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O caderno de geometria de 1905 de uma aluna do Colégio São José, de São Leopoldo/RS

The 1905 student geometry notebook from Colégio São José, of São Leopoldo/RS

Resumo

O artigo objetiva discutir o que os problemas encontrados no caderno escolar do ano de 1905, de uma aluna do Colégio São José das Irmãs Franciscanas de São Leopoldo/RS, revelam sobre a Matemática praticada nesse Colégio voltado para a formação feminina. A análise possui abordagem qualitativa, por meio de análise documental, sendo a principal fonte primária desta pesquisa histórica um caderno de geometria do início do século XX. Com base em referenciais sobre cultura escolar, investigaram-se os problemas presentes no caderno, identificando-se os conteúdos envolvidos, os procedimentos de cálculo que emergem desses problemas e a associação com o cotidiano das alunas do Colégio. Os sessenta problemas presentes no caderno abordam o cálculo de área de superfície e, principalmente, de volume de sólidos geométricos. Predomina a aplicação direta das fórmulas para cálculo da área de superfície e de volume de sólidos em 42 problemas. Outros dezoito problemas estão associados ao dia a dia das alunas do Colégio, envolvendo cálculo de volume de sólidos em forma de prisma, cilindro, cone e tronco de cone, como cuba, poço, cisterna, funil, telhado e balde. Os procedimentos de cálculo empregados seguem algumas descrições feitas no livro de Aritmética das Professoras do Colégio São José, do ano de 1900. Com base no exposto, verifica-se que esses problemas revelam traços de uma cultura escolar que educava as gerações de alunas para solução de problemas do cotidiano, tanto no gerenciamento de atividades domésticas, quanto profissionais, a partir de um material didático próprio para as aulas de Matemática no ensino primário.

Palavras-chave:
História da Educação Matemática; Cultura Escolar; Colégio São José; Caderno Escolar; Protagonismo Feminino

Abstract

The paper aims to discuss what the problems found in a 1905 school notebook, from a student at Colégio São José das Irmãs Franciscanas in São Leopoldo/RS, reveal about the Mathematics practiced in this school, aimed at female education. It has a qualitative approach, through document analysis, being a geometry notebook from the beginning of the 20th century, the main primary source of this historical research. Based on references on school culture, the problems present in the notebook were investigated, identifying the contents involved, the calculation procedures that emerge from these problems, and the association with the daily life of the students at the school. The 60 problems present in the notebook deal with the calculation of surface area and, mainly, the volume of geometric solids. The direct application of formulas for calculating the surface area and volume of solids in 42 problems. Another 18 problems are associated with the daily lives of students at the school, involving calculation of the volume of solids in the form of a prism, cylinder, cone, and cone trunk, such as a tub, well, cistern, funnel, roof, and bucket. The calculation procedures used follow some descriptions made in the book on Arithmetics of Colégio São José teachers, from 1900. Based on the above, it appears that these problems reveal a school culture, which educated generations of students to solve everyday problems, both in the management of domestic and professional activities, based on teaching material suitable for Mathematics classes in primary education.

Keywords:
History of Mathematics Education; School Culture; Colégio São José; School Notebook; Female Protagonism

1 Introdução

O papel das mulheres na construção da sociedade e da história do Rio Grande do Sul (RS), na multiplicidade de talentos e áreas de atuação, merece ser resgatado e contado. Particularmente, o protagonismo feminino no ensino da Matemática no Colégio São José das Irmãs Franciscanas de São Leopoldo/RS, nos séculos XIX e XX, constitui tema de uma investigação financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio Grande do Sul (FAPERGS), por meio do Edital FAPERGS 07/2021 – Programa Pesquisador Gaúcho (PqG), em execução pelos autores deste artigo. Ressaltamos que a Congregação das Irmãs Franciscanas da Penitência e Caridade Cristã no Brasil completou 150 anos de missão religiosa e educacional no RS, em abril de 2022.

Entre os materiais que se encontram no Centro Histórico das Irmãs Franciscanas da Penitência e Caridade Cristã – Província1 1 Trata-se do conjunto das instituições de ensino, de saúde e de assistência social de uma ordem religiosa, dentro de uma divisão territorial, administrada por uma superiora provincial, que atua supervisionando todas as suas membras juntamente com auxiliares em cada instituição. do Sagrado Coração de Jesus –, localizado em São Leopoldo/RS, encontra-se um caderno escolar datado de 1905. Durante o processo de análise desse caderno, da aluna Elly Lucia Carolina Presser, notamos a presença de uma série de problemas resolvidos com o título Medida dos volumes, o que chamou a atenção destes pesquisadores e os levou ao seguinte questionamento: o que os problemas encontrados no caderno de uma aluna do Colégio São José das Irmãs Franciscanas de São Leopoldo/RS, datado de 1905, revelam sobre a Matemática praticada nesse colégio, voltado para a formação feminina?.

A partir desse problema de pesquisa, neste artigo nos propomos a discutir o que os problemas encontrados no caderno do ano de 1905, de uma aluna do Colégio São José das Irmãs Franciscanas de São Leopoldo/RS, revelam sobre a Matemática praticada nesse colégio voltado para a formação feminina. Nesse sentido, realizamos uma investigação com abordagem qualitativa, por meio de análise documental, sendo um caderno escolar do início do século XX a principal fonte primária desta pesquisa histórica.

Após esta introdução, o artigo discorre sobre a cultura escolar expressa por meio de cadernos escolares, conta um pouco da história da Congregação das Irmãs Franciscanas da Penitência e Caridade Cristã no Brasil e do Colégio São José de São Leopoldo/RS, apresenta o percurso metodológico da investigação, a análise e discussão de problemas presentes no caderno escolar de 1905 e as considerações finais deste estudo.

2 Cultura escolar a partir de cadernos escolares

Como o tema desta investigação insere-se na História da Educação Matemática do início do século XX, no RS, nos valemos de Prost (2008), que considera a constituição de fatos históricos a partir de traços deixados no presente pelo passado. O autor pondera que o trajeto da produção histórica, na qualidade de interesse de pesquisa, perpassa a formulação de questões históricas legítimas, o trabalho com os documentos e a construção de um discurso que seja aceito pela comunidade. Em complemento, acerca do estudo de documentos escritos, Cellard (2008CELLARD, A. A análise documental.In: POUPART, J. et al. A pesquisa qualitativa: enfoques epistemológicos e metodológicos. Petrópolis/RJ: Vozes, 2008. p. 295-316.) destaca:

O documento escrito constitui uma fonte extremamente preciosa para todo pesquisador. Ele é, evidentemente, insubstituível em qualquer reconstituição referente a um passado relativamente distante, pois não é raro que ele represente a quase totalidade dos vestígios da atividade humana em determinadas épocas. Além disso, muito frequentemente, ele permanece como o único testemunho de atividades particulares ocorridas num passado recente (CELLARD, 2008CELLARD, A. A análise documental.In: POUPART, J. et al. A pesquisa qualitativa: enfoques epistemológicos e metodológicos. Petrópolis/RJ: Vozes, 2008. p. 295-316., p. 295).

Entre as fontes primárias de pesquisas históricas em Educação Matemática, destacam-se os documentos textuais (documentos oficiais, livros, jornais, revistas, cadernos escolares etc.), as fontes visuais (fotografias, gravuras, entre outros) e os registros orais (entrevistas, gravações etc.), como observado nos estudos realizados por Kuhn (2015KUHN, M. C. O ensino da matemática nas escolas evangélicas luteranas do Rio Grande do Sul durante a primeira metade do século XX.2015. Tese (Doutorado em Ensino de Ciências e Matemática) – Programa de Pós-Graduação em Ensino de Ciências e Matemática, Universidade Luterana do Brasil, Canoas, 2015.), Britto (2016BRITTO, S. L. M. O ensino da aritmética nas escolas paroquiais católicas e no Ginásio Conceição, sob a ótica dos Jesuítas nos séculos XIX e XX. 2016. Tese (Doutorado em Ensino de Ciências e Matemática) – Programa de Pós-Graduação em Ensino de Ciências e Matemática, Universidade Luterana do Brasil, Canoas, 2016.), entre outros. Conforme Chartier (2007CHARTIER, A. M. Os cadernos escolares: organizar os saberes, escrevendo-os. Revista de Educação Pública, Cuiabá, v. 16, n. 32, p. 13-33, set./dez. 2007. Disponível em: file:///C:/Users/Usuario/AppData/Local/Temp/542-Texto%20do%20Artigo-847-1-10-20121007.pdf. Acesso em: 13 nov. 2021.
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, p. 13), “os cadernos escolares são um material pouco utilizado nas pesquisas históricas, devido à sua extrema fragilidade. Eles fornecem, entretanto, testemunhos insubstituíveis a respeito dos exercícios escolares, das práticas pedagógicas e do desempenho dos alunos no contexto da sala de aula”. A mesma autora complementa que “os cadernos escolares podem nos ajudar a entender o funcionamento da escola de uma maneira diferente da veiculada pelos textos oficiais ou pelos discursos pedagógicos” (CHARTIER, 2007CHARTIER, A. M. Os cadernos escolares: organizar os saberes, escrevendo-os. Revista de Educação Pública, Cuiabá, v. 16, n. 32, p. 13-33, set./dez. 2007. Disponível em: file:///C:/Users/Usuario/AppData/Local/Temp/542-Texto%20do%20Artigo-847-1-10-20121007.pdf. Acesso em: 13 nov. 2021.
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, p. 14). Nesse sentido, ressaltamos que:

A materialidade contida nos cadernos didáticos possibilita identificar especificidades relacionadas a momentos peculiares da história da educação a partir da análise do seu uso, dos conteúdos trabalhados em sala de aula e aqueles registrados pelo aluno. Ao observarmos esses objetos culturais em sua regularidade é possível identificar a permanência na disposição de enunciados e respostas, a utilização do espaço gráfico da página para textos ou exercícios, os procedimentos que indicam o início ou encerramento de atividades, a organização do tempo por meio da data, entre outros indicadores que marcam a modelação de práticas escolares (KIRCHNER, 2018KIRCHNER, C. A. S. M. A análise do caderno escolar como recurso didático nas aulas de História da Educação. Pedagogia em Foco, Iturama, v. 13, n. 10, p. 159-169, jul./dez. 2018. Disponível em: file:///C:/Users/Usuario/AppData/Local/Temp/366-1447-1-PB.pdf. Acesso em: 13 nov. 2021.
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, p. 160).

De acordo com Chartier (2007CHARTIER, A. M. Os cadernos escolares: organizar os saberes, escrevendo-os. Revista de Educação Pública, Cuiabá, v. 16, n. 32, p. 13-33, set./dez. 2007. Disponível em: file:///C:/Users/Usuario/AppData/Local/Temp/542-Texto%20do%20Artigo-847-1-10-20121007.pdf. Acesso em: 13 nov. 2021.
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), o caderno passou de um livro de memória, uma vitrine do trabalho escolar2 2 O aluno, primeiramente, fazia o rascunho, o mestre fazia a correção coletiva ou individual para que o exercício fosse passado a limpo, fazendo com que o caderno se transformasse, de acordo com Anne-Marie Chartier, em uma vitrine do trabalho escolar (KIRCHNER, 2018, p. 161). , no século XIX, para o espelho das aprendizagens em curso, em meados do século XX, quando o papel de celulose substituiu o papel de tecido, tornando os cadernos mais acessíveis com as inovações tecnológicas. Todavia, “o tempo das práticas não acompanha o tempo dos discursos e a produção dos cadernos ‘sem erros’ não foi abandonada facilmente” (KIRCHNER, 2018KIRCHNER, C. A. S. M. A análise do caderno escolar como recurso didático nas aulas de História da Educação. Pedagogia em Foco, Iturama, v. 13, n. 10, p. 159-169, jul./dez. 2018. Disponível em: file:///C:/Users/Usuario/AppData/Local/Temp/366-1447-1-PB.pdf. Acesso em: 13 nov. 2021.
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, p. 161). Os cadernos escolares do século XX, apesar de se apresentarem menos padronizados que os anteriores, trazem os avanços do aluno, mas, ainda não registram uma escrita espontânea e pessoal, mas o desempenho que se espera dele em relação ao seu período de escolarização (CHARTIER, 2007CHARTIER, A. M. Os cadernos escolares: organizar os saberes, escrevendo-os. Revista de Educação Pública, Cuiabá, v. 16, n. 32, p. 13-33, set./dez. 2007. Disponível em: file:///C:/Users/Usuario/AppData/Local/Temp/542-Texto%20do%20Artigo-847-1-10-20121007.pdf. Acesso em: 13 nov. 2021.
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).

No entanto, o trabalho do historiador, de acordo com Certeau (1982CERTEAU, M. A escrita da História. Tradução de Maria de Lourdes Menezes. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1982.), não se limita a produzir documentos ou textos em uma nova linguagem, pois, no seu fazer pesquisa, há um diálogo constante do presente com o passado, e o produto desse diálogo consiste na transformação de objetos naturais em cultura. Conforme Chartier (2007CHARTIER, A. M. Os cadernos escolares: organizar os saberes, escrevendo-os. Revista de Educação Pública, Cuiabá, v. 16, n. 32, p. 13-33, set./dez. 2007. Disponível em: file:///C:/Users/Usuario/AppData/Local/Temp/542-Texto%20do%20Artigo-847-1-10-20121007.pdf. Acesso em: 13 nov. 2021.
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, p. 31), “os conteúdos da cultura escolar transformam-se ao longo do tempo, o que refletiu na modificação da hierarquia dos saberes e das práticas de escrita. Não é fácil apreender essa evolução nos textos nem nos programas oficiais, mas ela é visível nos cadernos dos alunos”. Nesse sentido, Julia (2001JULIA, D. A cultura escolar como objeto histórico. Revista Brasileira de História da Educação, Campinas, n. 1, p. 9-43, jan./jun. 2001., p. 10) define a cultura escolar como:

Um conjunto de normas que estabelecem conhecimentos a ensinar e condutas a inculcar, e um conjunto de práticas que permitem a transmissão desses conhecimentos e a incorporação desses comportamentos; normas e práticas coordenadas a finalidades que podem variar segundo às épocas.

Por sua vez, Chervel (1990CHERVEL, A. História das disciplinas escolares - reflexões sobre um campo de pesquisa. Teoria & Educação, Porto Alegre, n. 2, p. 177-229, 1990.) considera importante o estudo da cultura escolar para a compreensão dos elementos que participam da produção/elaboração/constituição dos saberes escolares e, em particular, da Matemática escolar e sua história. Dessa forma, elegemos um caderno escolar como principal fonte documental desta pesquisa histórica, em busca de indícios de práticas de escrita, apropriações e usos, tornando-o mensageiro de sentidos, valores e representações das alunas do Colégio São José, de São Leopoldo/RS, no início do século XX.

3 Congregação das Irmãs Franciscanas e o Colégio São José, de São Leopoldo/RS

As Irmãs Franciscanas da Penitência e Caridade Cristã chegaram ao Brasil em 2 de abril de 1872, instalando-se no município de São Leopoldo, estado do Rio Grande do Sul, com o objetivo de contribuir para a educação de crianças e jovens, em sua maioria filhas de imigrantes alemães. A vinda das Irmãs foi demandada pelas comunidades de imigrantes alemães no estado gaúcho, que estavam desassistidas pela instrução pública (BOHNEN; ULLMANN, 1989BOHNEN, A.; ULLMANN, R. A. A Atividade dos Jesuítas de São Leopoldo. São Leopoldo: UNISINOS, 1989.). Seu preparo e sua experiência pedagógica3 3 O trabalho educacional das Irmãs Franciscanas era solicitado por autoridades políticas e eclesiásticas na Alemanha e recomendado por familiares e ex-alunas do internato e externas. Esse desempenho foi influenciado pelo pedagogo Gerardus Hendricus Laus, diretor do Curso Normal no Colégio de Heythuysen, no período de 1862 a 1869 (RUPOLO, 2001). originaram um convite do missionário jesuíta alemão, Padre Guilherme Feldhaus, superior da missão brasileira dos jesuítas no RS, o que foi reforçado pela “ameaça de se desencadear na Alemanha um período de grandes dificuldades para a igreja: era o Kulturkampf4 4 Kulturkampf, ou luta pela cultura, foi um movimento anticlerical alemão do século XIX, iniciado por Otto von Bismarck, chanceler do Império Alemão, em 1872. à vista, que traria no seu bojo uma perseguição ferrenha às ordens e congregações religiosas ensinantes” (FLESCH, 1993FLESCH, I. B. História da Congregação das Irmãs Franciscanas da Penitência e Caridade Cristã no Brasil (1872-1951). Porto Alegre: Metrópole, 1993. v. 1., p. 40).

Além disso, é preciso considerar que:

O Estado brasileiro, na época sob regime monárquico, não possuía uma política educacional. A infância e a juventude eram desassistidas no que se referia ao ensino, à exceção de algum atendimento nas capitais, apenas para os filhos da elite. Havia uma necessidade educacional a ser atendida e que progressivamente foi organizada (RUPOLO, 2001RUPOLO, I. Irmãs Franciscanas no Rio Grande do Sul e compromisso educacional. Revista Vidya, Santa Maria, Edição Especial – 50 anos, p. 83-98, jul. 2001. Disponível em: https://periodicos.ufn.edu.br/index.php/VIDYA/article/view/498/488 Acesso em: 8 fev. 2022.
https://periodicos.ufn.edu.br/index.php/...
, p. 90).

Com a chegada a São Leopoldo/RS, as Irmãs fundaram o Colégio São José, sua primeira escola brasileira. “No dia 5 de abril, 1ª sexta feira do mês, começaram as aulas com 23 alunas de 7 a 13 anos, número que foi crescendo de dia para dia” (FLESCH, 1993FLESCH, I. B. História da Congregação das Irmãs Franciscanas da Penitência e Caridade Cristã no Brasil (1872-1951). Porto Alegre: Metrópole, 1993. v. 1., p. 45). As seis Irmãs que partiram de Kapellen, Alemanha, no dia 9 de fevereiro de 1872, acompanhadas pela Superiora Geral, foram até Marselha, na França, onde embarcaram rumo ao Brasil. A viagem decorreu bem até o Rio de Janeiro, onde fizeram baldeação para o navio Calderon. No trajeto entre o Rio e Porto Alegre, o leme da embarcação quebrou, e, diante da falta de água potável e da eminente escassez de alimentos, um grande medo se apoderou de todos. Se houvesse uma tempestade, as ondas do mar tragariam o navio. No entanto, no dia 19 de março – dia de São José – apareceu um navio vindo da Argentina que rebocou o Calderon de volta ao Rio de Janeiro. Com a graça alcançada, as Irmãs prometeram dar ao patrocínio de São José a primeira escola que haveriam de fundar no Brasil (FLESCH, 1993FLESCH, I. B. História da Congregação das Irmãs Franciscanas da Penitência e Caridade Cristã no Brasil (1872-1951). Porto Alegre: Metrópole, 1993. v. 1.). E assim o fizeram.

Ressaltamos que, até o final do século XIX, o ensino no Colégio São José era ministrado em língua alemã. De acordo com Bohnen e Ullmann (1989BOHNEN, A.; ULLMANN, R. A. A Atividade dos Jesuítas de São Leopoldo. São Leopoldo: UNISINOS, 1989., p. 174), “além das aulas de costume, as Irmãs davam lições de tricô às adolescentes algumas vezes por semana. Igualmente ensinavam música a quem desejasse. O piano utilizado para tanto pertencia aos jesuítas do Conceição”.

De modo complementar, pontuamos que,

Inicialmente, as escolas franciscanas caracterizavam-se por um sistema tradicional, com rigor disciplinar, o regime de internato que, além, das disciplinas curriculares, pelo ensino de tempo integral, oferecia estudos complementares de teatro, música, canto, pintura… A maioria das escolas oferecia os cursos primário e ginasial e, nas localidades com maior número de habitantes, havia a formação de professoras primárias (RUPOLO, 2001RUPOLO, I. Irmãs Franciscanas no Rio Grande do Sul e compromisso educacional. Revista Vidya, Santa Maria, Edição Especial – 50 anos, p. 83-98, jul. 2001. Disponível em: https://periodicos.ufn.edu.br/index.php/VIDYA/article/view/498/488 Acesso em: 8 fev. 2022.
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, p. 91).

As Irmãs do Colégio São José também foram pioneiras na elaboração e compilação de livros didáticos para suas escolas e na formação de professoras. Conforme os relatórios do Ginásio Nossa Senhora da Conceição5 5 Para saber mais sobre esse Ginásio, consultar Britto, Bayer e Kuhn (2020). , no período de 1885 a 1903, predominantemente, o material utilizado pelos jesuítas no Ginásio de São Leopoldo eram os livros de Aritmética Elementar Prática II e III, de autoria das Irmãs Franciscanas do Colégio São José. De acordo com Rupolo (2001RUPOLO, I. Irmãs Franciscanas no Rio Grande do Sul e compromisso educacional. Revista Vidya, Santa Maria, Edição Especial – 50 anos, p. 83-98, jul. 2001. Disponível em: https://periodicos.ufn.edu.br/index.php/VIDYA/article/view/498/488 Acesso em: 8 fev. 2022.
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, p. 92), “as escolas franciscanas possuíam uma prática experienciada do ensino vinculado à realidade, ou seja, uma educação para a vida”.

Esse mesmo fator já fora evidenciado nos estudos realizados por Rambo (1996RAMBO, A. B. A escola comunitária teuto-brasileira católica: a associação de professores e a escola normal. São Leopoldo: Ed. Unisinos, 1996.), quando afirmava que, na época, a função da escola era equipar os alunos com o ferramental mais indispensável para serem capazes de competir com êxito, no futuro, no meio social em que nasceram e cresceram.

No ano de 1884, o Colégio São José, localizado ao lado da Igreja Matriz de São Leopoldo, começou a receber alunas do Rio de Janeiro, São Paulo, Paraná, Santa Catarina, Uruguai e Argentina, de modo que, em poucos anos, a escola já contava com alunas internas e externas. Durante seus primeiros cinquenta anos, o Colégio São José funcionou às margens do rio dos Sinos, ao lado do Ginásio Nossa Senhora da Conceição, dos padres jesuítas.

De acordo com Flesch (1993FLESCH, I. B. História da Congregação das Irmãs Franciscanas da Penitência e Caridade Cristã no Brasil (1872-1951). Porto Alegre: Metrópole, 1993. v. 1.), em 1923, ocorreu a mudança das margens do rio dos Sinos para a Colina do Monte Alverne, onde o Colégio São José está localizado atualmente. Dessa forma, aos poucos, a construção foi sendo ampliada, com novos pavilhões, para acolher a juventude cada vez mais numerosa.

Na época, já se formavam mais professoras do que professores no RS, constituindo-se um processo de feminização do magistério. Para Almeida (1998ALMEIDA, J. S. Mulher e educação: a paixão pelo possível. São Paulo: UNESP, 1998., p. 64), a “feminização do magistério primário se refere à expansão da mão-de-obra feminina nos postos de trabalho em escolas e nos sistemas educacionais, relacionada com a frequência à Escola Normal e a traços culturais que favoreceram o exercício do magistério pelas mulheres”.

De acordo com Werle (1996WERLE, F. O. C. Feminização do magistério como estratégia de expansão da instrução pública. Revista de Educação Pública, Cuiabá, v. 5, n. 7, p. 187-200, jan./jun. 1996.), a feminização do magistério é identificada como estruturadora dos argumentos empregados no discurso do governo para justificar a proposição de mulheres como professoras em classes de meninos. Já Tambara (1998TAMBARA, E. Profissionalização, escola normal e feminilização: magistério sul-rio-grandense de instrução pública no século XIX. Revista História da Educação, Pelotas, v. 2 n. 3, p. 35-57, jan./jun. 1998. Disponível em: https://seer.ufrgs.br/index.php/asphe/article/view/30720/pdf. Acesso em: 21 abr. 2022.
https://seer.ufrgs.br/index.php/asphe/ar...
, p. 49) destaca a sutileza de um processo de feminilização, definido pela “identificação entre a natureza feminil e a prática docente no ensino primário”, em um movimento de colagem das características próprias do sexo feminino ao magistério, promovendo a semelhança da docência com trabalho doméstico. Dessa forma, o magistério foi uma das maneiras de as mulheres assumirem espaços na sociedade gaúcha.

Até o ano de 1930, o Colégio São José mantinha o curso Primário e de Música, observando-se que, dessa data em diante até 1946, por convênio estadual, passou a ministrar o curso Complementar. Já em 1942, passou a funcionar o curso Ginasial Secundário no estabelecimento e, a partir de 1948, o curso Colegial Normal. De 1958 em diante, passou a oferecer os cursos Colegial Secundário Científico e Clássico (FLESCH, 1993FLESCH, I. B. História da Congregação das Irmãs Franciscanas da Penitência e Caridade Cristã no Brasil (1872-1951). Porto Alegre: Metrópole, 1993. v. 1.). Atualmente, o Colégio São José recebe em torno de quinhentos alunos, desde a Educação Infantil ao Ensino Médio.

Além do Colégio São José, no ano de 1874, iniciaram-se as atividades no Colégio Sagrado Coração de Jesus, em Santa Cruz do Sul/RS. A presença das Irmãs, em São Leopoldo e Santa Cruz do Sul, impulsionou outras obras religiosas, educacionais e sociais no Sul do Brasil. Além dos citados, fundaram escolas em importantes municípios do RS, tais como Porto Alegre, Santa Maria, Estrela, Pelotas. Fundamental, ainda, foi o trabalho das Irmãs nas escolas paroquiais, buscando atender ao apelo da população. Diversas religiosas dedicaram-se ao ensino nas próprias paróquias e colégios locais (FLESCH, 1993FLESCH, I. B. História da Congregação das Irmãs Franciscanas da Penitência e Caridade Cristã no Brasil (1872-1951). Porto Alegre: Metrópole, 1993. v. 1.).

As escolas criadas pelas irmãs franciscanas no RS seguiam os princípios da Madre Madalena Damen6 6 Maria Catarina Damen nasceu no dia 19 de novembro de 1787, na Holanda. Viveu no período da Revolução Francesa, em que era proibido praticar a religião. Muito jovem, foi trabalhar em Maaseik como doméstica. Lá teve contato com os Freis Capuchinhos, que tinham conseguido, em 1810, permissão para reabrir seu convento. Trabalhando na casa paroquial, também conheceu a Ordem Franciscana Secular. Em 1817, Catarina, junto com outras três jovens, emitiu os votos como franciscana. Ficou pouco tempo com as companheiras, pois, em 1825, o Padre Van der Zandt, pároco da cidade vizinha, solicitou às Irmãs que o ajudassem com as crianças de sua localidade, dando-lhes a instrução religiosa e educação necessária; mas, como ninguém se dispusesse a ir, Catarina se transferiu para aquela cidade, Heythuysen. E quando outras jovens pediram para viver seu estilo de vida, Catarina sentiu ser este um sinal de Deus para fundar uma congregação. Assim, junto com outras três companheiras, fundou a Congregação das Irmãs Franciscanas da Penitência e Caridade Cristã, no dia 10 de maio de 1835. Catarina passou, então, a chamar-se Madre Madalena (FLESCH, 1993). , e sua unidade era marcada pelo pertencimento à Província, com respeito especial pela superiora provincial, que fazia visitas periódicas a cada unidade de ensino para supervisionar o andamento do processo pedagógico de acordo com as determinações provinciais. “Na vida de Madalena Damen, os valores não foram teorizados; a educação e a pedagogia tinham expressão prática, na convivência” (RUPOLO, 2001RUPOLO, I. Irmãs Franciscanas no Rio Grande do Sul e compromisso educacional. Revista Vidya, Santa Maria, Edição Especial – 50 anos, p. 83-98, jul. 2001. Disponível em: https://periodicos.ufn.edu.br/index.php/VIDYA/article/view/498/488 Acesso em: 8 fev. 2022.
https://periodicos.ufn.edu.br/index.php/...
, p. 93).

Depois de 79 anos da chegada das primeiras Irmãs Franciscanas da Penitência e da Caridade Cristã ao Brasil, aconteceu a subdivisão da vasta província do Sagrado Coração de Jesus, cujas razões foram expressas pela superiora geral:

Numa província tão vasta como a brasileira, uma só superiora provincial não pode atender devidamente, como prescrevem as Constituições, os trabalhos de visitação e administração. As grandes distâncias e o número cada vez maior de Irmãs tornam impossível a visitação anual. Além disso, a superiora provincial também deve ocupar-se com os assuntos administrativos de sua província. Embora tenha fiéis auxiliares, deve ter conhecimento suficiente de tudo para poder arcar com a primeira responsabilidade (FLESCH, 1993FLESCH, I. B. História da Congregação das Irmãs Franciscanas da Penitência e Caridade Cristã no Brasil (1872-1951). Porto Alegre: Metrópole, 1993. v. 1., p. 207-208).

Nesse sentido, a fundação da Província do Imaculado Coração de Maria, no município de Santa Maria/RS, ocorreu em 25 de março de 1951. No dia 2 de abril de 1951, foi celebrada missa festiva e, simbolicamente, feita a entrega da direção da nova Província ao novo conselho provincial.

Vale ressaltarmos que, em 2022, a Congregação das Irmãs Franciscanas completa 150 anos de ação missionária e educacional no Brasil, sendo esta efeméride mais uma razão para que resgatemos suas contribuições na formação de crianças e jovens, especialmente o público feminino.

4 Percurso da análise de um caderno escolar do início do século XX

Por ocasião de pesquisas realizadas no Centro Histórico das Irmãs Franciscanas da Penitência e Caridade Cristã - Província do Sagrado Coração de Jesus –, localizado em São Leopoldo/RS, foram encontrados dois cadernos escolares que pertenciam à aluna Elly Lucia Carolina Presser7 7 Com base nos cadernos escolares e na Lembrança da Conclusão Solemne do Anno Escolar no Collegio São José, de 1906, em que recebeu menção honrosa em diversas disciplinas, bem como o prêmio de Caligrafia daquele ano, registra-se que Elly Lucia Carolina Presser estudou nesse Colégio, ao menos, no período de 1904 a 1906. Ressalta-se que não foram localizadas mais informações sobre trajetória escolar da aluna, pois só existem registros de matrículas dos alunos do Colégio São José a partir do ano de 1936. Acrescenta-se que, no ano de 1908, Elly Presser integrou o primeiro grupo de ginástica feminina da Sociedade Ginástica de São Leopoldo, Leopoldenser Turnvereiner (LEVIEN, 2011). , do início do século XX. Inicialmente, os cadernos foram digitalizados para posterior análise8 9 O Ginásio Nossa Senhora da Conceição atendia, exclusivamente, ao público masculino. .

O caderno escolar, datado de 1905, possui dezesseis folhas com linhas, papel de celulose e escrita a lápis nos dois lados de cada folha (32 páginas), o que prejudicou um pouco a qualidade de algumas imagens. O caderno já está com redação em língua portuguesa, apesar de o emprego do português, em substituição ao alemão, ter-se intensificado apenas mais tarde, com a estratégia de nacionalização compulsória do ensino, a partir de abril de 1938, quando foi expedida uma série de decretos federais e estaduais disciplinando a licença de professores, o material didático a ser usado e tornando o idioma nacional obrigatório para a instrução (KUHN, 2017KUHN, M. C.; BAYER, A. O contexto histórico das escolas paroquiais luteranas gaúchas do século XX. Canoas: Ed. ULBRA, 2017.).

Durante o processo de análise desse caderno escolar de Elly Presser, observamos a presença de uma série de problemas resolvidos e corrigidos, com o título Medida dos volumes, o que chamou a atenção destes pesquisadores e os levou ao seguinte questionamento: o que os problemas encontrados no caderno de uma aluna do Colégio São José das Irmãs Franciscanas de São Leopoldo/RS, datado de 1905, revelam sobre a Matemática praticada nesse colégio, voltado para a formação feminina?.

Para responder a esse problema de pesquisa, com base em referenciais sobre cultura escolar e o uso de cadernos escolares como fontes de investigação, inicialmente, fez-se a compilação e análise dos sessenta problemas presentes no caderno, os quais envolvem conteúdos de geometria espacial, conforme descrito na Tabela 1.

Tabela 1
Quantitativo de problemas de geometria no caderno escolar de 1905

No levantamento realizado, identificamos sessenta problemas no caderno escolar, numerados em ordem crescente de 1 a 60, sempre apresentando o enunciado e a respectiva resolução. Esses problemas abordam o cálculo de área da superfície lateral e/ou total (dez problemas) e de volume (cinquenta problemas) de sólidos geométricos, como prisma, cubo, pirâmide, tronco de pirâmide, cilindro, cone, tronco de cone e esfera. Pontuamos que mais de 50% desses problemas estão relacionados com prismas, cilindros e troncos de cone. A maioria desses problemas, perfazendo o total de 70%, não fazem referência a contextos e a objetos da vida real, enquanto 30% possuem alguma relação com o dia a dia das alunas do Colégio São José, envolvendo, principalmente, cálculo de volume de sólidos em forma de prisma, cilindro, cone e tronco de cone.

Não há informações sobre a origem desses problemas, ou seja, se eles foram elaborados pelas próprias professoras do Colégio ou copiados/adaptados de algum livro, uma vez que as obras de Matemática que circulavam na época não trazem esses enunciados. Todavia, uma advertência presente no livro de aritmética das Professoras do Colégio São José, do ano de 1900, é um indício de que elas próprias possam ter criado os problemas do caderno analisado, pois passam a editar livros para o estudo prático de uma ciência (Matemática) que gerava certa aversão ao público feminino.

Quando mandamos imprimir as regras, exercícios e problemas arithmeticos por nós compilados, tínhamos unicamente em vista, facilitar as nossas alumnas o estudo prático de uma sciência a que quasi todas as meninas mostram grande aversão; e assim nosso livrinho é exclusivamente destinado para uso das alumnas do Collegio São José (PROFESSORAS DO COLÉGIO SÃO JOSÉ, 1900PROFESSORAS DO COLLEGIO SÃO JOSÉ. Arithmetica Elementar Pratica: Collecção de regras, exercícios e problemas methodicamente compilados, III parte. 3. ed. correcta e augmentada. Porto Alegre: João Mayer Junior, 1900., p. 2).

A partir da quantificação dos sessenta problemas presentes no caderno, identificamos os conteúdos envolvidos, os procedimentos de cálculo que emergem desses problemas e a associação com o cotidiano das alunas do Colégio São José. Os resultados dessa análise são apresentados na sequência.

5 Análise do caderno da aluna Elly Lucia Carolina Presser com data de 1905

A capa do caderno escolar de Elly Lucia Carolina Presser, conforme a Figura 1, traz uma etiqueta, fazendo referência ao Ginásio Nossa Senhora da Conceição de São Leopoldo/RS, com identificação da aluna e informação de começo em 6 de fevereiro de 1905. Ressaltamos que o Colégio São José e o Ginásio Conceição9 9 O Ginásio Nossa Senhora da Conceição atendia, exclusivamente, ao público masculino. tinham localização próxima, separados apenas pela rua. Além disso, a carência de material escolar a baixo custo, na época, com predominância de existência da lousa para os registros, leva a supor que o Ginásio Conceição poderia ter fornecido materiais para as alunas do Colégio São José.

Figura 1
Capa do caderno escolar de Elly Presser

Apesar de constar, na capa do caderno, a data de 6 de fevereiro de 1905 (segunda-feira) como o seu início, na primeira página desse caderno encontra-se registrado o dia 4 de fevereiro de 1905 (sábado) e, na sequência, o título Medida dos volumes. De acordo com o Decreto nº 239, de 5 de junho de 1899, do Governo do Estado do Rio Grande do Sul, o programa de Geometria Prática da Terceira Classe e Segunda Seção prevê: “Conhecimento prático dos sólidos geométricos: prisma, paralelepípedo, cubo, pirâmide, cilindro, cone e esfera. Avaliação dos volumes e das suas superfícies” (RIO GRANDE DO SUL, 1899, p. 273).

Isso se aproxima do que é encontrado no caderno analisado, constituindo-se um possível indício de que, nesse período, o Colégio São José seguia o programa oficial do estado gaúcho. Além disso, a nossa pesquisa mostrou que o estudo das medidas de volume de poliedros e de corpos redondos segue uma sequência, de acordo com o livro Arithmetica Elementar Prática – Coleção de regras, exercícios e problemas metodicamente compilados pelas professoras do Collegio São José em São Leopoldo – 3ª edição correcta e augmentada – III parte, do ano de 190010 10 Apesar de o caderno de contas conter uma sequência de estudo da área de superfície e do volume dos sólidos geométricos, conforme o livro de Arithmetica das Professoras do Collegio São José (1900), nenhum dos sessenta problemas do caderno foram localizados no referido livro. No entanto, existe a hipótese de que esse caderno é constituído por exemplos e problemas sugeridos pela professora, uma vez que o livro apresenta a parte teórica e uma coleção de exercícios, sem exemplos resolvidos. . De acordo com Rambo (1994RAMBO, A. B. A escola comunitária teuto-brasileira católica. São Leopoldo: Ed. Unisinos, 1994.), esperava-se que os alunos assimilassem noções básicas de geometria nas escolas da época, além de conhecimentos corretos do sistema métrico.

Verificamos que os primeiros 42 enunciados trazem aplicação direta das fórmulas de cálculo da área de superfície e do volume de sólidos geométricos. Além disso, os problemas de número 43 a 60 trazem enunciados relacionados ao dia a dia das alunas do Colégio São José no início do século XX. Constatamos, ainda, que a proposta de ensino empregada começa por sólidos mais simples, dos quais derivam conceitos geométricos fundamentais para aplicação no estudo de problemas envolvendo formas geométricas espaciais mais complexas. Isso dá indicativos de uma cultura no ensino de geometria que partia de casos simples para mais complexos. Apesar de ser um caderno voltado para o registro do estudo de conhecimentos geométricos, encontramos apenas um único desenho de prisma em forma de paralelepípedo e de quatro figuras planas (trapézio, dois retângulos e círculo), representando superfícies, todos feitos à mão livre.

O estudo do prisma é feito por meio de doze problemas, sendo seis de aplicação direta do cálculo de volume de prisma e outros seis relacionados com alguma situação do dia a dia, de acordo com a Tabela 1. Dentre os seis problemas com aplicação prática, que envolvem o conteúdo de prismas, todos pedem o cálculo de volume, variando-se a forma de sua base, pois exploram-se prismas com base em forma de quadrado, retângulo, paralelogramo e trapézio. Destacamos dois desses problemas, sendo o primeiro de número 43 do caderno, conforme ilustrado na Figura 2.

Figura 2
Problema 43 sobre volume de prisma

O problema apresentado na Figura 2 está relacionado com o cálculo da capacidade, em litros, de uma cuba com o formato de prisma, sem especificar a forma de sua base. São dados a área da base da cuba, em metros quadrados, e sua altura, em metros. Logo, é feito o cálculo do volume, multiplicando-se a área da base da cuba pela sua altura, encontrando-se 0,8043 m3. Em seguida, a aluna faz a transformação de unidades de medida, convertendo metros cúbicos em decímetros cúbicos e, a partir da convenção de que 1 dm3 = 1 L, encontra a capacidade da cuba de 804,3 L. Observamos o emprego de quatro casas decimais durante a resolução do problema, que envolve o cálculo da capacidade de um objeto real e de uso prático e diversificado no cotidiano das alunas do Colégio São José, conforme outros enunciados de problemas encontrados em materiais bibliográficos relacionados ao Colégio (BRITTO; BAYER; KUHN, 2020BRITTO, S. L. M.; BAYER, A.; KUHN, M. C. A contribuição dos Jesuítas para o ensino da Matemática no Rio Grande do Sul. São Leopoldo: Ed. UNISINOS, 2020.). Também chama a atenção que a aluna faz a transformação de unidades de medida de forma direta, por ter estudado esse conteúdo em classes anteriores, conforme o livro de Arithmetica das Professoras do Collegio São José (1900), que aborda, no seu capítulo IV, a metrologia, enquanto o estudo de volume é abordado no seu capítulo XII, denominado Elementos da geometria prática. Por fim, a aluna assina a página desse caderno e identifica sua localização.

A Figura 3 traz o problema de número 59, também relacionado ao cálculo de volume de objetos em forma de prisma.

Figura 3
Problema 59 sobre volume de prisma

O enunciado do problema 59 refere-se ao volume de dezessete barras de ferro com formato de um prisma retangular, com as dimensões em metros, centímetros e milímetros, sendo necessária a transformação de unidades de medida para a realização do cálculo de volume de uma barra, em centímetros cúbicos, conforme a primeira resolução observada na Figura 3. Para encontrar o volume de uma barra em gramas (g), vale-se de que “o grammo é o peso no vácuo de um centímetro cúbico de água destilada, à temperatura de 4 graus centígrados” (PROFESSORAS DO COLLEGIO SÃO JOSÉ, 1900PROFESSORAS DO COLLEGIO SÃO JOSÉ. Arithmetica Elementar Pratica: Collecção de regras, exercícios e problemas methodicamente compilados, III parte. 3. ed. correcta e augmentada. Porto Alegre: João Mayer Junior, 1900., p. 57), ou 1 cm3, que corresponde a 1 g. Depois, a aluna calcula a massa de uma barra de ferro, multiplicando seu volume pela densidade do ferro e determina a massa total das dezessete barras, em quilogramas, com cinco casas decimais (794,97729 kg), por meio de uma proporção. Da mesma forma, realiza um cálculo de proporção para encontrar o custo total das dezessete barras de ferro em francos11 11 A moeda franco surgiu em 5 de dezembro de 1360, no final da Idade Média, sob as ordens do então Rei da França, Jean II, o Bom, que, após ter sido preso pelos ingleses, foi solto e mandou cunhar o franco, que significa livre, para comemorar a liberdade recuperada. Nos cálculos que envolviam medidas monetárias, dever-se-ia utilizar o franco (fr). (PROFESSORAS DO COLLEGIO SÃO JOSE, 1900). . A partir desse resultado, faz outra proporção para calcular o desconto de 3½%. Apesar de o enunciado representar o percentual com um número misto, no procedimento de cálculo, a aluna utiliza a escrita decimal 3,5%.

Precisamos registrar que esse problema está associado a uma operação comercial de compra e venda de barras de ferro, envolvendo o cálculo de volume de um prisma retangular; a transformação entre unidades de medida de comprimento; a relação entre densidade, massa e volume; e o cálculo do preço total, após um desconto percentual. Assim, partindo-se do estudo de volume de um prisma retangular, faz a conexão com operações comerciais no intuito de preparar as alunas do Colégio São José para a vida prática. Conforme Rambo (1994, 1996), Kuhn (2015KUHN, M. C. O ensino da matemática nas escolas evangélicas luteranas do Rio Grande do Sul durante a primeira metade do século XX.2015. Tese (Doutorado em Ensino de Ciências e Matemática) – Programa de Pós-Graduação em Ensino de Ciências e Matemática, Universidade Luterana do Brasil, Canoas, 2015.) e Britto (2016BRITTO, S. L. M. O ensino da aritmética nas escolas paroquiais católicas e no Ginásio Conceição, sob a ótica dos Jesuítas nos séculos XIX e XX. 2016. Tese (Doutorado em Ensino de Ciências e Matemática) – Programa de Pós-Graduação em Ensino de Ciências e Matemática, Universidade Luterana do Brasil, Canoas, 2016.), a cultura escolar da época era marcada pelo ensinamento de conhecimentos com aplicação prática, para que, futuramente, os alunos pudessem gerenciar sua vida familiar e profissional.

O caderno também apresenta quatro problemas sobre cubos, com aplicação direta da fórmula para o cálculo do volume ou da aresta de um cubo, conhecendo-se o seu volume, conforme ilustrado na Figura 4. Nesse sentido, previamente, encontram-se quinze cálculos de raiz cúbica no caderno, tópico abordado no capítulo XI do livro de Arithmetica das Professoras do Collegio São José (1900), em que são trabalhadas potências e raízes (quadradas e cúbicas) e explorados problemas de aplicação. Portanto, fica subentendida uma retomada do cálculo da raiz cúbica de números com até seis ordens, para posterior aplicação na determinação da medida da aresta de cubos, como no problema 10, apresentado na Figura 4.

Figura 4
Problema 10 sobre volume de cubo

Partindo da ideia de que o volume de um cubo é dado por V = a3, para o cálculo da medida do lado (aresta), realiza-se a extração da raiz cúbica do volume do cubo. Fica implícito que o cálculo da medida da aresta de um cubo é uma das aplicações do cálculo da raiz cúbica, embora não se encontre, no caderno, o algoritmo de cálculo da raiz cúbica de 5088,448 necessário para solução desse problema, o que também não se encontrou nas soluções dos demais problemas em que foi preciso extrair a raiz cúbica.

Dentre os seis problemas que envolvem o conteúdo de pirâmides, todos pedem o cálculo de volume, variando-se a forma de sua base, pois exploram-se pirâmides de base retangular, quadrada, triangular, triangular equilátera, trapezoidal e, por fim, uma pirâmide truncada, conforme enunciado apresentado na Figura 5.

Figura 5
Problema 16 sobre volume de tronco de pirâmide

O enunciado do problema 16 solicita o cálculo do volume de um tronco de pirâmide de bases retangulares, conhecendo-se suas medidas em metros. A aluna faz a representação de um retângulo (base), à mão livre, e, a partir dessa, realiza os cálculos da área da superfície das duas bases do tronco de pirâmide. Em seguida, para encontrar a superfície da base média, multiplica as superfícies das bases e, desse produto, extrai a raiz quadrada. Finaliza o cálculo do volume da pirâmide truncada somando as três superfícies, dividindo essa soma por 3 e multiplicando o quociente pela altura. Verificamos que a aluna não usa o símbolo para raiz quadrada de 3,24 ao calcular o volume do tronco de pirâmide. Além disso, o procedimento de cálculo utilizado pela aluna está descrito no capítulo XI do livro de Arithmetica das Professoras do Collegio São José (1900), com a denominação de geometria prática.

Com relação aos cilindros, há treze problemas no caderno. Os três primeiros abordam o cálculo direto da superfície lateral de cilindros, e os demais exploram o cálculo de volume, conforme exemplo apresentado na Figura 6.

Figura 6
Problema 45 sobre volume de cilindro

Entre os problemas de aplicação para a vida prática das alunas do Colégio São José, está o problema 45, que se refere ao cálculo do volume de um poço cilíndrico em litros. Na resolução do problema, a aluna cometeu um erro ao calcular a área da superfície do poço, que deveria ser de 1,2272 m2. Contudo, diante da constatação do erro, somente altera a resposta do volume, em metros cúbicos e em litros, sem corrigir a medida da superfície do poço no procedimento do cálculo.

Com relação ao estudo do cone, o caderno apresenta quatro problemas associados ao cálculo de superfície lateral e/ou total e três problemas para o cálculo de volume. Na Figura 7, apresenta-se um problema que envolve a determinação do custo de um telhado, em forma de cone, de um pavilhão.

Figura 7
Problema 47 sobre superfície de cone

Para encontrar a área do telhado descrito no problema 47, é preciso calcular a superfície lateral de um cone. Nesse sentido, observamos que a aluna “multiplica a linha geratriz pela circunferência da base e divide o produto por dois”, conforme descrito no livro de Arithmetica das Professoras do Collegio São José (1900, p. 161). Em seguida, por meio de uma proporção, determina o custo total do telhado, em francos. Portanto, novamente, percebemos uma conexão entre o estudo de cones e operações comerciais para preparar as alunas do Colégio São José para a vida prática. Salientamos que o caderno traz problemas em que as noções de grandezas e medidas são exploradas, podendo proporcionar uma melhor compreensão de conceitos relativos ao espaço e às formas geométricas.

No estudo do tronco de cone ou cone truncado, são encontrados onze problemas no caderno, quatro com aplicação direta de fórmula e outros sete com aplicação prática. O problema de número 52, apresentado na Figura 8, fala da determinação do volume estéreo de um pedaço de madeira em forma de cone truncado.

Figura 8
Problema 52 sobre volume de tronco de cone

Verificamos que o problema 52 solicita o volume de madeira em estéreos (st)12 12 A tradição consolidou o uso da unidade estéreo para a referência ao volume, em metros cúbicos, de uma pilha de madeira roliça, compreendendo madeira e matéria residual.A unidade metro estéreo é equivalente à unidade metro cúbico, desde a definição original dessas unidades no decreto francês de 1795, relativo a pesos e medida. O uso da nomenclatura estéreo. em detrimento do metro cúbico. advém da conveniência de se deixar explícito que determinada pilha de madeira a ser comercializada teve estimada apenas a sua superfície, e que o volume de madeira que poderá efetivamente ser utilizado irá depender do fator de empilhamento, o qual, por sua vez, determina a quantidade de espaço vazio entre as toras de madeira. , visto que “para a medida das madeiras de construcção e de lenha a unidade principal é o stereo, que equivale a um metro cúbico” (PROFESSORAS DO COLLEGIO SÃO JOSÉ, 1900PROFESSORAS DO COLLEGIO SÃO JOSÉ. Arithmetica Elementar Pratica: Collecção de regras, exercícios e problemas methodicamente compilados, III parte. 3. ed. correcta e augmentada. Porto Alegre: João Mayer Junior, 1900., p. 54). No seu procedimento de cálculo, observamos, inicialmente, a determinação da medida dos raios das extremidades do tronco e, então, a aplicação da fórmula para cálculo do volume de madeira em metros cúbicos e em estéreos, conforme solicitado. Houve um erro no cálculo do produto 0,24 x 0,21, que deveria resultar em 0,0504 ao invés de 0,1521, e outro na estrutura do cálculo, que é o não fechamento dos parênteses. Apesar desses erros, a sequência do cálculo está correta, bem como o seu resultado final. Assim, em mais de um problema resolvido, encontramos erros na resolução, tornando possível identificar uma preocupação da aluna em apresentar a resposta correta no caderno, sem corrigir os erros preliminares. Além disso, sugerimos que, talvez, as alunas registrassem os cálculos das operações elementares em algum material alternativo, como a lousa, e não somente de forma mental, utilizando apenas os resultados na resolução dos problemas. O aproveitamento do caderno, de forma muito racional, estava relacionado ao custo elevado do material escolar na época (LEITE, 2005LEITE, L. O. Jesuítas cientistas no sul do Brasil. São Leopoldo: UNISINOS, 2005.).

Além desse problema para cálculo do volume de um tronco de madeira, outros problemas de aplicação prática de troncos de cone são encontrados no caderno da aluna, tais como o cálculo da capacidade de um balde, em litros; do volume de um mastro de barco, em estéreos; e da capacidade de uma cuba, em litros. Conforme Rambo (1994RAMBO, A. B. A escola comunitária teuto-brasileira católica. São Leopoldo: Ed. Unisinos, 1994., p. 155), “o trabalho com madeira, com grãos, com banha só podia ser confiável com o domínio dos rudimentos do cálculo volumétrico nas suas mais diversas formas”. O problema de número 60, apresentado na Figura 9, pede a determinação da profundidade de um balde a ser construído por um tanoeiro (profissional que fabrica tonéis, pipas, barris etc.).

Figura 9
Problema 60 sobre volume de tronco de cone

Nessa aplicação prática referente a um tronco de cone, são conhecidas as medidas dos diâmetros das bases do balde e a sua capacidade em decalitros (dal), sendo necessário calcular a altura do balde (profundidade). Observamos que a aluna, inicialmente, determinou a medida dos raios das extremidades do balde e o volume em litros. Em seguida, partindo da fórmula do cálculo do volume de um tronco de cone, destacou a medida da altura para o seu cálculo, em metros, com base nos dados já determinados. Chama a atenção que, no processo de resolução desse problema, a aluna foi corrigindo, passo a passo, cada etapa do desenvolvimento. Observamos esse procedimento em outros problemas contidos no seu caderno, e salientamos que, em alguns deles, inclusive, a aluna escreveu a palavra certíssimo, evidenciando-se a expectativa de desempenho que se tinha dos alunos daquele período de escolarização, conforme apontado por Chartier (2007CHARTIER, A. M. Os cadernos escolares: organizar os saberes, escrevendo-os. Revista de Educação Pública, Cuiabá, v. 16, n. 32, p. 13-33, set./dez. 2007. Disponível em: file:///C:/Users/Usuario/AppData/Local/Temp/542-Texto%20do%20Artigo-847-1-10-20121007.pdf. Acesso em: 13 nov. 2021.
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).

Com relação ao estudo da esfera, são encontrados sete problemas no caderno, todos com aplicação direta de fórmula para cálculo de área da superfície ou de volume, conforme o problema de número 40, ilustrado na Figura 10.

Figura 10
Problema 40 sobre volume de esfera

O problema 40 pede o volume de uma esfera, conhecendo-se a medida do seu diâmetro. Na resolução, a aluna determinou a medida do raio (R = D ÷ 2), o comprimento do círculo máximo da esfera (C = D x π), a superfície esférica (S = C x D) e, por fim, o seu volume [V = (S x R) ÷ 3]. Ressaltamos que calculou o comprimento do círculo máximo e utilizou essa medida no cálculo da superfície esférica, pois, de acordo com o livro de Arithmetica das Professoras do Collegio São José (1900, p. 164), “a superfície da esphera é igual a quatro vezes o círculo máximo”, ou seja, S = C x D = 2 π R x 2 R = 4 π R2. Para o cálculo do volume, também utilizou um procedimento descrito nesse livro, isto é, “avalia o volume da esphera multiplicando a superfície pelo raio e dividindo o produto por 3” (PROFESSORAS DO COLLEGIO SÃO JOSÉ, 1900PROFESSORAS DO COLLEGIO SÃO JOSÉ. Arithmetica Elementar Pratica: Collecção de regras, exercícios e problemas methodicamente compilados, III parte. 3. ed. correcta e augmentada. Porto Alegre: João Mayer Junior, 1900., p. 164). Vale enfatizarmos que, tanto para o cálculo da superfície da esfera, como para o seu volume, o livro de Arithmetica das Professoras do Collegio São José (1900) descreve três procedimentos de resolução, sem demonstrá-los, ficando a critério das professoras e das alunas escolher algum desses para a resolução dos problemas.

Ao finalizarmos a breve análise do caderno da aluna Elly Presser, do Colégio São José de São Leopoldo, inferimos que o estudo das medidas de volume foi realizado de forma sistemática, observando-se a aplicação de conceitos matemáticos nas resoluções de problemas, como nos excertos apresentados. Trata-se de vestígios de uma cultura escolar marcada por um processo de ensino de geometria com um certo rigor, voltado para a compreensão e aplicação de conceitos, buscando uma sólida formação em conhecimentos geométricos. Dessa forma, parece-nos claro que se desejava que as egressas do Colégio colocassem em prática os conhecimentos adquiridos e propagassem a tradição do Colégio São José, especialmente a partir de sua ação no magistério de escolas primárias em diferentes comunidades do RS.

6 Considerações finais

Motivadas pelo convite do superior da missão brasileira dos jesuítas no RS, as Irmãs Franciscanas da Penitência e Caridade Cristã chegaram ao Brasil em abril de 1872, instalando-se no município de São Leopoldo/RS, com a finalidade de contribuir para a educação de crianças e jovens, em sua maioria filhas de imigrantes alemães. Sua primeira obra educacional foi a fundação do Colégio São José, no mesmo município, no dia 5 de abril de 1872. Em seus primeiros anos de atividades, o Colégio mantinha os cursos Primário e de Música, voltados para o público feminino, com regência das próprias Irmãs.

Com base em referenciais sobre cultura escolar, investigamos os problemas presentes em um caderno escolar, datado de 1905, e pertencente à aluna desse Colégio, Elly Lucia Carolina Presser, e identificamos os conteúdos envolvidos, os procedimentos de cálculo que emergem desses problemas e a associação com o dia a dia das alunas do Colégio São José, do início do século XX.

Os sessenta problemas presentes nesse caderno abordam área de superfície e, principalmente, volume de sólidos geométricos – prisma, cubo, pirâmide, cilindro, cone, tronco de cone e esfera. Chama a atenção que essa sequência de conteúdos ainda é observada em livros didáticos do século XXI. Na resolução dos problemas encontrados no caderno, predomina a aplicação direta das fórmulas para cálculo da área de superfície – lateral e/ou total – e de volume de sólidos em 42 enunciados. Outros dezoito problemas estão associados com a prática diária das alunas do Colégio São José, envolvendo o cálculo de volume de sólidos em forma de prisma, cilindro, cone e tronco de cone, tais como cuba, poço, cisterna, funil, telhado e balde. Nesses problemas, são exploradas as noções de grandezas e medidas, possibilitando uma melhor compreensão de conceitos relativos aos sólidos geométricos. Também revelam traços de uma cultura no ensino de geometria que parte de casos simples para mais complexos.

Ademais, observamos que os procedimentos de cálculo de área de superfície e de volume seguem algumas descrições feitas no livro de Arithmetica das Professoras do Collegio São José, do ano de 1900. Esse livro descreve procedimentos de resolução, sem exemplificações, ficando a critério das professoras fazer a associação com o dia a dia de suas alunas. Assim, o caderno analisado traz indícios de uma cultura escolar em que as Irmãs seguiam um material didático próprio nas aulas de Matemática no ensino primário do início do século XX.

O caderno da aluna Elly Presser está organizado, escrito com boa caligrafia, apresenta o desenvolvimento sequencial dos problemas, traz a representação da forma geométrica em algumas situações e, geralmente, emprega quatro casas decimais na resolução. Apesar disso, verificamos que algumas resoluções de problemas apresentam erros em seu desenvolvimento, embora a resposta final registrada esteja correta. Isso são vestígios de uma cultura escolar que evidencia a preocupação da aluna em mostrar um desempenho satisfatório por meio do registro dos resultados corretos no caderno.

Alguns traços de gênero que podem ser observados nesta investigação estão relacionados à oferta de estudos complementares de teatro, música, canto, pintura, costura, crochê e bordado, além das disciplinas curriculares. Esses traços também são evidenciados na organização do caderno da aluna, no tracejado da letra empregada, no uso do símbolo do certo ou da escrita da palavra certíssimo ao final das resoluções. Além disso, observamos que alguns enunciados dos problemas contêm elementos que fazem parte do cotidiano das alunas (cuba, funil, poço, balde etc.), dando indícios da preocupação com uma educação para a vida.

Os problemas presentes no caderno de geometria dessa aluna do Colégio São José de São Leopoldo/RS, no ano de 1905, revelam traços de uma cultura escolar, no ensino de geometria, que educava as gerações de alunas para solução de problemas do cotidiano tanto no gerenciamento de atividades domésticas, quanto de atividades profissionais. Este estudo permite resgatar um pouco da história dos 150 anos de ação missionária e educacional das Irmãs Franciscanas da Penitência e Caridade Cristã no RS, particularmente no campo da Matemática.

  • 1
    Trata-se do conjunto das instituições de ensino, de saúde e de assistência social de uma ordem religiosa, dentro de uma divisão territorial, administrada por uma superiora provincial, que atua supervisionando todas as suas membras juntamente com auxiliares em cada instituição.
  • 2
    O aluno, primeiramente, fazia o rascunho, o mestre fazia a correção coletiva ou individual para que o exercício fosse passado a limpo, fazendo com que o caderno se transformasse, de acordo com Anne-Marie Chartier, em uma vitrine do trabalho escolar (KIRCHNER, 2018KIRCHNER, C. A. S. M. A análise do caderno escolar como recurso didático nas aulas de História da Educação. Pedagogia em Foco, Iturama, v. 13, n. 10, p. 159-169, jul./dez. 2018. Disponível em: file:///C:/Users/Usuario/AppData/Local/Temp/366-1447-1-PB.pdf. Acesso em: 13 nov. 2021.
    file:///C:/Users/Usuario/AppData/Local/T...
    , p. 161).
  • 3
    O trabalho educacional das Irmãs Franciscanas era solicitado por autoridades políticas e eclesiásticas na Alemanha e recomendado por familiares e ex-alunas do internato e externas. Esse desempenho foi influenciado pelo pedagogo Gerardus Hendricus Laus, diretor do Curso Normal no Colégio de Heythuysen, no período de 1862 a 1869 (RUPOLO, 2001RUPOLO, I. Irmãs Franciscanas no Rio Grande do Sul e compromisso educacional. Revista Vidya, Santa Maria, Edição Especial – 50 anos, p. 83-98, jul. 2001. Disponível em: https://periodicos.ufn.edu.br/index.php/VIDYA/article/view/498/488 Acesso em: 8 fev. 2022.
    https://periodicos.ufn.edu.br/index.php/...
    ).
  • 4
    Kulturkampf, ou luta pela cultura, foi um movimento anticlerical alemão do século XIX, iniciado por Otto von Bismarck, chanceler do Império Alemão, em 1872.
  • 5
    Para saber mais sobre esse Ginásio, consultar Britto, Bayer e Kuhn (2020).
  • 6
    Maria Catarina Damen nasceu no dia 19 de novembro de 1787, na Holanda. Viveu no período da Revolução Francesa, em que era proibido praticar a religião. Muito jovem, foi trabalhar em Maaseik como doméstica. Lá teve contato com os Freis Capuchinhos, que tinham conseguido, em 1810, permissão para reabrir seu convento. Trabalhando na casa paroquial, também conheceu a Ordem Franciscana Secular. Em 1817, Catarina, junto com outras três jovens, emitiu os votos como franciscana. Ficou pouco tempo com as companheiras, pois, em 1825, o Padre Van der Zandt, pároco da cidade vizinha, solicitou às Irmãs que o ajudassem com as crianças de sua localidade, dando-lhes a instrução religiosa e educação necessária; mas, como ninguém se dispusesse a ir, Catarina se transferiu para aquela cidade, Heythuysen. E quando outras jovens pediram para viver seu estilo de vida, Catarina sentiu ser este um sinal de Deus para fundar uma congregação. Assim, junto com outras três companheiras, fundou a Congregação das Irmãs Franciscanas da Penitência e Caridade Cristã, no dia 10 de maio de 1835. Catarina passou, então, a chamar-se Madre Madalena (FLESCH, 1993FLESCH, I. B. História da Congregação das Irmãs Franciscanas da Penitência e Caridade Cristã no Brasil (1872-1951). Porto Alegre: Metrópole, 1993. v. 1.).
  • 7
    Com base nos cadernos escolares e na Lembrança da Conclusão Solemne do Anno Escolar no Collegio São José, de 1906, em que recebeu menção honrosa em diversas disciplinas, bem como o prêmio de Caligrafia daquele ano, registra-se que Elly Lucia Carolina Presser estudou nesse Colégio, ao menos, no período de 1904 a 1906. Ressalta-se que não foram localizadas mais informações sobre trajetória escolar da aluna, pois só existem registros de matrículas dos alunos do Colégio São José a partir do ano de 1936. Acrescenta-se que, no ano de 1908, Elly Presser integrou o primeiro grupo de ginástica feminina da Sociedade Ginástica de São Leopoldo, Leopoldenser Turnvereiner (LEVIEN, 2011LEVIEN, A. L. A. Histórias do Turnen na Leopoldenser Turnverein (Sociedade de Ginástica de São Leopoldo). 2011. Dissertação (Mestrado em Ciências) – Programa de Pós-Graduação em Educação Física, Universidade Federal de Pelotas, Pelotas, 2011.).
  • 8
    Devido às particularidades de cada caderno escolar, a sua análise é feita em dois artigos diferentes, sendo este exclusivo do caderno datado de 1905, que traz tópicos de Geometria. O outro caderno apresenta exercícios resolvidos de Aritmética e de Álgebra, encontrados no livro Arithmetica Elementar Prática – Colecção de regras, exercícios e problemas methodicamente compilados pelas Professoras do Collegio São José em São Leopoldo – 3ª edição correcta e augmentada – III parte, do ano de 1900.
  • 9
    O Ginásio Nossa Senhora da Conceição atendia, exclusivamente, ao público masculino.
  • 10
    Apesar de o caderno de contas conter uma sequência de estudo da área de superfície e do volume dos sólidos geométricos, conforme o livro de Arithmetica das Professoras do Collegio São José (1900), nenhum dos sessenta problemas do caderno foram localizados no referido livro. No entanto, existe a hipótese de que esse caderno é constituído por exemplos e problemas sugeridos pela professora, uma vez que o livro apresenta a parte teórica e uma coleção de exercícios, sem exemplos resolvidos.
  • 11
    A moeda franco surgiu em 5 de dezembro de 1360, no final da Idade Média, sob as ordens do então Rei da França, Jean II, o Bom, que, após ter sido preso pelos ingleses, foi solto e mandou cunhar o franco, que significa livre, para comemorar a liberdade recuperada. Nos cálculos que envolviam medidas monetárias, dever-se-ia utilizar o franco (fr). (PROFESSORAS DO COLLEGIO SÃO JOSE, 1900PROFESSORAS DO COLLEGIO SÃO JOSÉ. Arithmetica Elementar Pratica: Collecção de regras, exercícios e problemas methodicamente compilados, III parte. 3. ed. correcta e augmentada. Porto Alegre: João Mayer Junior, 1900.).
  • 12
    A tradição consolidou o uso da unidade estéreo para a referência ao volume, em metros cúbicos, de uma pilha de madeira roliça, compreendendo madeira e matéria residual.A unidade metro estéreo é equivalente à unidade metro cúbico, desde a definição original dessas unidades no decreto francês de 1795, relativo a pesos e medida. O uso da nomenclatura estéreo. em detrimento do metro cúbico. advém da conveniência de se deixar explícito que determinada pilha de madeira a ser comercializada teve estimada apenas a sua superfície, e que o volume de madeira que poderá efetivamente ser utilizado irá depender do fator de empilhamento, o qual, por sua vez, determina a quantidade de espaço vazio entre as toras de madeira.

Referências

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  • CHERVEL, A. História das disciplinas escolares - reflexões sobre um campo de pesquisa. Teoria & Educação, Porto Alegre, n. 2, p. 177-229, 1990.
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  • KUHN, M. C. O ensino da matemática nas escolas evangélicas luteranas do Rio Grande do Sul durante a primeira metade do século XX2015. Tese (Doutorado em Ensino de Ciências e Matemática) – Programa de Pós-Graduação em Ensino de Ciências e Matemática, Universidade Luterana do Brasil, Canoas, 2015.
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    02 Dez 2022
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2022

Histórico

  • Recebido
    11 Dez 2021
  • Aceito
    18 Jul 2022
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