em ensinar os conteúdos de Matemática aos colegas, pela influência das famílias que, no caso das professoras Rieuse e Celimar, eram compostas por professores e, por fim, pelo anseio em mudar suas realidades sociais, até então marginalizadas.

Para Maia (2007MAIA, C. J. A invenção da solteirona : conjugalidade moderna e terror moral – Minas Gerais (1890-1948). 2007. 319f. Tese (Doutorado em História) – Universidade de Brasília, Brasília, 2007. , p. 168), “o magistério foi uma das carreiras profissionais que melhor ofereceu oportunidades de trabalho remunerado para as mulheres”, além de significar uma chance de inserção no espaço público, ingressando no mercado de trabalho e possibilitando a autonomia financeira ( ALMEIDA, 1998ALMEIDA, J. S. Mulher e educação : a paixão pelo possível. São Paulo: UNESP, 1998. ).

Segundo as professoras, o interesse e a habilidade com a Matemática foram despertados ainda na infância, colocando em xeque o discurso científico que garantia à biologia o fator determinante, quando se pensa no desenvolvimento intelectual. Para elas, a facilidade em aprender Matemática foi o principal fator para buscarem formação profissional na área. Contudo, isso não se verifica no discurso da professora Rieuse, que se inseriu no curso por incentivo do irmão que, à época, era vestibulando em outra área.

Quando entrei no curso, eu não sabia absolutamente nada de Matemática, pois tinha feito o Magistério e nesse curso não tinha aulas de Matemática para o Ensino Médio. Formava professor primário (Entrevista com Rieuse Lopes Pinto, 06/07/2020) .

Interpretando esse processo de inserção no Ensino Superior a partir da lente de Mello (2000)MELLO, G. N. Formação inicial de professores para a educação básica: uma (re)visão radical. São Paulo em Perspectiva , São Paulo, v. 14, n. 1, p. 01–23, 2000. , nota-se que, aos alunos dos cursos de Magistério de primeira à quarta série, na maior parte dos cursos, não é oferecida a oportunidade de seguir aprendendo os conteúdos ou objetos de ensino que deverá ensinar no futuro. Aprende-se a prática de ensino, mas não sua substância.

É importante frisar que a professora Rieuse foi a única colaboradora que iniciou a graduação nos anos de 1980, período marcado pela redemocratização do Brasil e pelas novas propostas curriculares para a Educação. Além disso, mesmo que o magistério representasse uma maior concentração do público feminino, ainda ocupava um espaço social marcadamente masculino, visto que seu desenvolvimento foi, à época, (re)pensado e (re)estruturado única e exclusivamente por homens. Logo, embora a sociedade estivesse trilhando um caminho marcado pelo desenvolvimentismo, ainda havia uma assimetria na educação oferecida nos cursos para mulheres (Magistério) e homens (Científico).

Sobre isso, Louro (2004)LOURO, G. L. Mulheres na sala de aula. In: PRIORE, M, D. (org.). História das mulheres no Brasil . São Paulo: Contexto, 2004. p. 443–481. salienta que, mesmo as disciplinas de Leitura, Escrita, Noções básicas de Aritmética e Doutrina Cristã sendo ensinadas para ambos os gêneros, os conteúdos de Geometria e Estatística eram ministrados apenas aos garotos. Implica-se disso que o Estado não estava preocupado em mobilizar a instrução das mulheres para a atuação no espaço público, mas sim em educá-las para desempenhar seus papéis primordiais, como os de esposa, mãe e dona de casa, afinal, “o trabalho intelectual não devia fatigá-las, nem se constituir um risco a uma constituição que se afirmava frágil e nervosa, o que poderia, certamente, debilitar seus descendentes” ( ALMEIDA, 1998ALMEIDA, J. S. Mulher e educação : a paixão pelo possível. São Paulo: UNESP, 1998. , p. 18).

Para Perrot (2016PERROT, M. Minha história das mulheres . Tradução de Angela M. S. Côrrea. 2. ed. 3. reimpressão. São Paulo: Contexto, 2016. , p. 93), essa educação estaria assentada sobre as virtudes do imaginário feminino: nos “bons hábitos de economia [doméstica] e de higiene, os valores morais de pudor, obediência, polidez, renúncia, sacrifício”. Dessa forma, ainda segundo a historiadora, era disseminado o discurso hegemônico que afirmava que as mulheres deviam ser mais educadas do que instruídas, não havendo necessidade de “ mobilizar a cabeça da mulher com informações ou conhecimentos, já que seu destino primordial — como esposa e mãe — exigiria, acima de tudo, uma moral sólida de bons princípios” ( LOURO, 2004LOURO, G. L. Mulheres na sala de aula. In: PRIORE, M, D. (org.). História das mulheres no Brasil . São Paulo: Contexto, 2004. p. 443–481. , p. 446).

Quando indagada sobre o apoio familiar para a escolha da profissão, a professora Rieuse relata que, ao prestar vestibular para o curso de Ciências com habilitação em Matemática, houve objeção por parte do pai, que, na época, era professor de Música e de Inglês. Segundo ela, o pai dizia que,

se você não aprendeu nem música e nem inglês, você quer aprender Matemática? Não vai dar para você. Terá que fazer um curso mais simples (Entrevista com Rieuse Lopes Pinto, 06/07/2020).

Temos como hipótese, que subjaz da perspectiva hegemônica do pai, três questões que melhor delineiam as desigualdades de gênero intrínsecas ao campo da Matemática. Primeiro, sobre o perfil desses profissionais: aparentemente, a filha era desprovida das habilidades que a área exigia, ligadas ao pensamento lógico, abstrato, universal e objetivo, além de evidenciar, como dissertam Souza e Fonseca (2010SOUZA, M. C. R. F.; FONSECA, M. C. F. R. Relações de gênero, Educação Matemática e discurso : enunciados sobre mulheres, homens e matemática. Belo Horizonte: Autêntica, 2010. , p. 62), a “superioridade masculina em matemática que produz a racionalidade como própria do masculino”. Tais exigências da área, na visão de Bandeira (2008BANDEIRA, L. A contribuição da crítica feminista à ciência. Rev. Estud. Fem , Florianópolis, v. 16, n. 1, p. 207–228, jan./mar. 2008. , p. 220), são marcadas pelo processo de distanciamento das mulheres em relação à ciência, neste caso a Matemática, “na medida em que essas são direcionadas às atividades ditas ‘femininas’, prorrogadas na sequência da vida pelas dificuldades e pelos constrangimentos que se colocam nas escolhas entre família, maternidade e carreira profissional”.

Segundo, por sua hierarquização: a Matemática sobrepõe a Linguagem e a Arte. Isso pode ser explicado pelo fato de a Matemática possuir um valor social e simbólico predominantemente masculino, o que não se verifica nas áreas de Linguagem e Arte. Nesse sentido, conforme subentendemos de Curi (2000)CURI, E. Formação de professores de Matemática : realidade presente e perspectivas futuras. 2000. 244f. Dissertação (Mestrado em Educação Matemática) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2000. e Schienbinger (2001)SCHIENBINGER, L. O feminismo mudou a ciência ? Tradução de Raul Fiker. Bauru: EDUSC, 2001. , essas áreas (Linguagem e Arte) ainda permanecem com razoável presença masculina, permanecendo desprestigiada e, como consequência, secundarizadas pelos ideais cartesianos. Por fim, desdobra-se das anteriores, a questão três, que versa sobre a lenta inserção das mulheres no campo da Matemática. De acordo com Menezes (2015, p. 56), isso acontece não pela “falta de condições intelectuais [das mulheres], mas devido às ‘teias’ culturais e históricas que envolvem o ser mulher”, ou seja, por conta dos estereótipos e da falta de incentivo.

Flagramos no material discursivo analisado, que as outras quatro professoras argumentaram que receberam incentivos, principalmente por parte das mães, que, identificadas e preocupadas com o futuro das filhas, projetavam nelas o antigo sonho do estudo. Se, por um lado, essa projeção era enviesada pela independência econômica das filhas ( MAIA, 2007MAIA, C. J. A invenção da solteirona : conjugalidade moderna e terror moral – Minas Gerais (1890-1948). 2007. 319f. Tese (Doutorado em História) – Universidade de Brasília, Brasília, 2007. ; ALMEIDA, 1998ALMEIDA, J. S. Mulher e educação : a paixão pelo possível. São Paulo: UNESP, 1998. ), por outro, era repassado o modelo feminino ideal que, visibilizado pela escola, era absorvido de forma passiva pelas meninas ( ASSUNÇÃO, 1995ASSUNÇÃO, M. M. S. Magistério primário e cotidiano escolar . Campinas: Autores Associados, 1995. ), como revela o relato da professora Joana. Engendrada na ordem natural feminina , sua mãe era avessa à sua formação universitária, visto que, como narrou a professora,

minha mãe falava que mulher que estuda demais seria difícil para arrumar marido, porque homem não quer mulher que estuda demais, que ganha mais (Entrevista com Joana Fortunato Lopes, 18/05/2020) .

Instruída a viver sob a égide que somente o esposo, provedor por natureza , poderia lhe proporcionar, a filha naturalizaria uma ordem social que subvalorizaria a sua autonomia enquanto uma sujeita inserida social e economicamente na sociedade, bem como mediria seu sucesso pelo êxito do esposo (MENEZES, 2015). Além disso, estaria reproduzindo, mesmo que inconsciente, sua subordinação econômica e o tradicional modelo patriarcal de supremacia masculina e inferioridade feminina , como, também, a situação de conferir ao marido (ao homem) o monopólio da manutenção social, como mostram Hirata e Kergoat (2008)HIRATA, H; KERGOAT, D. Divisão sexual do trabalho profissional e doméstico: Brasil, França, Japão. In: COSTA, A. O.; SORJ, B.; BRUSCHINI, C.; HIRATA, H. (org.). Mercado de trabalho e gênero: comparações internacionais. Rio de Janeiro: Editora FVG, 2008. p. 263–278. e Bourdieu (2002)BOURDIEU, P. A dominação masculina . Tradução de Maria Helena Kuner. 2. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002. .

No que concerne ao labor na docência superior em Matemática, concordamos com Souza e Fonseca (2010SOUZA, M. C. R. F.; FONSECA, M. C. F. R. Relações de gênero, Educação Matemática e discurso : enunciados sobre mulheres, homens e matemática. Belo Horizonte: Autêntica, 2010. , p. 136), no sentido de que os discursos substanciados pela natureza biológica instauram não só jeitos de ser mulher e homem nesta profissão, como, também, “jeitos de ser homem trabalhador’ e ‘mulher trabalhadora e trabalhadeira”. Por consequência, ainda segundo as autoras, é recorrente que as práticas desenvolvidas por ambos os sujeitos são configuradas segundo distinções, desigualdades e opressões ( SOUZA; FONSECA, 2010SOUZA, M. C. R. F.; FONSECA, M. C. F. R. Relações de gênero, Educação Matemática e discurso : enunciados sobre mulheres, homens e matemática. Belo Horizonte: Autêntica, 2010. ).

Sendo assim, para além disso, como poderia a professora Joana, que estava inserida na docência do Ensino Superior, fazer pesquisas e publicações de qualidade, buscar qualificação, até mesmo em outros estados ou países e, ainda por cima, cuidar da casa, filhos e esposo? Arriscamos uma resposta: tentando conciliar as tensões oportunizadas por esta tripla jornada: esposa, mãe e professora.

4.3 O dilema da jornada: ser esposa, mãe e professora

Entre 1997-2001, tive muitos problemas, pois foi quando minhas filhas nasceram. Por elas serem muito pequenininhas, tive dificuldade de deixá-las sozinhas em casa para ir trabalhar, pois o curso de Matemática em que eu trabalhava era à noite. Por isso, preferi sair [da Unimontes] e só retornei próximo ao concurso [em 2015]. Embora eu fosse casada, meu marido, policial, trabalhava muito à noite, viajava e essas crianças ficavam sozinhas em casa. Eu preferi abrir mão [da docência] para cumprir meu papel de mãe (Entrevista com Rieuse Lopes Pinto, 06/07/2020).

A estrutura econômica do patriarcado hierarquizou os papéis desempenhados por mulheres e homens, resguardando às primeiras a esfera reprodutiva, de cuidado, e aos segundos a de produção e de provimento financeiro ( HIRATA; KERGOAT, 2008HIRATA, H; KERGOAT, D. Divisão sexual do trabalho profissional e doméstico: Brasil, França, Japão. In: COSTA, A. O.; SORJ, B.; BRUSCHINI, C.; HIRATA, H. (org.). Mercado de trabalho e gênero: comparações internacionais. Rio de Janeiro: Editora FVG, 2008. p. 263–278. ). Analisando os impactos dessa estrutura patriarcal na região sertaneja do Norte de Minas Gerias, Maia e Souto (2020MAIA, C. J; SOUTO, B. F. Maria, Maria: histórias de vida de mulheres no sertão do São Francisco (MG). Outros tempos , São Luís, v. 17, n. 29, p. 138-156, 2020. , p. 143) salientam que, ao longo da história das mulheres, “o marido foi legalmente definido como o provedor da família, sendo o sustento e a proteção da esposa [...]; em troca, as esposas lhe deviam obediência”, mostrando o estabelecimento da relação desigual e assimétrica que elucida a sujeição das mulheres. Intrinsecamente a isso, desdobra-se a divisão social do trabalho que, de certo modo, impôs normas a ambos os sujeitos, porém, como salienta Bourdieu (2002)BOURDIEU, P. A dominação masculina . Tradução de Maria Helena Kuner. 2. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002. , coube aos homens receber a melhor parte.

Ao analisar a narrativa da professora Rieuse, infere-se, na prática, os dois princípios basilares que, nas visões de Hirata e Kergoat (2008)HIRATA, H; KERGOAT, D. Divisão sexual do trabalho profissional e doméstico: Brasil, França, Japão. In: COSTA, A. O.; SORJ, B.; BRUSCHINI, C.; HIRATA, H. (org.). Mercado de trabalho e gênero: comparações internacionais. Rio de Janeiro: Editora FVG, 2008. p. 263–278. , organizam a dicotomia existente na divisão sexual do trabalho. De um lado, o princípio da separação: o trabalho privado, de cuidar das filhas, é, essencialmente , desempenhado pela mãe, pois, também essencialmente , o pai não podia abdicar de seu posto no espaço público para cumprir um papel contrário ao seu, o de maternidade. Nas visões de Souza e Fonseca (2010SOUZA, M. C. R. F.; FONSECA, M. C. F. R. Relações de gênero, Educação Matemática e discurso : enunciados sobre mulheres, homens e matemática. Belo Horizonte: Autêntica, 2010. , p. 72), o discurso do cuidado permeia e justifica, de certa maneira, “a negligência masculina diante das responsabilidades na organização da vida doméstica: assumir os filhos e filhas, pagar as contas e ser o provedor, o que, segundo uma cultura patriarcal, seria competência masculina, incluindo-se nessa competência o ‘cuidar da mulher”.

Por outro lado, tem-se o princípio hierárquico: ao renunciar a seu trabalho no espaço público por meio da docência em Matemática, privilegiando o do esposo, inconscientemente, foi legitimado que o trabalho do homem tinha um valor social, capital e cultural superior ao seu. Do mesmo modo, Louro (2004LOURO, G. L. Mulheres na sala de aula. In: PRIORE, M, D. (org.). História das mulheres no Brasil . São Paulo: Contexto, 2004. p. 443–481. , p. 453), referindo-se ao final do século XIX para retratar a inserção das mulheres nos espaços públicos por meio da docência, discorre que esse trabalho não deveria seguir desvinculado do exercício doméstico e que “deveria ser abandonado sempre que se impusesse a verdadeira missão feminina de esposa e mãe”.

Nesse sentido, é válido destacar a construção de lacunas culturais que permeiam a maternidade das mulheres, implicando diretamente o seu desenvolvimento profissional. Sobre isso, as colaboradoras narraram:

Eu só fui desenvolver minha carreira profissional depois que elas cresceram. Se eu fosse homem, por exemplo, e não tivesse essa carga dedicada, eu teria desenvolvido mais cedo. Eu tive que abrir uma lacuna na minha profissão para esperar as meninas crescerem ; para, posteriormente, buscar o meu sonho de fazer um mestrado, doutorado. Faço isso agora, pois as meninas já estão grandes (Entrevista com Rieuse Lopes Pinto, 06/07/2020, grifos nossos) .

Após concluído o mestrado resolvi parar para ter filho e, passados 7 anos, em 2017, que fui começar o doutorado. Nesses 7 anos, fui cuidar do meu filho, cuidar de casa, fui ter outro filho. O que me fez frear com minha trajetória acadêmica (Entrevista com Janine Freitas Mota, 12/05/2020, grifos nossos).

Quando tive o primeiro filho, demorou 2 anos para eu começar a minha vida de pesquisa, de projeto. Então, comecei a produzir ano passado, mas engravidei de novo. Eu fico pensando... eu estava produzindo na intenção de afastar, um dia, para o doutorado; porém, engravidei, e meus colegas, os homens, continuam produzindo. Por isso seus currículos estão extensos. Depois que meu filho mais novo estiver com uns 3 anos eu vou pensar. Mas uns 2, 3 anos é exclusivamente para os filhos (Entrevista com Adenise Vieira de Souza, 22/05/2020, grifos nossos).

Nota-se, que a cultura da maternidade impôs um desequilíbrio simbólico quando se pensam a preocupação e cuidado com os filhos e o tão almejado processo de formação continuada. Subentende-se, a partir de Lima (2013)LIMA, B. S. O Labirinto de cristal: as trajetórias das cientistas na Física. Revista Estudos Feministas , Florianópolis, v. 21, n. 3, p. 883-903, set./dez. 2013. , que, embora a maternidade seja uma das principais realizações da vida das professoras, ela envolve significativas contribuições no que concerne à desaceleração de suas carreiras, visto que as impossibilita de participar de congressos, eventos e, até mesmo, de fazer um curso de Mestrado ou Doutorado, como pontuado por elas. Sobre isso, a professora Janine relata que,

hoje em dia, para concluir o doutorado, conto com o apoio da minha mãe que me ajuda a cuidar dos meus filhos. Não venho fazendo essa trajetória sozinha, pois, do contrário, eu teria ficado lá atrás (Entrevista com Janine Freitas Mota, 12/05/2020).

Depreende-se desta narrativa, que a mulher quando encontra apoio por parte de algum membro da família, seja para a realização das tarefas domésticas ou para o cuidado com os filhos, muitas das vezes esse apoio vem de outra mulher.

Em contrapartida, a professora Celimar conta que sempre equilibra o exercício da docência e as atividades domésticas. Do seu relato, subentendemos que essa “ dosagem ” é feita por ela de forma única e individual, visto que, como narra, isso é uma questão de “ prioridade ” que independe do fator gênero. Na entrevista, ela salientou que

a minha prioridade é mais voltada para minha preocupação como mãe. [...] O meu marido é um pesquisador que vive publicando, porque ele tem essa questão como prioridade (Entrevista com Celimar Reijane Alves Damasceno Paiva, 25/05/2020).

A partir dessa afirmativa, supomos como possível que seu posicionamento, assim como o de alguns homens que, também, escolhem privilegiar a família, pode ser fruto das relações subalternas impostas àquelas e àqueles que, por ventura, decidem privilegiar o trabalho familiar, que, após cristalizada tal escolha, torna possível a naturalização das desigualdades de gênero. Para além disso, o fato de a preocupação com os filhos não ser partilhada conjuntamente pelo par denota o destino imutável e discrepante que o machismo impôs às mulheres. Analisando o enunciado da “ prioridade ” sob a ótica do gênero, podemos constatar que existe dicotomia entre o que um e outro podem preferir, ou seja, os princípios de separação (público — homem: o trabalho com a pesquisa; e privado — mulher: o cuidado prioritariamente com as filhas) e a hierarquização (o ato de pesquisar sobrepõe o exercício da paternidade), como infere-se de Hirata e Kergoat (2008)HIRATA, H; KERGOAT, D. Divisão sexual do trabalho profissional e doméstico: Brasil, França, Japão. In: COSTA, A. O.; SORJ, B.; BRUSCHINI, C.; HIRATA, H. (org.). Mercado de trabalho e gênero: comparações internacionais. Rio de Janeiro: Editora FVG, 2008. p. 263–278. .

Sendo assim, fica claro que as desigualdades ocasionadas pela jornada tripla — esposa, mãe, professora — de nossas colaboradoras, mostram-se como um desafio a ser visto, compreendido e superado, visto que são permeadas pela cultura patriarcal que insiste em cegá-las e subjugá-las. Como implicação disso, essas desigualdades se estendem ao ambiente de trabalho que, no caso da docência em Matemática no Ensino Superior, são intensificadas, devido à cultura androcêntrica, pelo habitus masculino e discursos cartesianos aos quais essa área foi/é submetida.

4.4 O habitus do campo: o exercício da docência

Ao anunciar que “homem é melhor em Matemática (do que mulher)”, Souza e Fonseca (2010SOUZA, M. C. R. F.; FONSECA, M. C. F. R. Relações de gênero, Educação Matemática e discurso : enunciados sobre mulheres, homens e matemática. Belo Horizonte: Autêntica, 2010. , p. 49) fazem alusão a uma suposta superioridade que os homens pensam ter sobre a capacidade intelectual das mulheres. Segundo Schienbinger (2001SCHIENBINGER, L. O feminismo mudou a ciência ? Tradução de Raul Fiker. Bauru: EDUSC, 2001. , p. 312), isso é reforçado pela influência do reducionismo que, valendo-se de teorias biológicas, pontuou que “as mulheres são fracas em Matemática porque seus cérebros não são tão altamente especializados como os dos homens”. Analisando esses discursos por meio do projeto científico de Bourdieu (2002)BOURDIEU, P. A dominação masculina . Tradução de Maria Helena Kuner. 2. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002. , podemos avaliar que essa superioridade produz e reproduz a dominação masculina sobre o feminino, uma vez que mobiliza e mantém posições de desigualdade.

O habitus , como um conceito capaz de tornar visíveis os aspectos relacionados à construção da identidade do professorado, coloca em evidência os desafios que, principalmente as mulheres, encontram por estarem inseridas em um campo que, em sua gênese, foi construído por homens — brancos, burgueses, heterossexuais e ocidentais. Ao enunciar identidade, estamos entendendo-a sob o crivo dos estereótipos que relacionam o campo da Matemática aos atributos considerados masculinos, ou seja, racionalidade, complexidade e objetividade. Sobre isso, as professoras argumentaram que:

Já os professores homens , pelo menos a experiência que tenho em relação aos professores que tive, eles são mais racionais (Entrevista com Rieuse Lopes Pinto, 06/07/2020, grifos nossos).

Parece que a área de Exatas maltrata mais. E daí, talvez, as mulheres fogem um pouco disso, pois têm muito mais sensibilidade (Entrevista com Celimar Reijane Alves Damasceno Paiva, 25/05/2020, grifos nossos).

A Matemática do Ensino Superior é mais Pura, mais específica; então parece que, por isso, os homens são mais da Exata, da Pura (Entrevista com Joana Fortunato Lopes, 18/05/2020, grifos nossos).

Depreende-se dessas narrativas que ser mulher e ser matemática é, de certo modo, algo incompatível ( SCHIENBINGER, 2001SCHIENBINGER, L. O feminismo mudou a ciência ? Tradução de Raul Fiker. Bauru: EDUSC, 2001. ). Souza e Fonseca (2010SOUZA, M. C. R. F.; FONSECA, M. C. F. R. Relações de gênero, Educação Matemática e discurso : enunciados sobre mulheres, homens e matemática. Belo Horizonte: Autêntica, 2010. , p. 59), ao investigarem a intersecção entre gênero, Matemática e discurso, salientam que narrativas desse tipo promovem, além da racionalidade cartesiana, a “homogeneização de um certo modo de raciocinar, tomado como forma universal de compreender, universalidade que nega as diferenças” ( SOUZA; FONSECA, 2010SOUZA, M. C. R. F.; FONSECA, M. C. F. R. Relações de gênero, Educação Matemática e discurso : enunciados sobre mulheres, homens e matemática. Belo Horizonte: Autêntica, 2010. , p. 59). Como consequência disso, cria-se um tipo de masculinidade, na qual o “ valor do homem racional deve ser constantemente reafirmado de muitos modos; e desse valor , exclui-se a sensibilidade, a afetividade, as incertezas, que distanciam dos caminhos da razão, identificando-as como ‘características das mulheres’” ( SOUZA; FONSECA, 2010SOUZA, M. C. R. F.; FONSECA, M. C. F. R. Relações de gênero, Educação Matemática e discurso : enunciados sobre mulheres, homens e matemática. Belo Horizonte: Autêntica, 2010. , p. 59).

De modo consequente, conforme infere-se da narrativa da professora Joana, criam-se dois campos da Matemática enquanto área de atuação e desenvolvimento profissional: a Educação Matemática e a Matemática Pura/Aplicada. Tais campos podem ser interpretados à luz dos princípios da divisão sexual do trabalho, uma vez que separam — uma área mais propícia às mulheres e outra aos homens — e, consequentemente, dão mais prestígio à Matemática Pura/Aplicada, quando se comparada à Educação Matemática. Nesse caso,

Fica meio que separado, por exemplo: quando se fala de Matemática Pura aí é mais homem; chega aquela questão de posição. Se for algo relacionado à Educação Matemática, entra mais mulher. Parece que quanto mais a Matemática é pura, mais é masculina; com postura de posição, imposição, exatidão . Quando é mais Educação Matemática, entra mais as mulheres com uma visão de como ensinar, de metodologias (Entrevista com Joana Fortunato Lopes, 18/05/2020, grifos nossos).

Segundo a narrativa da professora, a Matemática Pura tem como habitus alguns atributos que, como supracitado, melhor representam a imagética dos sujeitos que estão inseridos nesse campo; neste caso, a masculina. Para Silva (2017)SILVA, L. B. Carreiras de professoras das Ciências Exatas e Engenharia : estudo em uma IFES do Nordeste Brasileiro. 2017. 276f. Tese (Doutorado em Educação) – Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, 2017. , essa divisão subsequente com teor cartesiano demarcou a Matemática Pura como um campo de excelência e, consequentemente, exercida majoritariamente por homens, enquanto a Educação Matemática, por ter como pauta questões ligadas ao como ensinar e aprender Matemática, foi retratada como uma área menos prestigiada e, também, consequentemente, exercida em sua maioria por mulheres. Nas visões masculinistas, a preocupação com as formas de ensinar e aprender, de forma geral, aproxima-se, discursivamente, dos estereótipos femininos, como discutido anteriormente.

Convidadas a responder sobre a existência de experiências sexistas ocorridas durante o exercício da docência, as professoras confirmam sua ocorrência, mas chamam nossa atenção pelas formas como isso acontece: velada e implícita. Segundo elas, esses episódios são camuflados pelo “ politicamente correto ” e podem ser visualizados por meio de cobranças , no que se refere aos prazos estabelecidos pelo calendário acadêmico, e à averiguação de seus conhecimentos. Para a professora Janine,

de repente, alguns colegas [homens] começaram a querer saber da produtividade da disciplina na sala de aula, de uma turma que estava em meu comando. Penso que o colega queria averiguar ou testar a produtividade naquela disciplina, pois não era papel dele estar fazendo isso. Já houve situações que alguns colegas queriam saber se a ementa estava sendo cumprida, se eu já tinha conseguido dar todos os tópicos da ementa numa turma; mesmo não sendo esse o papel da pessoa — o de averiguar (Entrevista com Janine Freitas Mota, 12/05/2020).

A partir de Souza e Fonseca (2010)SOUZA, M. C. R. F.; FONSECA, M. C. F. R. Relações de gênero, Educação Matemática e discurso : enunciados sobre mulheres, homens e matemática. Belo Horizonte: Autêntica, 2010. , podemos entender essa situação segundo a necessidade, que o homem imagina ter, de sentir-se superior à mulher quando pensa em Matemática, tida, neste caso, como cartesiana. Nesse sentido, para manter seu ideário discursivo, sua posição de poder e soberania, os homens, numa espécie de “assujeitamento”, impõem às mulheres um crescente e contínuo exercício de vigilância ( SOUZA; FONSECA, 2010SOUZA, M. C. R. F.; FONSECA, M. C. F. R. Relações de gênero, Educação Matemática e discurso : enunciados sobre mulheres, homens e matemática. Belo Horizonte: Autêntica, 2010. , p. 60). Decorrem dessa sujeição, portanto, posições que legam às professoras incapacidade, constrangimentos e limitações, como narram as colaboradoras:

Eu já tive um colega de trabalho que eu sentia que ele me testava para ver se eu sabia, mas em momento algum eu achei que era pelo fato de eu ser mulher (Entrevista com Adenise Vieira de Souza, 22/05/2020, grifos nossos) .

Quando a mulher entra no Superior [docência em Matemática], acho que tem um peso maior, pois já me senti testada. Tem alunos que coloca uma questão no sentido de me “pegar” de alguma forma, de que eu errasse ; isso em termo de conteúdo. Já tive essa impressão quando eu lecionava a disciplina de Cálculo I . [...] Parece que, por ser mulher, as pessoas te veem como mais frágil ou como se não soubesse direito o conteúdo (Entrevista com Joana Fortunato Lopes, 18/05/2020, grifos nossos).

Desses depoimentos, podemos concluir que a proficiência em Matemática que as mulheres professoras possuem só é aceita pela comunidade acadêmica — alunos e pelos próprios professores — após passada por um dado filtro que, ao final, a considera válida ou não. Para Souza e Fonseca (2010)SOUZA, M. C. R. F.; FONSECA, M. C. F. R. Relações de gênero, Educação Matemática e discurso : enunciados sobre mulheres, homens e matemática. Belo Horizonte: Autêntica, 2010. , as práticas matemáticas das mulheres não são apenas desconhecidas, desvalorizadas ou não validadas pela comunidade acadêmica (alunos e professores), como também ficam à margem daquela desempenhada pelos colegas homens, que, por sinal, são valorizadas, validadas e reconhecida como práticas matemáticas.

Nesse sentido, chama-nos a atenção o fato de que, mesmo em um momento no qual muito se conquistou e desmistificou com as lutas dos movimentos sociais feministas, ainda pairam sobre a sociedade e, de modo específico na universidade, os discursos naturalistas que tendem perpetuar a exclusividade do homem enquanto um sujeito racional; o único capaz de compreender as teias mais complexas do fazer matemática. Como consequência, tem-se que a “inferioridade e a incapacidade feminina são dadas como verdade” absoluta ( SOUZA; FONSECA, 2010SOUZA, M. C. R. F.; FONSECA, M. C. F. R. Relações de gênero, Educação Matemática e discurso : enunciados sobre mulheres, homens e matemática. Belo Horizonte: Autêntica, 2010. , p. 60).

Portanto, podemos salientar, a partir de Lima (2013)LIMA, B. S. O Labirinto de cristal: as trajetórias das cientistas na Física. Revista Estudos Feministas , Florianópolis, v. 21, n. 3, p. 883-903, set./dez. 2013. , que o campo da Matemática é circundado por uma espécie de labirinto , que, metaforizado como Labirinto de Cristal , indica os desafios e as diversas armadilhas que as mulheres encontram ao longo de suas carreiras, simplesmente por serem mulheres. Desse modo, as cobranças desnecessárias e as provações com teor sexista podem ser compreendidas à luz deste labirinto, que, em caso contrário, do professor homem, poderia não se fazer presente.

Concluímos que essas situações são conduzidas pelo discurso que universaliza a visão dominante do homem nos espaços públicos, fazendo com que situações como essa passem despercebidas a ponto de se tornarem rotineiras, normais e naturalizadas.

5 Encaminhamentos finais

Nosso objetivo neste artigo foi problematizar a formação e atuação de mulheres professoras de Matemática no Ensino Superior no Norte de Minas Gerais, tendo como contextos a Unimontes, campus Darcy Ribeiro, e o IFNMG, campi Salinas e Januária. Para isso, discutimos histórica e teoricamente sobre o processo de inserção das mulheres na Educação e no Ensino Superior de Matemática, os princípios sociais a elas ofertados, sua inserção na esfera pública por meio do exercício da docência e, adjacente a isso, o processo de feminização do magistério.

Das narrativas analisadas, constata-se que os diplomas de graduação, especialização e/ou mestrado são suficientes para atestar as portadoras como profissionais habilitadas e capacitadas para o exercício da Matemática, uma vez que seus conhecimentos são alvos de processos avaliativos por parte da comunidade acadêmica, mesmo não cabendo a essa comunidade tal função.

A análise do material narrativo proveniente das entrevistas, revelou pontos convergentes entre as cinco professoras. Nenhuma se autodeclarou negra, todas alegaram ser heterossexuais, casadas, assumiram as responsabilidades de seus lares e possuíam formação sólida na área de Ensino ou Educação Matemática. Entre elas, duas, no momento da entrevista, cursavam o doutorado, Janine e Rieuse; duas, Adenise e Celimar, pelos cuidados com os filhos e com a casa, ainda não haviam, até a entrevista, disposto de tempo suficiente para concorrer à uma vaga em tal nível de formação; e uma, a professora Joana, estava, no momento da entrevista, em fase de conclusão do curso de Mestrado.

Os resultados apontam que a escolha da profissão docente foi efetivada pelo incentivo familiar e pelas influências de professoras/es durante a escolarização básica. No entanto, o interesse pelo curso de Matemática teve sua gênese ainda na infância, o que nos permite argumentar que o discurso que ligava o desenvolvimento/perfil biológico ao pensamento matemático, como mostravam os discursos médicos científicos, serviu apenas para segregar as mulheres e instaurar assimetrias de gênero. Compartilhamos as ideias de Menezes (2015) no sentido de que esses discursos estão condicionados a estruturas sociais, históricas e culturais que controlavam as capacidades intelectuais das mulheres.

Desse modo, como é possível inferir das falas das cinco professoras, isso não foi suficiente para evitar comentários sexistas e que associamos à racionalidade cartesiana, advindos das famílias e de seus colegas de profissão. Comentários estes, internos ao campo e provenientes do habitus masculino, que configuram violências simbólicas substanciadas pelos discursos que disseminam a noção de que mulher não sabe Matemática; o que mantém o status quo de uma área marcada pelo profissional do gênero masculino.

Nessa tangente do habitus , para três das cinco professoras entrevistadas — Rieuse, Celimar e Joana —, a Matemática do Ensino Superior é vista como um reduto masculino, uma vez que exige do profissional o exercício frequente da racionalidade e firmeza quanto aos alunos e conteúdo, atributos que, histórica e equivocadamente, não foram legados às mulheres. Concordamos com Souza e Fonseca (2010)SOUZA, M. C. R. F.; FONSECA, M. C. F. R. Relações de gênero, Educação Matemática e discurso : enunciados sobre mulheres, homens e matemática. Belo Horizonte: Autêntica, 2010. , no sentido de que discursos como estes solidificam uma possível imagem da Matemática enquanto um reduto masculino, além de universalizar o conhecimento matemático possuindo como norte a experiência masculina.

Ao analisar o discurso compartilhado pelas professoras, foi comum em suas falas afirmar que a maternidade e as tarefas domésticas são os maiores desafios que elas enfrentam, quando se pensam a progressão e o desenvolvimento profissional docente. Negligenciado pelos maridos, o trabalho doméstico ainda fica principalmente a cargo das esposas, e, por demandar tempo e dedicação, reflete diretamente em seu desenvolvimento profissional. Implica-se disso um possível fator que as impediu, até o ato da entrevista, de darem continuidade aos estudos em Matemática, por meio de doutorados ou pós-doutorados.

Embora nossa discussão esteja concentrada no contexto educacional da região Norte do estado de Minas Gerais, ela mostrou que as teias sociais e culturais de nossa sociedade marcada pela cultura patriarcal, são condizentes com as estudadas por Almeida, Almeida e Castro (2021), no sentido das desigualdades de gênero que as mulheres sofrem por estarem inseridas em uma área de atuação marcada por quantidades e discursos masculinos. Ao fazer ecoar as vozes das mulheres em seus espaços profissionais, mostramos que as respectivas instituições de ensino devem voltar suas atenções para o professorado feminino, uma vez que as relações de gênero se encontram enraizadas e minimizadas na produção do conhecimento científico.

Por fim, reitera-se que é preciso expurgar da universidade práticas que, de forma direta ou indireta, constrangem e desrespeitam as mulheres pelo simples fato de elas serem mulheres. Ainda assim, é necessário que nos perguntemos quem são essas mulheres que estão acessando o espaço docente universitário. Das narrativas feitas pelas professoras, infere-se que apenas uma parte da categoria mulher acessa esses espaços. As mulheres negras e/ou transexuais, por exemplo, ainda permanecem em lugares marginais da sociedade e, portanto, impossibilitadas de acessar o lugar privilegiado, representado pela docência superior em Matemática.

Agradecimentos

Agradeço à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) pela bolsa concedida.

Referências

  • ALMEIDA, D. A; ALMEIDA, S. P. N. C.; AMORIM, M. M. T. As desigualdades de gênero na docência em Matemática no Ensino Superior: uma revisão de literatura a partir de estudos recentes no Brasil. Revista de Ensino de Ciências e Matemática , São Paulo, v. 13, n. 3, p. 1–25, abr./jun. 2021.
  • ALMEIDA, J. S. Mulher e educação : a paixão pelo possível. São Paulo: UNESP, 1998.
  • ASSUNÇÃO, M. M. S. Magistério primário e cotidiano escolar . Campinas: Autores Associados, 1995.
  • BANDEIRA, L. A contribuição da crítica feminista à ciência. Rev. Estud. Fem , Florianópolis, v. 16, n. 1, p. 207–228, jan./mar. 2008.
  • BOURDIEU, P. A dominação masculina . Tradução de Maria Helena Kuner. 2. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002.
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  • 1
    Atualmente, no IFNMG/Salinas, não há uma única professora do gênero feminino lecionando disciplinas do Núcleo Específico do curso de Licenciatura em Matemática.
  • 2
    Atualmente, encontra-se lotada em outro campus do IFNMG.
  • 3
    https://www.paho.org/pt/covid19 . Acesso em 20 de agosto de 2020.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Ago 2022
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2022

Histórico

  • Recebido
    22 Abr 2021
  • Aceito
    14 Mar 2022
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