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Um Segundo Turno entre Leibniz e Descartes: o infinito contra o negacionismo

A Second Round Between Leibniz and Descartes: infinity against negationism

Resumo

Neste texto, buscamos caminhos para o enfrentamento do negacionismo científico, que já mostrou ser instrumento de uma política de morte. Situamos nossos argumentos em uma disputa entre a noção de exatidão, herdada do pensamento cartesiano, e a inclusão do infinito na matemática tal como proposta por Leibniz, com base na posição de que o incompreensível desperta o pensamento. A partir dessa inspiração, que faz referência a um momento determinante da história da matemática, defendemos uma educação como política de vida, que produza outras narrativas, capazes de adiar o fim do mundo.

Palavras-chave:
Educação em ciências; Negacionismo; Problematização

Abstract

In this paper, we seek ways to confront scientific denialism as death-inducing politics. We sustain our arguments in a dispute between the notion of accuracy of Cartesian thinking and the infinity inclusion in the mathematics proposed by Leibniz, based on the position that the incomprehensible instigates thought. We defend education as life-inducing politics, which produces other narratives, capable of postponing the end of the world.

Keywords:
Science education; Denialism; Problematization

1 Por uma Ciência Comprometida com a Vida

O negacionismo e os movimentos anticiência tornaram-se problemas graves – possivelmente os mais graves de nossos tempos. Tratamentos sem eficácia cientificamente comprovada foram receitados, amplamente, durante a pandemia, com endosso de alguns profissionais da área de saúde; nossa cobertura vacinal vem caindo, ao ponto absurdo de termos um novo caso de poliomielite no Brasil; dados objetivos sobre desmatamento são contestados; evidências das mudanças climáticas antropogênicas são negadas e surgem, até mesmo, defensores de que a Terra seja plana.

Atitudes negacionistas se capilarizam e conquistam apoio popular, sustentadas sobre um terreno fértil, produzido por uma crise de confiança na ciência – e isso garante poder político a quem dialoga com o ceticismo (ROQUE, 2021ROQUE, T. O Dia em que Voltamos de Marte. Rio de Janeiro: Planeta, 2021.). Como vemos de perto, no Brasil, a ascensão da ultradireita tem relação direta com o negacionismo climático, alçado ao patamar de política de Estado pelo governo Bolsonaro. Diversas ações corroboram esse diagnóstico: desmonte de órgãos técnicos de controle e fiscalização, acusação a ONGs que formulam políticas públicas na área ambiental, desmoralização e perseguição a cientistas, demissão do presidente do INPE por divulgar dados corretos sobre desmatamento. A nova agenda chegou a ser defendida pelo presidente do Brasil na ONU, que aproveitou para anunciar ao mundo que não respeitará os direitos e as terras indígenas.

Como (re)agir diante desse fenômeno? É um péssimo começo de conversa apontar a ignorância ou a crença religiosa como culpadas pela crise da verdade. Uma pesquisa feita no Brasil, em 2019, indica que a ciência ainda tem crédito junto à população, mesmo com o crescimento do ceticismo. O Centro de Gestão e Estudos Estratégicos, órgão do Ministério da Ciência Tecnologia e Inovação, comparou a opinião de diferentes estratos sociais sobre a seguinte questão, analisando também sua evolução no tempo: a ciência e a tecnologia trazem mais malefícios ou benefícios para a humanidade? As pessoas com renda entre um e dois salários mínimos que responderam trazer só benefícios ou mais benefícios do que malefícios totalizam, aproximadamente, 67% dessa faixa de renda.

Por outro lado, entre 2015 e 2019, o percentual daqueles que acreditavam que a ciência e a tecnologia trazem só benefícios caiu muito (de 51% para 32%), enquanto o percentual dos que consideram que essas trazem mais benefícios do que malefícios aumentou (de 16% para 37%). Portanto, ao mesmo tempo que esses dados indicam a importância de manter o otimismo, também mostram que não podemos relaxar. Há outro dado importante, que desafia explicações simplistas para o negacionismo baseadas apenas em renda: na faixa dos que ganham mais de dez salários mínimos, a queda da confiança na ciência é ainda mais significativa. Nesse estrato, no mesmo período de 2015 a 2019, o percentual dos que enxergam só benefícios caiu de 61% para 26%, ao passo que a dúvida, contida na expressão mais benefícios do que malefícios, aumentou de 24% para 51%. Ou seja, embora a desconfiança não tenha chegado a ser a visão majoritária, o ceticismo se insinua – independentemente do estrato social. Logo, a atribuição do crescimento do negacionismo simplesmente à ignorância ou a deficiências educacionais atribuídas aos mais pobres não é explicação adequada para o fenômeno.

Parece haver uma dificuldade da ciência em oferecer visões de mundo promissoras, como vinha fazendo desde o século XIX. No livro O Dia em que Voltamos de Marte, (ROQUE, 2021ROQUE, T. O Dia em que Voltamos de Marte. Rio de Janeiro: Planeta, 2021.), descrevemos como a ciência teve um papel essencial para que as pessoas acreditassem que o futuro ofereceria dias melhores. Nos últimos três séculos, ciência e política caminharam juntas, criando projetos, sofrendo abalos, mas reinventando estratégias para reconquistar a confiança social, em prol da ideia de que o progresso científico traria benefícios a todos e diminuiria as desigualdades e o sofrimento coletivo. A visão do sistema planetário e a conquista do espaço são paradigmáticos desses tempos.

Tudo isso está em questão nos dias de hoje. Vivemos tempos de mudanças sem precedentes. Uma crise da ciência e da política emerge como reação aos modelos que vigoraram até o século XX. O problema se agravou desde que a própria ciência passou a constatar que o planeta está se aquecendo, que isso se deve à ação humana, e que algumas das atividades humanas que mais contribuem com o aquecimento global estão ligadas a grandes interesses econômicos. As mudanças climáticas são um desafio inédito, cujo enfrentamento demanda grandes transformações, que devem ser impulsionadas pelo que os cientistas do clima dizem estar acontecendo. Não é de se espantar que, diante disso, a ciência e a política estejam hoje tão entrelaçadas.

A melhor maneira de enfrentar o negacionismo não é isolar ou proteger a ciência, com uma ideia de isenção política e social, levando-a de volta à torre de marfim. Ao contrário, nós, cientistas, temos que assumir, também, o papel político de levar às instituições e ao parlamento o discurso científico, usando-o para defender as causas socialmente relevantes em que acreditamos. Em lugar de devastação ambiental e ataques aos direitos indígenas, um projeto de restauração florestal, com manutenção das terras indígenas e inspiração em seus modos de vida para criarmos formas outras de estar no planeta. Em lugar de agronegócio em grandes latifúndios para exportação de commodities, uma economia verde voltada para a segurança alimentar, para a transição energética e para a garantia de bem viver a toda a população. Em lugar de preconceito e exclusão, uma política capaz de produzir uma sociedade mais diversa, justa e igualitária. Em lugar da torre de marfim, uma ciência comprometida com a vida.

Para além de benefícios concretos, para além do papel da ciência em oferecer remédios e vacinas, soluções para o aquecimento global e para a fome, temos, ainda, que resgatar uma visão de mundo e de futuro. Em paralelo a uma ciência objetiva, há o infinito. No interior da filosofia da ciência, sempre houve disputas sobre o lugar do infinito e do incognoscível. Será que essas ideias deveriam ser empurradas para fora do território do conhecimento científico? Ou o pensamento poderia abordá-las, inventando conceitos capazes de falar do indizível?

Na continuação deste texto, abordamos, brevemente, uma discordância entre Leibniz e Descartes, em torno dessa questão. O lugar da matemática é evidente em tal disputa, uma vez que a escolha de ferramentas e de ramos específicos da matemática favorecem, ou não, a inclusão do infinito. Antes de passar a falar especificamente da matemática, destacamos uma citação de Nietzsche, em sua obra Humano, Demasiado Humano, publicada originariamente em 1878, sobre o enfado que a ciência provoca caso não alce voos mais altos:

A ciência dá muita satisfação a quem nela trabalha e pesquisa, e muito pouca a quem aprende seus resultados. Mas, como aos poucos todas as verdades importantes da ciência têm de se tornar cotidianas e comuns, mesmo essa pouca satisfação desaparece: assim como há tempos deixamos de nos divertir ao aprender a formidável tabuada. Ora, se a ciência proporciona cada vez menos alegria e, lançando suspeita sobre a metafísica, a religião e a arte consoladoras, subtrai cada vez mais alegria, então se empobrece a maior fonte de prazer, a que o homem deve quase toda a sua humanidade. Por isso uma cultura superior deve dar ao homem um cérebro duplo, como que duas câmaras cerebrais, uma para perceber a ciência, outra para o que não é ciência; uma ao lado da outra, sem se confundirem, separáveis, estanques; isto é uma exigência da saúde. Num domínio a fonte de energia, no outro o regulador: as ilusões, parcialidades, paixões devem ser usadas para aquecer, e mediante o conhecimento científico deve-se evitar as consequências malignas e perigosas de um superaquecimento. — Se esta exigência de uma cultura superior não for atendida, o curso posterior do desenvolvimento humano pode ser previsto quase com certeza: o interesse pela verdade vai acabar, à medida que garanta menos prazer; a ilusão, o erro, a fantasia conquistarão passo a passo, estando associados ao prazer, o território que antes ocupava: a ruína das ciências, a recaída na barbárie, é a consequência seguinte; novamente a humanidade voltará a tecer sua tela, após havê-la desfeito durante a noite, como Penélope. Mas quem garante que ela sempre terá forças para isso? (NIETZSCHE, 2000NIETZSCHE, F. Humano, Demasiado Humano. Um livro para espíritos livres. Trad. de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2000 (Vol. I) e 2008 (Vol. II)., p. 104).

2 A Matemática: Rainha das Ciências ou Ciência do Infinito?

A matemática é comumente descrita por jargões tais como a rainha das ciências, como uma forma de situá-la em uma espécie de posição privilegiada em relação a outros campos do conhecimento. Esse estatuto se estabeleceu, ao menos, desde o século XVII, pois, desde então, é à matemática que se recorre quando se buscam critérios de certeza e exatidão. Para René Descartes, eram exatos procedimentos que permitiam construir curvas por meio de equações algébricas. Por exemplo, ao invés de construir um círculo geometricamente com instrumentos euclidianos, tornou-se possível construir essa figura por meio da equação x2 + y2 = r2. Como argumenta Bos (2001)BOS, H. J. M. Redefining Geometrical Exactness, Descartes’ Transformation of the Early Modern Concept of Construction. New York: Springer, 2001., essa noção de exatidão era característica do século XVII. Na Europa, esse século foi marcado pela disseminação de uma consciência de que o desenvolvimento técnico poderia melhorar a vida das pessoas, por meio do domínio da natureza. Essa ideia pode ser constatada no seguinte trecho do Discurso do Método (Sexta Parte), de Descartes, publicado originalmente em 1637:

[…] tão logo adquiri algumas noções gerais concernentes à física e tendo começado a comprová-las em várias dificuldades particulares e percebido até onde podiam conduzir e o quanto diferem dos princípios que haviam sido utilizados até o presente, considerei que não podia mantê-las escondidas sem transgredir a lei que nos obriga a procurar, no que depende de nós, o bem geral de todos os homens. Pois elas me mostraram que é possível chegar a conhecimentos muito úteis à vida, e que, em lugar dessa filosofia especulativa que se ensina nas escolas, é possível encontrar-se uma outra prática mediante a qual, conhecendo a força e as ações do fogo, da água, do ar, dos astros, dos céus e de todos os outros corpos que nos cercam, tão claramente como conhecemos os vários ofícios de nossos artífices, poderíamos utilizá-los da mesma forma em todos os usos para os quais são próprios, e assim nos tornarmos como senhores e possuidores da natureza (DESCARTES, 1996DESCARTES, R. Discurso do Método. Tradução de J. Guinsburg e Bento Prado Junior, São Paulo, Nova Cultural, 1996., p. 35).

Descartes já propunha, em suas Regras para a Direção do Espírito, escritas por volta de 1628, uma nova ciência que seria uma espécie de matemática universal (Mathesis Universalis): “uma ciência geral que explique tudo o que se pode investigar acerca da ordem e da medida, sem as aplicar a uma matéria especial” (DESCARTES, 1989, p. 377). Em consonância com outros intelectuais da época, Descartes defendia que somente as coisas passíveis de medida e quantificação podem, realmente, ser conhecidas, e, somente dessas, deve se ocupar o pensamento – ou seja, as coisas mesuráveis e quantificáveis constituíram o objeto dessa ciência universal.

Para o autor, as deduções lógicas que permitem passar de uma proposição a outra deveriam ser substituídas por relações entre coisas quantificáveis, expressas por equações, isto é, igualdades entre quantidades. Descartes distinguia dois tipos de ideias: as obscuras e confusas, trazidas à percepção pelos sentidos, e as claras e distintas, que se apresentam ao espírito com nitidez e estabilidade. Quanto mais distantes da quantificação, mais as ideias se aproximariam do obscuro, podendo induzir a erros provocados pelos sentidos. Então, o mundo só poderia ser entendido por meio das ideias claras e distintas, produzidas sobretudo pela matemática, com suas quantificações independentes dos sentidos.

Como destaca Barbin (2006)BARBIN, É. La révolution mathématique du XVIIème siècle. Paris: Ellipses, 2006., a concepção de que a realidade é matemática se estabelece pela delimitação de uma realidade constituída pela seleção daquilo que é matematizável. Segunda essa interpretação, com a qual nos alinhamos, a proposição de uma ciência universal, como uma forma privilegiada de entender tudo aquilo que é possível ser entendido – e que, assim, conferiria à matemática o estatuto de rainha das ciências, de fornecedora absoluta de critérios de certeza – é, na verdade, a instituição de um universo, delimitado por aquilo que pode ser entendido por meio da matemática, das coisas quantificáveis e das relações entre elas.

Para Descartes, há uma ordem do conhecimento que precisa ser respeitada para que se atinja a racionalidade. Um discurso racionalmente estruturado constitui-se por meio da disposição das coisas sob a forma de séries, de tal forma que umas são conhecidas a partir de outras (DESCARTES, 1999DESCARTES, R. Regras para a Direção do Espírito. Tradução: Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 1999.). Assim, a ordem consiste em que as coisas seguintes devem ser dispostas de tal forma que sejam demonstradas só pelas coisas que as precedem. Então, a conexão entre os conhecimentos só pode se dar de forma dedutiva, pois, assim se estabelece uma ordem hierárquica e irreversível em que cada verdade é justificada por aquelas que a antecedem.

Gottfried Leibniz se opõe, contundentemente, a esse modelo de sistematização, herdado da tradição euclidiana, em que se assume um pequeno conjunto de teses fundamentais sem demonstração, a partir das quais todo o restante da doutrina é deduzido sequencialmente. O modelo de sistema defendido por Leibniz não se inspira na geometria grega, mas na física do século XVII, mais especificamente no cálculo de variações, em que o máximo de conteúdo é organizado pelo mínimo de princípios operativos (RESCHER, 1981RESCHER, N. Leibniz and the concept of a system. Studia Leibnitiana, Hannover, [s.v], n. 13, p. 114-122, 1981.). A unidade do conhecimento deixa, assim, de residir na unidade do processo dedutivo para ser assegurada pela universalidade dos princípios usados, e se mantém sob a diversidade das exposições. O conhecimento é como o mundo: concentra o máximo de realidade com o máximo de ordem e de economia, no qual a maior variedade possível de fenômenos é originada com base no mínimo de decretos e o máximo de seres coexiste em harmonia. Por isso, a unidade das doutrinas e dos princípios nunca é perdida. Isso vale para a filosofia, para a moral e para a lógica.

Como afirma Belaval (2003)BELAVAL, Y. Leibniz Critique de Descartes. Paris: Gallimard, 2003., tanto Descartes como Leibniz estão situados na mesma época dos últimos filósofos físicos. Entretanto, verificam-se profundas diferenças entre suas abordagens de física: enquanto o pensamento de Descartes é marcado pela algebrização da geometria, o pensamento de Leibniz é mais dinâmico, motivado pelos infinitamente pequenos.

Descartes busca uma arte de inventar, partindo da matemática e interrogando sobre o que dá certeza ao seu método. Leibniz considera que a dinâmica pode incluir na matemática o infinito, também manifestado no infinitamente pequeno. Para o autor, ainda que o homem seja finito, ele pode conhecer algo do infinito, pois o incompreensível tem graus e desperta a inteligência. Para Descartes isso é inadmissível, pois o infinito é obscuro e confuso, por isso, deve ser mantido longe do campo da matemática, que é restrito apenas às ideias claras e distintas. No pensamento cartesiano, o infinito habita o terreno do que não pode ser conhecido – portanto fora do universo delimitado pela matemática. Já Leibniz, encara de frente o infinito e o infinitamente pequeno, com todas as contradições que essa posição possa acarretar, chegando até a desafiar os próprios métodos matemáticos.

3 Por uma Educação para Adiar o Fim do Mundo

Vivemos em tempos graves e sem precedentes, que têm produzido, em muitos de nós, uma profunda e perturbadora sensação de incerteza e ansiedade em relação ao futuro iminente, como se estivéssemos em um momento de bifurcação – em que pequenas escolhas, ações pontuais pudessem determinar se nos dirigimos a um cenário de devastação generalizada ou se há possibilidade de construção de futuros sustentáveis. Essa sensação é, provavelmente, bastante realista.

A ultradireita, que tem como projeto a devastação humana e ambiental, se sustenta, em grande medida, no negacionismo como política de recrudescimento do ódio absoluto ao conhecimento e à vida, que se infiltra e se dissemina em diversos setores e grupos sociais. Sobre isso, nos alerta Ailton Krenak (2019KRENAK, A. Ideias para Adiar o Fim do Mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2019., p. 13):

Nosso tempo é especialista em criar ausências: do sentido de viver em sociedade, do próprio sentido da experiência da vida. Isso gera uma intolerância muito grande com relação a quem ainda é capaz de experimentar o prazer de estar vivo, de dançar, de cantar. E está cheio de pequenas constelações de gente espalhada pelo mundo que dança, canta, faz chover. O tipo de humanidade zumbi que estamos sendo convocados a integrar não tolera tanto prazer, tanta fruição de vida. Então, pregam o fim do mundo como uma possibilidade de fazer a gente desistir dos nossos próprios sonhos.

A constatação dessa política que fomenta a fobia ao conhecimento e à vida pode nos ajudar a entender algo que tem parecido difícil de conceber, ou mesmo irreal: como é possível haver, no Brasil de hoje, (tantas) pessoas que se alinhem a ideologias tão explicitamente contrárias aos princípios mais básicos de civilidade e respeito ao outro; pessoas que permaneçam indiferentes quando a dignidade física, emocional e moral do outro é violada, ou flagrantemente ameaçada; ou mesmo pessoas que possam ter alguma dúvida sobre que escolha tomar frente a essas ideologias?

Os tempos em que vivemos têm nos desafiado a pensar sobre que ações podemos tomar, como professores e cientistas, para o enfrentamento do negacionismo como política de morte. Para isso, é preciso entender que a confiança pública na ciência se baseia na percepção de sua capacidade de oferecer possibilidades de vida, e que essa percepção não opera apenas no campo da razão, mas, sobretudo, no campo dos afetos. Pressionados por tal desafio, por vezes tendemos a subscrever uma posição de que, para enfrentar o negacionismo no terreno da educação, seria necessário um ensino mais duro e rigoroso, especialmente no caso das ciências ditas exatas.

A crise de confiança na ciência seria, então, causada apenas pelo desconhecimento objetivo de seus fatos e verdades, como estão estruturados internamente hoje. Em outras palavras, uma educação em ciências que apresente seus fatos e verdades, de forma lógica e clara, seria suficiente para resgatar sua confiança pública. Essa posição parece estar relacionada com certa confusão epistemológica entre uma visão interior das ciências ditas exatas, que diz respeito à forma como sua lógica interna estrutura seus critérios de verdade aceitos hoje, e uma visão dessas ciências como práticas sociais, que se refere à produção de sentidos e de saberes no âmbito das dimensões histórica e subjetiva. Nesse sentido, como argumentamos em trabalhos anteriores (GIRALDO; ROQUE, 2021GIRALDO, V.; ROQUE, T. Por uma Matemática Problematizada: as Ordens de (Re)Invenção. Perspectivas da Educação Matemática, Campo Grande, MS, v. 14, n. 35, p. 1-21, 2021., p. 2-3):

A matemática é socialmente reconhecida hoje como a ciência da lógica, da exatidão e da certeza por excelência. O conhecimento matemático seria, então, caracterizado pela perfeição da estrutura e pela correção dos resultados. […] A visão convencional da matemática como ciência da lógica, da exatidão e da certeza pode descrever a ordem da estrutura, isto é, a organização do conhecimento matemático científico e seus critérios de legitimação aceitos hoje – porém, não corresponde às ordens de invenção, ou seja, às formas de produção de conhecimento que estiveram e estão presentes nas diversas práticas hoje chamadas de matemáticas. Na matemática contemporânea, a perfeição da estrutura, chancelada pelas regras da lógica, é perseguida na forma de organizar e de encadear axiomas, definições, teoremas e demonstrações, o que constitui a garantia de correção e de exatidão dos resultados.

Como também já defendemos (GIRALDO; MATOS; QUINTANEIRO, 2020GIRALDO, V.; MATOS, D.; QUINTANEIRO, W. Entre epistemologias hegemônicas e sabedorias outras: a matemática na encruzilhada. Revista Latinoamericana de Etnomatemática, Popayán, Cauca, v. 13, n. 1, p. 49-66, 2020.), para enfrentar o negacionismo não precisamos de uma educação que apresente as ciências ditas exatas de forma mais dura, mas, sim, uma educação que produza sentidos e mobilize afetos. Para isso, a ciência precisa se dessacramentalizar, isto é, em lugar de se colocar como um conjunto de fatos e verdades incontestáveis, se apresentar, justamente, a partir de uma constante capacidade de problematizar a si própria, que pode distingui-la de sistemas dogmáticos de crenças. Assim, para que a ciência volte a encantar, precisa se tornar menos exata.

Entramos, então, em uma disputa em torno de um sentido de exatidão construído historicamente, que conforma visões sobre a matemática e seu ensino hoje, que a situa na posição de rainha das ciências, provedora de exatidão às outras ciências, como defendia Descartes. O que propomos é contestar a visão herdada de Descartes, que esteve em disputa desde sua própria época. Um dos maiores críticos à limitação da noção cartesiana de exatidão foi Leibniz, que contribuiu com a introdução do infinito no território da matemática. Para Descartes, as ideias claras e distintas se opõem às ideias obscuras e confusas. Já para Leibniz, não há tal oposição: as ideias podem ser ao mesmo tempo claras e confusas, distintas e obscuras. Inspirados por Leibniz, entendemos que é justamente a desconstrução dessa oposição que põe o pensamento em permanente movimento, em lugar de indicar fatos e verdades completas e acabadas como pontos definitivos de chegada. Assim, nessa disputa, defendemos uma matemática constituída não exclusivamente de ideias claras e distintas, mas, sobretudo, do incompreensível, uma matemática que se situe na incompletude e no inacabamento.

Mas, em tempos de bifurcação entre a devastação e a vida, que políticas educacionais podem produzir futuros viáveis? Para essa questão, Krenak (2019KRENAK, A. Ideias para Adiar o Fim do Mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2019., p. 13-15) nos ensina uma resposta possível:

E a minha provocação sobre adiar o fim do mundo é exatamente sempre poder contar mais uma história. Se pudermos fazer isso, estaremos adiando o fim. (…) Há centenas de narrativas de povos que estão vivos, contam histórias, cantam, viajam, conversam e nos ensinam mais do que aprendemos nessa humanidade.

Para adiar o fim do mundo, precisamos de outras narrativas históricas de ciência e outros sentidos de educação. Para além da inspiração em Leibniz, que tensiona a noção cartesiana de exatidão, aprendemos outras narrativas de mundo, como valores civilizatórios, justamente daqueles povos que têm sido mais ameaçados por políticas de morte e de devastação. Assim, a defesa desses povos, seus corpos, suas tradições e suas formas de estar no mundo não é apenas uma questão ética de justiça histórica, mas representa também a preservação de um caminho possível de futuro sustentável para todos – um caminho para adiar o fim do mundo. Não nos engajamos na defesa desses povos para que possamos lhes ensinar a noção de progresso desta humanidade zumbi, como diz Krenak (2019)KRENAK, A. Ideias para Adiar o Fim do Mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2019., um progresso sem compromisso com a vida – mas sim para aprender com eles valores civilizatórios que possam produzir uma ciência e uma educação outras. Para enfrentar o negacionismo como política de morte, reivindicamos uma educação como política de vida.

Referências

  • BARBIN, É. La révolution mathématique du XVIIème siècle Paris: Ellipses, 2006.
  • BELAVAL, Y. Leibniz Critique de Descartes Paris: Gallimard, 2003.
  • DESCARTES, R. Discurso do Método Tradução de J. Guinsburg e Bento Prado Junior, São Paulo, Nova Cultural, 1996.
  • DESCARTES, R. Regras para a Direção do Espírito Tradução: Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
  • BOS, H. J. M. Redefining Geometrical Exactness, Descartes’ Transformation of the Early Modern Concept of Construction. New York: Springer, 2001.
  • GIRALDO, V.; MATOS, D.; QUINTANEIRO, W. Entre epistemologias hegemônicas e sabedorias outras: a matemática na encruzilhada. Revista Latinoamericana de Etnomatemática, Popayán, Cauca, v. 13, n. 1, p. 49-66, 2020.
  • GIRALDO, V.; ROQUE, T. Por uma Matemática Problematizada: as Ordens de (Re)Invenção. Perspectivas da Educação Matemática, Campo Grande, MS, v. 14, n. 35, p. 1-21, 2021.
  • KRENAK, A. Ideias para Adiar o Fim do Mundo São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
  • NIETZSCHE, F. Humano, Demasiado Humano. Um livro para espíritos livres Trad. de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2000 (Vol. I) e 2008 (Vol. II).
  • RESCHER, N. Leibniz and the concept of a system. Studia Leibnitiana, Hannover, [s.v], n. 13, p. 114-122, 1981.
  • ROQUE, T. O Dia em que Voltamos de Marte Rio de Janeiro: Planeta, 2021.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    02 Dez 2022
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2022
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