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Desafiando as Crianças na Formulação de Problemas

Challenging Children in Problem Formulation

Resumo

A criatividade é um componente que tem sido cada vez mais valorizado na experiência matemática. Sendo a relação entre a Matemática e a criatividade reconhecida na comunidade acadêmica, ainda é pouco frequente a transposição dessa realidade para o meio escolar. Também os alunos devem ter oportunidades de experienciar e desenvolver tarefas que estimulem a sua criatividade matemática. A formulação de problemas pode ser entendida como um elo de ligação entre a estimulação da criatividade e as aprendizagens matemáticas dos alunos. Este artigo analisa as reações e os desempenhos de alunos do primeiro ano de escolaridade (N=22) quando desafiados a formular problemas. Aborda duas questões: 1) Como reagem os alunos às tarefas de formulação de problemas? 2) Como realizam os alunos tarefas de formulação de problemas? Neste artigo foram adotados métodos qualitativos, numa abordagem de estudo de caso, para descrever as reações e produções das crianças perante duas tarefas de formulação de problemas. Os resultados revelaram que as crianças foram capazes de propor problemas adequados e originais, observando-se que nenhum erro foi identificado na sua resolução matemática, mas identificando-se casos de dificuldades no estabelecimento da situação conceitualizada. Geralmente, os alunos assumiram-se como protagonistas nos seus problemas, criando situações que os envolviam a si ou aos seus colegas. Também se identificou que estes tendem a aglutinar os processos de formulação e resolução de problemas. Os alunos demonstraram entusiasmo e motivação ao aprender Matemática através da formulação de problemas, concebendo situações matemáticas significativas e próximas do seu contexto.

Formulação de Problemas; Criatividade Matemática; Aprendizagem Matemática

Abstract

Creativity is a component that has been increasingly valued in the mathematical experience. As the relationship between mathematics and creativity is recognized in the academic community, the transposition of this reality to the school environment is still infrequent. Students should also have opportunities to experience and develop tasks that stimulate their mathematical creativity. Problem formulation can be understood as a link between these two aspects, enriching the students’ experiences and mathematical learnings. This article analyses the reactions and performances of first graders (N=22) when challenged to formulate problems. It addresses two questions: 1) How do children react to problem-formulation tasks? 2) How do children perform when developing problem-formulation tasks? In this article, qualitative methods were adopted, in a case study approach, to describe children's reactions and productions in the face of problem-formulation tasks. The results revealed that the children were able to propose adequate and original problems, noting that no errors were identified in their mathematical solving, but there were identified cases of difficulties in establishing the conceptualized situation. Generally, students assumed themselves as protagonists in their problems, creating situations that involved them or their colleagues. It was also identified that these tend to agglutinate problem formulation and solving processes. Students showed enthusiasm and motivation to learn mathematics through problem formulation, conceiving mathematical situations that were meaningful and close to their context.

Problem Formulation; Mathematical Creativity; Mathematical Learning

1 Introdução

Atualmente, a criatividade tem assumido um papel cada vez mais preponderante na experiência matemática (AYLLÓN; GÓMEZ; BALLESTA-CLAVER, 2016; KAMPYLIS; BERKI, 2014KAMPYLIS, P.; BERKI, E. Nurturing Creative Thinking . Belley: International Academy of Education, 2014. ; SCHOEVERS et al. , 2019). O ritmo exponencial de avanços na ciência e na tecnologia, que temos experienciado no século XXI, tem por base o desenvolvimento de processos criativos essenciais à construção de raciocínios inovadores, métodos mais eficazes ou à formulação e resposta a novos problemas.

Sendo a relação entre a Matemática e a criatividade reconhecida na comunidade acadêmica, ainda é pouco frequente a transposição dessa realidade para o meio escolar (AYLLÓN; GÓMEZ; BALLESTA-CLAVER, 2016; SILVER, 1997SILVER, E. A. Fostering creativity through instruction rich in mathematical problem solving and problem posing. ZDM , Heidelberg, v. 3, p. 75-80, 1997. ; SRIRAMAN, 2005SRIRAMAN, B. Are giftedness and creativity synonyms in mathematics? The Journal of Secondary Gifted Education , Waco, v. 17, p. 20-36, 2005. ). George Pólya, na sua obra How to Solve It [A arte de resolver problemas] ( PÓLYA, 1995PÓLYA, G. A arte de resolver problemas . Rio de Janeiro: Interciência, 1995. ), sugere que a diferença entre o trabalho de um matemático acadêmico e de um aluno deve consistir na sua profundidade, não na sua essência. Desta forma, podemos perspectivar que os alunos também devem ter oportunidades de experienciar e desenvolver tarefas que estimulem a sua criatividade matemática ( SRIRAMAN, 2005SRIRAMAN, B. Are giftedness and creativity synonyms in mathematics? The Journal of Secondary Gifted Education , Waco, v. 17, p. 20-36, 2005. ). A resolução e a formulação de problemas podem ser uma das respostas a este desafio, assumindo-se como meios essenciais para o desenvolvimento das competências matemáticas e, simultaneamente, criativas dos alunos (AYLLÓN; GÓMEZ; BALLESTA-CLAVER, 2016; KOPPARLA et al ., 2019; MIRANDA; MAMEDE, 2020MIRANDA, P.; MAMEDE, E. Using a picture to challenge creativity in mathematics class with 1st and 6th graders. Journal of the European Teacher Education Network , Leidschendam, v. 15, p. 43-52, 2020. ; SCHOEVERS et al. , 2019).

No entanto, o foco na resolução de problemas tem sido muito mais evidente, em contraste com a formulação de problemas (KOPPARLA et al. , 2019; MCDONALD; SMITH, 2020MCDONALD, P.; SMITH, J. Improving mathematical learning in Scotland's Curriculum for Excellence through problem posing: an integrative review. The Curriculum Journal , Oxford, v. 31, n. 3, p. 398-435, 2020. ; PINHEIRO; VALE, 2013PINHEIRO, S.; VALE, I. Formulação de problemas e criatividade na aula de matemática. In: FERNANDES, J. A.; MARTINHO, M. H.; TINOCO, J.; VISEU, F. (org.). Atas do XXIV Seminário de Investigação em Educação Matemática . Braga: APM e CIEd da Universidade do Minho, 2013. ). No contexto escolar, ainda são escassas as oportunidades que os alunos têm para experienciar tarefas matemáticas, que tenham o potencial de promover aprendizagens enquanto os desafiam criativamente. A formulação de problemas pode ser entendida, então, como um elo de ligação entre estas duas vertentes, enriquecendo as experiências e as aprendizagens matemáticas dos alunos.

2 Enquadramento teórico

Não existindo uma definição unânime do termo criatividade ( SRIRAMAN, 2005SRIRAMAN, B. Are giftedness and creativity synonyms in mathematics? The Journal of Secondary Gifted Education , Waco, v. 17, p. 20-36, 2005. ), uma das tentativas mais reconhecidas na literatura provem do National Advisory Committee on Creative and Cultural Education. Nesta, a criatividade é encarada como uma atividade imaginativa que produz resultados originais e com valor (NATIONAL ADVISORY COMMITTEE ON CREATIVE AND CULTURAL EDUCATION, 1999). A esta perspetiva, associa-se o desenvolvimento de um processo cognitivo que procura processos inovadores e perspicazes, que permitam criar e resolver novos problemas, ou alcançar novas soluções para a resolução de problemas conhecidos ( KANDEMIR; GÜR, 2007KANDEMIR, M. A.; GÜR H. Creativity Training İn Problem Solving: A Model of Creativity İn Mathematics Teacher Education. New Horizons in Education , Sakarya, v. 55, n. 3, p. 107-122, 2007. ).

A criatividade está intimamente relacionada com a persistência, determinação e a capacidade de correr riscos. Gardner (2009)GARDNER, H. The Five Minds for the Future. Professional Voice , Melbourne, v. 7, n. 2, p. 18-25, 2009. enfatiza essa perspectiva, destacando a importância de o aluno se sentir seguro e confortável o suficiente para arriscar novas ideias e não temer o fracasso, pois esse processo esconde a chave para a inovação. No mesmo contexto, Kampylis e Berki (2014)KAMPYLIS, P.; BERKI, E. Nurturing Creative Thinking . Belley: International Academy of Education, 2014. acrescentam que os alunos são mais propensos a expressar seu potencial criativo quando envolvidos em atividades significativas e autênticas, que se adequam aos seus interesses e habilidades, e se apresentam como intelectualmente desafiadoras. Mais ainda, Schoevers et al. (2019) sublinham o papel de tarefas que estimulem a criatividade para a Educação Matemática, ganhando um especial relevo nas faixas etárias mais baixas.

Relacionando a aprendizagem criativa com a aprendizagem matemática, é reconhecido que um dos objetivos da Educação Matemática é promover a criatividade no pensamento e no processo de aprendizagem (AYLLÓN; GÓMEZ; BALLESTA-CLAVER, 2016; PINHEIRO; VALE, 2013PINHEIRO, S.; VALE, I. Formulação de problemas e criatividade na aula de matemática. In: FERNANDES, J. A.; MARTINHO, M. H.; TINOCO, J.; VISEU, F. (org.). Atas do XXIV Seminário de Investigação em Educação Matemática . Braga: APM e CIEd da Universidade do Minho, 2013. ; POUND; LEE, 2011POUND, L.; LEE, T. Teaching Mathematics Creatively . New York: Routledge, 2011. ; SCHOEVERS et al ., 2019). Pound e Lee (2011)POUND, L.; LEE, T. Teaching Mathematics Creatively . New York: Routledge, 2011. sugerem que a criatividade e a aprendizagem matemática surgem como forma de pensar, uma forma inovadora de elaborar raciocínios que nos permite olhar um determinado processo matemático através de um novo prisma. Os mesmos autores defendem um conjunto de características para a construção do perfil do aluno criativo ( POUND; LEE, 2011POUND, L.; LEE, T. Teaching Mathematics Creatively . New York: Routledge, 2011. ), essenciais para a promoção da criatividade matemática: a adoção de uma atitude que permite arriscar em produções arrojadas; a fomentação da curiosidade; a flexibilidade de pensamento; a capacidade de trabalhar e discutir em grupo; e o estímulo à prática do pensamento conjectural.

Stoyanova e Ellerton (1996)STOYANOVA, E.; ELLERTON, N. F. A framework for research into students' problem posing in school mathematics. In: CLARKSON, P. C. (ed.). Proceedings of the 19th annual conference of the Mathematics Education Research Group of Australasia . Limerick: Mathematics Education Research Group of Australasia, 1996. p. 518-525. descrevem a formulação de problemas como um processo em que, baseados na sua experiência, os alunos desenvolvem explicações pessoais, quando confrontados com situações tangíveis, e as transformam em meios matemáticos significativos. Para Cai et al. (2020), as tarefas de formulação de problemas são aquelas que requerem que os alunos criem novos problemas e questões baseadas em situações pré-determinadas, ou a partir de expressões matemáticas, diagramas, entre outros. Estas situações podem emergir a partir do contexto do quotidiano ou de contextos, situações ou discussões matemáticas.

É reconhecido que a formulação e a resolução de problemas devem estar no centro da construção do conhecimento matemático (BOAVIDA et al. , 2008; DANTE, 2009DANTE, L. R. Formulação e resolução de problemas de matemática: teoria e prática. São Paulo: Ática, 2009. ; KILPATRICK, 1987KILPATRICK, J. Problem formulating: Where do good problems come from? In: SCHOENFELD, A. (ed.). Cognitive science and mathematics education . Mahwah: Lawrence Erlbaum Associates, 1987. p. 123-147. ; NATIONAL COUNCIL OF TEACHERS OF MATHEMATICS, 2007NATIONAL COUNCIL OF TEACHERS OF MATHEMATICS. Princípios e Normas para a Matemática Escolar. Lisboa: APM e NCTM, 2007. , 2014NATIONAL COUNCIL OF TEACHERS OF MATHEMATICS. Principles to Actions: Ensuring Mathematics Success for All. Reston, VA: National Council of Teachers of Mathematics, 2014. ; MIRANDA; MAMEDE, 2020MIRANDA, P.; MAMEDE, E. Using a picture to challenge creativity in mathematics class with 1st and 6th graders. Journal of the European Teacher Education Network , Leidschendam, v. 15, p. 43-52, 2020. ; PÓLYA, 1995PÓLYA, G. A arte de resolver problemas . Rio de Janeiro: Interciência, 1995. ; SILVER, 1997SILVER, E. A. Fostering creativity through instruction rich in mathematical problem solving and problem posing. ZDM , Heidelberg, v. 3, p. 75-80, 1997. ; VALE; PIMENTEL, 2004VALE, I.; PIMENTEL, T. Resolução de problemas. In: PALHARES, P. (coord.). Elementos de Matemática para Professores do Ensino Básico . Lisboa: Lidel, 2004. p. 7-51. ; VAN HARPEN; PRESMEG, 2013VAN HARPEN, X. Y.; PRESMEG, N. C. An investigation of relationships between students’ mathematical problem-posing abilities and their mathematical content knowledge. Educational Studies in Mathematics , Cham, v. 83, n.1, p. 117-132, 2013. ). Assim, são várias as vantagens apontadas ao desenvolvimento de tarefas de formulação de problemas (AYLLÓN; GÓMEZ; BALLESTA-CLAVER, 2016; CAI et al. , 2020; KOPPARLA et al. , 2019; SILVER, 1994SILVER, E. A. On mathematical problem posing. For the Learning of Mathematics , New Westminster, v. 14, n. 1, p. 19–28, 1994. ): a evolução das capacidades de formular e resolver problemas, desenvolvendo o pensamento crítico, o raciocínio e aumentando os conhecimentos matemáticos; a estimulação da criatividade, fomentando a construção de um pensamento diverso e flexível; o desenvolvimento das competências de comunicação matemática, na conceitualização e construção dos enunciados; o envolvimento das perspectivas e temas relevantes para os alunos no contexto da aprendizagem matemática; a promoção da motivação e da construção do gosto pela aprendizagem matemática; o estímulo da autonomia dos alunos, funcionando como um apaziguador de ansiedades e receios em relação à Matemática; e a compreensão e reflexão sobre o processo de aprendizagem de ideias, conceitos e procedimentos matemáticos.

Relativamente à tipologia, Stoyanova e Ellerton (1996)STOYANOVA, E.; ELLERTON, N. F. A framework for research into students' problem posing in school mathematics. In: CLARKSON, P. C. (ed.). Proceedings of the 19th annual conference of the Mathematics Education Research Group of Australasia . Limerick: Mathematics Education Research Group of Australasia, 1996. p. 518-525. , e posteriormente Stoyanova (1998)STOYANOVA, E. Problem posing in mathematics classrooms. In: MCINTOSH, A.; ELLERTON, N. (ed.). Research in Mathematics Education: a contemporary perspective. Perth: MASTEC, 1998. p. 164-185. , delineiam três categorias de formulação de problemas: situações livres , em que se formulam problemas sem qualquer tipo de restrições; situações semiestruturadas , em que se formulam problemas semelhantes a outros já conhecidos, ou com base em figuras, diagramas ou outro tipo de dados indicados; situações estruturadas , em que se criam problemas através da reformulação de problemas já resolvidos, ou alterando condições ou questões de um problema já conhecido. O desenvolvimento de tarefas com tipologias diversificadas promove a construção de novas aprendizagens ( STOYANOVA; ELLERTON, 1996STOYANOVA, E.; ELLERTON, N. F. A framework for research into students' problem posing in school mathematics. In: CLARKSON, P. C. (ed.). Proceedings of the 19th annual conference of the Mathematics Education Research Group of Australasia . Limerick: Mathematics Education Research Group of Australasia, 1996. p. 518-525. ; STOYANOVA, 1998STOYANOVA, E. Problem posing in mathematics classrooms. In: MCINTOSH, A.; ELLERTON, N. (ed.). Research in Mathematics Education: a contemporary perspective. Perth: MASTEC, 1998. p. 164-185. ), sendo fundamental que estas sejam sempre adequadas e personalizadas ao contexto em que são desenvolvidas.

Em relação a estratégias de formulação de problemas, surge uma maior diversidade de perspectivas. Abu-Elwan (2002)ABU-ELWAN, R. Effectiveness of problem posing strategies on prospective mathematics teachers’ problem-solving performance. Journal of Science and Mathematics Education in Southeast Asia , Gelugor, v. 25, n.1, p. 56–69, 2002. parte da estrutura da tipologia de problemas de Stoyanova (1998)STOYANOVA, E. Problem posing in mathematics classrooms. In: MCINTOSH, A.; ELLERTON, N. (ed.). Research in Mathematics Education: a contemporary perspective. Perth: MASTEC, 1998. p. 164-185. para elencar diferentes estratégias de formulação. Para as situações livres, propõe: inventar um problema simples ou mais difícil; construir um problema para uma competição matemática/teste; e inventar um problema que se goste. Para as situações semiestruturadas, propõe elaborar: problemas abertos, por exemplo, investigações matemáticas; problemas semelhantes a um problema pré-definido; problemas com situações semelhantes a um problema conhecido; problemas relacionados com dados ou teoremas específicos; problemas derivados a partir de figuras; e problemas de palavras. Em relação a situações estruturadas, propõe a modificação do enunciado para propor um novo problema, ou manter os dados e alterar o que é pedido.

Vale e Pimentel (2004)VALE, I.; PIMENTEL, T. Resolução de problemas. In: PALHARES, P. (coord.). Elementos de Matemática para Professores do Ensino Básico . Lisboa: Lidel, 2004. p. 7-51. elencam as seguintes estratégias de formulação de problemas: Aceitar os dados , em que, a partir de uma determinada situação, estática, tal como uma definição, uma condição, um objeto, uma figura, uma tabela, se formulam situações que se constituem como problemas; E se em vez de , em que, a partir de uma situação, se identifica as suas propriedades, nega-se uma delas e, então, formulam-se perguntas que, por sua vez, podem originar a negação de outra propriedade e mais perguntas; Variação de um problema , em que, a partir de um problema, podemos obter outros problemas por meio de decomposição, recomposição, de analogia, de particularização ou de generalização; De problema para problema, em que, a partir de um problema original, e da sua resolução, se podem desenvolver outros problemas, modificando algumas condições ou atributos do problema original; Recontextualização , em que, depois de resolvido um determinado problema e identificada alguma característica, formula-se novos problemas fixando essa característica e envolvendo-se em um novo contexto.

Boavida et al. (2008), numa publicação destinada a uma faixa etária mais baixa, perspectiva uma visão mais simples sobre as estratégias de formulação de problemas, enfatizando duas estratégias: Aceitar os dados , em que se desenvolve o processo de formulação a partir de dados pré-estabelecidos; E se em vez de , em que se modifica o contexto ou parte de um problema anterior para a construção de um novo.

Em relação à avaliação da formulação de problemas, destacam-se os critérios gerais de avaliação postulados por Silver (1997)SILVER, E. A. Fostering creativity through instruction rich in mathematical problem solving and problem posing. ZDM , Heidelberg, v. 3, p. 75-80, 1997. e por Silver e Cai (2005)SILVER, E. A.; CAI, J. Assessing students' mathematical problem posing. Teaching children mathematics , Reston, v. 12, n. 3, p. 129-135, 2005. , existindo três categorias que podem ser utilizadas para analisar as produções criativas dos alunos (LEIKIN; KOICHU; BERMAN, 2009): a fluência, ou quantidade; a flexibilidade, ou complexidade; e a originalidade, ou novidade. Segundo Pinheiro e Vale (2013)PINHEIRO, S.; VALE, I. Formulação de problemas e criatividade na aula de matemática. In: FERNANDES, J. A.; MARTINHO, M. H.; TINOCO, J.; VISEU, F. (org.). Atas do XXIV Seminário de Investigação em Educação Matemática . Braga: APM e CIEd da Universidade do Minho, 2013. , a fluência corresponde ao número de problemas que se adequam aos requisitos da tarefa, no sentido de quantidade de problemas e situações conceitualizadas pelos alunos que respeitam os requisitos pedidos; a flexibilidade corresponde à quantidade de tipos de problemas colocados. Esta pode ser interpretada numa perspectiva de avaliação da diversidade das formulações, tanto numa perspectiva de diferentes tipologias de problemas formulados, como na complexidade matemática ou linguística que estes possam demonstrar; e a originalidade corresponde ao número de problemas identificados como únicos, raros ou que se destacam por algum pormenor imaginativo mais concreto, identificando casos de formulações que se destaquem como atípicas ou não óbvias, perante uma tarefa comum a um grupo, num determinado contexto.

No processo de formulação e resolução de problemas, enquadrado numa aula de Matemática, assume-se como determinante a postura do professor. Neste processo, protagonizado pelos alunos, o papel do professor destaca-se pela mediação e promoção de aprendizagens ( POUND; LEE, 2011POUND, L.; LEE, T. Teaching Mathematics Creatively . New York: Routledge, 2011. ), considerando sempre as suas necessidades, personalizando as tarefas ao contexto e promovendo o gosto pela aprendizagem matemática ( PÓLYA, 1995PÓLYA, G. A arte de resolver problemas . Rio de Janeiro: Interciência, 1995. ).

Russo (2016)RUSSO, J. Teaching mathematics in primary schools with challenging tasks: The big (not so) friendly giant. Australian Primary Mathematics Classroom , Adelaide, v. 21, n. 3, p. 8-15, 2016. , quanto ao papel do professor, especialmente no Ensino Básico, sugere uma estrutura global de ação promotora do espírito criativo, que pode ser aplicada no âmbito do desenvolvimento da formulação de problemas: o professor deve começar por lançar o desafio ao grupo, apresentando o problema, envolvendo os alunos na situação descrita e destacando os possíveis recursos que estes têm à sua disposição para o resolver. Após o lançamento do desafio, os alunos devem explorar a tarefa, individualmente ou em grupo, sendo missão do professor incentivar os alunos a desenvolver pelo menos uma solução potencialmente apropriada. Segue-se a promoção do debate sobre as possíveis soluções encontradas, facilitando uma discussão em grupo que ofereça aos alunos a oportunidade de apresentar a sua abordagem específica para resolver a tarefa, e conhecer novas formas elaboradas pelos seus pares ( RUSSO, 2016RUSSO, J. Teaching mathematics in primary schools with challenging tasks: The big (not so) friendly giant. Australian Primary Mathematics Classroom , Adelaide, v. 21, n. 3, p. 8-15, 2016. ).

Ainda em relação ao papel do professor, Dante (2009)DANTE, L. R. Formulação e resolução de problemas de matemática: teoria e prática. São Paulo: Ática, 2009. realça a necessidade da personalização das tarefas em relação ao meio em que se desenvolvem, aproximando-se do quotidiano escolar. Uma vez que a “[...] oportunidade de usar conceitos e procedimentos matemáticos no dia a dia favorece o desenvolvimento de uma atitude positiva do aluno em relação à matéria [...]” ( DANTE, 2009DANTE, L. R. Formulação e resolução de problemas de matemática: teoria e prática. São Paulo: Ática, 2009. , p. 21), a formulação de problemas pode surgir como um meio de ligação entre os conceitos e procedimentos matemáticos. A utilização e contextualização destes na realidade dos alunos, pode tornar as aprendizagens mais dinâmicas e significativas.

Assim, percebe-se a formulação de problemas como um meio fundamental para o desenvolvimento das competências matemáticas e criativas dos alunos (AYLLÓN; GÓMEZ; BALLESTA-CLAVER, 2016; KOPPARLA et al., 2019; MIRANDA; MAMEDE, 2020MIRANDA, P.; MAMEDE, E. Using a picture to challenge creativity in mathematics class with 1st and 6th graders. Journal of the European Teacher Education Network , Leidschendam, v. 15, p. 43-52, 2020. ; SCHOEVERS et al. , 2019). Este artigo pretende analisar as reações de alunos quando desafiados a desenvolver tarefas de formulação de problemas, abordando duas questões: 1) Como reagem os alunos às tarefas de formulação de problemas? 2) Como realizam tarefas de formulação de problemas?

3 Metodologia

Recorreu-se a uma metodologia qualitativa (BOGDAN; BICKLEN, 2013), numa abordagem de estudo de caso ( YIN, 2014YIN, R. Case study research: design and methods . New York: Sage, 2014. ), para analisar as reações e o desempenho dos alunos participantes quando desafiados a formular problemas. Assim, este estudo ambiciona conhecer, compreender e interpretar fenômenos contemporâneos em profundidade, inseridos no seu contexto real ( YIN, 2014YIN, R. Case study research: design and methods . New York: Sage, 2014. ) e tendo em conta as suas características e idiossincrasias ( AMADO; FREIRE, 2014AMADO, J.; FREIRE, I. Estudo de caso na investigação em educação. In: AMADO, J. (coord.). Manual de Investigação Qualitativa em Educação . Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2014. p. 121-143. ). A modalidade adotada assume-se particularmente adequada pelo interesse do estudo se focar nos processos desenvolvidos pelos participantes ( MERRIAM, 1998MERRIAM, S.B. Case study research in education: a qualitative approach . San Francisco: Jossey-Bass, 1998. ; AMADO; FREIRE, 2014AMADO, J.; FREIRE, I. Estudo de caso na investigação em educação. In: AMADO, J. (coord.). Manual de Investigação Qualitativa em Educação . Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2014. p. 121-143. ).

Os participantes do estudo foram 22 alunos (8 do gênero feminino e 14 do gênero masculino) de uma turma do 1.º ano de escolaridade, com idades compreendidas entre os 6 e os 7 anos, a frequentar uma escola pública na cidade de Braga, Portugal. Este estudo surge depois de oito semanas desde o primeiro contato do pesquisador com os alunos, tendo este um contato próximo com a turma e com a professora titular da turma. Por razões de ética e confidencialidade, todos os nomes presentes neste estudo são fictícios.

Os alunos, globalmente, apresentavam uma boa relação com a Matemática. No entanto, ainda não tinham experienciado a formulação de problemas. No que diz respeito à resolução de problemas, já tinham experienciado algumas tarefas neste âmbito, com problemas de cálculo de um passo. Estes demonstravam confiança e destreza na resolução dos mesmos, tendo sempre em conta que possuíam ainda um domínio da leitura e da escrita muito restrito, assim como o domínio dos números até dez e dos algoritmos da adição e da subtração.

As tarefas de formulação de problemas implementadas no estudo enquadram-se na vertente semiestruturada ( STOYANOVA, 1998STOYANOVA, E. Problem posing in mathematics classrooms. In: MCINTOSH, A.; ELLERTON, N. (ed.). Research in Mathematics Education: a contemporary perspective. Perth: MASTEC, 1998. p. 164-185. ; STOYANOVA; ELLERTON, 1996STOYANOVA, E.; ELLERTON, N. F. A framework for research into students' problem posing in school mathematics. In: CLARKSON, P. C. (ed.). Proceedings of the 19th annual conference of the Mathematics Education Research Group of Australasia . Limerick: Mathematics Education Research Group of Australasia, 1996. p. 518-525. ), assumindo como tema global problemáticas relacionadas com o quotidiano dos alunos. A importância da conexão dos problemas com o quotidiano é fundamental para que estes possam surgir devidamente contextualizados e se tornem significativos (BOAVIDA et al. , 2008), principalmente em faixas etárias mais baixas. Estas tarefas selecionadas foram pensadas e adaptadas de acordo com currículo preconizado nos documentos oficiais portugueses, sublinhando a importância do documento Aprendizagens Essenciais – Matemática ( MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO E CIÊNCIA, 2018MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO E CIÊNCIA. Aprendizagens essenciais de Matemática: 1.º ano. Lisboa: Ministério da Educação/Direção-Geral da Educação, 2018. ), relativo ao 1.º ano de escolaridade.

As tarefas presentes neste estudo fazem parte do contato inicial dos alunos com tarefas de formulação de problemas. Foram propostas aos alunos duas tarefas individuais, em duas sessões distintas, com a duração de aproximadamente 15 a 20 minutos. Estas tarefas surgiram integradas no quotidiano escolar dos alunos, com a presença não participante da professora titular. Os enunciados foram apresentados oralmente pelo investigador, com uma linguagem próxima dos alunos, tendo tempo ao esclarecimento das dúvidas de interpretação dos alunos e de palavras ou expressões por eles consideradas difíceis. Uma vez que os alunos ainda não tinham aprendido a escrever frases completas, foi pedido para que registassem os enunciados formulados como desejassem, por exemplo, com desenhos ou esquemas, sendo posteriormente recolhidos e gravados os enunciados completos, por eles apresentados oralmente.

A recolha de dados foi efetuada com recurso a fotografias, gravações de áudio, registos das produções escritas dos alunos e ainda notas de campo do investigador, um dos autores deste artigo.

O processo de análise das reações dos alunos sustentou-se no contato próximo com estes, no desenvolvimento das sessões. Pretendeu-se acompanhar a forma como os alunos lidavam com tarefas de formulação de problemas, focando a sua reação inicial a cada tarefa. Além disso, também se analisaram, mais profundamente, incidentes críticos relevantes para o estudo. O processo de análise das produções dos alunos baseou-se nas dimensões da criatividade postuladas por Silver (1997)SILVER, E. A. Fostering creativity through instruction rich in mathematical problem solving and problem posing. ZDM , Heidelberg, v. 3, p. 75-80, 1997. , focalizando uma análise global das produções dos alunos, identificando elementos comuns às formulações, e uma análise mais específica, destacando exemplos com características mais marcantes para o estudo.

4 Resultados

Nesta secção, apresentam-se os resultados obtidos numa intervenção em que foram desenvolvidas duas tarefas de formulação de problemas. Estas foram distribuídas por duas sessões, inseridas no quotidiano escolar normal de uma turma do primeiro ano de escolaridade.

A primeira tarefa ( Figura 1 ) desafiava os alunos a formular um problema que envolvesse os elementos da figura que se encontrava no enunciado. Esta figura era composta por sete lápis, um menino e uma menina. Foi dada aos alunos total autonomia para conceitualizar e registrar a situação matemática que desejassem.

Figura 1
– Registo escrito do enunciado do problema do César

Globalmente, os alunos reagiram com entusiasmo à tarefa, embora também houve alguns casos em que a apreensão foi evidente. Procedeu-se a uma explicação mais detalhada sobre a forma como iriam registar os enunciados por eles desenvolvidos, debatendo e esclarecendo-se as dúvidas que surgiram, especialmente pelos alunos que demonstraram maior apreensão à novidade da tarefa. Também lhes foi explicado para registarem o seu problema de forma escrita e que, mais tarde, os enunciados iriam ser registados oralmente através de gravações de áudio, tendo o investigador o cuidado de explicar aos alunos o procedimento que iria desenvolver, bem como o instrumento de recolha de dados utilizado para esse efeito.

A tarefa foi desenvolvida de forma integrada no quotidiano escolar dos alunos, pelo que se manteve a organização da sala de aula e houve lugar, no final, à partilha e ao diálogo sobre as diferentes produções dos alunos.

Os alunos tenderam a estruturar problemas que os envolviam como sujeitos ativos no problema ( Figura 1 ). Assim, foi comum encontrar enunciados que se iniciavam com Eu. Para explicar este fenômeno, interpreta-se que os alunos se identificaram nas figuras humanas presentes na tarefa, associando-as a eles próprios e aos amigos da turma. Uma característica transversal na análise dos resultados prende-se com a conceitualização de problemas de cálculo simples, que envolviam adições e subtrações, uma vez que se tratavam dos algoritmos que conheciam. Assim, as produções dos alunos seguiam a estrutura dos problemas que estavam acostumados a resolver. Um outro aspeto transversal às produções dos alunos relaciona-se com o desenvolvimento da resposta, no momento da explicação do enunciado ( Figura 2 ). Sem que lhes fosse pedido, todos os alunos resolveram o problema formulado, transmitindo a resposta ao investigador, no momento da recolha oral do enunciado.

Figura 2
– Registo escrito do enunciado do problema da Susana

Na diversidade de problemas formulados, identificaram-se duas produções que se destacavam das demais, pela interpretação original do enunciado da tarefa (Figuras 3 e 4). Em ambos os casos, os alunos consideraram que formular um enunciado que envolva os meninos e os lápis não significa ter de utilizar as quantidades representadas na figura. Assim, estes conceitualizaram um problema que respeitava os requisitos da tarefa, mas envolvendo quantidades de lápis diferentes da que estava presente na figura, seja por defeito ( Figura 3 ) ou por excesso ( Figura 4 ).

Figura 3
– Registo escrito do enunciado do problema da Tânia

Figura 4
– Registo escrito do enunciado do problema do Alberto

Relativamente ao enunciado presente na Figura 4 , este apresenta uma inovação, em comparação com os restantes: foi o único em que se identificou a presença de uma questão no final do problema. Esta característica transmite uma concepção diferente dos demais problemas formulados, uma vez que proporciona ao interlocutor o acesso explícito à situação que o aluno conceitualiza como problema, e se aproxima ainda mais da estrutura conhecida e familiar dos alunos relativa à estrutura de um problema. No entanto, e tal como nos demais casos, o aluno resolveu imediatamente o problema e respondeu à questão.

A segunda tarefa ( Figura 5 ) desafiava os alunos a formular um problema envolvendo os números presentes no enunciado. Os números presentes na tarefa foram o cinco, o dois e o três . Mais uma vez, foi dada total autonomia aos alunos para construir e registrar o problema matemático que desejassem.

Figura 5
– Registo escrito do enunciado do problema da Elsa

Nesta sessão, a tarefa foi recebida, mais uma vez, com alegria e entusiasmo pelos alunos. Sendo o enunciado e a estrutura da tarefa próximas da anterior, houve uma menor apreensão inicial. No mesmo seguimento, também existiu uma menor quantidade de dúvidas levantadas sobre a tarefa, tendo estas sido esclarecidas prontamente pelo investigador. Tal como na tarefa anterior, esta foi integrada no quotidiano escolar normal dos alunos, não existindo alterações na organização do espaço. No final, houve lugar à partilha e discussão dos problemas formulados.

A maioria dos problemas formulados assemelharam-se ao da Figura 5 . Nestes, os alunos focaram-se num elemento, maçãs por exemplo, e pensaram num problema de cálculo que envolvesse os números pedidos no enunciado da tarefa, com situações que envolviam a adição e a subtração de elementos. Destacam-se as relações que os alunos encontraram para o envolvimento dos números pedidos. A generalidade dos alunos conceitualizou matematicamente o seu problema através de uma das seguintes hipóteses: identificar os números menores como parcelas e o número maior como a soma; identificar o número maior como o aditivo, um dos restantes como o subtrativo e reconhecendo o último como a diferença.

As características identificadas na tarefa anterior, relacionadas com a assunção pessoal do protagonismo do problema formulado, a estrutura simples e próxima dos problemas que contactavam no seu quotidiano e os processos de resolução e formulação conjunta, no momento do registo oral do enunciado, também foram comuns nesta tarefa em análise.

No entanto, destacaram-se dois exemplos de problemas formulados que não seguiram esta estrutura. O primeiro ( Figura 6 ), embora envolvesse os números fornecidos através da interpretação mais comum, tem presente dois tipos de elementos diferentes (flores e dados).

Figura 6
– Registo escrito do enunciado do problema do Henrique

Quando foi pedido para explicar o seu enunciado, o aluno ignorou a pergunta do problema, focando-se no cálculo e na quantidade final. Desta forma, o contexto do problema conceitualizado não ficou claro. Embora o cálculo matemático subjacente esteja correto, não foi explicada a situação, o problema conceitualizado, que levou o aluno a adicionar três flores com dois dados.

No segundo caso, um outro aluno interpretou o enunciado da tarefa de forma diferente.

Atentando no enunciado da tarefa, o requisito pedido era para que os alunos envolvessem todos os seguintes números. Assim, nada impedia que, para além destes, os alunos envolvessem outros números nos problemas que formularam. Foi isso que aconteceu num dos casos ( Figura 7 ), em que um aluno decidiu utilizar os três números do enunciado como parcelas, chegando a uma soma cujo valor não estava presente no enunciado da tarefa.

Figura 7
– Registro escrito do enunciado do problema do Manuel

Uma vez que o enunciado apenas pedia para que o problema formulado envolvesse todos os seguintes números, a condição foi respeitada em todos os casos. Desta forma, foram aceitas ambas as interpretações. Registra-se que esta interpretação apenas foi verificada em um caso, pelo que atende ao critério da originalidade, tratando-se de uma interpretação válida, inovadora, rara e que, respeitando as condições propostas no enunciado, consegue acrescentar uma perspectiva única e criativa sobre a tarefa desenvolvida.

5 Reflexões finais

Este artigo apresenta uma perspectiva sobre a reação e o desempenho de alunos do 1.º ano de escolaridade, quando desafiados a desenvolver tarefas de formulação de problemas. Pretendeu-se conhecer e analisar as suas reações e os seus desempenhos perante o desafio ao desenvolvimento deste tipo de tarefas.

No que diz respeito à formulação de problemas, relacionando-se de forma integrada com o tema da criatividade matemática, este estudo foi um meio que proporcionou aos alunos um contato inicial com esse tipo de tarefa. Não sendo uma atividade comum nas aulas de Matemática, verificou-se que a formulação de problemas encerra um vasto número de potencialidades para o desenvolvimento dos alunos (AYLLÓN; GÓMEZ; BALLESTA-CLAVER, 2016; CAI et al. , 2020; KOPPARLA et al. , 2019; MIRANDA; MAMEDE, 2020MIRANDA, P.; MAMEDE, E. Using a picture to challenge creativity in mathematics class with 1st and 6th graders. Journal of the European Teacher Education Network , Leidschendam, v. 15, p. 43-52, 2020. ; SILVER, 1994SILVER, E. A. On mathematical problem posing. For the Learning of Mathematics , New Westminster, v. 14, n. 1, p. 19–28, 1994. ), devendo assumir um protagonismo crescente nas aulas de Matemática, logo a partir das faixas etárias mais baixas ( POUND; LEE, 2011POUND, L.; LEE, T. Teaching Mathematics Creatively . New York: Routledge, 2011. ). O foco do desenvolvimento das tarefas foi direcionado para a formulação de problemas com base em dados ou contextos fornecidos, em situações semiestruturadas ( STOYANOVA, 1998STOYANOVA, E. Problem posing in mathematics classrooms. In: MCINTOSH, A.; ELLERTON, N. (ed.). Research in Mathematics Education: a contemporary perspective. Perth: MASTEC, 1998. p. 164-185. ; STOYANOVA; ELLERTON, 1996STOYANOVA, E.; ELLERTON, N. F. A framework for research into students' problem posing in school mathematics. In: CLARKSON, P. C. (ed.). Proceedings of the 19th annual conference of the Mathematics Education Research Group of Australasia . Limerick: Mathematics Education Research Group of Australasia, 1996. p. 518-525. ), alinhando-se com a estratégia de Aceitar os dados (BOAVIDA et al. , 2008).

No primeiro contato, foi possível identificar-se dois conjuntos de reações, que globalmente traduzem o espírito perante o desafio das tarefas de formulação de problemas, num contexto de início da escolaridade formal: entusiasmo e apreensão. Por um lado, grande parte dos alunos demonstrou-se com um espírito aberto e motivado para o desenvolvimento das tarefas de formulação de problemas. Fatores tais como a novidade da tarefa, a fuga às tarefas matemáticas rotineiras, a presença do investigador na sala de aula, uma boa compreensão do que lhes foi pedido, ou ainda a confiança que os alunos tinham nos seus conhecimentos e competências prévias, são possíveis elementos que ajudam a explicar a boa aceitação das tarefas pelos alunos, bem como a sua motivação e dedicação no desenvolvimento das mesmas. As tarefas de formulação de problemas desenvolvidas ofereciam liberdade e abertura suficientes para que os alunos utilizassem, de forma real e contextualizada, os seus conhecimentos e competências num novo tipo de tarefas, produzindo um produto (problema formulado) pessoal e personalizado, com valores e significados próprios.

Por outro lado, alguns alunos também apresentaram alguma apreensão inicial ao desenvolvimento das tarefas. A natureza não restritiva dos desafios e o baixo, ou inexistente, contacto prévio com este tipo de tarefas pode explicar esta reação. Esta apreensão foi identificada, com um maior pendor, nos alunos que habitualmente apresentam mais dúvidas no desenvolvimento de tarefas rotineiras. No entanto, também se identificaram casos de alunos que não costumam apresentar dificuldades, mas que sentiram maior insegurança na mobilização dos seus conhecimentos, perante um desafio que se apresentava como inovador.

Em relação aos problemas formulados, foi possível identificar algumas características passíveis de uma maior reflexão. Uma das caraterísticas prende-se com a assunção do protagonismo do problema pelo aluno que o formulou, de forma inata. Não tendo sido uma característica universal, na maioria das produções constatou-se que os alunos se envolviam pessoalmente no enunciado, tornando-se agentes no contexto do problema formulado. Este fenômeno pode refletir a expressividade que os alunos associam às construções próprias, podendo fomentar o gosto e a motivação pela aprendizagem matemática e, possivelmente, tornando as aprendizagens mais marcantes e significativas.

Outra característica que emerge da análise das produções dos alunos prende-se com o fenômeno da formulação e resolução conjunta. Na recolha dos enunciados orais dos alunos, uma vez que ainda não tinham aprendido a escrever frases completas, estes não distinguiam o enunciado formulado e a resolução do problema, encarando-os como um processo único. Um indício para esta inferência também se encontra na ausência da pergunta final do problema. Ao aglutinarem os dois processos, encarando-os como um e o mesmo, os alunos não sentiram a necessidade de formular uma pergunta final, uma vez que já desenvolveram a interpretação do problema no processo de formulação. Esta característica já foi identificada em estudos anteriores no mesmo âmbito, embora em faixas etárias superiores, como é o caso de Pinheiro e Vale (2013)PINHEIRO, S.; VALE, I. Formulação de problemas e criatividade na aula de matemática. In: FERNANDES, J. A.; MARTINHO, M. H.; TINOCO, J.; VISEU, F. (org.). Atas do XXIV Seminário de Investigação em Educação Matemática . Braga: APM e CIEd da Universidade do Minho, 2013. .

Os alunos demonstraram espírito criativo na elaboração de diferentes problemas matemáticos. As situações conceitualizadas foram variadas no seu tema, refletindo os interesses dos alunos. De modo geral, foi possível identificar as três dimensões postuladas por Silver (1997)SILVER, E. A. Fostering creativity through instruction rich in mathematical problem solving and problem posing. ZDM , Heidelberg, v. 3, p. 75-80, 1997. e Silver e Cai (2005)SILVER, E. A.; CAI, J. Assessing students' mathematical problem posing. Teaching children mathematics , Reston, v. 12, n. 3, p. 129-135, 2005. para analisar a criatividade na formulação de problemas: fluência, flexibilidade e originalidade. Assim, em relação à fluência, foi possível identificar que, globalmente, os alunos participantes formularam problemas que se enquadravam nos requisitos propostos, apresentando-se, na sua totalidade, como solucionáveis. No entanto, existiram casos em que os alunos investiram uma maior atenção no cálculo efetuado, do que na construção de um problema verossímil. Um exemplo disso foi o problema formulado que envolvia flores e dados, no qual se percebe que o aluno compreende o cálculo aditivo, mas o investimento na situação criada foi menor.

No que se refere à flexibilidade, ou seja, aos diferentes tipos de problemas criados, foi um critério menos relevante para a análise das produções neste artigo, uma vez que os problemas assumiram, globalmente, a mesma tipologia e estrutura. Tratando-se do primeiro contato com a formulação de problemas e do início do primeiro ano de escolaridade, seria esperado a presença de problemas matemáticos com uma estrutura mais simples, próximos daqueles que estavam acostumados a resolver, o que se verificou. Esta observação realça a importância da relação entre a formulação e a resolução de problemas, uma vez que o contato e a experiência prévios dos alunos na resolução de problemas poderão influenciar o processo de formulação de problemas. No entanto, este fenômeno também estará certamente relacionado com a baixa frequência de contato com este tipo de tarefa, tal como identificado por Pinheiro e Vale (2013)PINHEIRO, S.; VALE, I. Formulação de problemas e criatividade na aula de matemática. In: FERNANDES, J. A.; MARTINHO, M. H.; TINOCO, J.; VISEU, F. (org.). Atas do XXIV Seminário de Investigação em Educação Matemática . Braga: APM e CIEd da Universidade do Minho, 2013. . Neste contexto e faixa etária, com base num investimento sistemático e intencional em tarefas de formulação de problemas, certamente seria possível promover uma maior variedade de tipologias de problemas formulados.

Em relação à originalidade, destacam-se os casos dos alunos que interpretaram as tarefas de forma inusitada, descritos e analisados na seção anterior. Estes acrescentaram uma nova perspetiva à tarefa, tendo chegado a produções inovadoras e com valor, ao mesmo tempo que respeitavam as condições iniciais. Outro ponto de análise importante prende-se com a diversidade de contextos conceitualizados. Esta apresenta-se como uma das maiores potencialidades identificadas neste estudo, já que cada aluno cunhou o seu envolvimento nos problemas formulados. Esta perspectiva pessoal reflete-se no processo criativo de formulação, relacionando os seus conhecimentos matemáticos com os seus interesses, para a construção de problemas que se tornaram mais significativos e relevantes para a experiência de aprendizagem dos alunos.

Assim, e de forma geral, é possível concluir que as tarefas de formulação de problemas são agentes promotores de aprendizagens matemáticas, ao mesmo tempo que desafiam os alunos a serem criativos. Este estudo destaca a promoção do desenvolvimento frequente de tarefas de formulação de problemas, para uma aprendizagem matemática que permite a construção de competências matemáticas sólidas e a promoção do gosto e entusiasmo pela Matemática. Desta forma, integradas numa abordagem holística, sistemática e intencional, este tipo de tarefas desafia os alunos a investir e arriscar em processos e raciocínios inovadores, contextualizados e significativos no contexto em que estão inseridos, levando ao florescimento da criatividade matemática.

Agradecimentos

Este trabalho é financiado por fundos nacionais através da FCT – Fundação para a Ciência e a Tecnologia, I.P., no âmbito da Bolsa de Doutoramento 2021.05895.BD.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Set 2023
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2023

Histórico

  • Recebido
    29 Jul 2022
  • Aceito
    08 Fev 2023
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