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Plano de Estudos do MST: uma análise genealógica no domínio curricular da Matemática

MST Study Plan: a genealogical analysis in the curricular domain of Mathematics

Resumo

No ano de 2013, foi publicado, pelo setor de Educação do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) do estado do Paraná, o Plano de Estudos para os Anos Finais do Ensino Fundamental. Trata-se de uma proposta curricular destinada às escolas do campo em áreas de reforma agrária do estado (escolas itinerantes, de acampamentos, e escolas de assentamentos rurais). Com base nas táticas genealógicas de Foucault, o objetivo deste artigo é problematizar o que está posto no Plano de Estudos acerca do domínio curricular da Matemática. Nesse sentido, as teorizações em Foucault permitem entender como o conjunto de saberes autorizados, junto a um feixe de relações que o instauram, organicamente destitui e inferioriza as formas de saber que não passam pelo crivo do discurso científico. Para isso, a pesquisa dividiu-se em duas etapas: (i) uma análise dos temas matemáticos presentes no Plano de Estudos; e (ii) a realização de entrevistas com pessoas envolvidas na elaboração do Plano de Estudos. A conclusão é de que a relação estabelecida no Plano de Estudos entre os conteúdos matemáticos determinados por currículos oficiais e as porções da realidade ocorre de maneira ingênua e, por vezes, inconsistente, (re)produzindo a verdade da Matemática. Também foram evidenciados os meandros da elaboração, explicitando conflitos e mostrando que o sujeito é um efeito das relações de poder-saber.

Palavras-chave:
Educação do Campo; Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra; Genealogia; Saberes Sujeitados; Currículo

Abstract

In 2013, the Education Sector of the Landless Workers’ Movement (MST) in the state of Paraná published the Study Plan for the final years of Elementary School. It is a curricular proposal aimed at rural schools in areas of agrarian reform in the state (itinerant schools, in camps, and schools in rural settlements). Based on Foucault’s genealogical tactics, the aim of this article is to problematize what is stated in the Study Plan on the curricular domain of Mathematics. In this sense, Foucault’s theorizations allow us to understand how the set of authorized knowledge, together with a bundle of relationships that establish it, organically deprives and undermines the forms of knowledge that do not pass through the sieve of scientific discourse. For this, the research was divided into two stages: (i) an analysis of the mathematical themes present in the Study Plan; and (ii) conducting interviews with people involved in the preparation of the Study Plan. The conclusion is that the relationship established, in the Study Plan, between the mathematical contents determined by official curriculum and the portions of reality, occurs in a naive and, sometimes, inconsistent way, (re)producing the truth of Mathematics. Also, the intricacies of its elaboration were evidenced, explaining conflicts and showing that the subject is an effect of the power-knowledge relations.

Keywords:
Rural Education; Landless Workers' Movement; Genealogy; Subject Knowledge; Curriculum

1 Introdução

No ano de 1984, a partir da organização em grupos regionais, foi instituído oficialmente o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), na cidade de Cascavel-PR, como um movimento de caráter nacional. Desde seus primeiros anos de atuação, houve uma preocupação em garantir o acesso à educação às crianças e aos jovens participantes do Movimento. Apesar de se tratar de um movimento social nacional, com pautas comuns nas diferentes regiões do país, há algumas especificidades locais e regionais. No estado do Paraná, por exemplo, foram criadas as escolas itinerantes, no ano de 2003, com caráter provisório e construídas em acampamentos rurais, para garantir educação escolar no e do campo, antes mesmo de se efetivar localmente a reforma agrária. Desse modo, as escolas migram junto com os acampamentos e com os estudantes – por isso itinerantes

A princípio, a elaboração das propostas pedagógicas dessas escolas teve como referência Paulo Freire e os temas geradores. Até meados de 2010, segundo Sapelli (2013)SAPELLI, M. L. S. Escola do campo – espaço de disputa e de contradição: análise da proposta pedagógica das escolas itinerantes do Paraná e do Colégio Imperatriz Dona Leopoldina. 2013. 448 f. Tese (Doutorado em Educação) – Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2013., eles estavam muito presentes nas escolas itinerantes do Paraná, mas um problema apontado pela autora era que não garantiam que todos os conteúdos das diversas áreas fossem abordados.

Entre 2010 e 2012, o setor de Educação do MST do Paraná organizou encontros com especialistas e educadores para avaliarem a construção de uma nova proposta pedagógica, com a incorporação dos complexos de estudo – com base na experiência soviética (SAPELLI, 2017SAPELLI, M. L. S. Ciclos de Formação Humana com Complexos de Estudo nas Escolas Itinerantes do Paraná. Educação e Sociedade, Campinas, v. 38, n. 140, p. 611-629, jul./set. 2017.). O trabalho coletivo culminou na publicação do Plano de Estudos (PE) para os Anos Finais do Ensino Fundamental (MST, 2013MOVIMENTO DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA – MST. Escola Itinerante: Plano de Estudos. Cascavel: Unioeste, 2013.).

Em uma primeira leitura do PE, no que se refere à Matemática, nota-se semelhanças com conteúdos presentes em documentos curriculares oficiais (nacionais e estaduais) e, também, indicações de articulação entre a realidade vivida pelos camponeses acampados e assentados, citando, inclusive, a etnomatemática.

Com base nas táticas foucaultianas, inspiradas na genealogia (FOUCAULT, 2015FOUCAULT, M. Microfísica do poder. Organização, introdução e revisão técnica de Roberto Machado. 3. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2015.), temos como objetivo problematizar o que está posto no PE acerca da Matemática. Da perspectiva genealógica de Foucault, a problematização pode ser entendida como um meio de compreender os procedimentos pelos quais foram acolhidos os discursos que são (re)produzidos institucionalmente, forjando, assim, “[...] o estatuto daqueles que têm o encargo de dizer o que funciona como verdadeiro” (FOUCAULT, 2015FOUCAULT, M. Microfísica do poder. Organização, introdução e revisão técnica de Roberto Machado. 3. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2015., p. 52). Investimos na ideia de que a verdade, ou aquilo que é tido como verdadeiro, é uma configuração histórica e, assim, conforme pondera Machado (2006)MACHADO, R. Foucault, a ciência e o saber. 3. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2006. sobre pesquisar na perspectiva de Foucault, temos a intenção de examinar o modo de produção dessa verdade, que trata das normas internas que instituem saberes.

Para isso, buscamos investigar as condições que possibilitaram o surgimento do PE e ao que nele se refere à Matemática. Tais condições são externas aos próprios saberes matemáticos, pois, em vez de considerarmos esses saberes como imanentes à Matemática, questionamos como/de que maneira se fizeram presentes no PE. Portanto, a pesquisa dividiu-se em duas etapas: (i) uma análise dos temas matemáticos presentes no PE; e (ii) a realização de entrevistas com pessoas envolvidas na elaboração do PE.

Apresentamos, na sequência, as teorizações acerca da genealogia em Foucault – que embasam as análises –, uma breve explanação e problematização sobre o PE, os procedimentos e as análises empreendidas e, por último, algumas considerações finais1 1 Alguns resultados preliminares desta pesquisa, no que se refere à análise de temas matemáticos no PE, foram publicados em Sachs e Nogueira (2020). .

2 Teorizações em Foucault

Michel Foucault compõe a tática da genealogia como um modo de operacionalizar meios de compreender a constituição daquilo que nos é apresentado como um valor universal. Inspirado nos escritos de Friedrich Nietzsche, ao questionar máximas totalizantes da filosofia moderna, o autor elabora ferramentas de análise que nos permitem esquadrinhar como a verdade é instituída e lança mão da genealogia como um modo de:

[...] fazer que intervenham saberes locais, descontínuos, desqualificados, não legitimados, contra a instância teórica unitária que pretenderia filtrá-los, hierarquizálos, ordená-los em nome de um conhecimento verdadeiro, em nome dos direitos de uma ciência que seria possuída por alguns (FOUCAULT, 1999FOUCAULT, M. Em defesa da sociedade: curso no Collège de France (1975-1976). Tradução de Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 1999., p. 13).

Como afirma Carvalho (2012, p. 221)CARVALHO, A. F. Foucault: atualizador da genealogia nietzschiana. Cadernos Nietzsche, Porto Seguro, v. 30, p. 221-249, 2012., é característico da filosofia de Nietzsche “[...] destituir do entendimento os enganos acerca das causas e dos efeitos em torno do que a história logrou sedimentar como trajetória verdadeira dos fatos, dos acontecimentos e das perspectivas tornadas visíveis aos homens”. É nesse sentido que Foucault apresenta a genealogia, como um procedimento para “[...] fazer emergir as perspectivas distintas das que foram falsificadas pela própria cultura histórica, isto é, pelos modos que consolidaram a origem (Ursprung) dos fenômenos tomados como verdadeiros” (CARVALHO, 2012CARVALHO, A. F. Foucault: atualizador da genealogia nietzschiana. Cadernos Nietzsche, Porto Seguro, v. 30, p. 221-249, 2012., p. 222).

Em outras palavras, a genealogia também pode ser entendida como uma “[...] história que tenta descrever uma gênese no tempo” (VEIGA-NETO, 2017VEIGA-NETO, A. Foucault e a educação. 3. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2017., p. 56). Todavia, do ponto de vista de Foucault, a genealogia coloca sobre a história uma “[...] persistente interrogação sobre a obscura memória que acompanha o surgimento das coisas” (CARVALHO, 2012CARVALHO, A. F. Foucault: atualizador da genealogia nietzschiana. Cadernos Nietzsche, Porto Seguro, v. 30, p. 221-249, 2012., p. 228). Não se trata da gênese no sentido metafísico de origem, mas sim uma busca de como determinado saber foi tomado como originário, ou ainda, como um valor se tornou universal na formação de estruturas que fazem funcionar a sociedade tal como ela é. Como afirma, “[...] o que se encontra no começo histórico das coisas não é a identidade ainda preservada da origem – é a discórdia entre as coisas, é o disparate” (FOUCAULT, 2015FOUCAULT, M. Microfísica do poder. Organização, introdução e revisão técnica de Roberto Machado. 3. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2015., p. 59).

Neste texto, inspiramo-nos na genealogia proposta por Foucault e colocamos dúvidas sobre os saberes instituídos no PE (MST, 2013MOVIMENTO DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA – MST. Escola Itinerante: Plano de Estudos. Cascavel: Unioeste, 2013.). Entendemos que esses saberes foram organizados de acordo com um estatuto da verdade, que, para Foucault (2015, p. 54)FOUCAULT, M. Microfísica do poder. Organização, introdução e revisão técnica de Roberto Machado. 3. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2015., está ligada a sistemas de poder que a produzem e apoiam e a efeitos de poder que ela induz e a reproduzem. Em consonância com o que o autor propõe, ao questionar o que é dado como verdade, “[...] não se trata de libertar a verdade de todo o sistema de poder – o que seria quimérico à medida que a própria verdade é poder –, mas de desvincular o poder da verdade de formas de hegemonia (sociais, econômicas, culturais) no interior das quais ela funciona no momento” (FOUCAULT, 2015FOUCAULT, M. Microfísica do poder. Organização, introdução e revisão técnica de Roberto Machado. 3. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2015., p. 54).

Frente a esse pensamento, suspeitar dos saberes que são reproduzidos no PE é um meio para compreender os procedimentos e técnicas no cerne de sua constituição. Para além de uma análise documental, a genealogia, como afirma Veiga-Neto (2017, p. 59-60)VEIGA-NETO, A. Foucault e a educação. 3. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2017., manifesta-se como uma antítese das essências, “[...] uma descrição da história das muitas interpretações que nos são contadas e que nos têm sido impostas”.

Com esse propósito, esta pesquisa sucedeu-se em dois vieses: o movimento entre a análise documental até a análise monumental, em que problematizamos os saberes matemáticos admitidos no documento em questão e nas análises das entrevistas com pessoas que elaboraram o PE, de modo a acatar determinados saberes. Esses dois vieses são complementares porque não questionamos o objeto com a finalidade de saber de onde veio, “[...] mas como/de que maneira e em que ponto ele surge” (VEIGA-NETO, 2017VEIGA-NETO, A. Foucault e a educação. 3. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2017., p. 61).

Nosso intuito ao descrever esses procedimentos é contribuir para fazer funcionar uma insurreição dos saberes, que, para Foucault (1999, p. 14)FOUCAULT, M. Em defesa da sociedade: curso no Collège de France (1975-1976). Tradução de Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 1999., não significa se opor aos conteúdos, métodos e conceitos de uma ciência, “[...] mas de uma insurreição sobretudo e acima de tudo contra os efeitos centralizadores de poder que são vinculados a instituição e ao funcionamento de um discurso cientifico organizado no interior de uma sociedade como a nossa [...]”.

No limbo do que é elegido, por um sistema de verdades, como um saber autorizado, estão à margem os saberes sujeitados, que são, para Foucault (1999, p. 12)FOUCAULT, M. Em defesa da sociedade: curso no Collège de France (1975-1976). Tradução de Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 1999.,

[...] toda uma série de saberes que estavam desqualificados como saberes não conceituais, como saberes insuficientemente elaborados: saberes ingênuos, saberes hierarquicamente inferiores, saberes abaixo do nível do conhecimento ou da cientificidade requeridos.

Diante disso, as táticas genealógicas de Foucault nos permitem pensar saberes outros, sujeitados, e entender como o conjunto de saberes autorizados, junto a um feixe de relações que o instauram, organicamente destitui e inferioriza as formas de saber que não passam pelo crivo do discurso científico. Nesse sentido,

A genealogia seria, pois, relativamente ao projeto de uma inserção dos saberes na hierarquia do poder próprio da ciência, uma espécie de empreendimento para dessujeitar os saberes históricos e torná-los livres, isto é, capazes de oposição e de luta contra a coerção de um discurso teórico unitário, formal e científico. A reativação dos saberes locais – “menores”, talvez dissesse Deleuze – contra a hierarquização científica do conhecimento e seus efeitos de poder intrínsecos, esse é o projeto dessas genealogias em desordem e picadinhas (FOUCAULT, 1999FOUCAULT, M. Em defesa da sociedade: curso no Collège de France (1975-1976). Tradução de Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 1999., p. 15-16).

Dentre os saberes que são autorizados, Damázio Júnior (2014)DAMÁZIO JÚNIOR, V. Genealogia e a Etnomatemática: uma aproximação em prol da insurreição dos saberes sujeitados. Bolema, Rio Claro, v. 28, n. 50, p. 1155-1171, dez. 2014. afirma que os saberes matemáticos reiteram a sujeição dos saberes não reconhecidos por meio do que ele chama de matemática científica. Para ele,

Ao se colocar como uma forma de saber superior, o conhecimento matemático científico sujeita saberes, isto porque esta concepção pautada em uma pretensa Matemática universal nega a legitimidade de todas as outras formas de conhecer que não estão de acordo com seus princípios epistemológicos e suas regras metodológicas (DAMAZIO JÚNIOR, 2014DAMÁZIO JÚNIOR, V. Genealogia e a Etnomatemática: uma aproximação em prol da insurreição dos saberes sujeitados. Bolema, Rio Claro, v. 28, n. 50, p. 1155-1171, dez. 2014., p. 1164, grifo do autor).

Damázio Júnior (2014)DAMÁZIO JÚNIOR, V. Genealogia e a Etnomatemática: uma aproximação em prol da insurreição dos saberes sujeitados. Bolema, Rio Claro, v. 28, n. 50, p. 1155-1171, dez. 2014. problematiza a questão da verdade inscrita na Matemática que a inscreve com um conjunto de saberes em estado de perfeição, dispondo da perspectiva genealógica de Foucault como um meio de dar visibilidade aos saberes sujeitados.

Nesse sentido, o autor afirma que

[...] fazer genealogia não se trata de refletir sobre uma determinada verdade universal, mas sobre os discursos verdadeiros, de forma que cada verdade tem sua história: verdade da loucura; verdade da sexualidade; verdade da prisão; verdade do sistema de educação e verdade da Matemática (DAMÁZIO JÚNIOR, 2014DAMÁZIO JÚNIOR, V. Genealogia e a Etnomatemática: uma aproximação em prol da insurreição dos saberes sujeitados. Bolema, Rio Claro, v. 28, n. 50, p. 1155-1171, dez. 2014., p. 1162).

Ao questionar a verdade da Matemática, não significa que a Matemática por si só seja opressora, elitista e classificatória, mas o autor sugere um questionamento à aceitação instantânea da Matemática universal, da Matemática desenvolvida pela Modernidade europeia, a qual se insere e embasa a verdade dos discursos científicos e, como consequência, rejeita saberes locais. Com essa perspectiva, pesquisar sob o domínio da genealogia de Foucault significa questionar as verdades dadas, buscar uma maneira de descrever os processos que as tornam valores universais e ensaiar outros acontecimentos que podem dar lugar aos conhecimentos que estão naturalizados na sociedade.

Na presente pesquisa, valemo-nos do termo acontecimento, na perspectiva de Foucault. Em suas obras, o autor constantemente apropria-se do termo em suas análises históricas, com o intuito de compreender a história das coisas para além de uma simples descrição, encerrada em si mesma, mas como uma descrição de como se articulam discursos – chamados de acontecimentos discursivos – com os acontecimentos de ordem política, econômica, social e institucional, no interior e exterior das relações (FOUCAULT, 2005FOUCAULT, M. Arqueologia do saber. Tradução de Luiz Felipe Baeta Neves. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005.). Do ponto de vista da genealogia, o autor problematiza como acontecimentos representam a captura de sujeitos e narra a constituição das categorias que os classificam (VEIGA-NETO, 2017VEIGA-NETO, A. Foucault e a educação. 3. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2017.). Contudo, problematizar os acontecimentos valendo-se das táticas genealógicas, sejam eles de ordem discursiva ou de outra ordem, permite-nos conjecturar a infinidade de dispersões que poderiam vir a ser. É nesse sentido que nos apropriamos do termo, não somente para compreender as relações que possibilitaram o surgimento do PE tal como ele é, mas também no sentido de ensaiar outras possibilidades.

Damázio Júnior (2014)DAMÁZIO JÚNIOR, V. Genealogia e a Etnomatemática: uma aproximação em prol da insurreição dos saberes sujeitados. Bolema, Rio Claro, v. 28, n. 50, p. 1155-1171, dez. 2014., além de apontar como o discurso da matemática sujeita saberes, também propõe que a etnomatemática se aproxime da genealogia, dando espaço para o acontecimento da insurreição dos saberes matemáticos, sujeitados pelo discurso totalizante da matemática científica. O PE menciona a etnomatemática que pode ser entendida “[...] como um campo de estudos aberto que busca reconhecer como sendo Matemática os saberes produzidos em diferentes culturas” (DAMÁZIO-JÚNIOR, 2014DAMÁZIO JÚNIOR, V. Genealogia e a Etnomatemática: uma aproximação em prol da insurreição dos saberes sujeitados. Bolema, Rio Claro, v. 28, n. 50, p. 1155-1171, dez. 2014., p. 1157). Entretanto, é visível que há um embate entre saberes matemáticos autorizados – que são aqueles instituídos pelos documentos curriculares – e os conceitos emergidos na etnomatemática.

Apresentamos, então, esta pesquisa com o constante questionamento do que compõe e não compõe o currículo de Matemática no PE. A ideia aqui, como afirma Foucault (2015, p. 63-64)FOUCAULT, M. Microfísica do poder. Organização, introdução e revisão técnica de Roberto Machado. 3. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2015., é de agitar o que parece bem estabelecido, analisar o cerne dos acontecimentos: “[...] a pesquisa da proveniência não funda, muito pelo contrário: ela agita o que se percebia imóvel, ela fragmenta o que se pensava unido; ela mostra a heterogeneidade do que se imaginava em conformidade consigo mesmo”. Compreender, genealogicamente, como se instituem as verdades inscritas nesse processo, permite-nos evidenciar as possibilidades de realizar a insurreição dos saberes sujeitados proposta nas táticas de Foucault.

3 Apresentação do Plano de Estudos

O Plano de Estudos (MST, 2013MOVIMENTO DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA – MST. Escola Itinerante: Plano de Estudos. Cascavel: Unioeste, 2013.), elaborado entre os anos de 2010 e 2012 pelo setor de Educação do MST do Paraná, é uma proposta curricular destinada aos Anos Finais do Ensino Fundamental das escolas do campo em áreas de reforma agrária do estado (escolas itinerantes, de acampamentos, e escolas de assentamentos rurais).

O material tomou como base os complexos de estudo das Escolas-Comuna e da Escola do Trabalho da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, que tiveram como um dos principais proponentes Moisey M. Pistrak. Destaca-se que os complexos de estudo visavam superar o isolamento dos conhecimentos na escola antiga ou tradicional, utilizando como alternativa o materialismo histórico-dialético para compreensão da realidade, com o objetivo de “[...] habituar as crianças a dominar a atualidade dialeticamente” (PISTRAK, 2018PISTRAK, M. M. Fundamentos da Escola do Trabalho. Tradução de Luiz Carlos de Freitas. São Paulo: Expressão Popular, 2018., p. 190).

Nesse sentido, Pistrak (2018, p. 32PISTRAK, M. M. Fundamentos da Escola do Trabalho. Tradução de Luiz Carlos de Freitas. São Paulo: Expressão Popular, 2018., grifos do autor) argumenta que,

[...] antes de falar sobre os métodos de ensino de uma disciplina qualquer, é preciso, em primeiro lugar, demonstrar que ela é inteiramente necessária na escola [...], depois, por que ela é necessária, e com base neste esclarecimento, estudar o que exatamente deve-se dar desta disciplina e, só depois, examinar com quais métodos isso será feito. E pode-se ter certeza, de antemão, que a resposta à questão do por que e do para que uma disciplina é necessária na nossa escola será diferente daquela costumeiramente dada antes, na escola antiga.

Com isso, “[...] quando o objetivo torna-se não o estudo da disciplina, mas sim o estudo da realidade viva, é natural que as fronteiras entre as disciplinas tornem-se mais móveis [...]” (PISTRAK, 1934, p. 120-121 apud FREITAS, 2009FREITAS, L. C. A luta por uma pedagogia do meio: revisitando o conceito. In: PISTRAK, M. M. (Org.) A Escola-Comuna. Tradução de Luiz Carlos de Freitas e Alexandra Marenich. São Paulo: Expressão Popular, 2009. p. 9-101., p. 45).

Entende-se que o apontamento de Pistrak (2018)PISTRAK, M. M. Fundamentos da Escola do Trabalho. Tradução de Luiz Carlos de Freitas. São Paulo: Expressão Popular, 2018. sobre as disciplinas científicas fixa limites de um discurso que é conservado como verdadeiro e que o acesso de determinado grupo a essa verdade seria profícuo. Em contrapartida, a ideia de disciplina, que é mantida pela vontade de verdade, também marginaliza determinados grupos e compõe assimetrias sociais, como os loucos ou deficientes intelectuais, por exemplo. O paradoxo que delimita concomitantemente a promessa de emancipação e constitui mecanismos de exclusão de sujeitos por meio de sistemas educacionais é ponderado por Foucault (2014a, p. 41)FOUCAULT, M. A ordem do discurso: aula inaugural no Collège de France, pronunciada em 2 de dezembro de 1970. Tradução de Laura Fraga de Almeida Sampaio. 24. São Paulo: Loyola, 2014a.:

A educação, embora seja de direito, o instrumento graças ao qual todo o indivíduo, em uma sociedade como a nossa, pode ter acesso a qualquer tipo de discurso, é bem sabido que segue, em sua distribuição, no que permite e no que impede, as linhas que estão marcadas pela distância, pelas oposições e lutas sociais.

Entretanto, Foucault (2014a)FOUCAULT, M. A ordem do discurso: aula inaugural no Collège de France, pronunciada em 2 de dezembro de 1970. Tradução de Laura Fraga de Almeida Sampaio. 24. São Paulo: Loyola, 2014a. assinala que é necessário que reconheçamos as grande fendas que permitem politicamente a modificação da apropriação dos discursos com os saberes e os poderes que cada sistema educacional propulsiona. Ainda que no PE se manifeste a apropriação do termo disciplina para delimitar a fragmentação dos domínios curriculares, nosso foco não é delatar o conceito genuinamente como um princípio de controle da produção discursiva, mas compreender como são realizadas as articulações entre as porções de realidade e o domínio curricular da matemática, caracterizado no PE e outras normativas curriculares por disciplina de Matemática.

Na elaboração da proposta curricular com os complexos de estudo pelo MST do Paraná destaca-se a importância da construção do inventário da realidade, que “[...] consiste em [um] diagnóstico etnográfico preciso e detalhado da realidade na qual estão situadas as escolas e sua construção” (HAMMEL; FARIAS; SAPELLI, 2015HAMMEL, A. C.; FARIAS, M. I.; SAPELLI, M. L. S. Complexos de Estudo – do inventário ao Plano de Estudos. In: SAPELLI, M. L. S. FREITAS, L. C.; CALDART, R. (Orgs.). Caminhos para transformação da escola: organização do trabalho pedagógico nas escolas do campo: ensaios sobre complexos de estudo. São Paulo: Expressão Popular, 2015. p. 67-96., p. 74). Desse modo, os complexos de estudo são constituídos a partir de temas, as porções da realidade, que se articulam com a realidade local.

No Quadro 1, estão as porções da realidade que compõem os complexos de estudo presentes no PE e, em negrito, aquelas em que aparecem o domínio curricular da Matemática, ou, como propõem as normativas, disciplina de Matemática.

Quadro 1
Distribuição das porções da realidade

Em cada complexo de estudo no PE estão detalhados a porção da realidade, o ano escolar e o semestre em que deve trabalhado, a justificativa da presença de cada domínio de conhecimento, os conteúdos, os objetivos de ensino, os pré-requisitos e os êxitos esperados.

4 Movimentos investigativos

Na primeira etapa da pesquisa, foi feita uma leitura do PE para compreender sua organização em complexos de estudo, especificamente nos temas matemáticos. Percebemos que os temas matemáticos ali presentes eram muito próximos de documentos curriculares oficiais. Por essa razão, fizemos a organização dos conteúdos referentes à disciplina de Matemática presentes nas Diretrizes Curriculares Estaduais da Educação Básica do Paraná (DCPR) (PARANÁ, 2008PARANÁ. Secretaria de Estado da Educação do Paraná. Diretrizes Curriculares Estaduais da Educação Básica. Curitiba: SEED, 2008.)2 2 Após a publicação da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), a Secretaria da Educação e do Esporte do estado do Paraná publicou parte de seu Referencial Curricular em 2018 (referente à Educação Infantil e ao Ensino Fundamental), que substituiu as Diretrizes Curriculares Estaduais da Educação Básica do Paraná, de 2008. e, assim, foi possível confrontar os temas matemáticos presentes nos dois documentos, com o intuito de problematizar a disposição dos conteúdos.

Após a realização dessa análise, seguimos para a segunda etapa da pesquisa, com vistas a entender o processo de elaboração do PE, especialmente no que se refere aos temas matemáticos. No PE, há uma lista de participantes responsáveis pela elaboração do documento, com sessenta nomes. Após consultas a algumas pessoas que compuseram esse grupo, concluímos que três pessoas foram responsáveis pelo domínio curricular da Matemática, que foram contatadas por nós, convidando-as a participar da pesquisa. Foram realizadas, então, três entrevistas semiestruturadas, cujo roteiro está no Quadro 2.

Quadro 2
Roteiro das entrevistas

Na sequência, apresentamos as implicações sucedidas em cada uma das etapas da pesquisa, acompanhadas de análises com base no referencial teórico adotado.

4.1 Da análise documental para a análise monumental

Inicialmente, consideramos realizar uma análise documental do PE (MST, 2013MOVIMENTO DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA – MST. Escola Itinerante: Plano de Estudos. Cascavel: Unioeste, 2013.), atentando-nos a sua estrutura normativa. Contudo, levando em consideração que a pesquisa foi realizada sob a perspectiva analítica de Foucault, logo foi percebido que o documento se tratava de uma reverberação de múltiplos discursos, que, enquanto práticas, seguiam uma regra, uma ordem discursiva. É nesse sentido que Foucault (2005)FOUCAULT, M. Arqueologia do saber. Tradução de Luiz Felipe Baeta Neves. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005. alega que, ao estudar um documento, não se trata de entender o que há por trás, oculto, como signo de outra coisa, mas como um elemento interpretativo, que carrega consigo objetos descontextualizados de outras organizações discursivas. Esse movimento especulativo de compreender um documento em sua própria historicidade é o que o transforma em monumento.

Para Barbieri (2019, p. 74)BARBIERI, S. C. R. Intencionalidades biopolíticas do silenciamento da formação docente na BNCC. 2019. 154 f. Tese (Doutorado em Educação) – Universidade de Caxias do Sul, Caxias do Sul, 2019., fazer uma análise monumental “[...] é perguntar quais foram os efeitos daquela lei? De onde ela veio? Quais os contextos que fizeram com que ela fosse possível e ou necessária?”. Nesse sentido, buscamos um olhar para além do documento que está posto, evidenciando o seu contexto histórico e outras práticas que o tornam exequível. Para suceder a análise monumental, buscamos trazer à memória elementos que podem constituir acontecimentos repetitivos ou, quiçá, acontecimentos raros, que é o que propõe Foucault (2005)FOUCAULT, M. Arqueologia do saber. Tradução de Luiz Felipe Baeta Neves. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005..

Assim sendo, se optássemos pela compreensão documental, correríamos o risco de considerar as normativas citadas no PE como meros objetos isolados, sem contexto, intrínsecos à elaboração de um documento. Por outro lado, assumir que o PE é uma obra monumental permite-nos indagar acerca dos rastros que o compõem e conjecturar desdobramentos que possam vir a ser, considerando as práticas que o sustentam e o tornam, efetivamente, um plano de estudos.

Logo nas primeiras leituras do PE, intuímos, por meio das citações, similaridades com as DCPR. As equivalências entre os dois escritos não se davam apenas nas palavras empregadas, na forma estrutural e nos signos linguísticos de uma estrutura normativa para que algo possa ser lido como um documento oficial no campo educacional. Sobretudo, percebemos que as semelhanças se encontravam entre as temáticas abordadas e, com poucas exceções, os conteúdos eram os mesmos, tendo igual distribuição entre os anos escolares. Nessa conjuntura, para situar que o PE é uma repercussão das DCPR, convém realçar algumas assimetrias entre os documentos, aqui compreendidos como monumentos. Assim, destacamos alguns conteúdos presentes nas DCPR, mas não no PE, a saber: no 6º ano, medidas de volume e medidas de tempo; no 7º ano, equação e inequação do 1º grau, pesquisa estatística, média aritmética, moda e mediana e juros simples (que aparece no 9º ano); no 8º ano, gráfico e informação, população e amostra; e, no 9º ano, equações irracionais, noções de probabilidade e estatística.

Já uma relevante descontinuidade entre os dois monumentos é que o PE apresenta, em cada complexo, justificativas para a presença das disciplinas abordadas e os êxitos esperados, que se relacionam com a porção da realidade. No Quadro 3, há um exemplo de um complexo de estudo destinado ao 6º ano do Ensino Fundamental.

Quadro 3
Parte do complexo 1 do 1º semestre do 6º ano do Ensino Fundamental

Nesse caso específico, que é um exemplo de organização dos complexos de estudo no que se refere à disciplina de Matemática no PE, o conteúdo sistema de numeração remete à história da matemática (na justificativa) e à etnomatemática (nos êxitos esperados).

Estão presentes aí os sistemas de numeração maia, babilônico, egípcio, romano e indoarábico – como indicado no conteúdo estruturante Números e Álgebra, das DCPR. Apesar de mencionar conhecimentos etnomatemáticos, não são citados modos de contagem e de numeração utilizadas por grupos culturais de regiões diversas do Brasil.

Nos êxitos esperados, há a expectativa de se abordar “[...] a apropriação pelos europeus [dos diversos sistemas de numeração], o processo de colônia e sua supremacia sobre os demais conhecimentos etnomatemáticos dos diferentes povos” (MST, 2013MOVIMENTO DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA – MST. Escola Itinerante: Plano de Estudos. Cascavel: Unioeste, 2013., p. 43). Essa discussão envolve a ideia de subjugação de uma cultura por outra, questionando as operações que ocorrem para que um saber seja sujeitado a outro, para que um se sobreponha a outro, para que um apague o outro – isto é, abre-se um debate sobre a certeza envolta na matemática, sobre a suposta superioridade de um conhecimento sobre outro, interrogando sobre as razões para a predominância de um sistema de numeração sobre outros tantos.

Ainda, é importante termos clareza que, na proposta, o conteúdo se relaciona com a porção da realidade Luta pela Reforma Agrária. Nesse caso, a justificativa apresentada indica uma possibilidade de utilização da história da matemática para explicitar o campo de disputa em qualquer narrativa histórica, como no que se refere à temática da reforma agrária no país. Se, por um lado, a analogia pode ser feita, por outro, ficam dúvidas sobre por que a escolha desse conteúdo, sistema de numeração (e não outro), para tal analogia.

Em outros complexos de estudo, as justificativas e os êxitos esperados pouco se relacionam com os objetivos e conteúdos matemáticos apresentados, como ocorre no complexo presente no Quadro 4.

Quadro 4
Parte do complexo 2 do 1º semestre do 9º ano do Ensino Fundamental

Nesse caso, o conteúdo equação do 2º grau e equações biquadradas faz parte do complexo de estudo cuja porção da realidade trata de “Beneficiamento e processamento da produção”. De acordo com os êxitos esperados, os conhecimentos matemáticos serviriam para “[...] pensar equipamentos tecnológicos possíveis de serem construídos pelas pequenas propriedades como: cisternas, agroflorestas, açudes, hortas de ervas medicinais de olerícolas, pomares, lavouras coletivas, cooperativas, dentro outras” (MST, 2013MOVIMENTO DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA – MST. Escola Itinerante: Plano de Estudos. Cascavel: Unioeste, 2013., p. 247-248).

Não há, contudo, uma articulação coerente entre essas coisas, mas vários conceitos apresentados, dando a impressão de que o fato de eles aparecerem em um documento já lhes assegurasse êxito em sua aplicabilidade. Esse jogo de conceitos, que expõe saberes matemáticos e os confronta com situações práticas, suscita alguns questionamentos, como: de que modo as equações colaboram para o desenvolvimento ou a compreensão de tecnologias que contribuam para a produção em pequenas propriedades, como as citadas? Certamente pode haver uma relação que passe pela necessidade de conhecimentos matemáticos (nesse caso, equações do 2º grau e equações biquadradas) para o desenvolvimento de tecnologias nas diversas áreas (cisternas, agroflorestas, açudes, hortas de ervas medicinais de olerícolas, pomares, lavouras coletivas, cooperativas), mas isso não está explicitado3 3 Notamos, na literatura, uma ausência de pesquisas científicas que mostrem claramente a necessidade de conhecimentos matemáticos específicos para o desenvolvimento de tecnologias. .

Percebe-se, assim, que a matemática presente em currículos oficiais se mantém inalterada no PE, apesar do esforço para apresentar justificativas e êxitos referentes a alguma porção da realidade, mas que pouco se relacionam com os objetivos ou os conteúdos em si. Parafraseando Damázio Junior (2014)DAMÁZIO JÚNIOR, V. Genealogia e a Etnomatemática: uma aproximação em prol da insurreição dos saberes sujeitados. Bolema, Rio Claro, v. 28, n. 50, p. 1155-1171, dez. 2014., mais uma vez a matemática coloca-se como uma forma de saber superior, sem a necessidade de articulações com situações reais para se justificar.

Ao analisar todo o material, notamos que as justificativas para a relação da disciplina de Matemática com o complexo de estudo e os êxitos esperados repetem-se em diversos momentos, em complexos distintos. O texto Compreender a realidade da questão agrária brasileira ao fazer a leitura histórica das terras ocupadas pelo agronegócio e pelas transnacionais e parceiros brasileiros latifundiários fazendeiros, por exemplo, aparece cinco vezes no material, referente a conteúdos como medidas de comprimento, área e volume (para o 8º ano), regra de três composta, funções, análise combinatória, juros simples e compostos (para o 9º ano).

Em outro complexo de estudo, destinado ao 6º ano do Ensino Fundamental, cuja porção da realidade é o Manejo de Ecossistemas, as noções de ponto, reta, plano, semirreta e segmento de reta são indicadas como conteúdo específico de Geometria. Do mesmo modo, elas estão presentes nas DCPR. Esses são conceitos da matemática desenvolvida pelos gregos, presentes na clássica obra “Os Elementos”, de Euclides. Esses saberes carregam consigo um “discurso teórico unitário, formal e científico” (FOUCAULT, 1999FOUCAULT, M. Em defesa da sociedade: curso no Collège de France (1975-1976). Tradução de Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 1999., p. 15), ainda nos dias de hoje. A celebração desses conceitos multiplica a ideia de que saberes matemáticos estão vinculados a uma origem, essencial e indubitável, corroborando para o apagamento de qualquer saber que não faça menção ao clássico. Porém, como afirma Roque (2012, p. 94)ROQUE, T. História da matemática: uma visão crítica, desfazendo mitos e lendas. Rio de Janeiro: Zahar, 2012., na Antiguidade, não havia sequer um corpo unificado de conhecimentos chamado “matemática grega”, como atualmente se denomina.

Justifica-se a presença desse conteúdo para a localização no espaço (mostrar por meio dos elementos básicos da geometria, relacionando com escalas, a localização das casas, escolas, igrejas, dentre outras e cartografar o acampamento/assentamento). No entanto, outros conhecimentos, além dessas noções, também poderiam insurgir nesse sentido. Entendemos que esse movimento de reproduzir o que vem sendo historicamente posto por monumentos educacionais e silenciar conhecimentos locais contribui para a sujeição dos saberes.

A pesquisa de Lima e Monteiro (2009)LIMA, M. J.; MONTEIRO, A. Práticas Sociais de Localização e Mapeamento: uma discussão curricular sobre o conceito de escala. Bolema, Rio Claro, v. 22, n. 32, p. 1-28, abr. 2009., por exemplo, aborda a construção de mapas por agentes comunitárias de saúde de um assentamento rural. As pesquisadoras solicitaram que essas agentes representassem, por meio de desenhos, a organização espacial de seus trabalhos e dos lotes que atendiam. Nota-se que a complexidade dessas representações é bastante diferente daquela que costuma ser abordada e objetivada nas aulas de Matemática (ou de Geografia), por considerar elementos da vida social e da natureza local.

Assim, a construção de mapas levaria em conta elementos culturais, religiosos e afetivos, as dificuldades de acesso, por causa da distância, do clima, dos acidentes físico-geográficos e os transportes utilizados. Nesse sentido, não seria possível apartar esses elementos da atividade de traçar mentalmente ou em forma de desenho uma trajetória feita cotidianamente.

Esses conhecimentos etnomatemáticos são substancialmente diferentes daqueles veiculados em materiais didáticos na construção de mapas. O conceito de escala, que aparece nos êxitos esperados desse complexo de estudo, deixa de fazer sentido do modo tradicional. Cada mapa traria consigo uma singularidade e uma subjetividade, modificando não apenas o que está representado, mas como isso se dá – com outras possíveis escalas.

É importante ressaltar que as noções de ponto, reta, plano, semirreta e segmento de reta têm uma forte característica de abstração. Uma representação cartográfica – como indicado no complexo de estudo ou no exemplo apresentado aqui – modifica essa característica, dando concretude a essas noções. Em um mapa, o ponto seria a representação de um local, como uma casa, uma escola ou uma igreja do acampamento ou do assentamento (como apresentado na justificativa); porém, esses elementos têm dimensão e podem ser representados dessa forma – diferentemente do que comumente se conceitua por ponto. Não é apresentado, no documento, como fazer o salto de um conhecimento prático para um conhecimento abstrato, como nesse caso, possibilitando um questionamento sobre a naturalidade com que a Matemática se faz presente no currículo.

A análise monumental dá-nos indícios de que a relação estabelecida, no PE, entre os conteúdos matemáticos determinados por currículos oficiais (como as DCPR) e as porções da realidade (Quadro 1), por meio de complexos de estudo, ocorre de maneira ingênua e, por vezes, inconsistente – ingênua, pois essa matemática não se mostra “inteiramente necessária” (PISTRAK, 2018PISTRAK, M. M. Fundamentos da Escola do Trabalho. Tradução de Luiz Carlos de Freitas. São Paulo: Expressão Popular, 2018.) para a compreensão dialética da atualidade (como se propõe), e inconsistente por não estabelecer nexos entre a matemática e os fenômenos da realidade. Também, destacamos que a própria articulação pretendida por meio dos êxitos esperados coloca em dúvida a certeza que se costuma esperar da matemática, ao indicar outras formas de lidar com situações reais, diferentes dos conhecimentos matemáticos que compõem o currículo.

Ao questionar o que é dado no PE, percebemos mecanismos que (re)produzem a verdade da Matemática, sendo: a naturalidade, no que se refere à percepção de que a matemática que compõe o currículo explicaria ou solucionaria, de forma natural, fenômenos da realidade4 4 A máxima a matemática está em tudo relaciona-se a essa percepção. ; o reforço de que a matemática associa-se à certeza, em que colocamos em suspenso a ideologia da certeza5 5 Borba e Skovsmose (2008) discorrem sobre a ideologia da certeza na Educação Matemática, no mesmo sentido aqui considerado. , que pressupõe que essa matemática (a curricular), construída e assimilada historicamente, levaria à solução correta dos problemas que se colocam à humanidade; e, por fim, um empreendimento em correlacionar, a qualquer custo, conteúdos matemáticos clássicos com os fenômenos da realidade, camuflando a contrariedade entre conceitos (como, por exemplo, quando se confronta a matemática grega com a etnomatemática).

4.2 Entrevistas: acontecimentos discursivos

A análise monumental do PE estimulou-nos a buscar por autores envolvidos em sua construção. Assim, foram realizadas três entrevistas semiestruturadas com as pessoas que participaram da elaboração do PE, especificamente no que se refere ao que é denominado por disciplina de Matemática. Duas delas atuavam em universidades do estado do Paraná, com proximidades, em atividades de pesquisa ou extensão, à Educação do Campo, e a terceira possuía experiência em uma escola itinerante do MST. Para manter o anonimato, nomearemos essas pessoas de Participantes 1, 2 e 3.

Os entrevistados explicaram como se deu o processo de elaboração do material, expondo os acontecimentos entre os anos de 2010 e 20126 6 Há uma descrição sobre esse processo em Hammel, Farias e Sapelli (2015). . Em uma primeira etapa, o grupo, formado por cerca de sessenta pessoas, avaliou a construção de uma nova proposta pedagógica, com a incorporação dos complexos de estudo, com discussões e estudos organizados pelo pesquisador Luiz Carlos de Freitas7 7 Professor titular aposentado da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), estudioso de experiências educacionais da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, como a Escola-Comuna. .

Essa etapa foi realizada em reuniões presenciais que ocorriam aproximadamente três vezes ao ano, com duração de uma semana, com o objetivo de estudar aspectos mais gerais da proposta. Na segunda etapa, foram discutidas experiências e informações das escolas itinerantes para a implementação dessa proposta e, para isso, fez-se necessário conhecer essas escolas por meio da elaboração de inventários da realidade. Na terceira etapa, os participantes reuniram-se e decidiram em plenária quais seriam as porções da realidade que integrariam o PE. Além disso, discutiram, também em grupos menores formados por especialistas de cada área, a conexão dos conteúdos curriculares com a realidade do campo. Como quarta e última etapa, o material passou a ser implementado nas escolas itinerantes do estado do Paraná.

De acordo com os relatos dos entrevistados, as porções da realidade foram sugeridas pelas escolas itinerantes do estado, conforme a realidade em que cada uma estava inserida. As porções da realidade que comporiam o PE foram decididas em plenária, de forma que fossem relevantes a todas as escolas envolvidas. Algumas temáticas foram escolhidas sem grandes dificuldades, como “A luta pela reforma agrária”; outras, porém, foram provenientes de discussões sobre os conhecimentos científicos que abrangeriam, como relatou o Participante 2:

[...] quando a gente tentou identificar as porções da realidade, que a gente tentou criar mapas conceituais, para daí adaptar um pouco os fragmentos das realidades que se relacionavam com os saberes científicos da escola. E, realmente, foi um grande desafio sempre determinar assim essas questões, assim, para realmente pontuar e construir a proposta a partir disso. Então esse era um movimento de bastante discussão na equipe que estava trabalhando (Trecho da entrevista cedida pelo Participante 2, 2020).

Nesse trecho, percebe-se uma vontade em estabelecer relações entre os conhecimentos curriculares, em especial de Matemática, e as porções da realidade, colocando em questão a naturalidade dos saberes matemáticos autorizados. Quando o Participante 2 pondera o esforço em “adaptar um pouco os fragmentos das realidades que se relacionavam com os saberes científicos da escola” (Trecho da entrevista cedida pelo Participante 2, 2020), fica manifesto um entrave entre os saberes intitulados de porções da realidade e os saberes científicos da escola, como se um campo anulasse o outro. De acordo com Fischer (2001, p. 205)FISCHER, R. M. B. Foucault e a análise do discurso em educação. Cedes – Cadernos de Pesquisa, Campinas, v. 114, p. 197-223, nov. 2001., “[...] a realidade se caracteriza antes de tudo por ser belicosa, atravessada por lutas em torno da imposição de sentidos”. Portanto, quando se percebe a tentativa, avaliada como desafiadora pelo Participante 2, em engendrar saberes científicos com a realidade do campo, torna-se compreensível a inconsistência no PE em estabelecer uniformidades entre a matemática e os fenômenos da realidade. Por outro lado, a tentativa é audaciosa, pois, como aponta Gilles Deleuze em uma conversa com Foucault (2015, p. 137)FOUCAULT, M. Microfísica do poder. Organização, introdução e revisão técnica de Roberto Machado. 3. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2015., “[...] o que temos que fazer é instaurar ligações laterais, todo um sistema de redes, de bases populares. E é isso que é difícil”. O autor ainda afirma que a realidade é o que está acontecendo efetivamente em uma fábrica ou uma escola – neste caso, a realidade é o que acontece em escolas do campo.

Quanto à decisão de quais saberes matemáticos seriam abarcados no PE, os entrevistados relataram que as DCPR foram tomadas como base:

[...] sempre a gente prezando pelas Diretrizes Curriculares do Estado do Paraná, então a gente nunca abandonou esse documento, que é um documento que foi elaborado pelos professores do estado do Paraná, que traz todos os conteúdos matemáticos. Então, qual era a nossa enxada? Eram as Diretrizes Curriculares da Matemática do Estado do Paraná (Trecho da entrevista cedida pelo Participante 1, 2020).

[...] a seleção dos conteúdos foi em cima das DCEs, do Paraná, a gente se embasou em cima do que já tinha, que era o nosso documento paranaense [...] (Trecho da entrevista cedida pelo Participante 3, 2020).

No primeiro trecho, o Participante 1 compara as DCPR com o instrumento utilizado para o trabalho no campo: a enxada. A metáfora, de certa forma, faz funcionar um processo de objetivação e sujeição discursiva, sendo que ambos podem ser associados como elementos imprescindíveis à produção. Do ponto de vista da objetivação, sabemos que a enxada é um instrumento que, quando manipulado, tem a capacidade de revolver, cavar a terra e preparar o campo para a produção, principalmente, de alimentos, sendo esta de grande importância nas atividades do campo.

Já as DCPR podem ser associadas à produção de sujeitos por meio de uma racionalidade que é difundida pelo próprio monumento: os saberes matemáticos clássicos. Entendendo-a como uma normativa ou, como aponta Foucault (2014b, p. 94)FOUCAULT, M. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Tradução de Raquel Ramalhete. 42. ed. Petrópolis: Vozes, 2014b. em relação às legislações escritas, um “monumento estável do pacto social”, institui um código que é espontaneamente apoderado pelos sujeitos e forja um estatuto da verdade em relação ao currículo de Matemática, definindo, então, o processo de sujeição quando colocada como indispensável na elaboração de outro monumento, o PE.

Esse jogo entre objetivação e sujeição, exposto por meio das falas do Participante 1, evidencia, na trama discursiva, as relações entre poder e saber. Para Veiga-Neto (2017, p. 117)VEIGA-NETO, A. Foucault e a educação. 3. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2017.:

No poder não há propriamente dois polos, [...] mas sim sujeitos num mesmo jogo. E para que isso seja possível, o saber entra como elementos condutor do poder, de modo que haja consentimento de todos aqueles que estão nas malhas do poder. No interior das relações de poder, todos participam, todos são ativos.

Outra questão que atravessa a comparação é a noção de pertencimento apontada pelo Participante 1 e enfatizada pelo Participante 2, quando há a justificativa de que as DCPR “era[m] o nosso documento paranaense”, ou seja, apesar de o material reproduzir saberes matemáticos eleitos pela racionalidade científica europeia, é chamado de “nosso” por ter sido construído em um processo dito coletivo8 8 Caldatto e Pavanello (2014) discutem com mais profundidade essa caracterização do processo de elaboração das DCPR como coletivo. . Entre essas complexidades demarcam-se a manutenção de um poder que reproduz mais do mesmo, ainda que seja um monumento efetivamente paranaense. No entanto, o uso da DCPR para elaboração do PE assegura que o monumento esteja munido de uma certeza perfeita.

Além de os participantes entrevistados relatarem sobre a necessidade de considerar as DCPR na elaboração do PE, eles também apontam que essa decisão foi permeada por conflitos, pois não havia consenso no grande grupo se o PE deveria contemplar todos os conteúdos das diversas disciplinas presentes nas DCPR, como afirma o Participante 2:

[...] é um ponto que não havia um consenso no grupo. Pelo que eu me lembro, até eu falando de cabeça assim o que eu me lembro, é que havia uma maior parte das pessoas que defendia, inclusive eu, é que, sim, as Diretrizes eram um documento mínimo, a ser contemplado e respeitado (Trecho da entrevista cedida pelo Participante 2, 2020).

Como argumento, os grupos que defendiam esse ponto de vista afirmavam que:

[...] as escolas faziam parte da rede estadual de educação. Então, o que poderia ocorrer é a diferenciação das formas de tratamento pedagógico, o tempo acadêmico destinado diferenciado, as correlações sociais implícitas em cada saberes, mas, sim, havia pessoas que ainda defendiam que não, que poderiam ser feitas algumas adaptações, que poderiam ampliar, que poderiam até reduzir alguns conteúdos que não se achasse relevante para a prática social do campo [...] (Trecho da entrevista cedida pelo Participante 2, 2020).

Entretanto, a compreensão de que as DCPR deveriam ser totalmente contempladas no PE vai de encontro à proposta soviética, que serviu como base para a elaboração do material pelo MST, na medida em que “[...] o objetivo torna-se não o estudo da disciplina, mas sim o estudo da realidade viva” (PISTRAK, 1934, p. 120-121 apud FREITAS, 2009FREITAS, L. C. A luta por uma pedagogia do meio: revisitando o conceito. In: PISTRAK, M. M. (Org.) A Escola-Comuna. Tradução de Luiz Carlos de Freitas e Alexandra Marenich. São Paulo: Expressão Popular, 2009. p. 9-101., p. 45). De todo modo, apesar de haver um grupo que defendia um estudo anterior sobre o que seria relevante para a prática social do campo, conforme relata o Participante 2, no que se refere à disciplina de Matemática, as DCPR foram contempladas de forma integral (como mostramos na análise monumental).

Como resultado, houve dificuldade em vincular esses conteúdos matemáticos às porções da realidade. Sobre isso, o Participante 3 afirma:

[...] quanto mais conteúdos se puder trabalhar, melhor. A gente sabe, às vezes, que tem alguns conteúdos de Matemática que você não consegue trazer muito a questão da realidade, mas que, para um outro momento, eles são importantes, então precisa trabalhar (Trecho da entrevista cedida pelo Participante 3, 2020).

Nesse sentido, também relata o Participante 1:

Então, por isso que algumas porções da realidade, a gente tinha mais dificuldade pra fazer essa relação, mas daí tinha aquele exercício, se estávamos falando assim da propriedade da terra, da reforma agrária, em que momentos, que conteúdos seriam tratados lá pelo professor de história, por exemplo, falando da ocupação, da luta pela terra, da reforma agrária e como que a gente poderia fazer essa articulação do conteúdo, então isso não era uma coisa assim tão simples (Trecho da entrevista cedida pelo Participante 1, 2020).

Esse trecho mostra que a emergência da matemática nas porções da realidade não era algo simples ou natural – isso dependia, também, dos temas matemáticos, sendo alguns mais fáceis de serem relacionados que outros. Sobre isso, afirma o Participante 3:

[...] a gente ia trazendo aí esses elementos da realidade e, na medida do possível, colocando os conteúdos. Os que a gente não dava conta, a gente trabalhava o conteúdo em si, você não deixava de trabalhar, a gente queria trazer mais, não menos coisas, né, então, sempre foi esse o objetivo [...] A gente ia fazendo as conexões possíveis e, daí, o que não conseguia fazer, e deixava os demais para o final. As demais disciplinas, quase todas, conseguiam. Matemática que tinha um ou outro conteúdo que não, daí a gente colocava igual (Trecho da entrevista cedida pelo Participante 3, 2020).

Desse modo, os entrevistados mostraram que a ausência de conexão entre os conteúdos matemáticos e as porções da realidade não implicou na retirada desses conteúdos do PE. Isso explica as supostas articulações que os complexos de estudo promoveriam – e que, como apresentamos na análise monumental, eram frágeis em vários aspectos, uma vez que o que percebemos foram vários saberes clássicos contrapondo-se às porções de realidade.

É notória, portanto, a hierarquia estabelecida entre saberes, ocupando a Matemática um lugar de destaque – justamente por seu “[...] discurso teórico unitário, formal e científico [...]” (FOUCAULT, 1999FOUCAULT, M. Em defesa da sociedade: curso no Collège de France (1975-1976). Tradução de Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 1999., p. 15) – em detrimento dos fenômenos da realidade que compunham os complexos de estudo. O Participante 2 relata, por exemplo, que a alocação dos conteúdos matemáticos nos complexos privilegiou a sua disposição nos anos escolares, de acordo com as DCPR:

[...] aí foi uma questão que também foi muito discutida, porque, para analisar as porções de realidades, o primeiro critério que tentava se focar era que os conteúdos fossem coerentes com a etapa, com a série, a idade, e aí, na prática, às vezes isso fugia um pouco. Às vezes, por exemplo, lá no quinto ano, surgia uma necessidade, por conta da porção de realidade analisada, de trazer um conhecimento que não fazia parte daquele momento. Então, eu me lembro que um dos critérios que a gente estabeleceu foi que, sempre que possível, priorizar os conteúdos e os saberes em respeito ao ciclo, em respeito ao ano (Trecho da entrevista cedida pelo Participante 2, 2020).

Este excerto revela, no processo de elaboração do PE, como ocorre a manutenção da disciplina, que pode ser entendida como um recurso para homogeneizar o coletivo (FOUCAULT, 2014bFOUCAULT, M. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Tradução de Raquel Ramalhete. 42. ed. Petrópolis: Vozes, 2014b.). Nesse sentido, quando se estabelecem critérios para priorização de conteúdos de acordo com a etapa, série e idade, como menciona o Participante 2, nota-se como se dá a sustentação de uma repartição classificatória de sujeitos, que, para Foucault (2014b, p. 178)FOUCAULT, M. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Tradução de Raquel Ramalhete. 42. ed. Petrópolis: Vozes, 2014b., é um meio de marcar os desvios, hierarquizar as qualidades, as competências e as aptidões.

Outro ponto das falas dos participantes a se destacar é a preocupação em relacionar os saberes matemáticos com as porções da realidade. Ainda que essa articulação tenha rendido debates durante o processo de elaboração do PE e se mostrado discursivamente desajustada no próprio monumento, nota-se a angústia dos participantes ao retratar a tentativa de articular esses campos de conhecimento.

Todavia, ressaltamos que não houve, em momento algum, a obrigatoriedade de que o PE incorporasse os saberes elencados nas DCPR. Essa foi uma decisão tomada por meio de discussões entre as pessoas envolvidas nessa construção, conforme alegaram os Participantes 1, 2 e 3 durante as entrevistas. A intrínseca relação entre saberes autorizados e a constituição de um plano de estudos, propele a maquinaria poder-saber, moldando a relação de sujeitos com a verdade. Para Foucault (2014b)FOUCAULT, M. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Tradução de Raquel Ramalhete. 42. ed. Petrópolis: Vozes, 2014b., poder e saber estão diretamente implicados, sendo que o poder produz saber. O autor pondera que “[...] não é a atividade do sujeito de conhecimento que produziria um saber, útil ou arredio ao poder, mas o poder-saber, os processos e as lutas que o atravessam e que o constituem, que determinam as formas e os campos possíveis do conhecimento” (FOUCAUT, 2014b, p. 31). Nesse sentido, as entrevistas evidenciaram os meandros da elaboração do PE, explicitando os conflitos e mostrando que o sujeito é um efeito das relações de poder-saber.

5 Considerações finais

Por meio desta pesquisa foi possível compreender os procedimentos que possibilitam que a Matemática se apresente como uma categoria fixa em determinado âmbito educacional: a Educação do Campo. Ao problematizarmos como se apresenta o PE, percebemos que o monumento em si reproduz a lógica cartesiana de formar um sistema regulado, classificando saberes e naturalizando racionalidades.

Por outro lado, o PE também apresenta realidades de uma comunidade e, na tentativa de articulá-las com o discurso científico, abre caminhos para outras formas de acontecimentos. Nesse sentido, o próprio PE faz uma crítica à escola tradicional, denunciando que ela se deslocou “[...] das relações com a vida dos estudantes, artificializou-se e criou, nela, a dependência de situações de motivação cada vez mais limitadas, dificultando, dessa forma, que os estudantes percebessem os significados daquilo que aprendem” (MST, 2013MOVIMENTO DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA – MST. Escola Itinerante: Plano de Estudos. Cascavel: Unioeste, 2013., p. 9). Além disso, no domínio curricular da Matemática, apesar das fragilidades que apresentamos no que diz respeito à articulação de saberes matemáticos autorizados com a etnomatemática, percebe-se que, no PE, permeiam dois extremos: a realidade do campo aliada à vontade de não reproduzir o tradicionalismo e, contraditoriamente, o apego ao que Foucault chama de técnicas disciplinares, as quais individualizam e normalizam sujeitos.

Como expusemos, o PE toma como base outras fontes autorizadas de ensino e é isso que lhe dá a garantia de ser reconhecido como uma normativa curricular, abastecido de diversas tecnologias de poder estudadas por Foucault (2014b)FOUCAULT, M. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Tradução de Raquel Ramalhete. 42. ed. Petrópolis: Vozes, 2014b.: a divisão e hierarquização de conhecimentos, as grades de saberes e as formas de avaliação. Porém, a contradição entre as abordagens teóricas expostas denuncia uma crise instaurada no uso dessas tecnologias. Para Foucault (2015, p. 197)FOUCAULT, M. Microfísica do poder. Organização, introdução e revisão técnica de Roberto Machado. 3. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2015.,

[...] a crise atual destas disciplinas não coloca em questão simplesmente seus limites e incertezas no campo do conhecimento. Coloca em questão o conhecimento, a forma de conhecimento, a norma “sujeito-objeto”. Interroga as relações entre as estruturas econômicas e políticas de nossa sociedade e o conhecimento, não em seus conteúdos falsos ou verdadeiros, mas em suas funções de poder-saber.

A partir deste estudo, que teve como embasamento as táticas analíticas de Foucault, nossa proposta é que para futuras produções seja possível mapear outras possibilidades de vir a ser, por meio das fissuras inscritas na superfície de monumentos curriculares. Assim, questionar as verdades que estão cristalizadas em monumentos educacionais permite-nos a compreensão das funções do poder-saber que dizem respeito ao currículo de Matemática.

Ao voltarmos nosso olhar para a compreensão de como se deu o surgimento do PE, nossa intenção não é apontar como certa ou errada a maneira de construir um currículo ou trazer alguma inspiração aos autores do PE assinalando as incoerências entre os conceitos, mas dar indícios que a descontinuidade mostrada nas análises tem um potencial de desindividualizar o sujeito e, fazendo uma alusão ao conceito de multiplicidade agenciado por Deleuze (2000)DELEUZE, G. Diferença e repetição. Tradução de Luiz Orlandi e Roberto Machado. Lisboa: Relógio D’Água Editores, 2000., multiplicar as possibilidades de produção de discursos, permitindo uma insurreição dos saberes matemáticos.

  • 1
    Alguns resultados preliminares desta pesquisa, no que se refere à análise de temas matemáticos no PE, foram publicados em Sachs e Nogueira (2020)SACHS, L.; NOGUEIRA, A. A. C. An analysis of the subjection of (ethno)mathematical knowledge in the Study Plan of Brazil’s Landless Workers’ Movement. In: ROSA, M.; OLIVEIRA, C. C. (Org.). Ethnomathematics in Action: Mathematical Practices in Brazilian Indigenous, Urban and Afro Communities. Cham: Springer, 2020. p. 211-226..
  • 2
    Após a publicação da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), a Secretaria da Educação e do Esporte do estado do Paraná publicou parte de seu Referencial Curricular em 2018 (referente à Educação Infantil e ao Ensino Fundamental), que substituiu as Diretrizes Curriculares Estaduais da Educação Básica do Paraná, de 2008PARANÁ. Secretaria de Estado da Educação do Paraná. Diretrizes Curriculares Estaduais da Educação Básica. Curitiba: SEED, 2008..
  • 3
    Notamos, na literatura, uma ausência de pesquisas científicas que mostrem claramente a necessidade de conhecimentos matemáticos específicos para o desenvolvimento de tecnologias.
  • 4
    A máxima a matemática está em tudo relaciona-se a essa percepção.
  • 5
    Borba e Skovsmose (2008)BORBA, M. C.; SKOVSMOSE, O. A ideologia da certeza em Educação Matemática. In: SKOVSMOSE, O. Educação Matemática Crítica: a questão da democracia. 4. ed. Campinas: Papirus, 2008. p. 127-160. discorrem sobre a ideologia da certeza na Educação Matemática, no mesmo sentido aqui considerado.
  • 6
    Há uma descrição sobre esse processo em Hammel, Farias e Sapelli (2015)HAMMEL, A. C.; FARIAS, M. I.; SAPELLI, M. L. S. Complexos de Estudo – do inventário ao Plano de Estudos. In: SAPELLI, M. L. S. FREITAS, L. C.; CALDART, R. (Orgs.). Caminhos para transformação da escola: organização do trabalho pedagógico nas escolas do campo: ensaios sobre complexos de estudo. São Paulo: Expressão Popular, 2015. p. 67-96..
  • 7
    Professor titular aposentado da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), estudioso de experiências educacionais da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, como a Escola-Comuna.
  • 8
    Caldatto e Pavanello (2014)CALDATTO, M. E.; PAVANELLO, R. M. O processo de inserção das geometrias não euclidianas no currículo da escola paranaense: a visão dos professores participantes. Bolema, Rio Claro, v. 28, n. 48, p. 42-63, abr. 2014. discutem com mais profundidade essa caracterização do processo de elaboração das DCPR como coletivo.

Referências

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  • BORBA, M. C.; SKOVSMOSE, O. A ideologia da certeza em Educação Matemática. In: SKOVSMOSE, O. Educação Matemática Crítica: a questão da democracia. 4. ed. Campinas: Papirus, 2008. p. 127-160.
  • CALDATTO, M. E.; PAVANELLO, R. M. O processo de inserção das geometrias não euclidianas no currículo da escola paranaense: a visão dos professores participantes. Bolema, Rio Claro, v. 28, n. 48, p. 42-63, abr. 2014.
  • CARVALHO, A. F. Foucault: atualizador da genealogia nietzschiana. Cadernos Nietzsche, Porto Seguro, v. 30, p. 221-249, 2012.
  • DAMÁZIO JÚNIOR, V. Genealogia e a Etnomatemática: uma aproximação em prol da insurreição dos saberes sujeitados. Bolema, Rio Claro, v. 28, n. 50, p. 1155-1171, dez. 2014.
  • DELEUZE, G. Diferença e repetição Tradução de Luiz Orlandi e Roberto Machado. Lisboa: Relógio D’Água Editores, 2000.
  • FISCHER, R. M. B. Foucault e a análise do discurso em educação. Cedes – Cadernos de Pesquisa, Campinas, v. 114, p. 197-223, nov. 2001.
  • FOUCAULT, M. Em defesa da sociedade: curso no Collège de France (1975-1976). Tradução de Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
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  • FOUCAULT, M. A ordem do discurso: aula inaugural no Collège de France, pronunciada em 2 de dezembro de 1970. Tradução de Laura Fraga de Almeida Sampaio. 24. São Paulo: Loyola, 2014a.
  • FOUCAULT, M. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Tradução de Raquel Ramalhete. 42. ed. Petrópolis: Vozes, 2014b.
  • FOUCAULT, M. Microfísica do poder Organização, introdução e revisão técnica de Roberto Machado. 3. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2015.
  • FREITAS, L. C. A luta por uma pedagogia do meio: revisitando o conceito. In: PISTRAK, M. M. (Org.) A Escola-Comuna Tradução de Luiz Carlos de Freitas e Alexandra Marenich. São Paulo: Expressão Popular, 2009. p. 9-101.
  • HAMMEL, A. C.; FARIAS, M. I.; SAPELLI, M. L. S. Complexos de Estudo – do inventário ao Plano de Estudos. In: SAPELLI, M. L. S. FREITAS, L. C.; CALDART, R. (Orgs.). Caminhos para transformação da escola: organização do trabalho pedagógico nas escolas do campo: ensaios sobre complexos de estudo. São Paulo: Expressão Popular, 2015. p. 67-96.
  • LIMA, M. J.; MONTEIRO, A. Práticas Sociais de Localização e Mapeamento: uma discussão curricular sobre o conceito de escala. Bolema, Rio Claro, v. 22, n. 32, p. 1-28, abr. 2009.
  • MACHADO, R. Foucault, a ciência e o saber 3. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2006.
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  • PARANÁ. Secretaria de Estado da Educação do Paraná. Diretrizes Curriculares Estaduais da Educação Básica Curitiba: SEED, 2008.
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  • SACHS, L.; NOGUEIRA, A. A. C. An analysis of the subjection of (ethno)mathematical knowledge in the Study Plan of Brazil’s Landless Workers’ Movement. In: ROSA, M.; OLIVEIRA, C. C. (Org.). Ethnomathematics in Action: Mathematical Practices in Brazilian Indigenous, Urban and Afro Communities Cham: Springer, 2020. p. 211-226.
  • SAPELLI, M. L. S. Escola do campo – espaço de disputa e de contradição: análise da proposta pedagógica das escolas itinerantes do Paraná e do Colégio Imperatriz Dona Leopoldina. 2013. 448 f. Tese (Doutorado em Educação) – Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2013.
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  • VEIGA-NETO, A. Foucault e a educação 3. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2017.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Maio 2023
  • Data do Fascículo
    Abr 2023

Histórico

  • Recebido
    06 Jun 2022
  • Aceito
    01 Ago 2022
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