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Utilizando Argumentações, Provas e Refutações em Sala de Aula de Geometria como Contribuições ao Desenvolvimento do Senso Crítico do Educando

Using Arguments, Proofs, and Refutations in Geometry Classes as Contributions to the Development of the Student's Critical Sense

Resumo

Este artigo discute formas de contribuição para o aprimoramento do senso crítico dos educandos em sala de aula de Matemática. Especificamente, para fins de promoção dessa modalidade de pensamento chamada senso crítico, expusemos um grupo de alunos de 6º ano a um ambiente de argumentações e refutações, aplicando uma sequência de atividades didáticas que os conduzissem a demonstrar o seguinte resultado da Geometria Plana: “a soma dos ângulos internos de qualquer triângulo é 180°”. Assim, a seguir, usando este resultado, determinassem o valor da soma dos ângulos internos de um polígono qualquer por um processo de inferência lógica. Em relação às tarefas, que envolveram a explicitação de validações, os estudantes foram incentivados a fazer manipulações, produzir questionamentos e levantar hipóteses, visando construir conhecimentos e relações necessárias, tornando, dessa forma, os aprendizados significativos. Para fundamentar nossos trabalhos, apoiamo-nos na teoria do desenvolvimento do pensamento geométrico proposta por Van Hiele, bem como em Balacheff e nos seus trabalhos sobre argumentações e refutações para a construção de validações matemáticas. Para a análise dos resultados, embasamo-nos em Carraher e seus critérios para caracterizar um indivíduo como pensador crítico. Mostramos, assim, que o desenvolvimento do senso crítico pode ser favorecido por meio de um trabalho pedagógico que envolva os alunos na construção de validações geométricas.

Palavras-chave:
Senso Crítico; Argumentações; Provas; Refutações; Geometria

Abstract

In the present paper, we evaluated how to contribute to the improvement of critical sense of the students in the mathematics classes. Specifically, for the purpose of promoting this way of thinking, named critical sense, we exposed a group of 6th grade students to an environment of argumentations and refutations applying a sequence of didactic activities that leads them to demonstrate the result of Plane Geometry: “the sum of the internal angles of any triangle is 180°”. Next, using this result, that they determined the sum of the internal angles of any polygon through a process of logical inference. In the tasks, which involved the communication of validations, the students were encouraged to make manipulations, to question, and to raise hypotheses, always aiming to build the necessary knowledge and geometric relationships, making their learning meaningful. To support our actions, we relied on Van Hiele and his theory on the development of geometric thinking, as well as on Balacheff and his works whereby him explore argumentations and refutations to the construction of mathematic validations. In analyzing the results, we based ourselves on Carraher and his criteria to characterize an individual as a critical thinker. Thus, we show that the development of critical thinking can be favored through pedagogical work that involves students in the construction of geometric validations, while observing the geometric learning levels proposed by Van Hiele.

Keywords:
Critical Sense; Argumentation; Proof; Refutation; Geometry

1 Introdução

Em nossa sociedade atual, que exige de seus cidadãos tomadas de decisão responsáveis e soluções de problemas cada vez mais complexos, a habilidade de pensar criticamente é fundamental (SEZER, 2008, apud UDI; AMIT, 2011UDI, A. E.; AMIT, M. Developing the skills of critical and creative thinking by probability Teaching. Social and Behavioral Sciences, Chandler, v. 15, [s.n.], p. 1.087-1.091, 2011.). Segundo Udi e Amit (2011)UDI, A. E.; AMIT, M. Developing the skills of critical and creative thinking by probability Teaching. Social and Behavioral Sciences, Chandler, v. 15, [s.n.], p. 1.087-1.091, 2011., o domínio dessa capacidade permite entender e lidar com vários aspectos da realidade próxima de maneira independente e objetiva, potencializando os indivíduos para atuarem nas diversas áreas do conhecimento e profissões.

Frente a essa realidade social, a importância do desenvolvimento do senso crítico é explicitada nas Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Fundamental (BRASIL, 2013BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Básica. Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação e Diretoria de Currículos e Educação Integral. Brasília: MEC, 2013.) como objetivo educacional a ser atingido para com os estudantes. Também nesse sentido, os Parâmetros Curriculares Nacionais de Matemática (BRASIL, 1997BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Ensino Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais: Matemática. Brasília: MEC, 1997., p. 26) já sinalizavam uma trajetória para o ensino dessa disciplina visando sua contribuição para a formação de um cidadão crítico, “à medida que forem exploradas metodologias que priorizem a criação de estratégias, a comprovação, a justificativa, a argumentação e o espírito crítico”.

Assim, a partir desses documentos e entendendo que essa modalidade de pensamento se manifesta tanto nas argumentações justificadas quanto nas inferências produzidas, consideramos a Matemática uma área do conhecimento propícia à promoção do desenvolvimento do senso crítico dos estudantes, pois as explicitações de provas, demonstrações, raciocínio indutivo e discussão de exemplos e contraexemplos estão no centro de práticas dessa Ciência, tendo o propósito de confirmar ou refutar afirmações, e verificar ou esclarecer resultados (DE VILLIERS, 1999DE VILLIERS, M. The role and function of proof. In: DE VILLIERS, M. (ed.). Rethinking Proof with the Geometer's Sketchpad. Emeryville: Key Curriculum Press, 1999. p. 3-10.).

Por outro lado, um trabalho pedagógico com os métodos de validações próprios da Matemática torna-se pertinente para além do uso nessa Ciência, considerando que, nas diversas situações cotidianas de debates, as pessoas já têm o costume de formular justificativas não formais, adotando estratégias para solucionar problemas ou explicitar premissas, mesmo não possuindo conhecimentos de Lógica ou qualquer instrumento formal de validação.

Portanto, acreditamos que a criação de espaços em sala de aula que permitam a vivência dos alunos com atividades que envolvam provas ou validações é uma forma de ampliar seus repertórios de conhecimentos, estratégias de leitura, compreensão e avaliação de afirmações explicitadas em situações diversas, além de contribuir para a formação de cidadãos críticos (JUNIOR; NASSER 2014JUNIOR, C. A. A.; NASSER, L. Estudo sobre a Visão do Professor em Relação à Argumentação e Prova Matemática na Escola. Bolema, Rio Claro, v. 28, n. 50, p. 1.012-1.031, dez. 2014.).

Dessa forma, visando atender às necessidades formativas do educando e considerando a importância do exercício do senso crítico como forma de pensamento que possibilita a avaliação de afirmações pelos interlocutores envolvidos, discutimos, no presente artigo, a possibilidade de favorecer o aprimoramento dessas capacidades por meio da promoção de práticas de ensino que estimulem, em aulas de Geometria, habilidades de argumentação e a partir de um trabalho com validações matemáticas.

Em linhas gerais, o presente artigo propõe um trabalho em sala de aula que envolva a discussão (ou utilização) informal e sistemática dos modos de validação tradicionalmente utilizados em Matemática (provas, demonstrações, refutações etc.). Contudo, sem a abordagem rigorosa adotada pelos matemáticos profissionais. Propomos a criação de espaços que estimulem os alunos a construírem e defenderem seus pontos de vista particulares, sempre fazendo uso de afirmações que podem ser analisadas, questionadas ou avaliadas pelos interlocutores.

Mais especificamente, aliamos a possibilidade de promover o exercício do senso crítico e o desenvolvimento do pensamento geométrico dos estudantes às práticas concretas de sequências didáticas com validações, a partir da construção da prova do seguinte resultado geométrico: a soma dos ângulos internos de qualquer triângulo é 180°. Para tanto, como fundamentação teórica, recorremos a Balacheff (1987)BALACHEFF, N. Processus de preuve et situations de validation. Educational Studies in Mathematics, Dordrecht, v. 18, n. 2, p. 147-176, 1987., (1991BALACHEFF, N. Treatment of refutations: aspects of complexity of a constructivist approach to mathematic learning. In: VON GLASERSFELD, E. (ed.). Radical Constructivism in Mathematics Education. Dordrecht: Springer, 1991. p. 89-110. (Vol. 7).), Carraher (2011)CARRAHER, D. W. Senso crítico: do dia-a-dia as ciências humanas. São Paulo: Pioneira, 2011. e Van Hiele (CROWLEY, 1994CROWLEY, M. L. O modelo Van Hiele de desenvolvimento do pensamento geométrico. In: LINDQUIST, M.; SHULTE, A. P. (orgs.). Aprendendo e Ensinando Geometria. São Paulo: Atual, 1994. p. 1-2.).

2 Argumentações e pensamento crítico

Conforme Silva (2000, p. 12)SILVA, E. R. O Ponto de Partida Para a Argumentação: O Desenvolvimento do Senso Crítico. São Paulo: Cabral Editora Universitária, 2000. e Dinuță (2015)DINUȚĂ, N. The use of critical thinking in teaching geometric concepts in primary school. Procedia – Social and Behavioral Sciences, Pitesti, v. 180, [s.n.], p. 788-794, 2015., concebemos o senso crítico como uma forma de pensamento que se materializa na realização intelectual, de análise, síntese, conceptualização e avaliação da informação, visando aprimorar a qualidade dos julgamentos realizados quanto a: clareza, precisão, consistência, relevância e imparcialidade de conceitos, conclusões, implicações e consequências.

O exercício do pensamento crítico, portanto, conforme Lipman (1987)LIPMAN, M. Critical Thinking: What can it be? Analytic Teaching, [s. n], v. 8, n. 1, p. 5-12, 1987. Disponível em https://journal.viterbo.edu/index.php/at/article/view/403 Acesso em 15/01/2017.
https://journal.viterbo.edu/index.php/at...
e Carraher (2011, p. 14)CARRAHER, D. W. Senso crítico: do dia-a-dia as ciências humanas. São Paulo: Pioneira, 2011., exige dos interlocutores numa atitude de análise objetiva e racional diante de um determinado aspecto da realidade, a fim de que os envolvidos possam avaliar se o argumento exposto está bem justificado. Corroborando essa afirmação, Minakova (2014)MINAKOVA, L. Y. Critical Thinking Development in Foreign Language Teaching for Non-language-majoring Students. Social and Behavioral Sciences, Chandler, v. 154, [s.n.], p. 324-328, 2014. afirma que pensar criticamente possibilita aos interlocutores caracterizar um argumento como verdadeiro ou falso, ou seja, verificar se as premissas fornecem ou não evidências para a devida conclusão (ANSCOMBRE et al., 1983ANSCOMBRE et al. L’argumentation dans la langue. Bruxelles: Mardaga, 1983. (Collection Philosophie et Language).).

No entanto, apesar de tal entendimento tornar propício, em aulas de Matemática, um trabalho com provas, demonstrações, raciocínios dedutivos e indutivos bem como a discussão de exemplos e contraexemplos, concordamos quando Haskins (2006) (apud DEMIRA et al., 2011DEMIR, M. et al. Quadruple Thinking: Critical Thinking. Social and Behavioral Sciences, Chandler, v. 12, [s.n.], p. 545-551, 2011.) afirma que ter senso crítico é mais que pensar lógica ou analiticamente, devendo ser tomado, portanto, como um pensamento objetivo e racional, com potencial de ser utilizado em vários contextos do cotidiano, do mundo do trabalho ou em práticas sociais diversas (COSTA, 2017COSTA, V. M. Argumentações Matemáticas sob uma Perspectiva Crítica: uma análise de práticas didáticas no ensino fundamental. 2017. 131 f. Dissertação (Mestrado em Educação Matemática) –Universidade de São Paulo, São Paulo, 2017.).

A concepção de senso crítico adotada neste trabalho visa esboçar atitudes importantes de serem mobilizadas por qualquer indivíduo em uma situação de debates ou construção de argumentos, além de favorecer a consecução de um objetivo educacional a ser desenvolvido durante todas as etapas da Educação Básica. Posto isso, nos termos de Silva (2000)SILVA, E. R. O Ponto de Partida Para a Argumentação: O Desenvolvimento do Senso Crítico. São Paulo: Cabral Editora Universitária, 2000. e Dinuță (2014)DINUȚĂ, N. The use of critical thinking in teaching geometric concepts in primary school. Procedia – Social and Behavioral Sciences, Pitesti, v. 180, [s.n.], p. 788-794, 2015., concebemos o senso crítico de modo a poder utilizá-lo de forma mais ampla possível, tanto nas atitudes necessárias quanto nos processos formais envolvidos frente à construção do conhecimento matemático.

Tal fato, ao nosso ver, pode ser explorado pelo professor de forma ampla em sala de aula de Matemática, visando atender às necessidades formativas do educando. Conectar afirmações ou informações desconexas, em um primeiro momento, por meio de explicitações de validações matemáticas, também tem potencial que extrapola o ambiente escolar, além de favorecer uma reflexão sobre justificativas que sustentem uma tomada de posição.

Freire (1996, p. 28)FREIRE, P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 25. ed. São Paulo: Paz e Terra, 1996. corrobora esse entendimento, afirmando que “ensinar não se esgota no tratamento do objeto ou do conteúdo, mas se alonga à produção das condições em que aprender criticamente é possível”, situação “em que os estudantes vão se transformando em reais sujeitos da construção e da reconstrução do saber ensinado”.

Consideramos, desse modo, que a valorização dessa modalidade de pensamento, conforme Freire (1996)FREIRE, P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 25. ed. São Paulo: Paz e Terra, 1996., pode contribuir para o pensar certo, capacitando o indivíduo, conforme Carraher (2011, p. xix)CARRAHER, D. W. Senso crítico: do dia-a-dia as ciências humanas. São Paulo: Pioneira, 2011. e Sumner (1940, p. 632-633)SUMNER, W. G. FOLKWAY S: A Study of the Sociological Importance of Usages, Manners, Customs, Mores, and Morals. New York: Ginn and Co., 1940., “a comparar, a valorar, a intervir, a escolher, a decidir etc., além de contribuir para o aprimoramento das capacidades de analisar e discutir problemas inteligente e racionalmente, sem aceitar, de forma automática, suas próprias opiniões ou opiniões alheias”.

Ainda no que concerne à promoção do pensar certo nos termos de Freire e à formação de um cidadão crítico, destacamos os critérios estabelecidos por Carraher (2011, p. xx)CARRAHER, D. W. Senso crítico: do dia-a-dia as ciências humanas. São Paulo: Pioneira, 2011. para caracterizar um indivíduo como pensador crítico que tende a demonstrar as seguintes características gerais:

  1. Uma atitude de constante curiosidade intelectual e questionamento;

  2. A habilidade de pensar logicamente;

  3. A habilidade de perceber a estrutura de argumentos em linguagem natural;

  4. A perspicácia, isto é, a tendência a perceber além do que é dito explicitamente, descobrindo as ideias subentendidas e subjacentes;

  5. A consciência pragmática, um reconhecimento e apreciação dos usos práticos da linguagem como meio de realizar objetivos e influir sobre os outros;

  6. Uma distinção entre questões de fato, de valor e questões conceituais;

  7. A habilidade de penetrar até o cerne de um debate, avaliando a coerência de posições e levantando questões que possam esclarecer a problemática.

Tais aspectos, segundo Carraher, além de fornecerem orientações para elaboração de atividades didáticas, podem oferecer indícios que demonstrem se tal modalidade de pensamento está, de fato, sendo desenvolvida pelo educando, favorecendo, assim, a compreensão e o aprendizado de novos conhecimentos (COSTA, 2017COSTA, V. M. Argumentações Matemáticas sob uma Perspectiva Crítica: uma análise de práticas didáticas no ensino fundamental. 2017. 131 f. Dissertação (Mestrado em Educação Matemática) –Universidade de São Paulo, São Paulo, 2017.; RATHS et al., 1977, apud SILVA, 2000SILVA, E. R. O Ponto de Partida Para a Argumentação: O Desenvolvimento do Senso Crítico. São Paulo: Cabral Editora Universitária, 2000.). Por esse motivo, baseamo-nos nos respectivos critérios de Carraher com o objetivo de delimitar parâmetros que possam orientar a verificação do desenvolvimento de tal modalidade de pensamento nas aulas de Matemática.

3 Referencial teórico e desenvolvimento da prática didática

3.1 Balacheff e as validações matemáticas

Balacheff (1987)BALACHEFF, N. Processus de preuve et situations de validation. Educational Studies in Mathematics, Dordrecht, v. 18, n. 2, p. 147-176, 1987. afirma que a exibição de provas e demonstrações deve ser utilizada como argumento que convença os alunos da veracidade das afirmações, priorizando, para tal, o estabelecimento de relações verdadeiras entre sentenças, além da possibilidade de construção e avaliação das afirmações pelos interlocutores.

Dessa forma, entendemos que argumentos matemáticos, como a discussão de exemplos e contraexemplos, explicitações de provas e demonstrações realizadas no contexto acadêmico, podem ser trabalhados em sala de aula, porém com metodologias de ensino pertinentes (DE VILLIERS, 1999DE VILLIERS, M. The role and function of proof. In: DE VILLIERS, M. (ed.). Rethinking Proof with the Geometer's Sketchpad. Emeryville: Key Curriculum Press, 1999. p. 3-10.; GIANNAKOULIAS et al., 2010GIANNAKOULIAS, E. et al. Studying Teachers’ Mathematical Argumentation in the Context of Refuting Students’ Invalid Claims. The Journal of Mathematical Behavior, Ontario, v. 29, n. 3, p. 160-168, 2010.).

Corroborando essa última afirmação, Balacheff (1987)BALACHEFF, N. Processus de preuve et situations de validation. Educational Studies in Mathematics, Dordrecht, v. 18, n. 2, p. 147-176, 1987. considera a necessidade de se diferenciar as provas das demonstrações, pois validações matemáticas podem ser praticadas e desenvolvidas em sala de aula desde que atendam ao nível de maturidade do grupo de alunos, o que demanda, por exemplo, a utilização de uma linguagem acessível, respeitando a noção de rigor compatível com o dessa Ciência.

Assim, o autor define as demonstrações como validações que atendem às necessidades acordadas pela totalidade dos especialistas em Matemática, enquanto, em um nível não formal, as provas visam atender o grupo social da sala de aula. Esse ponto de vista também é adotado por Hanna (1990)HANNA, G. Some pedagogical aspects of proof. Interchange, Cambridge, v. 2, n. 1, p. 6-13, 1990., que faz uma discussão sobre o papel da utilização das validações no âmbito escolar, afirmando que essa diferenciação se torna importante em virtude do nível de rigor matemático que se deseja desenvolver com os educandos.

Hanna (1990)HANNA, G. Some pedagogical aspects of proof. Interchange, Cambridge, v. 2, n. 1, p. 6-13, 1990. faz uma diferenciação entre provas formais e provas aceitáveis, baseandose no fato de que as do primeiro tipo estão amparadas em sistemas lógico-dedutivos, enquanto as do segundo tipo, de leitura mais acessível, correspondem a uma ressignificação da noção de rigor própria dessa Ciência, sendo igualmente aceitas pelos matemáticos, na medida em que puderem ser transformadas em prova formal.

Ainda conforme Hanna (1990)HANNA, G. Some pedagogical aspects of proof. Interchange, Cambridge, v. 2, n. 1, p. 6-13, 1990., tal ressignificação do conceito de rigor adotada pelos próprios matemáticos pode garantir a possibilidade de readequar um trabalho com provas ao âmbito escolar. Assim, na construção e aplicação de nossa sequência de atividades, adotamos a postura de que o ensino de provas em sala de aula de Educação Básica deve referir-se à sua função como argumento convincente.

3.1.1 Gênese cognitiva para o estabelecimento de uma validação

Balacheff (1987)BALACHEFF, N. Processus de preuve et situations de validation. Educational Studies in Mathematics, Dordrecht, v. 18, n. 2, p. 147-176, 1987., 1991BALACHEFF, N. Treatment of refutations: aspects of complexity of a constructivist approach to mathematic learning. In: VON GLASERSFELD, E. (ed.). Radical Constructivism in Mathematics Education. Dordrecht: Springer, 1991. p. 89-110. (Vol. 7).) também fez um estudo sobre as condições didáticas a serem garantidas em sala de aula de Matemática a fim de estabelecer uma gênese cognitiva do processo de prova pelos educandos. Segundo o autor, em um primeiro momento, existe a necessidade de fazê-los compreender a conveniência de explicitação de uma validação, visto que, para a maior parte dos estudantes, muitos fatos matemáticos são intuitivos ou, de certa forma, verificáveis experimentalmente, implicando, dessa maneira, a ausência de necessidade de uma explicação sobre o caráter geral do resultado matemático em si.

A partir disso, Balacheff (1987)BALACHEFF, N. Processus de preuve et situations de validation. Educational Studies in Mathematics, Dordrecht, v. 18, n. 2, p. 147-176, 1987., (1991BALACHEFF, N. Treatment of refutations: aspects of complexity of a constructivist approach to mathematic learning. In: VON GLASERSFELD, E. (ed.). Radical Constructivism in Mathematics Education. Dordrecht: Springer, 1991. p. 89-110. (Vol. 7).) explica que a condição (ou gênese cognitiva) de mudança de atitude do educando frente à necessidade de explicitação de uma prova consiste no fornecimento prévio de dados externos ou contraexemplos que contrariem a percepção (intuição) do educando a respeito de um conhecimento errado ou ingênuo que ele possui sobre o tema em discussão. Isto é, a contradição a ser criada é dependente de uma dupla construção:

  • i) existência de uma expectativa sobre uma conjectura;

  • ii) possibilidade de construir tanto a afirmação associada à sua conjectura quanto a sua negação.

Como exemplo, podemos citar um experimento relatado por Balacheff (1987)BALACHEFF, N. Processus de preuve et situations de validation. Educational Studies in Mathematics, Dordrecht, v. 18, n. 2, p. 147-176, 1987. em que os alunos de um determinado segmento escolar, numa escola da França, foram convidados por seu professor a discutirem a possibilidade de encontrarem um padrão para o valor da soma dos ângulos internos de qualquer triângulo. Em conversa prévia com os estudantes, no entanto, observou-se que muitos deles intuíam que uma repetição do valor não seria possível, afirmando que triângulos de diferentes tamanhos teriam suas respectivas somas dos ângulos internos também diferentes.

Posto isso, ainda conforme o autor, o entendimento dos alunos pode ser modificado com algum experimento que os faça superar suas concepções ingênuas acerca desse fato geométrico. O professor poderia, por exemplo, oferecer triângulos com diversos formatos e tamanhos e pedir aos alunos que recortassem os ângulos e os agrupassem de modo a completar o ângulo raso, conforme figura a seguir:

Figura 1
Prova pragmática para a soma dos ângulos internos de um triângulo

Com um experimento desse tipo, portanto, torna-se possível uma reorganização do pensamento dos estudantes, pois favorece a verificação da existência de um padrão na composição dos ângulos justapostos. Isto é, o educando seria exposto a uma situação que coloca em contradição suas expectativas e, nesse sentido, a tomada de consciência de tal contradição seria determinante para a evolução das concepções de cada aluno (BALACHEFF, 1987BALACHEFF, N. Processus de preuve et situations de validation. Educational Studies in Mathematics, Dordrecht, v. 18, n. 2, p. 147-176, 1987., 1991BALACHEFF, N. Treatment of refutations: aspects of complexity of a constructivist approach to mathematic learning. In: VON GLASERSFELD, E. (ed.). Radical Constructivism in Mathematics Education. Dordrecht: Springer, 1991. p. 89-110. (Vol. 7).).

Dessa forma, nos termos de Balacheff, conduzimos nossos trabalhos no sentido de discutir a possibilidade de criação de um ambiente de questionamentos, argumentações e refutações em classe como forma de permitir aos alunos a reflexão sobre seus conhecimentos prévios ou ingênuos.

3.2 Sobre o desenvolvimento do pensamento geométrico de Van Hiele

Essencialmente, o modelo de desenvolvimento do pensamento geométrico proposto por Van Hiele indica que o ensino e a aprendizagem de conteúdos específicos em Geometria e, em particular, de deduções de propriedades geométricas passam pela gradativa apropriação pelo estudante de vocabulário, conceitos e de propriedades, além do desenvolvimento das capacidades de: estabelecer relações entre os diversos elementos das figuras geométricas, reconhecer propriedades, fornecer definições etc. E, em nível mais abstrato, pela capacidade de sistematizar o pensamento geométrico a partir da utilização de sistemas axiomáticos diversos (DE VILLIERS, 1999DE VILLIERS, M. The role and function of proof. In: DE VILLIERS, M. (ed.). Rethinking Proof with the Geometer's Sketchpad. Emeryville: Key Curriculum Press, 1999. p. 3-10.).

Segundo Van Hiele (CROWLEY, 1994CROWLEY, M. L. O modelo Van Hiele de desenvolvimento do pensamento geométrico. In: LINDQUIST, M.; SHULTE, A. P. (orgs.). Aprendendo e Ensinando Geometria. São Paulo: Atual, 1994. p. 1-2.), no aprendizado dos diversos temas relacionados à Geometria, o estudante passa por cinco níveis, sequenciais e ordenados, de compreensão: visualização, análise, dedução informal, dedução formal e rigor. Assim definidos:

Nível 0 – Visualização

Nesse nível, os alunos utilizam somente o recurso visual para reconhecerem as figuras geométricas, ou seja, identificando-as por sua forma ou aparência global. Em geral, descrevem objetos geométricos de forma incompleta ou utilizam propriedades irrelevantes para classificálas e compará-las. Nesse estágio de desenvolvimento, pode-se introduzir vocabulário para nomear figuras e realizar atividades de reconhecimento e reprodução informal de figuras.

Nível 1 – Análise

Nesse estágio, o reconhecimento de figuras pelos estudantes passa a ocorrer pela identificação de seus elementos e de algumas de suas propriedades. Os aprendizes começam a se apropriar de alguns conceitos geométricos simples, a partir da prática da observação e experimentação. Nesse nível ainda, podem utilizar mais propriedades do que as suficientes para caracterizar uma dada figura geométrica.

Nível 2 – Dedução informal

Os estudantes enquadrados nesse nível conseguem elaborar argumentos informais, ou seja, sem o uso de um sistema axiomático. As deduções e argumentações, no entanto, ainda são pertinentes a um único tipo de figura e o uso espontâneo de definições e conceitos começa a ter importância para eles.

Nível 3 – Dedução formal

Aqui, os estudantes já conseguem construir e entender diferentes tipos de demonstrações para um mesmo resultado. Além disso, são capazes de fazer distinção entre postulados, teoremas e definições, demonstrando compreensão de suas respectivas funções dentro de uma estrutura axiomática da Matemática.

Nível 4 – Rigor

Nesse estágio, o aluno já compreende e trabalha em uma variedade de sistemas axiomáticos, incluindo as geometrias não euclidianas. As demonstrações, nesse nível, demandam um grau de formalismo e de rigor bem próximo ao das deduções do matemático profissional.

Conforme Crowley (1994, p. 5)CROWLEY, M. L. O modelo Van Hiele de desenvolvimento do pensamento geométrico. In: LINDQUIST, M.; SHULTE, A. P. (orgs.). Aprendendo e Ensinando Geometria. São Paulo: Atual, 1994. p. 1-2., “a progressão pelos níveis (que ocorrem sequencialmente) depende muito mais das metodologias empregadas e da organização das aulas do que da idade dos estudantes”. Portanto, a realização de um trabalho pedagógico em aulas de Geometria que almeje envolver os alunos em processos de experimentação e investigação necessita, primeiramente, valorizar situações em que o espaço é simplesmente visualizado, passando pela apropriação das propriedades das figuras, até serem capazes de produzir deduções.

Pensando nisso, Van Hiele propôs cinco fases sequenciais de aprendizagem a serem observadas igualmente em cada nível, a fim de orientar o planejamento de aulas e a escolha de metodologias de ensino de Geometria. São elas: interrogação, orientação dirigida, explicação, orientação livre e integração.

A Interrogação (fase 1) corresponde a um diagnóstico a ser feito sobre os conhecimentos prévios dos alunos no que diz respeito ao tema em questão. Os estudantes podem ser questionados sobre a linguagem pertinente ao tema, conceitos, ideias etc., com o objetivo de situá-los quanto aos elementos iniciais necessários ao início dos trabalhos em sala. A Orientação dirigida (fase 2) diz respeito à proposta de tarefas que incluam a exploração e o uso de linguagens, propriedades, relações, conceitos gerais etc. Na Explicação (fase 3), após o educando passar pelas fases 1 e 2, o objetivo é que comece a explicitar seu entendimento sobre as novas relações por ele observadas. Para tal, é importante o professor introduzir linguagem pertinente ao contexto, visando tornar precisa e adequada a comunicação dos resultados frente à totalidade do grupo da sala de aula. Na Orientação livre (fase 4), a atividade torna-se mais complexa, convidando os alunos a resolverem problemas de forma mais autônoma e utilizando os recursos que aprenderam. Por fim, na Integração (fase 5), os alunos são convidados a revisarem e sistematizarem o que aprenderam na tarefa.

4 A sequência didática e sua aplicação em sala de aula

O objetivo deste trabalho foi propiciar aos alunos uma experiência concreta de inferência lógica que contribuísse para o desenvolvimento da competência argumentativa e da habilidade de pensar criticamente. Os trabalhos foram realizados com todos os alunos de uma sala de 6º ano do Ensino Fundamental (quarenta alunos no total). Para que pudessem discutir entre si sobre como resolver as questões propostas, os estudantes foram reunidos em grupos de quatro ou cinco integrantes.

Em cada etapa da sequência didática, as construções dos resultados visados foram mediadas por questionamentos, argumentações e refutações, sendo o professor somente mediador das discussões, propondo contraexemplos ou estabelecendo linguagem comum para a comunicação dos resultados. Por fim, em relação ao desenvolvimento das tarefas, descrevemos a seguir somente o ocorrido em sala durante as atividades, como impressões ou afirmações dos alunos e os argumentos utilizados para refutá-los.

Sem prejuízo dos resultados e considerações acerca de nossos objetivos, tomamos os relatos de discussões ocorridos no interior de alguns grupos de alunos da sala, sempre tendo em vista que as ideias discutidas ou conclusões obtidas eram compartilhadas com a totalidade da sala.

4.1 Desenvolvimento das atividades didáticas

Etapa 1: Comparação das medidas de lados em um mesmo triângulo

Nessa etapa, desenvolvida em uma aula, os grupos receberam três folhas distintas contendo o desenho de um triângulo em cada uma, porém possuindo diferentes formatos. Solicitamos como primeira tarefa que, para cada triângulo, usassem a régua para medir e registrar as medidas dos lados e, a partir disso, notassem que tinham em mãos um triângulo com três lados de mesma medida, um triângulo com dois lados de mesma medida e um triângulo com os três lados de medidas diferentes.

Com um total de trinta triângulos distintos distribuídos na sala, nosso objetivo foi mostrar aos educandos que poderiam observar os triângulos agrupando-os em equiláteros, isósceles e escalenos – nomenclatura que estabelecemos em etapas seguintes – e, dessa maneira, não mais observassem os respectivos polígonos individualmente.

Assim, passaram à segunda etapa.

Etapa 2: Comparação das medidas dos ângulos internos de cada triângulo.

Nessa etapa, desenvolvida em duas aulas, propusemos que comparassem ângulos, sem que indicássemos um método para tal. Primeiramente, os alunos perceberam a impossibilidade de usar o transferidor, visto que os triângulos eram bastante pequenos. Sendo assim, esperávamos que os alunos sobrepusessem ângulos de um mesmo triângulo para efetuar a comparação. Mas, de forma quase unânime, quiseram medi-los com régua.

Para tal medição, tomaram um ponto qualquer sobre dois lados consecutivos e aferiram as distâncias entre esses pontos (Figura 2).

Figura 2
Medidas dos ângulos tomados pelos alunos e medidas utilizadas para refutá-los

A partir dessa metodologia, ficou estabelecido para um dos grupos, por exemplo, que a < b < c, onde a = FG, b = DE e c = HI. Nesse momento, foi necessária uma primeira intervenção do professor no sentido de esclarecer e discutir sobre o método de medida baseado na régua.

A fim de fazê-los repensar a validade da metodologia por eles empregada, introduzimos dois novos pontos, H e I, sobre os lados CA¯ e CB¯ do mesmo triângulo (Figura 2b), de maneira a obter outra desigualdade. Ainda com o uso da régua, pedimos que medissem o novo segmento HI e, assim como eles haviam procedido anteriormente, comparassem os ângulos novamente. Com isso, obtiveram que c < a < b.

A partir desse argumento que utilizamos para refutá-los, perceberam que, se a régua fosse posta em pontos diferentes, obteriam resultados diversos. Dessa maneira, entenderam que seu método era falho.

Terminada a discussão com o respectivo grupo, os integrantes perceberam que, por meio da sobreposição de ângulos, foi possível verificar que uma região angular estava contida em outra, permitindo a comparação das duas. O resultado foi compartilhado com a totalidade da sala, que concordou com a validade do novo método baseado na sobreposição dos ângulos.

Assim, como consequência das etapas 1 e 2, esperávamos que os alunos percebessem a relação entre o número de lados e ângulos de mesma medida existentes em um mesmo triângulo. Para esse fim, passamos à etapa seguinte de sistematização dos resultados.

Etapa 3: Sistematização dos resultados

Nessa etapa, desenvolvida em uma aula, objetivou-se a socialização e a sistematização dos resultados obtidos nas etapas posteriores. Foi nesse momento que os próprios alunos sentiram a necessidade de adotar uma notação comum, para denotar vértices e ângulos a fim de facilitar a comunicação de seus resultados, além de poder explicitar as desigualdades obtidas de maneira mais sintética. Nesse momento, perceberam que a utilização de simbologia específica para denotar as desigualdades entre os ângulos tornou eficiente a escrita, depois de muitos tentarem expressar as comparações entre ângulos elaborando textos muito longos.

Assim, sugerimos que atribuíssem letras maiúsculas para ângulos e minúsculas para as suas respectivas medidas, bem como utilizassem símbolos matemáticos para representar desigualdades. Ainda nesse momento, estabelecemos uma nomenclatura para os triângulos, classificando-os conforme as medidas de seus lados como equiláteros, isósceles e escalenos. Além disso, como consequência de tal sistematização, foi observado por muitos educandos que, em um mesmo triângulo, o número de lados de mesma medida correspondia à mesma quantidade de ângulos, também de mesma medida.

Etapa 4: Prova do resultado que afirma: a soma dos ângulos internos de um triângulo qualquer é 180°

Nessa etapa, desenvolvida em quatro aulas, a tarefa proposta aos alunos foi determinar o segmento que representasse uma das alturas dos triângulos que tinham em mãos. Como primeira intervenção, definimos altura como o segmento de menor comprimento que liga um vértice ao lado oposto. Inicialmente, muitos alunos buscaram determinar a altura fazendo medidas com régua, produzindo segmentos diversos, conforme Figura 3.

Figura 3
Determinação do segmento de menor comprimento que une o vértice A ao lado BC

Os alunos logo perceberam que não possuíam um critério convincente para a construção do segmento tal que pudesse justificar como sendo o de menor medida. A partir disso, fizemos a próxima intervenção.

Para ajudá-los, desenhamos no quadro os segmentos AI e AJ, bem como AH e AL (Figura 3), e pedimos aos estudantes que os comparassem visualmente. Sem nenhuma objeção, notaram que o segmento AI era maior que o AJ, e o AH, menor que AL. Consequentemente, observaram que se AJ se deslocasse na direção de AH, sua medida diminuía. Porém, do contrário, o comprimento de AH aumentava se fosse na direção de AL.

Assim, baseado nesse raciocínio mais dinâmico que os alunos empregaram para comparar os segmentos, entendemos que estavam prestes a encontrar um método para determinar a menor distância entre o vértice A e o lado BC. Dessa maneira, desenhamos o ângulo x destacado na Figura 3. Perguntamos aos alunos como se comportava a medida de tal ângulo. De forma rápida e geral, conforme o deslocamento do ponto L, disseram que para a direita aumentava e para a esquerda diminuía, e que, conforme um dos alunos, com o irmão dele, o ângulo y, ocorria o contrário.

Por fim, perceberam que, em algum ponto sobre o lado BC, esses pares de ângulos irmãos seriam iguais. A partir de então, foi possível estabelecer o consenso entre os educandos de que poderíamos chamar de altura do triângulo o segmento que determina pares de ângulos iguais com lado BC em questão, ou seja, AH (Figura 4).

Figura 4
Determinação do segmento que determina altura do triângulo

O passo seguinte foi determinar os pares de ângulos de mesma medida. Para tal, recorreram ao procedimento de dobrar o papel, sobrepondo uma parte do segmento BC sobre si próprio, de tal forma que o vinco gerado na folha coincidisse com o vértice A. Então, o vinco (segmento AH) gerado determinava os pares de ângulos iguais bem como o segmento que definia a altura do triângulo.

Ainda nessa etapa, a atividade seguinte foi dobrar o triângulo fazendo os vértices A, B e C coincidirem com o ponto H (pé da altura), realizando também com os ângulos a, b e c, compondo a totalidade: a + b + c = 180° (ângulo raso), conforme Figura 5.

Figura 5
Prova de que a soma dos ângulos internos é 180°

Etapa 5: Determinação da soma dos ângulos internos de um polígono convexo qualquer

Nessa etapa, desenvolvida em duas aulas, propusemos aos alunos que determinassem a soma dos ângulos internos de qualquer polígono convexo a partir do resultado previamente estabelecido para triângulos. Nesse momento, a discussão se deu por meio de um debate coletivo com a totalidade da classe.

Inicialmente, desenhamos no quadro as figuras de um quadrilátero, de um pentágono e de um hexágono – nenhum deles regular. Propusemos então a seguinte questão: como determinar a soma dos ângulos internos desses polígonos utilizando o resultado anterior para triângulos?

Apenas quatro alunos conseguiram observar que bastava decompor a figura em triângulos. Fizeram suas decomposições no quadro para comunicar aos outros suas descobertas. Como todos os estudantes perceberam que esse procedimento lhes permitia utilizar o resultado anterior para determinar a soma dos ângulos internos dos polígonos em questão, concluímos que o método foi assimilado e justificado a partir do resultado prévio.

4.2 Análise da prática didática

Preliminarmente, concluímos que, diante da necessidade de discernir sobre a validade ou não de respostas às questões e desafios formulados, a aplicação da sequência didática proporcionou atingir os seguintes objetivos com os estudantes: construção de conceitos, definições matemáticas e propriedades geométricas; processo de validação exercido com argumentações, refutações e provas; capacidade de levantamento de hipóteses e argumentos e experiência significativa com a inferência lógica em Geometria. Em algumas situações, criouse um fórum para debate crítico e, por esse motivo, concluímos também que as atividades foram significativas quanto ao nosso propósito inicial de propor situações didáticas que pudessem propiciar vivências escolares favoráveis ao desenvolvimento do senso crítico.

No desenvolvimento da sequência didática, buscamos sempre criar condições para que os alunos pudessem apreciar o caráter geral das afirmações ou validações produzidas. Nesse contexto, em virtude do ambiente de argumentações e refutações a que os expusemos, puderam verificar, por exemplo, que a metodologia de sobreposição para mensurar ângulos era válida e atendia às necessidades do grupo da sala de aula, bem como a generalidade das provas por eles produzidas, em vista da percepção de todos sobre a validação dos resultados para qualquer classe de triângulos (equiláteros, isósceles ou escalenos).

O mesmo ocorreu na situação em que construíram a altura de um triângulo, concluindo que o segmento de menor comprimento procurado era aquele que fazia um ângulo de 90° com um dos lados. Esse caso constituiu para nós uma situação de prova nos termos de Balacheff, pois nenhuma relação geral foi formalizada, mas acordada com o grupo social da sala de aula.

Entendemos ainda que a apreciação do caráter geral das afirmações e validações produzidas ocorria também à medida que o aluno progredia pelos níveis do modelo de aprendizado de Geometria de Van Hiele, ressaltando, antecipadamente, que os alunos não atingiram os níveis 3 e 4 (dedução formal e rigor, respectivamente), conforme descrevemos a seguir:

Nível 0: Visualização

Inicialmente, concluímos que os alunos pertenciam a esse nível, pois, ao serem previamente questionados sobre o valor da soma dos ângulos internos do triângulo (fase 1), suas impressões eram de que, quanto maior fosse o triângulo, maior seria a soma. Suas respostas, portanto, nos mostraram que, naquele momento, os educandos observavam os triângulos isoladamente. Por esse motivo, os situamos no nível 0.

Ainda nesse nível, as discussões realizadas, que contribuíram para a percepção dos educandos sobre a ineficácia de medir ângulos com a régua, bem como a tarefa de sobrepor ângulos e sua posterior comparação, foram tarefas correspondentes à fase 2. Nos termos de Balacheff, expor os alunos a essas situações favoreceu uma mudança em suas concepções, no sentido de instigá-los a buscarem por uma resposta geral e aceita por todos.

Na sequência da atividade, as atitudes dos estudantes ao perceberem a necessidade do uso de linguagem para explicitar relações e efetuar suas comunicações ao grupo da sala foram pertinentes à fase 3. Por outro lado, o fato de utilizarem a notação específica e pertinente ao contexto para estabelecer as desigualdades e fixar nomes para os ângulos com uma simbologia mais econômica que a língua materna situou os estudantes na fase 4.

Por fim, a sistematização dos resultados situou os alunos na fase 5, visto que também fizeram uso da linguagem simbólica para explicitar seus registros, como a utilização de letras latinas para nomear ângulos e vértices ou símbolos matemáticos para expressar as desigualdades, tornando, assim, a linguagem simbólica utilizada para a comunicação dos fatos natural e significativa para os alunos.

Nível 1: Análise

À medida que os alunos sentiram a necessidade de se apropriarem de linguagem geométrica para darem significado aos novos conceitos, situamos o grupo de alunos no nível 1 de Van Hiele. As atividades aqui propostas com o objetivo de provocá-los sobre como construir o segmento da altura constituíram um primeiro fórum de debate crítico espontâneo entre os alunos (fase 1). A posterior introdução de conceitos e propriedades geométricas, por meio de argumentações, permeou as tarefas seguintes (fase 2). Na sequência, a relação encontrada entre o segmento que determina a menor distância entre um vértice e o lado oposto do triângulo como sendo aquele que determina um ângulo reto com o respectivo lado consistiu em um momento de construção de uma prova (fase 3). A identificação pelos alunos da relação entre o número de ângulos e o número de lados foi um momento importante, pois demandou o emprego, de forma autônoma, dos recursos que aprenderam (fase 4). A partir disso, naturalizou-se para os alunos a nomeação dos triângulos como equiláteros, isósceles e escalenos, tornando claro que os nomes estavam associados à quantidade de lados de mesma medida que cada tipo possuía, implicando também igual quantidade de ângulos de mesma medida (fase 5).

Nível 2: Dedução Informal

Por fim, por meio das provas construídas no debate conjunto, os alunos vivenciaram uma importante comunicação baseada em linguagem matemática. Durante a consecução das atividades que propusemos, os alunos tiveram a possibilidade de transformar afirmações, eventualmente desconexas entre si, em novas definições, decorrendo delas o conceito de altura, por exemplo, além de poderem ter experenciado de forma significativa os processos de conceituação, raciocínio e utilização de sistemas de expressão mais precisos do que a linguagem natural (fase 5).

5 Considerações finais

Primeiramente, consideramos efetiva a promoção de um ambiente de aprendizado em que os educandos assimilaram conhecimentos gradativamente, respeitando seus ritmos, evoluções e maturidades, conduzindo-os a uma compreensão significativa de fatos e linguagem matemáticos que apoiassem as argumentações explicitadas e favorecessem, ao mesmo tempo, a elaboração de respostas e soluções dos problemas propostos.

As práticas das sequências de atividades em Geometria permitiram o desenvolvimento de experiências concretas de forma que os alunos compreendessem a importância e a necessidade de se construir provas e argumentações matemáticas para legitimar hipóteses e eliminar contradições em seus raciocínios. Nesse contexto, podemos dizer que o desenvolvimento do pensamento crítico dos estudantes foi favorecido devido ao estímulo constante para fazerem uso de afirmações que tivessem o potencial de agregar conhecimentos novos a partir do contexto em questão, ou seja, que pudessem ser analisadas, questionadas ou avaliadas por todo o grupo social da sala de aula.

Concluímos, por fim, que a prática de explicitações de argumentos e refutações experimentadas pelos estudantes para validação (ou não) de verdades matemáticas pode contribuir para suas formações e, consequentemente, para o aprimoramento de seus pensamentos críticos. Além disso, nos termos de Balacheff (1987)BALACHEFF, N. Processus de preuve et situations de validation. Educational Studies in Mathematics, Dordrecht, v. 18, n. 2, p. 147-176, 1987., a experiência de expor os alunos a um ambiente de argumentações e refutações propiciou, significativamente, a exploração ativa dos aspectos de criação do conhecimento, bem como consequências de posições tomadas.

Em relação ao espaço de debates críticos criado entre os alunos, a todo momento as decisões e práticas adotadas foram negociadas, optando-se sempre por aquela que conduzisse ao melhor resultado, sem interferências de questões pessoais, imposições ou autoritarismo do professor. Nesse sentido, os espaços de argumentações criados puderam proporcionar o desenvolvimento de recursos que possibilitaram aos alunos agirem e refletirem livremente na microssociedade da sala de aula.

Portanto, a partir do conceito de pensamento crítico, identificamos que as atividades de investigação realizadas em Geometria puderam contribuir para o processo de desenvolvimento da respectiva modalidade de pensamento pelos educandos. Mais especificamente, propiciamos o desenvolvimento das seguintes características de um pensador crítico, nos termos de Carraher (2011)CARRAHER, D. W. Senso crítico: do dia-a-dia as ciências humanas. São Paulo: Pioneira, 2011.:

  1. Uma atitude de constante curiosidade intelectual e questionamento – em virtude das discussões que ocorreram e do estímulo das descobertas de fatos matemáticos.

  2. A habilidade de pensar logicamente – em virtude do aprimoramento de seu raciocínio durante as discussões que envolviam argumentações, refutações e inferências, bem como na formulação de conceitos.

  3. A consciência pragmática, um reconhecimento e apreciação dos usos práticos da linguagem como meio de realizar objetivos e influir sobre os outros – em virtude da utilização de linguagem pertinente ao contexto matemático para expressar ideias.

  4. Uma distinção entre questões de fato, de valor e questões conceituais – em virtude do reconhecimento do que é convencional no contexto trabalhado, como notações e simbologias próprias para a representação e transmissão de ideias, e do reconhecimento de conceitos, como a construção do conceito de altura de um triângulo, que é a menor distância entre um vértice e o lado oposto a esse vértice.

  5. A habilidade de penetrar até o cerne de um debate, avaliando a coerência de posições e levantando questões que possam esclarecer a problemática – novamente, em virtude do espaço criado em sala de aula, que envolveu argumentações justificadas, refutações e inferências.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Maio 2023
  • Data do Fascículo
    Abr 2023

Histórico

  • Recebido
    03 Jan 2022
  • Aceito
    20 Ago 2022
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