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A Modelagem Torna o Ensino e a Aprendizagem de Matemática Significativos: descontinuidades históricas

Modeling Makes Mathematics Teaching and Learning Meaningful: Historical Discontinuities

Resumo

O presente artigo tem por objetivo analisar as descontinuidades históricas de um enunciado que foi se constituindo como uma das verdades quase inquestionáveis: a Modelagem Matemática torna o ensino e a aprendizagem de Matemática mais significativos. Os aportes teórico-metodológicos estão vinculados às teorizações do filósofo Michel Foucault. O material analítico abrange teses e dissertações defendidas no período de 1987 até 2021. A análise do material dá visibilidade à realidade dos/as estudantes como central para a discussão em torno de um processo de ensino e aprendizagem significativos. Porém, há descontinuidade discursiva na centralidade da realidade. Até a década de 1990, a realidade era utilizada para a motivação e aprendizagem significativa dos conteúdos matemáticos. Após 1990, a realidade tem por objetivo formar sujeitos críticos e reflexivos.

Palavras-chave:
Modelagem Matemática; Significativo; Enunciado; Discurso; Realidade

Abstract

The present article aims to analyze the historical discontinuities of a statement that has been constituted as one of the “almost unquestionable” truths: Mathematical Modeling makes the teaching and learning of Mathematics more meaningful. For this, I make use of theoretical-methodological contributions linked to the theories of the philosopher Michel Foucault. The analytical material covers theses and dissertations defended from 1987 to 2021. The analysis of the material gives visibility to the reality of the students as central to the discussion around a meaningful teaching and learning process. However, there is a discursive discontinuity in the “centrality” of reality. Until the 1990s, reality was used for motivation and meaningful learning of mathematical content. After 1990, reality aims to form critical and reflective subjects.

Keywords:
Mathematical Modeling; Meaningful; Statement; Speech; Reality

1 Descontinuidades históricas: uma conceituação a partir de Foucault

Enquanto Educadora Matemática, sempre me questionei sobre a importância de ensinar matemática de uma forma que tornasse significativo para os/as estudantes a sua aprendizagem. Enquanto Pesquisadora da área de Educação Matemática, mais especificamente de Modelagem Matemática, sempre reflito, questiono e problematizo o alto grau de importância que atribuo, enquanto professora, ao processo de ensino e aprendizagem significativos. Afinal, o que torna um processo de ensino e aprendizagem significativo? O que é significativo? Significativo para quem? O que constitui uma aprendizagem significativa? O que torna um processo encharcado de significado? Há algo vazio de significado? A matemática, por si só, não é significativa? Como essa discussão ganha notoriedade no meio educacional? Como ensinar matemática de forma significativa? Como e por que emerge um enunciado que diz respeito ao ensino e à aprendizagem significativos? Uma aprendizagem significativa sempre teve o mesmo significado? O que se entendia nas décadas anteriores por aprendizagem significativa tinha o mesmo sentido que se tem na atualidade? Há descontinuidades discursivas na produção/circulação desse enunciado? Essas inquietações me colocam em movimento para pensar formas outras de analisar o discurso da Modelagem. Busco problematizar a noção de significado que circula no discurso da Modelagem Matemática.

Para essa problematização, parto do conceito de descontinuidade, elemento central nas discussões empreendidas por Foucault. Para a compreensão desse conceito, vou situar o filósofo a partir de diálogos que engendrou com outros pensadores – historiadores da ciência e historiadores dos Annales1 1 A revista, pouco a pouco, foi convertendo-se em uma escola. Burke (1991) sugere que talvez seja preferível falar em um movimento dos Annales, não numa escola, já que o estereótipo de escola ignora tanto as divergências individuais entre seus membros quanto seu desenvolvimento no tempo. Seguindo a sugestão de Burke, ao nos referirmos aos Annales, falaremos em revista ou movimento. .

Nos Annales, segundo Le Goff (2003)LE GOFF, J. Foucault e a “nova história”. Plural, São Paulo, v. 10, [s.n.], p. 197-209, 2003., o que interessava a Foucault eram as descontinuidades que haviam na obra O Mediterrâneo, do historiador Fernand Braudel. “A noção de ‘longa duração’ o interessava – ele disse – mas essencialmente porque ela permitia, justamente, perceber melhor as descontinuidades, as rupturas, o folhear das diversas durações temporais” (LE GOFF, 2003LE GOFF, J. Foucault e a “nova história”. Plural, São Paulo, v. 10, [s.n.], p. 197-209, 2003., p. 205-206). Referente à longa duração, Foucault faz uma crítica sobre a existência de três temporalidades (curta, média e longa) definidas por Braudel; para Foucault, o tempo tripartido não parecia suficiente, a temporalidade seria mais complexa e múltipla, não se limitaria a apenas três períodos. “A história não é, portanto, uma duração; é uma multiplicidade de tempos que se emaranham e se envolvem uns aos outros. É preciso, portanto, substituir a velha noção de tempo pela noção de duração múltipla” (FOUCAULT, 2013FOUCAULT, M. Ditos e Escritos: Arqueologia das ciências e história dos sistemas de pensamento. Seleção e organização dos textos por M. B. Motta. Tradução Elisa Monteiro. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2013. (Vol. 2)., p. 308, grifos meus).

Essa noção de descontinuidade, tão importante a Foucault, está relacionada aos historiadores e, consequentemente, está ligada à história serial, campo principal dos Annales na era Braudel (PEREIRA, 2013PEREIRA, L. de A. Entre Clio e Sophia: um mapeamento das relações entre história e filosofia através dos diálogos entre Michel Foucault e os historiadores dos Annales. 2013. 203 f. Tese (Doutorado em História) – Universidade Estadual Paulista, Assis, 2013.). As ressonâncias entre a história serial e Michel Foucault podem ser evidenciadas, segundo Pereira (2013)PEREIRA, L. de A. Entre Clio e Sophia: um mapeamento das relações entre história e filosofia através dos diálogos entre Michel Foucault e os historiadores dos Annales. 2013. 203 f. Tese (Doutorado em História) – Universidade Estadual Paulista, Assis, 2013., ao longo dos anos 1960, principalmente na introdução do livro A arqueologia do saber, em alguns trechos de A ordem do discurso, e no texto “Retornar à História”, publicado na coleção “Ditos e Escritos”, volume II. Foucault foi bem-sucedido nesse diálogo com os historiadores e, para Ladurie (apud PEREIRA, 2013PEREIRA, L. de A. Entre Clio e Sophia: um mapeamento das relações entre história e filosofia através dos diálogos entre Michel Foucault e os historiadores dos Annales. 2013. 203 f. Tese (Doutorado em História) – Universidade Estadual Paulista, Assis, 2013., p. 72), “a introdução à A Arqueologia do Saber é a primeira definição da história serial”.

Para Machado (2007)MACHADO, R. Foucault, a ciência e o saber. 3. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007., a arqueologia sempre procurou se situar em relação à epistemologia – história epistemológica. Porém, a arqueologia não se baseia pelos mesmos princípios que a história epistemológica, ela assume em suas análises uma posição bastante diferente: enquanto a epistemologia pretende estar à altura das ciências, a arqueologia reivindica sua independência em relação a qualquer ciência; enquanto a história epistemológica investiga a produção de verdades na ciência, a história arqueológica não privilegia a questão normativa da verdade, nem estabelece uma ordem temporal de recorrências a partir da racionalidade científica atual, a arqueologia realiza uma história dos saberes de onde desaparece qualquer traço de uma história do progresso da razão, seja ele contínuo ou descontínuo.

Parece-nos mesmo que a riqueza do método arqueológico é ser um instrumento capaz de refletir sobre as ciências do homem como saberes, neutralizando a questão de sua cientificidade e escapando do desafio impossível de realizar, nesses casos, uma recorrência histórica, como deveria fazer a análise epistemológica. O que não significa, como veremos, abandonar a exigência de uma análise conceitual capaz de estabelecer descontinuidades, certamente não epistemológicas, mas arqueológicas, isto é, situadas no nível dos saberes (MACHADO, 2007MACHADO, R. Foucault, a ciência e o saber. 3. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007., p. 9).

A noção de descontinuidade que tanto interessava a Foucault, e que é essencial em sua arquegenealogia, dialoga com os historiadores das ciências Bachelard e Canguilhem2 2 Foge ao escopo desta tese analisar os diferentes pensamentos dos historiadores da Ciência em geral. Fiz a opção por Bachelard e Canguilhem por ser possível estabelecer um diálogo entre eles e Foucault. . Bachelard rompe com a epistemologia continuísta, para a qual a ciência se desenvolvia de forma cumulativa e linear. Para Bachelard, e também para Canguilhem, a ciência desenvolve-se em um progresso descontínuo.

Bachelard, por exemplo, foi um crítico da concepção positivista-conteana da ciência, para a qual ela era tida como um progresso contínuo, linear e cumulativo, ou seja, as novas teorias seriam consequência das teorias anteriores, tornando dessa maneira o processo científico contínuo. “Uma das objeções mais naturais dos continuístas da cultura vem ser evocar a continuidade histórica. Visto que se faz um relato contínuo dos acontecimentos, acredita-se facilmente reviver os acontecimentos na continuidade do tempo” (BACHELARD, 1972BACHELARD, G. Conhecimento comum e conhecimento científico. Revista Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, [s.v], n. 28, p. 27-46, jan./mar. 1972., p. 30, grifos do autor). Bachelard e Canguilhem rompem com essa ideia de continuidade; para eles, a história epistemológica apresentou mais descontinuidades e rupturas do que continuidade. Para

Bachelard, há uma descontinuidade entre conhecimento científico e conhecimento comum, já que “o objeto científico não é natural, é construído” (MACHADO, 2007MACHADO, R. Foucault, a ciência e o saber. 3. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007., p. 30), e descontinuidade entre a ciência e a pré-ciência, ou seja, “o saber que ocupava abusivamente seu lugar” (MACHADO, 2007MACHADO, R. Foucault, a ciência e o saber. 3. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007., p. 31).

Porém, a ideia de progresso científico não desaparece das discussões engendradas por Bachelard e Canguilhem. Mas há uma diferença entre o progresso acreditado pelos continuístas e pelos descontinuístas. Enquanto para a história positivista o progresso se desenvolvia de forma linear e contínua, para Bachelard e Canguilhem o progresso se desenvolve a partir de descontinuidades, por meio de rupturas, de negação do passado. O progresso é um componente essencial da ciência, é a própria dinâmica da cultura científica. Já na análise arqueológica e genealógica, desaparece qualquer traço de progresso, seja ele contínuo ou descontínuo.

Foucault inicia seu livro A Arqueologia do Saber fazendo uma crítica às análises históricas que buscam a continuidade e a linearidade dos fenômenos. Ele argumenta que é preciso “libertar-se de todo um jogo de noções que diversificam, cada uma à sua maneira, o tema da continuidade” (FOUCAULT, 2014aFOUCAULT, M. A Arqueologia do Saber. Tradução Luiz Felipe Baeta Neves. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2014a., p. 25). Ele diz que o grande problema que se coloca “a tais análises históricas não é mais saber por que caminhos as continuidades se puderam estabelecer; de que maneira um único e mesmo projeto pôde-se manter e constituir, para tantos espíritos diferentes e sucessivos, um horizonte único” (FOUCAULT, 2014aFOUCAULT, M. A Arqueologia do Saber. Tradução Luiz Felipe Baeta Neves. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2014a., p. 6). E que “a descontinuidade era o estigma da dispersão temporal que o historiador se encarregava de suprimir da história” (FOUCAULT, 2014aFOUCAULT, M. A Arqueologia do Saber. Tradução Luiz Felipe Baeta Neves. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2014a., p. 10). Dessa maneira, o que o filósofo propõe com seu método arqueológico é contestar o uso da continuidade nas análises históricas.

Essa noção de descontinuidade suspende o acúmulo dos conhecimentos, a busca pela origem e pelos precursores. Foucault, na introdução à A Arqueologia do Saber, mencionará essa discussão engendrada por Bachelard.

Atos e liminares epistemológicos descritos por G. Bachelard: suspendem o acúmulo indefinido dos conhecimentos, quebram sua lenta maturação e os introduzem em um tempo novo, os afastam de sua origem empírica e de suas motivações iniciais, e os purificam de suas cumplicidades imaginárias; prescrevem, desta forma, para a análise histórica, não mais a pesquisa dos começos silenciosos, não mais a regressão sem fim em direção aos primeiros precursores, mas a identificação de um novo tipo de racionalidade e de seus efeitos múltiplos (FOUCAULT, 2014aFOUCAULT, M. A Arqueologia do Saber. Tradução Luiz Felipe Baeta Neves. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2014a., p. 4-5, grifo do autor).

A arqueologia foucaultiana também suspende o acúmulo indefinido dos conhecimentos, a busca pelas origens e pelos primeiros precursores, a partir da descontinuidade. Porém, as descontinuidades arqueológicas e genealógicas possuem diferenças das descontinuidades epistemológicas.

No nível da análise epistemológica, as descontinuidades históricas são diacrônicas. Marcam incompatibilidade e mutações, em épocas diferentes, através da recorrência estabelecida a partir do critério da atualidade. No nível arqueológico e da genealogia do poder, trata-se de descontinuidades diacrônicas, que traçam o miar de épocas diferentes, mas articuladas a continuidades sincrônicas que marcam compatibilidades e coerências numa mesma época, através não do critério da recorrência e da atualidade, mas da positividade e da contemporaneidade dos saberes e dos poderes (PORTOCARRERO, 2009PORTOCARRERO, V. As ciências da vida: de Canguilhem a Foucault. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2009., p. 26-27, grifos meus).

São essas descontinuidades diacrônicas e continuidades sincrônicas que pretendo reintroduzir na história do discurso da Modelagem Matemática. Para tanto, o presente artigo tem por objetivo problematizar, a partir da descontinuidade, um enunciado que foi se constituindo como uma das verdades quase inquestionáveis neste campo: a Modelagem Matemática torna o ensino e a aprendizagem de Matemática mais significativos.

2 Caminhos metodológicos

2.1 Material analítico

As teses e dissertações selecionadas para compor o material analítico foram defendidas no Brasil no período de 1987 até 2021, com foco em Modelagem Matemática na Educação Matemática. O levantamento foi realizado no Catálogo de Teses e Dissertação da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes)3 3 https://catalogodeteses.capes.gov.br/ . Para o levantamento do material, utilizei os seguintes descritores: Modelagem Matemática ensino; Modelagem Matemática Educação; Modelagem Matemática Aprendizagem; Modelagem Matemática pedagogia; Modelagem Matemática na Educação Matemática; Modelação Matemática Ensino; Modelação Matemática Educação; Modelação Matemática Aprendizagem; Modelos Matemáticos Educação; Modelagem Matemática em sala de aula. A pesquisa resultou em 180 dissertações e 40 teses. Realizei a leitura dos títulos, resumos e utilizei a opção pesquisar ou localizar com as palavras significativo, significativa, significado, significar e significa.

A Universidade é local de produção, controle e seleção dos discursos que entram em ordem, em circulação, em funcionamento. Cada sociedade possui seus regimes de verdade, e na universidade esses regimes podem ser encontrados em diversos espaços: graduação, pós-graduação, grupos de estudo e pesquisa etc. Em minha pesquisa, privilegio os espaços dos cursos de Pós-Graduação. Esses cursos são tidos como local onde os discursos são acolhidos como verdadeiros a partir das técnicas que os diferenciam dos discursos tidos como falsos, esses cursos têm o encargo e a credibilidade para dizer o que funciona como verdadeiro e o que está relegado a uma exterioridade selvagem. Dito de outra forma, a produção de saber está entrelaçada ao poder, e esses cursos têm o poder de dizer o que é tido como verdadeiro e o que é tido como falso.

As teses e dissertações, selecionadas para compor o material analítico, “são investigações produzidas e avaliadas em cursos qualificados de Pós-Graduação do país e reconhecidos pelo Ministério de Educação - MEC” (QUARTIERI, 2012QUARTIERI, M. T. A Modelagem Matemática na educação básica: a mobilização do interesse do aluno e o privilegiamento da matemática escolar. 2012. 199 f. Tese (Doutorado em Educação) – Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo, 2012., p. 72). Esses cursos, ao serem qualificados e reconhecidos pelo MEC, dão aos saberes por eles produzidos legitimidade e o reconhecimento de que são tidos como verdadeiros.

2.2 Enunciado

Mas o que é enunciado? Em uma perspectiva foucaultiana, não há espaço para responder a essa pergunta, já que, para tal concepção, não há essência das coisas, não há algo em si. Ainda assim, Foucault assume o risco das definições e descreve o seu entendimento de enunciado. Primeiro, ele o define pela oposição àquilo que os gramáticos chamaram de frase, os lógicos designaram por proposição e os analistas tentaram demarcar por speech act (GREGOLIN, 2004GREGOLIN, M. do R. V. O enunciado e o arquivo: Foucault (entre)vistas. In: SARGENTINI, V.; NAVARRO-BARBOSA, P. (orgs.). Foucault e os domínios da linguagem: discurso, poder, subjetividade. São Carlos: Claraluz, 2004. p. 23-44.). Sob essa lógica, encontramos enunciados em que não podemos reconhecer uma frase: “uma árvore genealógica, um livro contábil, as estimativas de um balanço comercial são enunciados: onde estão as frases?” (FOUCAULT, 2014aFOUCAULT, M. A Arqueologia do Saber. Tradução Luiz Felipe Baeta Neves. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2014a., p. 99), ou seja, não se encontra um enunciado por meio dos constituintes da frase (sujeito-verbo-predicado) (GREGOLIN, 2004GREGOLIN, M. do R. V. O enunciado e o arquivo: Foucault (entre)vistas. In: SARGENTINI, V.; NAVARRO-BARBOSA, P. (orgs.). Foucault e os domínios da linguagem: discurso, poder, subjetividade. São Carlos: Claraluz, 2004. p. 23-44.); ao contrário da proposição, para os enunciados não há formulações equivalentes: por exemplo, “ninguém ouviu” e “é verdade que ninguém ouviu” possuem uma mesma estrutura proposicional e não podem ser considerados diferentes. “Ora, enquanto enunciados, estas duas formulações não são equivalentes nem intercambiáveis” (FOUCAULT, 2014aFOUCAULT, M. A Arqueologia do Saber. Tradução Luiz Felipe Baeta Neves. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2014a., p. 97). A primeira (ninguém ouviu) pode ser encontrada em um livro de romance e a segunda (é verdade que ninguém ouviu) em um fragmento de um diálogo.

Embora se trate de uma mesma estrutura proposicional, seus caracteres enunciativos são distintos. Encontramos mais enunciados do que os atos de linguagem que podemos isolar, de maneira que “é preciso, frequentemente, mais de um enunciado para efetuar um speech act: […] seria difícil contestar, em cada uma delas, o status de enunciado, sob o pretexto de que são todas atravessadas por um único e mesmo ato ilocutório” (FOUCAULT, 2014aFOUCAULT, M. A Arqueologia do Saber. Tradução Luiz Felipe Baeta Neves. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2014a., p. 100).

Se o enunciado pertence ou não ao mesmo gênero da frase, da proposição e do ato de linguagem, como podemos defini-lo? Para Foucault, o enunciado não é uma estrutura, ele é mais onipresente, mais tênue, menos carregado de determinações. Nessa conformidade, é preciso admitir que qualquer série de signos, de grafismos ou de traços é suficiente para constituir um enunciado. O enunciado é “uma função que cruza um domínio de estruturas e de unidades possíveis e que faz com que apareçam, com conteúdos concretos, no tempo e no espaço” (FOUCAULT, 2014aFOUCAULT, M. A Arqueologia do Saber. Tradução Luiz Felipe Baeta Neves. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2014a., p. 105).

Essa função enunciativa possui suas condições de existência, regras que a controlam e um campo em que se realiza. Um enunciado, para existir, não tem diante de si um correlato ou uma ausência de correlato; por exemplo, a montanha de ouro está na Califórnia (FOUCAULT, 2014aFOUCAULT, M. A Arqueologia do Saber. Tradução Luiz Felipe Baeta Neves. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2014a.) não possui um referencial que possa ser encontrado em um mapa geográfico, ou em um manual de viagem, mas pode ser encontrado em uma obra de ficção. Seu referencial não é constituído de coisas, de fatos, de realidades ou de seres, mas de leis de possibilidade. O referencial do enunciado forma o lugar, a condição, o campo de emergência (FOUCAULT, 2014aFOUCAULT, M. A Arqueologia do Saber. Tradução Luiz Felipe Baeta Neves. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2014a.). O enunciado é um espaço vazio que pode ser preenchido por diferentes sujeitos que “podem vir a tomar posição e, assim, ocupar esse lugar quando formulam o enunciado” (MACHADO, 2007MACHADO, R. Foucault, a ciência e o saber. 3. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007., p. 151).

Um enunciado não existe “isoladamente, como pode existir uma frase ou uma proposição. Para que estas se tornem enunciados é preciso que sejam um elemento integrado a um conjunto de enunciados” (MACHADO, 2007MACHADO, R. Foucault, a ciência e o saber. 3. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007., p. 151). Além disso, outra condição de existência de um enunciado é a sua materialidade, que é de ordem institucional. “Uma frase dita na vida cotidiana, escrita em um romance, fazendo parte do texto de uma constituição ou integrando uma liturgia não constitui um mesmo enunciado. Sua identidade depende de sua localização em um campo institucional” (MACHADO, 2007MACHADO, R. Foucault, a ciência e o saber. 3. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007., p. 152).

Por fim, o que determina um enunciado, ou a função enunciativa, é “o fato de ele ser produzido por um sujeito, em um lugar institucional, determinado por regras sócio-históricas que definem e possibilitam que ele seja enunciado” (GREGOLIN, 2004GREGOLIN, M. do R. V. O enunciado e o arquivo: Foucault (entre)vistas. In: SARGENTINI, V.; NAVARRO-BARBOSA, P. (orgs.). Foucault e os domínios da linguagem: discurso, poder, subjetividade. São Carlos: Claraluz, 2004. p. 23-44., p. 26). O enunciado que diz respeito ao “ensino e à aprendizagem de Matemática mais significativos” possui suas condições de existência: um referencial (no caso deste artigo, teses e dissertações), posição de sujeito (os pesquisadores/autores dos materiais analisados), materialidade (o campo institucional é a Universidade – local de produção e socialização de saber acadêmico/científico) e o conjunto de enunciados ou campo associado (não há enunciado isolado – os enunciados analisados se entrelaçam entre si e, também, a outros enunciados pertencentes a diferentes discursos – educacionais, políticos, econômicos etc.).

Uma vez que o enunciado é considerado a unidade elementar do discurso, em que consiste a enunciação? Para Foucault (2014a)FOUCAULT, M. A Arqueologia do Saber. Tradução Luiz Felipe Baeta Neves. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2014a., a enunciação é um acontecimento que não se repete, que possui singularidade situada e datada, que não se pode reduzir. Diremos que há enunciação cada vez que um conjunto de signos for emitido (FOUCAULT, 2014aFOUCAULT, M. A Arqueologia do Saber. Tradução Luiz Felipe Baeta Neves. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2014a.). A enunciação pode ser recomeçada e/ou reevocada enquanto o enunciado pode ser repetido.

Neste trabalho, estou considerando a enunciação o que os autores escreveram em suas pesquisas (tese e dissertação). Cada autor emite um conjunto de signos, que não se repetem, mas existe regularidade entre eles. Dito de outra forma, o conjunto das enunciações, dos signos emitidos pelos autores, forma um enunciado. Considero que a enunciação é a unidade elementar do enunciado.

2.3 Da constituição de um olhar

Ao escrutinar o material analítico, tive o cuidado de “[…] analisar o dictum como um monumento e não como um documento. Isso significa que a leitura (ou escuta) do enunciado é feita pela exterioridade do texto, sem entrar propriamente na lógica interna que comanda a ordem dos enunciados” (VEIGA-NETO, 2007VEIGA-NETO, A. Foucault e a Educação. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2007., p. 104, grifos do autor). Olharei para as descontinuidades em sua exterioridade, por meio daquilo que o cerca e o sustenta (FOUCAULT, 2013FOUCAULT, M. Ditos e Escritos: Arqueologia das ciências e história dos sistemas de pensamento. Seleção e organização dos textos por M. B. Motta. Tradução Elisa Monteiro. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2013. (Vol. 2).).

Ainda, a análise monumental não está atrás de uma suposta verdade, “nem mesmo busca uma essência original, remota, fundadora, tentando encontrar, nos não-ditos dos discursos sob análise, um já-dito ancestral e oculto” (VEIGA-NETO, 2007VEIGA-NETO, A. Foucault e a Educação. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2007., p. 98). Assim, a análise será realizada sob um já dito. Isto é, analiso o dito, o que está escrito nas teses e dissertações e não a intenção que tiveram de dizer ou aquilo que poderia ser dito, que estaria oculto em sua escrita. Não busco o não-dito, pois “até mesmo os silêncios são apenas silêncios, para os quais não interessa procurar preenchimentos; eles devem ser lidos pelo que são e não como não-ditos que esconderiam um sentido que não chegou à tona do discurso” (VEIGA-NETO, 2007VEIGA-NETO, A. Foucault e a Educação. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2007., p. 98). Nesta perspectiva, o olhar que lanço sobre o material empírico não busca “descobrir verdades ocultas, mas tornar visível exatamente o que já está visível” (ARTIÈRES, 2004ARTIÈRES, P. Dizer a Atualidade: O trabalho de diagnóstico em Michel Foucault. In: GROS, F. (org.). Foucault: a coragem da verdade. São Paulo: Parábola Editorial, 2004. p. 15-37., p. 15). Assim, busco fazer ver o que já vemos, mas que não percebemos ver, justamente por estar “muito na superfície das coisas” (FOUCAULT, 2013FOUCAULT, M. Ditos e Escritos: Arqueologia das ciências e história dos sistemas de pensamento. Seleção e organização dos textos por M. B. Motta. Tradução Elisa Monteiro. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2013. (Vol. 2)., p. 152).

Ainda, meu olhar não busca uma origem, a primeira vez que o enunciado foi emitido. A busca por uma origem é “[…] se esforçar para recolher nela a essência exata da coisa, sua mais pura possibilidade, sua identidade cuidadosamente recolhida em si mesma” (FOUCAULT, 2011bFOUCAULT, M. Nietzsche, a genealogia e a história. In: FOUCAULT, M. Microfísica do poder. Rio de Janeiro, Graal, 2011b. p. 94-99., p. 17). Assim, o olhar que lanço sobre o material analítico não busca uma essência para o enunciado, nem o que é esse enunciado, nem qual sua origem.

A análise foi empreendida em dois momentos, de acordo com o contexto histórico, político, econômico e educacional. Num primeiro momento, analiso um contexto (1980 a 1990 – Ditadura Militar e Redemocratização) que foi intitulado como crise no ensino de matemática. Essa crise, segundo Magnus (2018)MAGNUS, M. C. M. Modelagem matemática na educação matemática brasileira: histórias em movimento. 2018. 227 f. Tese (Doutorado em Educação) – Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, 2018., foi constituída por dois enunciados, os alunos têm dificuldade na aprendizagem da Matemática e a Matemática é distante da realidade.

Diante dessa crise, a Educação Matemática buscou formas para tornar o seu ensino e a sua aprendizagem significativos (MAGNUS, 2018MAGNUS, M. C. M. Modelagem matemática na educação matemática brasileira: histórias em movimento. 2018. 227 f. Tese (Doutorado em Educação) – Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, 2018.). A emergência da Modelagem Matemática, de acordo com os materiais analisados, tornou-se uma possibilidade para o enfrentamento dessa crise, pois estabeleceria relações entre os fatos do cotidiano e os conceitos matemáticos que ela busca para dar soluções aos problemas levantados. Também, pelo levantamento e formulação do problema feitos pelo próprio aluno a partir da sua realidade.

Posteriormente, analiso as décadas de 19904 4 A década de 1990 faz parte dos dois momentos analisados pois foi considerada como uma fase de mudanças no contexto educacional – rompimento com o contexto até então vivido e início de um novo ciclo a partir de novas discussões. A década de 1990 marca as compatibilidades, coerências e o emergir das descontinuidades, numa mesma época. até 2021. Com a redemocratização no país, no final da década de 1980, outras discussões entram na ordem do discurso educacional, outras verdades passam a circular no campo e descontinuidades discursivas são possíveis devido ao novo contexto. Isso é possível porque em toda sociedade o discurso é controlado, selecionado, organizado e distribuído a partir de procedimentos regulados para sua produção, repartição e funcionamento dos enunciados que coloca em circulação. São esses enunciados, colocados em circulação, que sinalizam o que é tido como verdadeiro. Toda sociedade tem seu regime de verdade, isto é,

os discursos que ela acolhe e faz funcionar como verdadeiros; os mecanismos e as instâncias que permitem distinguir os verdadeiros dos falsos, a maneira como se sanciona uns e outros; as técnicas e procedimentos que são valorizados para a obtenção da verdade; o estatuto daqueles que têm o encargo de dizer o que funciona como verdadeiro (FOUCAULT, 2011aFOUCAULT, M. Verdade e poder. In: FOUCAULT, M. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 2011a. p. 4-11., p. 12).

3 Ensino e Aprendizagem Significativos: realidade para ensinar matemática

A primeira análise (1980-1992) dá visibilidade à realidade para ensinar matemática de forma significativa.

A Modelagem Matemática propõe uma forma mais dinâmica, mais viva para o ensino de matemática, procurando torná-lo mais significativo para o aluno (BURAK, 1987BURAK, D. Modelagem Matemática: uma metodologia alternativa para o ensino de matemática na 5ª série. 1987. 185 f. Dissertação (Mestrado em Educação Matemática) – Universidade Estadual Paulista, Rio Claro, 1987., p. 13, grifos meus).

A modelagem matemática como uma metodologia alternativa para o ensino da matemática procura dar ao aluno mais liberdade para raciocinar, conjecturar, estimar e dar vasão ao pensamento criativo estimulado pela curiosidade e motivação. O ensino através da modelagem procura propiciar o emergir de situações-problema as mais variadas possíveis, sempre dentro de um contexto fazendo com que a matemática estudada tenha mais significado para o aluno (BURAK, 1987BURAK, D. Modelagem Matemática: uma metodologia alternativa para o ensino de matemática na 5ª série. 1987. 185 f. Dissertação (Mestrado em Educação Matemática) – Universidade Estadual Paulista, Rio Claro, 1987., p. 17-18, grifos meus).

A busca por um ensino de matemática com mais significado tem levado muitos educadores matemáticos a utilizarem Modelagem Matemática no processo de ensino-aprendizagem dessa ciência (MONTEIRO, 1991MONTEIRO, A. O ensino de matemática para adultos através do método modelagem matemática. 1991. 310 p. Dissertação (Mestrado em Educação Matemática) – Universidade Estadual Paulista, Rio Claro, 1991., p. 110, grifos meus).

Acreditamos assim que o método Modelagem Matemática é um dos possíveis caminhos para buscar um ensino que proporcione significado e prazer no aprendizado dos educandos adultos (MONTEIRO, 1991MONTEIRO, A. O ensino de matemática para adultos através do método modelagem matemática. 1991. 310 p. Dissertação (Mestrado em Educação Matemática) – Universidade Estadual Paulista, Rio Claro, 1991., p. 191, grifos meus).

Eu a compreendo [referindo-se à Modelagem Matemática] como um método que torna possível levar o aluno a adquirir um conhecimento mais significativo da matemática através das relações que estabelece entre os fatos do seu cotidiano e os conceitos que busca para dar soluções aos problemas levantados (CORREA, 1992CORREA, R. de A. A Modelagem: o Texto e a História Inspirando Estratégias na Educação Matemática. 1992.141 f. Dissertação (Mestrado em Educação Matemática) – Universidade Estadual Paulista, Rio Claro, 1992., p. 24, grifos meus).

Assim, apesar de uma acentuada melhoria nos procedimentos com o uso do texto, minha atenção voltava-se ainda, essencialmente, para o método Modelagem Matemática através do qual tentava demonstrar ser possível elevar o nível de interesse do aluno de tal forma a levá-lo a um aprendizado mais significativo através de fatos do seu cotidiano (CORREA, 1992,CORREA, R. de A. A Modelagem: o Texto e a História Inspirando Estratégias na Educação Matemática. 1992.141 f. Dissertação (Mestrado em Educação Matemática) – Universidade Estadual Paulista, Rio Claro, 1992. p. 31, grifos meus).

O trabalho com MM implica: discussão com a classe para definir o que é de interesse em partir da própria bagagem do aluno, o que leva a um aprendizado mais efetivo porque é fixado a partir da necessidade (ANASTÁCIO, 1990ANASTÁCIO, M. Q. A. Consideração sobre a Modelagem Matemática e a Educação Matemática. 1990. 111 f. Dissertação (Mestrado em Educação Matemática) – Universidade Estadual Paulista, Rio Claro, 1990., p. 82, grifos meus).

Outro aspecto que para nós é fundamental, é o levantamento e a formulação do problema ser feito pelo próprio aluno, garantindo assim, uma aprendizagem significativa que representa um nível elevado de envolvimento, pois o aluno inclui-se como um todo na experiência a partir da qual aprende (GAZZETTA, 1989GAZZETTA, M. A Modelagem como Estratégia de Aprendizagem da Matemática em Cursos de Aperfeiçoamento de Professores. 150 f. Dissertação (Mestrado em Educação Matemática) – Universidade Estadual Paulista, Rio Claro, 1989., p. 36, grifos meus).

No método da Modelagem Matemática, a compreensão e o significado de cada conteúdo, necessário à solução do problema proposto, adquire uma dimensão mais profunda, através da própria construção desse conhecimento. Esse método de trabalho torna o ensino de Matemática mais vivo, mais dinâmico e extremamente significativo para o aluno (BURAK, 1992BURAK, D. Modelagem Matemática: ações e interações no processo de ensino-aprendizagem. 1992. 460 f. Tese (Doutorado em Educação) – Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 1992., p. 94, grifos meus).

O envolvimento com os conceitos matemáticos, a partir dos exemplos trabalhados, pode tornar o ensino de Matemática mais atraente, por dar significado às ações desenvolvidas na sala de aula (BURAK, 1992BURAK, D. Modelagem Matemática: ações e interações no processo de ensino-aprendizagem. 1992. 460 f. Tese (Doutorado em Educação) – Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 1992., p. 200, grifos meus).

De acordo com o excertos acima, a Modelagem proporcionaria um ensino de Matemática significativo para o aluno, a partir de situações-problema, as mais variadas possíveis, relacionadas a fatos do cotidiano. Através dessas atividades, é possível levar o aluno a adquirir um conhecimento mais significativo da matemática através das relações que estabelece entre os fatos do seu cotidiano e os conceitos que busca para dar soluções aos problemas levantados. Dessa forma, será provável que o/a estudante chegue a um aprendizado mais significativo através de fatos do seu cotidiano. Portanto, no método da Modelagem Matemática, a compreensão e o significado de cada conteúdo, necessários à solução do problema proposto, adquirem uma dimensão mais profunda, através da própria construção desse conhecimento. Esse método de trabalho torna o ensino de Matemática mais vivo, mais dinâmico e extremamente significativo para o aluno. Essas enunciações, em efeito, constituem o enunciado a Modelagem Matemática torna o ensino e a aprendizagem de Matemática mais significativos. Dito de outra forma, a Modelagem Matemática torna-se um espaço de discussões em torno da realidade, dos fatos do cotidiano, dos problemas levantados e da matemática, possibilitando, dessa maneira, um processo de ensino e aprendizagem encharcado de significado.

Ao olhar para questões educacionais, políticas e econômicas que atravessam o Brasil no período de 1960 a 1990, podemos perceber que o distanciamento entre a Matemática e a realidade se intensificou e tornou seu ensino destituído de significado. De acordo com Magnus (2018)MAGNUS, M. C. M. Modelagem matemática na educação matemática brasileira: histórias em movimento. 2018. 227 f. Tese (Doutorado em Educação) – Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, 2018., o discurso da Modelagem, através de seu ensino significativo, buscaria minimizar características da Matemática que foram reforçadas pelo Movimento da Matemática Moderna: formalismo e abstração. É importante destacar que por um lado essas características ocasionam certo empoderamento da Matemática e, por outro lado, são essas mesmas características que lhe fornecem críticas bastante ferrenhas (DUARTE, 2011DUARTE, C. G. Produzindo fissuras nas “verdades” da matemática. In: HENNING, P. C.; RIBEIRO, P. R. C.; SCHIMIDT, E. B. (orgs.). Perspectivas de investigação em Educação Ambiental e Educação em Ciências. Rio Grande: FURG, 2011. p. 72-83.). O discurso da Modelagem critica essas características e defende que o ensino de Matemática pautado em atividades contextualizadas com os fatos do cotidiano tornaria sua aprendizagem mais significativa para o aluno, pois a realidade dele estaria relacionada com a Matemática escolar. Portanto, o uso de atividades de modelagem proporcionaria um trabalho interdisciplinar – minimizando o distanciamento entre a Matemática e a realidade – e, logo, traria significado para o ensino e a aprendizagem de Matemática – amenizando as dificuldades dos alunos.

Ainda, a entrada na ordem do discurso da Modelagem Matemática de um enunciado que dá visibilidade ao uso de Modelagem como uma forma de dar significado às aulas de matemática, possivelmente, pode estar entrelaçada a um outro discurso que passou a circular no meio educacional: Aprendizagem Significativa. De acordo com Burak (1992, p. 72)BURAK, D. Modelagem Matemática: ações e interações no processo de ensino-aprendizagem. 1992. 460 f. Tese (Doutorado em Educação) – Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 1992., “O processo de ensino proposto pela Modelagem Matemática contempla a aprendizagem significativa, tal como Ausubel a concebe”. O que influencia o aprendizado dos estudantes é aquilo que eles já conhecem – conhecimento prévio (no caso das atividades de modelagem, o conhecimento prévio está intrinsecamente relacionado com a realidade).

O pensamento de David Ausubel passa a circular no Brasil na década de 1970, e ganha grande visibilidade nas décadas seguintes. A sua teoria busca valorizar os conhecimentos prévios dos/as alunos/as na construção do novo conhecimento com o objetivo de trazer significado ao conteúdo abordado. Alguns conceitos são importantes para a compreensão da teoria ausubeliana, tais como: conhecimento prévio, subsunçor ou ideia-âncora, aprendizagem mecânica e aprendizagem significativa.

O subsunçor é um conhecimento prévio, ou seja, é um conhecimento que os/as alunos/as possuem e que é importante/relevante para o aprendizado de novos conhecimentos. “Em termos simples, subsunçor é o nome que se dá a um conhecimento específico, existente na estrutura de conhecimentos do indivíduo, que permite dar significado a um novo conhecimento que lhe é apresentado ou por ele descoberto” (MOREIRA, 2011MOREIRA, M. A. Aprendizagem significativa: a teoria e textos complementares. São Paulo: Livraria Editora da Física, 2011., p. 14). Dito de outra forma, o/a aluno/a aprende a partir daquilo que ele/a já sabe. “É a estrutura cognitiva prévia, ou seja, conhecimentos prévios (conceitos, proposições, ideias, esquemas, modelos, construtos…) hierarquicamente organizados, a principal variável a influenciar a aprendizagem significativa de novos conhecimentos” (MOREIRA, 2011MOREIRA, M. A. Aprendizagem significativa: a teoria e textos complementares. São Paulo: Livraria Editora da Física, 2011., p. 42). Segundo Ausubel, Novak e Hanesian (1980, p. 137)AUSUBEL, D. P.; NOVAK, J. D.; HANESIAN, H. Psicologia educacional. Tradução Eva Nick. Rio de Janeiro: Interamericana, 1980., “o fator isolado mais importante que influencia a aprendizagem é aquilo que o aprendiz já conhece. Descubra o que sabe e baseie nisso seus ensinamentos”. Ao analisar as pesquisas, é notável que as atividades de Modelagem priorizam partir daquilo que o/a aluno/a já sabe/conhece, a sua realidade. Portanto, os conhecimentos prévios que são utilizados nessas atividades extrapolam o campo da Matemática, buscando informações preexistentes na estrutura cognitiva dos/as estudantes sobre o tema escolhido.

Ainda, a aprendizagem significativa contribui para a “superação” de uma aprendizagem mecânica, que está relacionada ao ensino tradicional. Os currículos ditos tradicionais tinham/têm como característica as atividades mecânicas que forçavam/forçam “os alunos a memorizar processos ao invés de compreendê-los” (SILVA, 2007SILVA, V. da. Osvaldo Sangiorgi e “o fracasso da matemática moderna” no Brasil. 2007. 161 f. Dissertação (Mestrado em Educação Matemática) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2007., p. 65). Os “exercícios tinham/têm um caráter de treinamento” (SILVA, 2007SILVA, V. da. Osvaldo Sangiorgi e “o fracasso da matemática moderna” no Brasil. 2007. 161 f. Dissertação (Mestrado em Educação Matemática) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2007., p. 65). Como consequência dessa mecanização e memorização, os alunos não se sentiam/sentem motivados a aprender os conhecimentos do currículo tradicional – não havia/há significado na aprendizagem. A Modelagem, partindo da realidade, proporcionaria outra forma de ensino e, consequentemente, atribuiria significado à sua aprendizagem.

Para concluir, o possível entrelaçamento, a partir da década de 1970, ao discurso sobre a Aprendizagem Significativa torna a Modelagem um terreno fértil para a discussão em torno da realidade, como um conhecimento prévio, para ensinar matemática de forma significativa. Sendo assim, as atividades de Modelagem seriam desenvolvidas a partir da realidade dos/as estudantes para chegar a novos conhecimentos matemáticos. Dessa maneira, a modelagem deslocaria aquilo que se entendia por aprendizagem mecânica (sem significado) para uma aprendizagem significativa (com significado).

4 Ensino e Aprendizagem Significativos: realidade para a formação crítica do cidadão

Ao lançar um olhar para a década de 1990, é visível uma descontinuidade diacrônica5 5 É importante enfatizar que há descontinuidades e não rupturas. Na atualidade, muitas pesquisas ainda defendem a realidade para ensinar matemática de modo a tornar seu ensino e aprendizagem significativos (sem preocupação com a formação crítica dos/as estudantes). no enunciado analisado. As enunciações a seguir dão visibilidade a essa problematização.

Iniciamos o encontro reiterando a importância da Modelagem Matemática como alternativa metodológica para dar significado ao processo de ensino para a aprendizagem de Matemática na Educação Básica e para despertar maior interesse nos alunos para o ensino dessa disciplina (NOGUEIRA, 2014NOGUEIRA, L. C. P. Utilizando a Modelagem Matemática no processo de ensino para a aprendizagem no 9º ano do Ensino Fundamental sob uma perspectiva de Educação Matemática sócio-construtivista-interacionista. 2014. 213 f. Dissertação (Mestrado em Educação Matemática) – Universidade Federal de Ouro Preto, Ouro Preto, 2014., p. 83, grifos meus).

A Modelagem apresenta algumas competências que permitem aos estudantes desenvolverem uma aprendizagem que possua significado (OLIVEIRA, 2018OLIVEIRA, A. C. M. Modelagem Matemática em Sala de Aula: perspectivas para o ensino fundamental. 2018. 112 f. Dissertação (Mestrado Profissional em Matemática) – Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri, Teófilo Otoni, 2018., p. 46, grifos meus).

Neste trabalho, não se afirma estar em desacordo com o ensino baseado em regras, fórmulas e exercícios tradicionais. Esses são importantes, mas o uso da Modelagem e da Resolução de Problemas os deixam, honestamente, em segundo plano. O que se defende é que os conhecimentos matemáticos sejam construídos de maneira conveniente, produtiva e significativa para o estudante (OLIVEIRA, 2018OLIVEIRA, A. C. M. Modelagem Matemática em Sala de Aula: perspectivas para o ensino fundamental. 2018. 112 f. Dissertação (Mestrado Profissional em Matemática) – Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri, Teófilo Otoni, 2018., p. 51, grifos meus).

O conhecimento adquirido nessa relação entre a matemática e a realidade é profundo, repleto de significados e propício para conexões entre o conteúdo matemático e o dia-a-dia das pessoas. Marcos, na entrevista, disse que o conhecimento alcançado tanto matemático quanto sobre o tema foi a maior contribuição que o trabalho poderia lhe dar. Para ele, através da vinculação entre a matemática e a realidade aprende-se muito mais matemática, com mais sentido e com mais significado, além de possibilitar também a descoberta de fatos importantes que interferem diretamente na vida das pessoas (JACOBINI, 2004JACOBINI, O. R. A modelagem matemática como instrumento de ação política na sala de aula. 2004. 225 f. Tese (Doutorado em Educação Matemática) – Universidade Estadual Paulista, Rio Claro, 2004., p. 152-153, grifos meus).

Aproveitei o momento e propus ao grupo que apresentassem os principais aspectos sociais, políticos, matemáticos e estatísticos relacionados com o trabalho sobre o orçamento participativo, em uma escola pública de Campinas. A reação positiva e de entusiasmo foi imediata e os integrantes do grupo acharam que aquela iniciativa era muito mais interessante e muito mais significativa, tanto para eles como para os alunos da escola (JACOBINI, 2004JACOBINI, O. R. A modelagem matemática como instrumento de ação política na sala de aula. 2004. 225 f. Tese (Doutorado em Educação Matemática) – Universidade Estadual Paulista, Rio Claro, 2004., p. 127, grifos meus).

A Modelagem Matemática é um elemento facilitador/possibilitador da aprendizagem, pois trabalha com situações do cotidiano da vida dos alunos, dando mais significado aos assuntos estudados, proporcionando um trabalho colaborativo e produtivo entre o professor e os alunos. Com isso, o processo de ensino para a aprendizagem tem mais chances de alcançar os objetivos propostos e, consequentemente, levar os alunos a terem, realmente, uma significativa aprendizagem dos conteúdos estudados (NOGUEIRA, 2014NOGUEIRA, L. C. P. Utilizando a Modelagem Matemática no processo de ensino para a aprendizagem no 9º ano do Ensino Fundamental sob uma perspectiva de Educação Matemática sócio-construtivista-interacionista. 2014. 213 f. Dissertação (Mestrado em Educação Matemática) – Universidade Federal de Ouro Preto, Ouro Preto, 2014., p. 26, grifos meus).

Diante desse contexto, oferecer aulas significativas e contextualizadas à realidade dessas pessoas jovens e adultos torna-se imprescindível (SILVA, 2018SILVA, L. I. A. Discussões Matemáticas de Jovens e Adultos em um Ambiente de Aprendizagem de Modelagem Matemática. 2018. 118 f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2018., p. 25, grifos meus).

De acordo com as enunciações, a Modelagem Matemática é uma metodologia capaz de dar significado ao processo de ensino para a aprendizagem de Matemática. Na qual a relação entre matemática e a realidade oportuniza a aprendizagem de muito mais matemática, com mais sentido e com mais significado. O uso de situações do cotidiano da vida dos alunos proporciona mais significado aos assuntos estudados. Tornando, dessa maneira, as aulas de matemática muito mais interessantes e muito mais significativas. Porém, oferecer aulas significativas e contextualizadas implica uma abordagem de ensino e aprendizagem mais crítica. Dessa maneira, aprender e usar a Matemática deve fazer com que o aluno perceba, entre outras coisas, seu verdadeiro papel como cidadão e transformador social. As enunciações a seguir dão visibilidade a essa discussão.

Aprender e usar a Matemática deve fazer com que o aluno perceba, entre outras coisas, seu verdadeiro papel como cidadão e transformador social. Nesse sentido, precisamos aprender a encarar a Matemática de uma forma mais significativa, onde a interação com outras ciências traga uma melhor compreensão de cada uma delas, e ao mesmo tempo, a complementaridade de todas traga uma compreensão global. Assim, a Matemática transcende a ideia de uma ciência isolada, para uma ideia mais abrangente relacionando questões mais amplas e refletindo sobre diversas situações, fornecendo uma visão mais crítica e muito mais fortemente elaborada sobre a sobrevivência do nosso meio – e da nossa (CALDEIRA, 1998CALDEIRA, A. D. Educação Matemática e Ambiental: um contexto de mudança. 1998. 553 f.. Tese (Doutorado em Educação) – Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 1998., p. 16, grifos meus).

É necessário que a aprendizagem da matemática, partindo da realidade do aluno contextualizado sócio e culturalmente, proporcione múltiplas alternativas que o levem a desenvolver o pensamento lógico, a criatividade, a aprender os conceitos e construir estruturas matemáticas, enfatizando não só o conceito matemático mas usando-os na compreensão da dinâmica da realidade social-histórico-cultural. A interação dos conhecimentos adquiridos pelos alunos na sua vivência, em consonância com a ação educativa da escola num processo contínuo e dinâmico de elaborar e sistematizar e, acompanhada da discussão das implicações sociais, proporcionarão aos alunos as condições para a sua atuação crítica no dia-a-dia (CALDEIRA, 1998CALDEIRA, A. D. Educação Matemática e Ambiental: um contexto de mudança. 1998. 553 f.. Tese (Doutorado em Educação) – Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 1998., p. 21, grifos meus).

Neste trabalho, a tomada de decisão é entendida como uma das habilidades adquiridas pelo estudante de se posicionar diante da situação investigada, após conhecer e se aprofundar no assunto da pesquisa. Significa, portanto, que sendo ou não capazes de desenvolver profundas reflexões matemáticas no contexto em que está inserido, o importante é que os estudantes desenvolvam competências e utilizem o conhecimento adquirido para compreender algo que facilite sua atuação reflexiva na sociedade (OLIVEIRA, 2018OLIVEIRA, A. C. M. Modelagem Matemática em Sala de Aula: perspectivas para o ensino fundamental. 2018. 112 f. Dissertação (Mestrado Profissional em Matemática) – Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri, Teófilo Otoni, 2018., p. 48, grifos meus).

Neste estudo a ação significa ensinar e aprender de forma crítica, de modo que essa aprendizagem não se restrinja ao conhecimento matemático intrínseco ao conteúdo curricular, mas que também avance na direção da conscientização dos estudantes sobre os problemas da sociedade. Os ambientes de aprendizagem investigativos e reflexivos, centrados na modelagem matemática e apoiados pela tecnologia constituem-se nas alternativas pedagógicas para a realização dessa ação (JACOBINI, 2004JACOBINI, O. R. A modelagem matemática como instrumento de ação política na sala de aula. 2004. 225 f. Tese (Doutorado em Educação Matemática) – Universidade Estadual Paulista, Rio Claro, 2004., p. 78, grifos meus).

A concepção de Modelagem adotada nesta pesquisa está diretamente relacionada com as propostas de uma Educação Matemática Crítica, onde os alunos têm a opção de trabalharem com assuntos que lhes interessem, tornando, possivelmente, o aprendizado mais significativo (MALHEIROS, 2004MALHEIROS, A. P. A produção matemática dos alunos em um ambiente de modelagem. 2004. 180 f. Dissertação (Mestrado em Educação Matemática) – Universidade Estadual Paulista, Rio Claro, 2004., p. 43, grifos meus).

A proposta da Educação Matemática Crítica é fazer com que todos sejam matematicamente alfabetizados, para que eles possam vivenciar, entender e questionar a sociedade em que vivem (MALHEIROS, 2004MALHEIROS, A. P. A produção matemática dos alunos em um ambiente de modelagem. 2004. 180 f. Dissertação (Mestrado em Educação Matemática) – Universidade Estadual Paulista, Rio Claro, 2004., p. 46, grifos meus).

Acreditamos que as atividades de Modelagem Matemática desenvolveram o espírito crítico nos participantes e contribuíram para a sua formação integral, tornando-os mais participativos, interessados, autônomos e com criticidade, características que os auxiliarão na transformação de sua comunidade (NOGUEIRA, 2014NOGUEIRA, L. C. P. Utilizando a Modelagem Matemática no processo de ensino para a aprendizagem no 9º ano do Ensino Fundamental sob uma perspectiva de Educação Matemática sócio-construtivista-interacionista. 2014. 213 f. Dissertação (Mestrado em Educação Matemática) – Universidade Federal de Ouro Preto, Ouro Preto, 2014., p. 143, grifos meus).

Essas discussões foram bastante produtivas não só para conscientização dos alunos como cidadãos em relação à sustentabilidade do nosso planeta, mas também para que eles se ambientassem com o tema da atividade de Modelagem Matemática (SILVA, 2018SILVA, L. I. A. Discussões Matemáticas de Jovens e Adultos em um Ambiente de Aprendizagem de Modelagem Matemática. 2018. 118 f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2018., p. 74, grifos meus).

Sugeri que seria interessante trabalharmos um tema que fosse um problema da nossa sociedade atualmente. Embora tivéssemos cogitado outros temas, decidimos trabalhar como o tema “Lixo e Reciclagem” por acreditar que se trata de um dos gargalos da nossa sociedade contemporânea (SILVA, 2018SILVA, L. I. A. Discussões Matemáticas de Jovens e Adultos em um Ambiente de Aprendizagem de Modelagem Matemática. 2018. 118 f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2018., p. 62, grifos meus).

Oferecer motivação para que estes alunos permaneçam na escola é mais um dos desafios da Educação Matemática de Jovens e Adultos. Esses alunos são sujeitos com grande capacidade de aprendizagem, são pessoas que transpuseram algumas barreiras no campo pessoal, profissional, entre outros, para estarem novamente, ou pela primeira vez, em sala de aula, possivelmente, com o objetivo de se tornarem incluídos socialmente e desenvolverem sua capacidade de raciocínio, suas habilidades matemáticas para compreenderem o mundo que os cerca e poderem participar criticamente desse mundo (SILVA, 2018SILVA, L. I. A. Discussões Matemáticas de Jovens e Adultos em um Ambiente de Aprendizagem de Modelagem Matemática. 2018. 118 f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2018., p. 12, grifos meus).

No primeiro encontro, com o propósito de informar e entusiasmar os estudantes à proposta, foi preparada uma aula baseada em slides para explicar como se dá o trabalho com Modelagem, enfatizando a sua peculiaridade em tornar os estudantes mais ativos, habilidosos e criativos em relação à resolução de problemas, além de prepará-los para a vida real como cidadãos críticos, capazes de se posicionarem frente às situações do cotidiano (OLIVEIRA, 2018OLIVEIRA, A. C. M. Modelagem Matemática em Sala de Aula: perspectivas para o ensino fundamental. 2018. 112 f. Dissertação (Mestrado Profissional em Matemática) – Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri, Teófilo Otoni, 2018., p. 69, grifos meus).

De acordo com as enunciações anteriores, pensar em um ensino e uma aprendizagem significativos extrapola o ensino dos conteúdos matemáticos. Aprender e usar a Matemática deve fazer com que o aluno perceba, entre outras coisas, seu verdadeiro papel como cidadão e transformador social. Nesse sentido, precisamos aprender a encarar a Matemática de uma forma mais significativa. O uso de atividades de Modelagem deve proporcionar a conscientização política, a formação do cidadão para que consiga entender, vivenciar, questionar e agir sobre a realidade e a sociedade em que vive. Uma aprendizagem significativa em matemática requer, num primeiro momento, a conscientização dos estudantes sobre os problemas da sociedade e, consequentemente, uma significativa aprendizagem dos conteúdos estudados.

A partir das análises, posso inferir que a realidade dos/as estudantes tem funcionado como ponto central no processo de modelagem. Porém, a partir da década de 1990, há uma descontinuidade discursiva sobre o papel da realidade nas atividades desenvolvidas. Ou seja, ela não é utilizada apenas como um conhecimento prévio, mas com o objetivo de tornar crítica a atuação dos/as estudantes em seu cotidiano. Dito de outra forma, um ensino significativo de matemática é um ensino capaz de formar cidadãos que consigam entender e agir sobre a realidade.

Essa constituição de um sujeito crítico e reflexivo, atuando e transformando a sociedade, tornando-a mais justa e democrática, está entrelaçada a outras tramas discursivas: política, econômica e educacional. Posso dizer que esses entrelaçamentos constituem um campo de força – proveniência – para a emergência (FOUCAULT, 2011bFOUCAULT, M. Nietzsche, a genealogia e a história. In: FOUCAULT, M. Microfísica do poder. Rio de Janeiro, Graal, 2011b. p. 94-99.) desse sujeito no discurso da Modelagem.

Em relação ao discurso político, em meados da década de 1970 a ditadura militar começava a dar sinais de enfraquecimento. O presidente militar Ernesto Geisel inicia seu mandato em 1974 e, junto com ele, o processo de redemocratização no Brasil, sendo este um processo, de acordo com o próprio presidente, “lento, gradual e seguro”, que só se concretizou em 1985, com a eleição indireta do primeiro presidente civil (MISSIATO, 2012MISSIATO, V. A. R. Entre a Nova República e as Velhas Autonomias: as relações civis-militares nos governos FHC e Lula (1996-2008). 2012. 135 f. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Estadual Paulista, Franca, 2012.). Em 1979, Figueiredo assume a presidência e promete transformar o Brasil numa democracia. Esse posicionamento de Geisel e Figueiredo não foi bem aceito pelos militares ditos “linha dura”, que em 1980 iniciaram a explosão de bombas em várias partes do país, sendo o atentado ao Riocentro6 6 No dia 30 de abril de 1981, ocorria no Riocentro um evento com vários shows em comemoração ao dia do trabalho. Uma bomba explodiu dentro de um carro no estacionamento, deixando o capitão Wilson Machado ferido e o sargento Guilherme Pereira do Rosário morto. , ocorrido em 1981, o mais famoso (MISSIATO, 2012MISSIATO, V. A. R. Entre a Nova República e as Velhas Autonomias: as relações civis-militares nos governos FHC e Lula (1996-2008). 2012. 135 f. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Estadual Paulista, Franca, 2012.).

Com o processo de redemocratização iniciado, mas até então não concretizado, em 1983/4, há reinvindicações pelas diretas já por parte de movimentos civis, que lutavam pelo direito de eleições diretas para presidente do Brasil, porém a eleição através do voto popular só ocorreu em 1989. Em 1985, assume o primeiro presidente cível, após vinte anos de ditadura militar, eleito pelo colégio eleitoral – eleição indireta. Tancredo Neves foi eleito presidente, porém faleceu antes de assumir o cargo, e seu vice, José Sarney, assumiu a presidência em seu lugar (MISSIATO, 2012MISSIATO, V. A. R. Entre a Nova República e as Velhas Autonomias: as relações civis-militares nos governos FHC e Lula (1996-2008). 2012. 135 f. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Estadual Paulista, Franca, 2012.).

José Sarney, ao assumir a presidência, encontrou o país mergulhado em sérios problemas. No campo econômico, o país vinha dando sinais de enfraquecimento desde a década de 1970: diminuição do PIB, aumento da inflação, endividamento externo, aumento no preço do petróleo, desemprego, arrocho salarial etc. Para tentar amenizar a inflação, o então presidente criou o Plano Cruzado – mudou a moeda de Cruzeiro para Cruzado –, porém não obteve sucesso, e a inflação chegou a superar 80% ao mês.

O povo dava sinais de descontentamento com a situação em que o país se encontrava, e mostrou isso em inúmeras greves. Segundo a pesquisa de Moura (2011)MOURA, A. de. Movimento operário no ABC e na Volkswagen (1978-2010). 2011. 313 f. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) – Universidade Estadual Paulista, Marília, 2011., em 1978, estima-se que o número de grevistas tenha chegado a um milhão e o número de fábricas paralisadas e em greve, só na Grande São Paulo, tenha atingido um total de 150; em 1979, soma-se um total de 436 estabelecimentos em greve pelo país e mais de três milhões de trabalhadores paralisados. Na década de 1980, devido à crise econômica que se acentuava, houve inúmeras greves em todo o país. No ano de 1983, só no ABC Paulista foram registradas 62 greves. Em 1985, professores, universidades e bancários também aderem às greves e, em 1986, em São Paulo, foram realizadas 216 greves. Em 1989, foi desencadeada a greve nacional dos bancários, atingindo trinta mil estabelecimentos e setecentos mil trabalhadores.

As greves mostravam a luta da população por melhores condições de trabalho, aumentos salariais, pela diminuição da inflação e pelo direito de escolher o presidente. No ano de 1989, ocorreram eleições diretas; o povo, após décadas, foi às urnas escolher o futuro presidente do Brasil. Em meio ao descontentamento vivenciado pela população, Fernando Collor de Mello emerge como uma figura distinta, trazendo para a população um certo ar de esperança. O então candidato à presidência é eleito no segundo turno, o qual foi disputado com Luiz Inácio Lula da Silva.

Ao assumir a presidência, Collor prometeu estabilizar a inflação, porém seus planos não alcançaram os objetivos propostos e o Brasil continuou em crise. Além de não conseguir equilibrar a inflação, Collor viu, em 1991, surgirem acusações de corrupção em seu governo. A população descontente com o governo sai para as ruas para protestar e lutar pelo impedimento de Collor.

Os cara-pintadas, como foram denominados os jovens que se reuniram às manifestações desde o início, demonstraram grande liberdade para lidar com a linguagem, a ponto de transformarem seus próprios corpos em signos: não apenas seus rostos foram pintados mas seus braços e pernas, seus torsos; seus corpos transformaram-se numa tela, onde slogans e mensagens vieram a se inscrever, cores a expressar opinião. […] Os caras-pintadas, como se sabe, tiveram um papel fundamental no desenrolar da crise política. No Rio e em São Paulo eles desencadearam as primeiras manifestações públicas importantes em favor do impeachment, as primeiras a serem notadas pela televisão (SENRA, 2001SENRA, S. Mídia, política e intimidade: permutas entre a esfera pública e a imagem na era Collor. In: D’INCAO, M. A. (org.) O Brasil não é mais aquele… mudanças sociais após a redemocratização. São Paulo: Cortez, 2001. p. 41-60., p. 56).

Na perspectiva de Foucault, esses entrelaçamentos discursivos – econômico, político, educacional – são compreendidos como um embate de forças e têm, com o impedimento de Collor, o “salto dos bastidores para o teatro” (FOUCAULT, 2011bFOUCAULT, M. Nietzsche, a genealogia e a história. In: FOUCAULT, M. Microfísica do poder. Rio de Janeiro, Graal, 2011b. p. 94-99., p. 24) de uma nova discussão no contexto educacional.

Segundo Frare (1993, p. 9)FRARE, J. L. Como ajudar a formar o jovem participativo. Revista Nova Escola, São Paulo, ano VIII, [s.v], n. 64, mar. 1993., em março de 1993, a Revista Nova Escola lança seu exemplar com a seguinte chamada de capa: “como ajudar a formar o novo cidadão”. O momento histórico vivenciado pelo país levou a educação a pensar no “novo cidadão” para o “novo país” e, principalmente, “como formá-lo?”. De acordo com a matéria publicada, “o furacão político do ano passado [1992] mostrou que os jovens estão interessados e querem influir na vida do país”. Os jovens, ao irem para as ruas, ao mostrarem seus posicionamentos políticos, lutando pelo impedimento do mandato de Collor, trazem para o contexto escolar a quebra de um mito, “em outras palavras, a política começa a transpor os muros da escola e está chegando à sala de aula, em muitas partes do país, derrubando mais um mito: o de que a escola não é espaço para discutir política” (FRARE, 1993FRARE, J. L. Como ajudar a formar o jovem participativo. Revista Nova Escola, São Paulo, ano VIII, [s.v], n. 64, mar. 1993., p. 9). O discurso que circulava nas ruas, na forma de reivindicações, luta, protesto, pula o muro escolar, vira assunto de sala de aula e ganha visibilidade no meio educacional.

Essa discussão, sobre o novo cidadão a ser formado, teve ressonância em documentos oficiais. Em 1997, com a publicação dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), pelo Ministério da Educação (MEC), o sujeito crítico e reflexivo, consciente de seu papel na sociedade, encontra um amplo espaço de visibilidade ao tornar-se um dos objetivos da educação brasileira. No livro intitulado Parâmetros Curriculares Nacionais: introdução aos Parâmetros Curriculares Nacionais, em suas páginas iniciais, já aparece a seguinte orientação aos professores:

Nosso objetivo é auxiliá-lo na execução de seu trabalho, compartilhando seu esforço diário de fazer com que as crianças dominem os conhecimentos de que necessitam para crescerem como cidadãos plenamente reconhecidos e conscientes de seu papel em nossa sociedade (BRASIL, 1997aBRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais: introdução aos Parâmetros Curriculares Nacionais. Secretaria de Educação Fundamental. Brasília: MEC/SEF, 1997a., p. 4, grifo meu).

Os PCN anunciam o papel da educação brasileira: formar cidadãos conscientes de seus papéis na sociedade. A formação desse sujeito é justificada pelas demandas, externas ao ensino, que exigem que a escola se torne um espaço de fabricação de sujeitos capacitados para o mercado de trabalho e, também, capazes de ajudar na construção de uma sociedade mais justa.

As demandas atuais exigem que a escola ofereça aos alunos sólida formação cultural e competência técnica, favorecendo o desenvolvimento de conhecimentos, habilidades e atitudes que permitam a adaptação e a permanência no mercado de trabalho, como também a formação de cidadãos críticos e reflexivos, que possam exercer sua cidadania ajudando na construção de uma sociedade mais justa, fazendo surgir uma nova consciência individual e coletiva, que tenha a cooperação, a solidariedade, a tolerância e a igualdade como pilares (BRASIL, 1997aBRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais: introdução aos Parâmetros Curriculares Nacionais. Secretaria de Educação Fundamental. Brasília: MEC/SEF, 1997a., p. 138, grifos meus).

Para que esses objetivos sejam alcançados, os PCN apresentam o papel que os conteúdos escolares devem ocupar em sala de aula.

Os conteúdos escolares que são ensinados devem, portanto, estar em consonância com as questões sociais que marcam cada momento histórico. Isso requer que a escola seja um espaço de formação e informação, em que a aprendizagem de conteúdos deve necessariamente favorecer a inserção do aluno no dia-a-dia das questões sociais marcantes e em um universo cultural maior. A formação escolar deve propiciar o desenvolvimento de capacidades, de modo a favorecer a compreensão e a intervenção nos fenômenos sociais e culturais, assim como possibilitar aos alunos usufruir das manifestações culturais nacionais e universais. No contexto da proposta dos Parâmetros Curriculares Nacionais se concebe a educação escolar como uma prática que tem a possibilidade de criar condições para que todos os alunos desenvolvam suas capacidades e aprendam os conteúdos necessários para construir instrumentos de compreensão da realidade e de participação em relações sociais, políticas e culturais diversificadas e cada vez mais amplas, condições estas fundamentais para o exercício da cidadania na construção de uma sociedade democrática e não excludente (BRASIL, 1997aBRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais: introdução aos Parâmetros Curriculares Nacionais. Secretaria de Educação Fundamental. Brasília: MEC/SEF, 1997a., p. 33, grifos meus).

Os PCN trazem em sua discussão a importância de relacionar os conteúdos escolares às questões sociais que marcam cada momento histórico. Além disso, a educação escolar deve ser uma prática que tem possibilidade de criar condições para que todos os alunos aprendam conteúdos necessários para a compreensão da realidade e de participação em relações sociais, políticas e culturais – condições necessárias para o exercício da cidadania na construção de uma sociedade democrática.

O terceiro volume dos PCN, destinado à Matemática, traz em seu bojo a discussão da cidadania a partir do ensino dessa disciplina. Para os Parâmetros, “a atividade Matemática escolar não é ‘olhar para coisas prontas e definitivas’, mas a construção e a apropriação de um conhecimento pelo aluno, que se servirá dele para compreender e transformar sua realidade” (BRASIL, 1997bBRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais: matemática. Brasília: MEC/SEF, 1997b., p. 19).

A trama discursiva gerada por um documento oficial – Parâmetros Curriculares Nacionais – encontra ressonância no discurso da Modelagem. Discurso esse que coloca em circulação as atividades de Modelagem como uma forma de discussão de conteúdos matemáticos ligados à realidade dos alunos e que, consequentemente, possam contribuir para a formação de sujeitos críticos, reflexivos, transformadores e atuantes na sociedade, tornando-a um espaço democrático.

Para a constituição desse sujeito, a realidade nas tramas discursivas da Modelagem adquire importância social. Dito de outra forma, trazer para as atividades de Modelagem discussões a partir da realidade proporcionaria “uma reflexão e discussão cujo objetivo não se limitaria a uma mera descrição ‘do que aí está’, mas, ao contrário, tivesse como foco ‘empoderar’ o sujeito escolar, tornando-o autônomo e crítico, de modo a ser um agente da necessária transformação da realidade” (DUARTE, 2009DUARTE, C. G. A “realidade” nas tramas discursivas da educação matemática escolar. 2009. 198 f. Tese (Doutorado em Educação) – Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo, 2009., p. 159). Nessa perspectiva, “a sociedade precisaria desse sujeito crítico, atuante e capaz de transformá-la, na direção de discuti-la e de melhorá-la para que, a partir disso, os próprios sujeitos passem a viver melhor” (GÓES, 2015GÓES, A. de. “Tornar o aluno crítico”: enunciado (in)questionável no discurso da educação matemática escolar. 189 p. Dissertação (Mestrado em Educação Científica e Tecnológica) – Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2015., p. 122).

As atividades de Modelagem passam a utilizar a realidade para formar sujeitos críticos e reflexivos. Um ensino e uma aprendizagem significativos teriam/têm por objetivo discutir a realidade dos sujeitos entrelaçada aos conceitos matemáticos e, posteriormente, problematizar suas atuações na sociedade, de forma crítica, a partir dos resultados encontrados (modelos matemáticos). Um ensino significativo é capaz de formar cidadãos que possam construir uma sociedade mais justa e democrática.

Essa descontinuidade (ensino e aprendizagem significativos: realidade para ensinar matemática e realidade para formar cidadão crítico) é possível devido ao regime de verdades de cada momento histórico; nas décadas anteriores, não havia espaço para problematizar a constituição de um cidadão crítico e reflexivo, no contexto escolar – era interditado (FOUCAULT, 2014bFOUCAULT, M. A ordem do discurso: aula inaugural no Collège de France, pronunciada em 2 de dezembro de 1970. Tradução Laura Fraga de Almeida Sampaio. 24. ed. São Paulo: Loyola, 2014b.). O ensino, no período da Ditadura Militar, privilegiava a formação de sujeitos dóceis, úteis e obedientes (FOUCAULT, 2013FOUCAULT, M. Ditos e Escritos: Arqueologia das ciências e história dos sistemas de pensamento. Seleção e organização dos textos por M. B. Motta. Tradução Elisa Monteiro. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2013. (Vol. 2).). Com a redemocratização do país, novas discussões são possíveis, e a criticidade e a reflexividade entram na ordem do discurso da Modelagem, ressignificando o que se entende por aprendizagem significativa.

5 Conclusões em movimento

O artigo teve por objetivo apresentar resultados preliminares de uma pesquisa cujo propósito é problematizar e analisar as condições que possibilitaram a entrada na ordem do discurso da Modelagem Matemática de um enunciado que foi se constituindo como uma das verdades quase inquestionáveis nesse campo: a Modelagem Matemática torna o ensino e a aprendizagem de Matemática mais significativos.

Ainda, a aprendizagem significativa contribui para a superação de uma aprendizagem mecânica, que está relacionada ao ensino tradicional. Como consequência dessa mecanização e memorização, os alunos não se sentiam/sentem motivados a aprender os conhecimentos do currículo tradicional – não havia/há significado na aprendizagem. A Modelagem, partindo da realidade, proporcionaria outra forma de ensino e aprendizagem, retomando e reconfigurando o ensino de Matemática, fazendo com que as práticas abstratas fossem repensadas a partir de práticas realísticas.

O discurso da Modelagem foi entrelaçado por outros discursos (políticos, econômicos, educacionais, ambientais etc.) e, consequentemente, novos enunciados passaram a circular e funcionar como verdadeiros. A análise do material dá visibilidade à realidade dos/as estudantes como central para a discussão em torno de um processo de ensino e aprendizagem significativos. Para a Modelagem Matemática, uma aprendizagem significativa está intrinsecamente entrelaçada à realidade dos/as estudantes. Porém, há descontinuidade diacrônica na “centralidade” da realidade e daquilo que se entende por aprendizagem significativa. Dito de outra forma, até a década de 1990, a realidade era utilizada para a motivação e aprendizagem significativa dos conteúdos matemáticos. Após 1990, a realidade passa a ser utilizada para formar cidadãos críticos e reflexivos. Um ensino e uma aprendizagem significativos teriam/têm por objetivo discutir a realidade dos sujeitos entrelaçada aos conceitos matemáticos e, posteriormente, problematizar suas atuações na sociedade, de forma crítica.

Para finalizar, essa pesquisa contribui não só com o campo da Modelagem, mas com um corpo mais amplo, como, por exemplo, com os professores e as professoras interessados e interessadas nos comos e porquês. Entender os comos e porquês nos faz, enquanto professores/as, refletir sobre aquilo que fazemos sem, muitas vezes, entender o motivo, perceber que trabalhar de determinada forma, com metodologias de ensino diferenciadas, possui um porquê, uma/s historicidade/s e, principalmente, que essa discussão está associada a outros campos (políticos, econômicos, ambientais, culturais etc.) e que possui descontinuidades discursivas.

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    A revista, pouco a pouco, foi convertendo-se em uma escola. Burke (1991)BURKE, P. A Revolução Francesa da historiografia: a Escola dos Annales 1929-1989. Tradução Nilo Odália. São Paulo: Editora Unesp, 1991. sugere que talvez seja preferível falar em um movimento dos Annales, não numa escola, já que o estereótipo de escola ignora tanto as divergências individuais entre seus membros quanto seu desenvolvimento no tempo. Seguindo a sugestão de Burke, ao nos referirmos aos Annales, falaremos em revista ou movimento.
  • 2
    Foge ao escopo desta tese analisar os diferentes pensamentos dos historiadores da Ciência em geral. Fiz a opção por Bachelard e Canguilhem por ser possível estabelecer um diálogo entre eles e Foucault.
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    A década de 1990 faz parte dos dois momentos analisados pois foi considerada como uma fase de mudanças no contexto educacional – rompimento com o contexto até então vivido e início de um novo ciclo a partir de novas discussões. A década de 1990 marca as compatibilidades, coerências e o emergir das descontinuidades, numa mesma época.
  • 5
    É importante enfatizar que há descontinuidades e não rupturas. Na atualidade, muitas pesquisas ainda defendem a realidade para ensinar matemática de modo a tornar seu ensino e aprendizagem significativos (sem preocupação com a formação crítica dos/as estudantes).
  • 6
    No dia 30 de abril de 1981, ocorria no Riocentro um evento com vários shows em comemoração ao dia do trabalho. Uma bomba explodiu dentro de um carro no estacionamento, deixando o capitão Wilson Machado ferido e o sargento Guilherme Pereira do Rosário morto.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Maio 2023
  • Data do Fascículo
    Abr 2023

Histórico

  • Recebido
    28 Jul 2022
  • Aceito
    18 Out 2022
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