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Atividades na Feira de Matemática: possibilidades para uma práxis educativa

Activities at a Mathematics Fair: Possibilities for an Educational Praxis

Resumo

Este artigo é resultado de uma investigação que teve como objetivo caracterizar as atividades matemáticas desenvolvidas em sala de aula e apresentadas na Feira Regional de Matemática de Rio do Sul (SC), a fim de fundamentar uma práxis educativa. Considerando a abordagem qualitativa de pesquisa, tivemos como materiais empíricos, os relatos de experiências de quatro trabalhos apresentados na referida Feira e entrevistas realizadas com um dos estudantes expositores de cada um dos trabalhos. A análise desses materiais esteve ancorada no legado de Paulo Freire, principalmente no que se refere às ideias de práxis e de diálogo. Obtivemos, nesse processo, quatro categorias: 1) escolha do tema a ser estudado; 2) matematização; 3) diálogo, colaboração e envolvimento com a comunidade escolar e 4) ação-reflexão-transformação. Ao interpretar as categorias, vislumbramos a possibilidade de uma práxis educativa na qual educandos(as) e educadores(as) fazem uma leitura de mundo inicial, no âmbito da percepção, desenvolvem conhecimentos matemáticos para a compreensão dessa leitura e almejam uma ação transformadora coletiva. Ainda, reforçamos a importância de eventos como a Feira de Matemática para a promoção e divulgação dessas atividades.

Educação Básica; Diálogo; Colaboração; Conhecimentos Matemáticos; Abordagens Investigativas

Abstract

This article is the result of an investigation that aimed to characterize the mathematical activities developed in the classroom and presented at the Regional Mathematics Fair of Rio do Sul (SC), to support an educational praxis. Considering the research qualitative approach, our material included the reports of experiences of four works presented at that fair and interviews with one of the exhibiting students of each of the works. The analysis of those materials was anchored in Paulo Freire’s legacy, especially the notions of praxis and dialogue. In this process, we obtained four categories: 1) choice of the topic to be studied; 2) mathematization; 3) dialogue, collaboration, and involvement with the school community, and 4) action-reflection-transformation. By interpreting the categories, we envisioned the possibility of an educational praxis in which students and educators make an initial world reading in the context of perception, develop mathematical knowledge to understand this reading, and aim for a collective transformative action. Furthermore, we reinforce the importance of events such as the mathematics fair for the promotion and dissemination of these activities.

Basic education; Dialogue; Collaboration; Mathematical knowledge; Investigative approaches

1 Introdução

O Movimento em Rede da Feira de Matemática (MRFMat) vem se consolidando no Brasil e tem almejado a expansão da Feira de Matemática (FMat), visando a sua realização em todos os estados da federação. Para tanto, acordos interinstitucionais entre Universidades, Institutos Federais e a Sociedade Brasileira de Educação Matemática (SBEM) foram firmados. Para Oliveira e Zermiani (2020OLIVEIRA, F. P. Z; ZERMIANI, V. J. Feiras de Matemática: Uma manifestação da Educação Matemática em Santa Catarina. In: Educação Matemática em Santa Catarina: contextos e relatos. Florianópolis: Organização Diretoria SBEM/SC 2018-2020, 2020. , p. 101, inclusão nossa), atualmente a SBEM “[...] tem as Feiras de Matemática como meio concreto de aproximação entre a Educação Matemática e os professores [e professoras] que ensinam Matemática nas escolas [...]”.

Ainda de acordo com esses autores, os objetivos da FMat coadunam com os da SBEM, principalmente no que se referem “[...] à popularização de informações, conhecimentos matemáticos e de pesquisas [...]” ( OLIVEIRA; ZERMIANI, 2020OLIVEIRA, F. P. Z; ZERMIANI, V. J. Feiras de Matemática: Uma manifestação da Educação Matemática em Santa Catarina. In: Educação Matemática em Santa Catarina: contextos e relatos. Florianópolis: Organização Diretoria SBEM/SC 2018-2020, 2020. , p. 96). Assim, destacamos a intenção dessa Feira em ser um espaço para socialização de atividades matemáticas, almejando por meio disso contribuir com mudanças nas práticas pedagógicas docentes e com a melhoria qualitativa do ensino de Matemática.

[...] A feira de matemática é um evento em que estudantes de todos os níveis e redes de ensino são protagonistas do trabalho realizado nas escolas, proporcionando uma verdadeira integração da escola-sociedade, espaço em que se aprende e há troca de experiências. Ou seja, há professores e estudantes desde a Educação Infantil até a Educação Superior e comunidade, que desejam socializar um conhecimento ou uma metodologia desenvolvida com o intuito de melhorar a aprendizagem matemática [...] (OLIVEIRA; PIEHOWIAK; ZANDAVALLI, 2015, p. 32).

É por meio da intencionalidade de socialização de práticas pedagógicas que a FMat, para nós, coadunando com a SBEM, se torna um espaço para nos aproximarmos da escola, conhecendo e reconhecendo o que acontece no seu interior, nas aulas de Matemática, as perspectivas e concepções docentes, entre outras possibilidades. Nesse sentido, a partir da pesquisa de doutorado da primeira autora deste artigo, nos deparamos com quatro atividades matemáticas desenvolvidas em escolas públicas e apresentadas no ano de 2018 ou 2019 na Feira Regional de Matemática (FRMat) de Rio do Sul, as quais decidimos investigar com maior interesse.

Neste artigo, apresentamos os resultados dessa investigação, que teve como objetivo caracterizar as atividades matemáticas desenvolvidas em sala de aula e apresentadas na referida Feira, a fim de fundamentar uma práxis educativa. Guiadas pela interrogação “Que características das atividades matemáticas apresentadas numa Feira Regional de Matemática fundamentam uma práxis educativa?” desenvolvemos uma pesquisa de cunho qualitativo, por meio da análise de documentos e entrevistas. Em paralelo, realizamos estudos teóricos sobre a ideia de práxis, pautadas principalmente no legado de Paulo Freire.

Em relação à ideia de atividades matemáticas, estamos assumindo-a como as ações ou o conjunto de ações realizadas por professores(as) e estudantes com algum fim específico. Para Vázquez (2007)VÁZQUEZ, A. S. Filosofia da Práxis . São Paulo: Expressão Popular, 2007. , uma atividade humana se verifica quando há uma idealização inicial do resultado, sendo que as ações se findam com um fruto ou produto efetivo. Então, no caso das atividades matemáticas, tais resultados podem ser vistos como a participação na FMat, a aprendizagem matemática da turma ou de um grupo de estudantes, a interpretação de um problema, a produção de algum material concreto ou jogo, entre outros.

Com base em tal ideia de atividade matemática, assumimos que “[...] toda práxis é atividade, mas nem toda atividade é práxis [...]” ( VÁZQUEZ, 2007VÁZQUEZ, A. S. Filosofia da Práxis . São Paulo: Expressão Popular, 2007. , p. 219). Assim, é preciso tomar a práxis educativa como uma atividade específica, com qualidades próprias. No caso do nosso estudo, intencionamos olhar para atividades matemáticas apresentadas numa FRMat, buscando determinar características que as anunciam como uma possibilidade para práxis educativa.

Para exposição dos resultados dessa investigação, primeiramente apresentamos alguns aspectos da FMat, no que tange a sua estrutura e organização. Em seguida, expomos nossas compreensões sobre a ideia de práxis educativa, para então anunciar os percursos metodológicos. Por fim, explicitamos a análise dos dados considerando as categorias obtidas e então trazemos nossas considerações.

2 A Feira de Matemática

Em 1985, na cidade de Blumenau – SC, dois professores de Matemática da Universidade Regional de Blumenau (FURB) promoveram a I Feira Regional de Matemática de Blumenau e a I Feira Catarinense de Matemática (FCMat). Tais feiras tinham como principais objetivos: despertar nos alunos e nas alunas maior interesse pela aprendizagem matemática, proporcionar maior integração da Matemática com as demais disciplinas, promover intercâmbio de experiências pedagógicas e contribuir para a inovação de metodologias, transformar a Matemática em ciência descoberta pelo aluno, dentre outros (ZERMIANI; JUBINI; SOUZA, 2015). O pano de fundo de tais objetivos era a promoção de um ensino de Matemática mais democrático, que rompia com metodologias baseadas em modelos tecnicistas.

Então, em sua gênese, a FMat foi uma das alternativas buscadas pelos educadores e educadoras matemáticos catarinenses para superar as tradicionais práticas que predominavam no ensino de Matemática, sendo defendida como

[...] um programa educativo científico-cultural que alia vivências e experiências, cujo resultado do estudo e/ou pesquisa culmina com uma mostra pública de estudantes e professores orientadores, integrantes de instituições educacionais públicas e privadas à comunidade interessada ( BIEMBENGUT; ZERMIANI, 2014BIEMBENGUT, M. S.; ZERMIANI, V. J. Feiras de Matemática: História das Ideias e Ideias da História. Blumenau: Legere/Nova Letra, 2014. , p. 45, grifo dos autores).

Assim, é importante ressaltar que a FMat não se resume ao dia da exposição dos trabalhos, mas compreende as experiências e vivências anteriores a este dia. Essas experiências podem perpassar o desenvolvimento de estudos, pesquisas ou atividades realizadas dentro ou fora das salas de aula, com estudantes e professores(as), até a preparação do que será exposto na Feira. Ou seja,

[...] É um conjunto de estudos e pesquisas realizadas por estudantes da Educação Básica, Educação Especial e Ensino Superior, durante um período letivo e na instituição escolar, que expressam seus conhecimentos e propostas em um lugar público com o fim de expor, transmitir e ceder a outros estudantes e à comunidade a essência e a resultante de um aprendizado fecundo [...] ( BIEMBENGUT; ZERMIANI, 2014BIEMBENGUT, M. S.; ZERMIANI, V. J. Feiras de Matemática: História das Ideias e Ideias da História. Blumenau: Legere/Nova Letra, 2014. , p. 45).

Neste sentido, o dia da exposição dos trabalhos foi idealizado como um espaço para socialização e divulgação de experiências, estudos e atividades matemáticas desenvolvidas no âmbito escolar, principalmente nas salas de aula. Para organização desse dia, os trabalhos devem ser inscritos, anteriormente, numa das categorias e numa das modalidades.

As categorias dizem respeito a etapa escolar dos(as) expositores(as) ou a instituição de origem, sendo enquadradas em: Educação Especial, Educação Infantil, Ensino Fundamental – Anos Iniciais, Ensino Fundamental – Anos Finais, Ensino Médio, Ensino Superior, Professor ou Comunidade. Já a modalidade, refere-se a natureza do trabalho, que pode contemplar: Matemática Aplicada e/ou Inter-relação com outras disciplinas; Matemática Pura ou Materiais Instrucionais e/ou Jogos Didáticos (CIVIERO; POSSAMAI; ANDRADE FILHO, 2015).

Uma FMat pode ocorrer em diferentes etapas: escolar, municipal, regional, estadual e nacional. No caso do estado de Santa Catarina, até o ano de 2021, foram realizadas 36 edições da FCMat e diversas edições regionais. Quanto à Feira Nacional de Matemática (FNMat), já foram realizadas seis edições. Para participar de uma FCMat, o trabalho obrigatoriamente deve ter sido indicado por uma Feira Regional, como previsto pelo regimento (REGIMENTO…, 2022). No caso da participação em uma Feira Nacional, as indicações ocorrem por meio das edições estaduais. As etapas escolares e municipais não são obrigatórias e dependem da organização de cada município e/ou escola. Para a indicação dos trabalhos, eles passam por um processo avaliativo que acontece no dia da exposição.

Civiero, Possamai e Andrade Filho (2015) destacam que esse processo avaliativo é dinâmico e cooperativo e busca subsidiar as ações do(a) professor(a) orientador(a) e dos(as) estudantes no aperfeiçoamento do trabalho desenvolvido. Essa avaliação é qualitativa e realizada por um grupo de, no mínimo, 3 avaliadores(as) e um coordenador(a) responsável. Os(as) avaliadores(as) são professores(as) orientadores(as) de outros trabalhos expostos na feira, professores(as) que ensinam Matemática, licenciandos(as) e/ou dirigentes educacionais, enquanto os(as) coordenadores(as) de grupo são escolhidos considerando a experiência com o Movimento da Feira.

Assim, levando em conta essa estrutura, os(as) avaliadores(as) do grupo, individualmente:

[...] (i) fazem a leitura do relato de experiência e/ou pesquisa; (ii) assistem à apresentação oral; (iii) emitem, em uma ficha de avaliação, um parecer escrito sobre cada trabalho observado e conhecido. Após, reúnem-se no coletivo (coordenados por um dos membros do grupo) para juntos emitirem considerações gerais sobre cada trabalho na forma de um relatório síntese [...] ( SCHELLER; ZABEL, 2020SCHELLER, M.; ZABEL, M. Os Propósitos da Avaliação na Feira de Matemática. Bolema, Rio Claro, v. 34, n. 67, p. 697-718, 2020. , p. 699).

Além disso, nesse encontro devem fazer a indicação da premiação do trabalho (CIVIERO; POSSAMAI; ANDRADE FILHO, 2015). Essa premiação não consiste na elaboração de um ranking geral dos trabalhos. De acordo com o Regimento (2022, p. 10, inclusão nossa), cada trabalho recebe uma “[...] premiação de Destaque, sendo indicada a partir dos aspectos de maior ênfase, como: Comunicação oral e/ou escrita dos[(as)] expositores[(as)], Domínio do conteúdo matemático, Qualidade científico-social, Relevância científica, Relevância social, dentre outros [...]”.

Por fim, as fichas de avaliação e relatórios síntese elaborados pelos(as) avaliadores(as) e coordenadores(as) dos grupos retornam aos(às) professores(as) orientadores(as) do trabalho. Esse retorno das fichas busca garantir o processo contínuo de avaliação, uma vez que possibilita a reflexão sobre o trabalho a partir do olhar dos(as) avaliadores(as).

Considerando os aspectos mencionados, acreditamos que as atividades apresentadas no dia da exposição dos trabalhos podem revelar a perspectiva de Matemática, ensino e educação assumida pelos membros do trabalho – professores(as) e estudantes, como sugere Damázio (1996)DAMÁZIO, A. Apresentação do Trabalhos. Revista Catarinense de Educação Matemática, Blumenau, ano 1, n. 1, p. 23-24, 1996. . Além disso, podem anunciar práticas educativas que rompem com uma perspectiva tradicional do ensino de Matemática, baseada na transmissão de conteúdos e reprodução de exercícios. A seguir, trazemos algumas considerações sobre a ideia da práxis educativa que nos proporcionará uma compreensão sobre os dados analisados na nossa investigação.

3 Práxis educativa

Como já anunciado, em nossa investigação, estávamos interessadas em caracterizar as atividades matemáticas desenvolvidas em sala de aula e apresentadas numa FRMat, a fim de fundamentar uma práxis educativa. Para tanto, realizamos estudos sobre práxis em Paulo Freire assim como nos pensadores marxistas Karel Kosik e Adolfo Sánchez Vázquez.

De modo geral, entendemos a práxis como uma “[...] atividade concreta pela qual os sujeitos humanos se afirmam no mundo, modificando a realidade objetiva e, para poderem alterá-la, transformando-se a si mesmos [...]” ( KONDER, 2018KONDER, L. O futuro da filosofia da práxis . São Paulo: Expressão Popular, 2018. , p. 123). Essa atividade concreta, para Freire (2020)FREIRE, P. Extensão ou Comunicação? Rio de Janeiro/São Paulo: Paz e Terra, 2020. , remete-se a uma práxis “[...] na qual a ação e a reflexão, solidárias, se iluminam constante e mutuamente. Na qual a prática, implicando a teoria da qual não se separa, implica também uma postura de quem busca o saber, e não de quem passivamente o recebe [...]” ( FREIRE, 2020FREIRE, P. Extensão ou Comunicação? Rio de Janeiro/São Paulo: Paz e Terra, 2020. , p. 107). Assim, a ideia de práxis relaciona-se a uma atividade concreta dos sujeitos, em que ação-reflexão-transformação do mundo e de si são condições indispensáveis. Essa práxis pode exprimir ideias diversas, que se manifestam por meio do uso de adjetivos como “utilitária”, “revolucionária”, “autêntica”.

Nesse sentido, Carvalho e Pio (2017)CARVALHO, S. M. G.; PIO, P. M. A categoria da práxis em Pedagogia do Oprimido: sentidos e implicações para a educação libertadora. Revista brasileira Estudos pedagógicos , Brasília, v. 98, n. 249, p. 428-445, maio/ago. 2017. realizaram um estudo sobre a ideia de práxis, presente na obra Pedagogia do Oprimido, de Paulo Freire, caracterizando-a em quatro sentidos: práxis libertadora, práxis autêntica, práxis revolucionária e práxis verdadeira. Eles encontraram:

[…] sentidos e significados de uma práxis que promove a união da relação dialética entre ação e reflexão sobre a realidade transformadora das condições reais de opressão, alienação e dominação, por isso, libertadora; uma práxis desveladora da realidade e, ao mesmo tempo, fonte perene do processo contínuo de (re)construção, de formação/educação do homem [e da mulher], ou seja, do processo de humanização dos homens [e das mulheres]; uma práxis articulada à revolução, a profundas e radicais transformações, dando ênfase para a ação dialógica e política junto às massas populares na perspectiva de sua conscientização, de sua inserção crítica na realidade; e, ainda, de uma práxis humana verdadeiramente criativa, que, em síntese, é o oferecimento aos homens [e às mulheres] de permanentes oportunidades de renovação de sua vida, de suas práticas sociais, produtivas, educativas e políticas, de novas aprendizagens, de novas invenções enquanto sujeito da história [...] ( CARVALHO; PIO, 2017CARVALHO, S. M. G.; PIO, P. M. A categoria da práxis em Pedagogia do Oprimido: sentidos e implicações para a educação libertadora. Revista brasileira Estudos pedagógicos , Brasília, v. 98, n. 249, p. 428-445, maio/ago. 2017. , p. 443-444, inclusões nossa).

Esses sentidos e significados nos ajudam a pensar uma práxis educativa que seja libertadora, autêntica, revolucionária e verdadeira. Para tanto, é fundamental assumir uma concepção de ser humano, como um ser de relações históricas e sociais, que cria o mundo, está no mundo, com o mundo e com os outros. Do contrário, estaremos falando de uma ação educativa nomeada, por Paulo Freire, de educação bancária (FREIRE, 2013a).

Na educação bancária, o(a) educador(a) é sujeito, é o(a) que pensa, o(a) que diz a palavra, o(a) que educa, o(a) que sabe, o(a) que escolhe o conteúdo programático. Os(as) educandos(as) são objetos, os(as) que não sabem, os(as) que são educados, os(as) que escutam docilmente a palavra, os(as) que se acomodam ao conteúdo (FREIRE, 2013a). Nessa educação, escancara-se uma contradição educador(a)-educando(a), dicotomizando-se mundo e ser humano. Para Freire (2020FREIRE, P. Extensão ou Comunicação? Rio de Janeiro/São Paulo: Paz e Terra, 2020. , p. 107) ela acaba sendo um obstáculo à transformação da sociedade, sendo por isso, “[...] uma concepção anti-histórica da educação [...]”. Atualmente, podemos perceber que essa educação bancária se mostra também por outras facetas, nas quais os(as) educadores(as) também são objetos, uma vez que têm seu fazer cerceado por currículos e materiais didáticos impostos, por prazos a cumprir e por avaliações externas que mensuram a “qualidade” do seu ensino.

Assim, “[...] nesta distorcida visão da educação, não há criatividade, não há transformação, não há saber. Só existe saber na invenção, na reinvenção, na busca inquieta, impaciente, que os homens [e as mulheres] fazem no mundo, com o mundo e com os outros [...]” (FREIRE, 2013a, p. 81, inclusão nossa).

Por isso que “[...]a educação é práxis, do contrário não é educação [...]” ( GUTIÉRREZ, 1988GUTIÉRREZ, F. Educação como Práxis Política . São Paulo: Summus, 1988. , p. 108). Assim, pensar uma práxis educativa é promover “uma ação transformadora consciente que supõe dois momentos inseparáveis, o da ação e o da reflexão” ( GUTIÉRREZ, 1988GUTIÉRREZ, F. Educação como Práxis Política . São Paulo: Summus, 1988. , p. 106). Educar nessa perspectiva, para esse autor, desencadearia uma série de efeitos:

[...] a) um ir além da ocupação diária e da periferia das atividades e dos fatos, para se chegar progressivamente à essência dos mesmos; b) uma percepção crítica das possibilidades de transformação da educação e dos meios práticos que devem ser aplicados para tornar realidade essa transformação; c) uma tomada de consciência de que existem outros homens [e outras mulheres], situados historicamente, capazes de modificar as relações estruturais da instituição educativa [...] ( GUTIÉRREZ, 1988GUTIÉRREZ, F. Educação como Práxis Política . São Paulo: Summus, 1988. , p. 107, inclusão nossa).

Para nós, esses efeitos são consequências de uma situação verdadeiramente gnosiológica, na qual, educadores(as) e educandos(as), todos sujeitos cognoscentes, estabelecem uma permanente relação dialética com o objeto cognoscível. Nessa relação, ação-reflexão, teoria-prática, subjetividade-objetividade são inseparáveis. Assim, podemos falar numa práxis educativa, na qual os sujeitos reconhecem a si mesmos no objeto cognoscível, bem como o objeto é reconhecido como produto das relações históricas, sociais e culturais que o produziram. Isso porque, como Marx desenvolve na primeira tese sobre Feuerbach, “[...] o conhecimento é o conhecimento de um mundo criado pelo homem [e pela mulher], isto é, inexiste fora da história, da sociedade e da indústria [...]” ( VÁZQUEZ, 2007VÁZQUEZ, A. S. Filosofia da Práxis . São Paulo: Expressão Popular, 2007. , p. 143, inclusão nossa).

Numa práxis educativa, que se dá pela problematização do conhecimento por meio do diálogo, ocorre o desenvolvimento da criatividade e do espírito crítico dos sujeitos cognoscentes. Para Carvalho e Pio (2017CARVALHO, S. M. G.; PIO, P. M. A categoria da práxis em Pedagogia do Oprimido: sentidos e implicações para a educação libertadora. Revista brasileira Estudos pedagógicos , Brasília, v. 98, n. 249, p. 428-445, maio/ago. 2017. , p. 441), criar, nesse contexto, supõe-se “[...] a não sujeição a formas mecânicas, aos depósitos, às repetições e às memorizações, práticas comuns da escola tradicional [...]”.

Essas práticas podem ser vistas como produtos de uma práxis imitativa. Nela, como categorizado por Vázquez (2007VÁZQUEZ, A. S. Filosofia da Práxis . São Paulo: Expressão Popular, 2007. , p. 275), “[...] fazer é repetir ou imitar outro fazer [...]”. No âmbito educacional, essa repetição ou imitação se dá na redução do “[...] ato de conhecer do conhecimento já existente a uma mera transferência do conhecimento existente [...]” ( FREIRE; SHOR, 1986FREIRE, P.; SHOR, I. Medo e Ousadia: o cotidiano do professor. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986. , p. 18, grifos dos autores). Nessa redução do ato de conhecer, não há espaço para a criatividade e a reflexão crítica dos sujeitos cognoscentes.

Assim, para nós, uma práxis educativa é a atividade dos sujeitos cognoscentes. No entanto, isso não significa reduzir a ação educativa a mera aplicação prática dos conhecimentos teóricos. Significa reconhecer os conhecimentos como produtos históricos da relação dos sujeitos com a natureza e consigo mesmo. Significa problematizar esses conhecimentos, reconhecendo-os no mundo, com o mundo e em constante movimento de transformação, ou seja, significa refletir “[...] sobre o caráter social do conhecimento [...]” ( FREIRE; GUIMARÃES, 2011FREIRE, P.; GUIMARÃES, S. Partir da Infância: Diálogos sobre educação. São Paulo: Paz e Terra, 2011. , p. 129).

Assumindo tais perspectivas teóricas, delimitamos e desenvolvemos nossa investigação. Na seção seguinte, descrevemos os percursos metodológicos.

4 Percursos Metodológicos

A investigação apresentada neste artigo foi desenvolvida sob a perspectiva da pesquisa qualitativa ( LINCOLN; GUBA, 1985LINCOLN, Y.; GUBA, E. Naturalistic Inquiry. Londres: Sage Publications, 1985. ; BOGDAN; BIKLEN, 1999BOGDAN, R.; BIKLEN, S. Investigação Qualitativa em Educação: uma introdução à teoria e aos métodos. Portugal: Porto Editora, 1999. ). Nesse tipo de pesquisa, “[...] privilegiam-se descrições de experiências, relatos de compreensões, respostas abertas a questionários, entrevistas com sujeitos, relatos de observação e outros procedimentos que deem conta de dados sensíveis, de concepções, de estados mentais, de acontecimentos, etc. [...]” ( BICUDO, 2012BICUDO, M. A. V. Pesquisa qualitativa e pesquisa qualitativa segundo a abordagem fenomenológica. In: BORBA, M. C.; ARAÚJO, J. L. (org.). Pesquisa qualitativa em Educação Matemática . Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2012. , p. 117). Com isso, busca-se uma interpretação dos fenômenos estudados, por meio da atribuição de significados aos dados produzidos.

Os dados desta investigação constituem-se de duas fontes: documentais e entrevistas. Os documentos referem-se aos relatos de experiências submetidos no ato de inscrição da FRMat de Rio do Sul (SC). De acordo com o Regimento desta Feira, este é um item obrigatório e consiste num texto, elaborado segundo normas estabelecidas previamente, na qual os(as) autores(as) relatam a atividade produzida. Caso o trabalho seja selecionado para a etapa estadual da Feira, esse Relato, após passar por uma avaliação, é publicado nos Anais do evento. Os documentos - relatos de experiências - foram obtidos junto à comissão responsável pela organização e gestão da FRMat. Utilizamos os códigos RE1, RE2, RE3 e RE4 para mencioná-los ao longo do artigo.

Já as entrevistas foram realizadas com um(a) estudante expositor(a)1 1 Cada trabalho inscrito numa Feira de Matemática é apresentado, de acordo com o regimento, por até dois estudantes, que são chamados de expositores. de cada um dos trabalhos na Feira para a constituição dos dados da pesquisa de doutorado já mencionada, com termo de autorização de uso assinado pelos responsáveis legais dos(as) estudantes, já que todos eram menores de idade. Elas caracterizaram-se como um diálogo com os(as) estudantes, no qual buscamos informações acerca da atividade realizada, das experiências na/com a FMat e as relações estabelecidas com a própria Matemática. Utilizamos nomes fictícios para mencioná-los ao longo do artigo: Carolina, Fernanda, Amanda e Francisco.

Entendemos que o uso de tais fontes para a constituição dos dados vão ao encontro da abordagem qualitativa adotada no estudo. No caso dos documentos, como salientam Lincoln e Guba (1985)LINCOLN, Y.; GUBA, E. Naturalistic Inquiry. Londres: Sage Publications, 1985. , eles constituem uma fonte estável para retirada de evidências que fundamentam afirmações do pesquisador. No caso das entrevistas, elas permitem uma aproximação com os sujeitos, de modo a esclarecer pontos que outros instrumentos não dariam conta.

De modo geral, destacamos que as quatro atividades foram desenvolvidas em escolas públicas de Rio do Sul, nos Anos Finais do Ensino Fundamental, abrangendo diversos temas. No Quadro 1 , apresentamos o tema da atividade, o ano escolar e o ano que foi desenvolvida.

Quadro 1
Informações gerais sobre as atividades

Para a análise, nos inspiramos nas fases descritas por Yin (2016)YIN, R. K. Pesquisa Qualitativa do Início ao Fim . Tradução de Daniela Bueno. Revisão técnica de Dirceu da Silva. Porto Alegre, RS: Penso, 2016. . Primeiro, os dados foram sistematizados, organizados em pastas e codificados, conforme descrição anterior. Posteriormente, eles foram reorganizados a partir de determinados padrões emergentes. Na sequência, foram interpretados. Assim, a análise foi constituída a partir da leitura e releitura dos dados, com as quais buscamos aproximações e similaridades, a fim de elaborar uma compreensão da ideia de práxis educativa. De acordo com Yin (2016YIN, R. K. Pesquisa Qualitativa do Início ao Fim . Tradução de Daniela Bueno. Revisão técnica de Dirceu da Silva. Porto Alegre, RS: Penso, 2016. , p. 168), as fases “[...] não se encaixam em uma sequência linear, mas possuem relações recursivas e iterativas [...]”, o que aconteceu ao longo do nosso processo de análise. Com isso, a partir de uma categorização, realizamos compreensões sobre o anunciado, por meio dos referenciais teóricos adotados. A seguir apresentamos as categorias, em diálogo com os dados da pesquisa e o referencial teórico.

5 Caracterizando as atividades

Após as leituras do material de pesquisa, fundamentadas numa abordagem de investigação qualitativa, obtivemos quatro categorias: 1) escolha do tema a ser estudado; 2) matematização; 3) diálogo, colaboração e envolvimento com a comunidade escolar e 4) ação-reflexão-transformação. Essas categorias foram percebidas em todas as atividades, sendo que elas se inter-relacionam. No entanto, entendemos que apresentá-las separadamente permite evidenciarmos suas especificidades.

5.1 Escolha do tema a ser estudado

Conforme apresentado na seção anterior, os temas abordados nas quatro atividades analisadas trataram de assuntos diferentes entre si. Já os processos para determinação deles se deu de modo bastante similar. Isso porque o tema escolhido ou o problema identificado foi percebido no próprio contexto escolar, seja pelos(as) estudantes ou pelas professoras2 2 No caso das atividades aqui analisadas, todas as docentes responsáveis eram mulheres. .

No caso das atividades 1 e 2, os problemas estavam relacionados a atitudes dos(as) estudantes na escola, como se observa nos excertos a seguir:

Ao notarmos que havia uma grande saída de alunos da sala de aula para beberem água, que acabava gerando além da perda de conteúdos, um grande desperdício de água nos bebedouros, pois muitas vezes os alunos, enchem o copo e tomam apenas a metade, jogando o restante fora, por meio disso, resolvemos criar o projeto “Adote uma Garrafinha” (RE1, 2018).

Que era um tempo, na verdade ainda é, bem comum assim, que os professores se incomodam muito com isso, que é uma regra da escola, que não pode mascar chiclete, mas que tinha muita, muitos alunos que ainda não seguiam essa regra, então a gente fez esse projeto, envolvendo todos da escola, a gente fez uma pesquisa e tudo mais (Entrevista com Fernanda, 2021).

Ao perceberem “ o desperdício da água ” ou o “ não cumprimento da regra de não mascar chiclete ”, educadoras e educandos(as) identificam e refletem “[...] sobre um conteúdo, fruto de um ato [...]” ( FREIRE, 2020FREIRE, P. Extensão ou Comunicação? Rio de Janeiro/São Paulo: Paz e Terra, 2020. , p. 111), assim, a problematização se dá, como preconizado por Freire (2020FREIRE, P. Extensão ou Comunicação? Rio de Janeiro/São Paulo: Paz e Terra, 2020. , p. 111) “[...] inseparável das situações concretas [...]”. Após a identificação dessas situações, que acontece em um nível perceptivo, educadoras e educandos(as) buscam desenvolver estudos e pesquisas que contribuam para a solucionar o problema identificado, objetivando, desse modo, mudanças naquela atitude inicial. Neste sentido, o objetivo das atividades desenvolvidas foram:

[...] levar os alunos a compreender que a saída da sala de aula pode causar prejuízos ao desempenho escolar, sensibilizar nossos alunos para o uso consciente da água, evitando o desperdício da mesma, e também reaproveitar a garrafinha PET que iria futuramente para o meio ambiente, podendo poluí-lo, caso não tivesse o descarte correto (RE1, 2018, grifos nossos).

[...] Reduzir o consumo de chicletes no ambiente escolar, buscando conscientizar os alunos dos malefícios que o uso excessivo causa à saúde, bem como ao ambiente físico da escola e ao meio ambiente (RE2, 2018, grifos nossos).

Ambas as atividades vislumbram um “[...] agir melhor, com os demais, na realidade [...]” ( FREIRE, 2020FREIRE, P. Extensão ou Comunicação? Rio de Janeiro/São Paulo: Paz e Terra, 2020. , p. 111). Isso também converge com a ideia de problematização de Paulo Freire, uma vez que há uma reflexão sobre um conteúdo - problemática inicial -, intencionando uma ação. Nesse mesmo sentido, na atividade 3, o tema estava relacionado a um programa realizado em parceria com a escola, a partir do qual se detectou um problema:

A Escola [...] é parceira do Programa de Óleo Saturado desde 2018. No ano passado, foram arrecadados mais de 330 litros de óleo. Contudo, percebeu-se que a quantidade é relativamente pequena quando comparada à quantidade de alunos da escola (mais de 500 estudantes) (RE3, 2019).

Assim, intencionou-se investigar os motivos da baixa quantidade de óleo saturado coletado na escola, tendo como objetivos específicos:

Identificar qual é o destino dado para o óleo utilizado pelas famílias dos estudantes; Identificar o motivo de o programa ainda não ter sido adotado por todos os estudantes da escola; Promover ações que contribuam para a divulgação do programa e conscientização da reciclagem do óleo saturado (RE3, 2019).

É interessante percebermos que a atividade busca primeiro pesquisar com os(as) estudantes e suas famílias, para em seguida promover ações. Assim, ela parte de uma situação identificada no contexto escolar e busca investigá-la, como diz Freire (2013a, p. 140, inclusão nossa), no “[...] próprio pensar do povo. Pensar que não se dá fora dos homens [ou das mulheres], nem num homem [ou numa mulher] só [...]”. Então, com os sujeitos - estudantes e suas famílias - a superação do problema não se dará “[...] no ato de consumir ideias, mas no de produzi-las e de transformá-las na ação e na comunicação [...]” (FREIRE, 2013a, p. 141).

No caso da atividade 3, almeja-se a transformação de uma atitude que se relaciona tanto ao contexto específico do programa parceiro da escola quanto a um mais amplo, relacionado ao meio ambiente. Assim, o tema "óleo saturado” dialoga com os dois contextos. Isso também acontece com a atividade 4, na qual os(as) estudantes perceberam um problema - alto consumo de energia elétrica da escola - e buscaram estudar a viabilidade de uma forma alternativa de energia para a escola:

Primeiramente, analisamos a fatura de energia elétrica da escola, com a qual podemos verificar um alto consumo de energia elétrica. Ao fazer essa verificação, nós alunos do 8° ano propomos desenvolver um projeto a fim de estudar a viabilidade da implantação de um sistema fotovoltaico na nossa escola (RE4, 2019).

De modo geral, as quatro atividades tiveram como temática algo percebido a partir do cotidiano imediato e identificado como um problema da comunidade escolar. No caso das atividades 1, 2 e 3, durante a entrevista, as estudantes revelaram que essa percepção e escolha do tema partiu da professora de Matemática. A perspectiva de trabalho das professoras, a nosso ver, vai ao encontro do que Paulo Freire defende em seu legado. Para o autor, o tema a ser desenvolvido em uma atividade deve fazer parte do cotidiano do(a) educando(a), para que ele(a) possa, de certa forma, se identificar com o trabalho a ser realizado. Tais ideias convergem para o que Freire (2011, p. 31-32, inclusão nossa) sugeria, ao questionar:

[...] Por que não aproveitar a experiência que têm os alunos [e as alunas] de viver em áreas da cidade descuidadas pelo poder público para discutir, por exemplo, a poluição dos riachos e dos córregos e os baixos níveis de bem estar [sic] das populações, os lixões e os riscos que oferecem à saúde da gente? [...].

Com relação à temática da reciclagem do óleo de cozinha, Amanda contou que já havia uma iniciativa na escola, desenvolvida pela professora de História, que incentiva o recolhimento de óleo, então que “ a professora [de Matemática] resolveu fazer sobre essa temática ” (Amanda). Carolina e Fernanda nos contaram que não houve uma imposição do tema por parte da professora e sim, negociações com a própria turma, conforme excertos:

É, eu acho que mais os professores, porque era o que mais tinha que ficar chamando a atenção dos alunos né, por conta de ser uma regra da escola. E eu acho que a ideia ali surgiu dela e ela passou pra gente e a gente concordou, porque a gente via isso neles né, que tinha que ficar chamando muito a atenção. E aí que foi desenvolvido o projeto (Entrevista com Fernanda, 2021).

[…] foi feito uma votação, mas já tinha meio que uma ideia, a professora já tinha uma ideia mais elaborada, então foi feito uma votação, só que aquela ideia predominou (Entrevista com Carolina, 2021).

Por fim, no caso da atividade 4, constatamos que a temática foi pensada pelo coletivo dos(as) estudantes, com a restrição de ser algo relacionado ao meio ambiente, por perceberem os problemas ambientais atuais, e que ajudasse a escola, como relatado por Francisco:

Bom, o primeiro que a gente pensou assim sobre um tema, foi algo sustentável, essa foi a nossa prioridade, porque a gente, nesses anos, a gente tá se deparando com muita poluição, sabe? Muito desmatamento. Então, o nosso primeiro requisito pro nosso tema foi questão de sustentabilidade, e daí depois foi da nossa escola, que a gente queria melhorar a nossa escola, foi aí que surgiu a ideia de placas solares, sabe, que não tem um custo muito alto e rende, rende bastante, ainda mais aqui né? Tem bastante sol, então a gente queria algo sustentável e que ajudasse a escola, sabe? (Entrevista com Francisco, 2021).

Reforçamos que a aproximação da escolha do tema a ser estudado está relacionada ao modo como ele está vinculado ao cotidiano imediato dos(as) estudantes e da comunidade escolar, existindo um distanciamento na condução dessa escolha que, nas atividades 1, 2 e 3 parte da professora e na 4 dos(as) estudantes. Para nós, ancoradas em Paulo Freire, é fundamental que, sempre que possível, o tema a ser estudado seja determinado pelos(as) estudantes. No entanto, isso não minimiza a promoção dessas atividades, uma vez que os temas desenvolvidos, como já mencionado, surgiram a partir da percepção e da relação que educadoras e educandos(as) têm com o cotidiano.

Nesse sentido, como apontado no diálogo de Paulo Freire com Ira Shor, o(a) professor(a) é “[...] responsável por iniciar o processo e dirigir o estudo [...]” ( FREIRE; SHOR, 1986FREIRE, P.; SHOR, I. Medo e Ousadia: o cotidiano do professor. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986. , p. 187), ou seja, “[...] temos que ser criativos, mas não podemos apenas sentar e esperar que os alunos articulem todo o conhecimento. Temos que tomar a iniciativa e dar um exemplo de como fazê-lo [...]” (p. 188). Essa iniciativa, a nosso ver, pode se dar por meio de perguntas, questionamentos, provocações e/ou sugestões.

Em geral, para o estudo do tema e compreensão do problema identificado, os(as) estudantes desenvolveram atividades experimentais, pesquisas, cálculos, como veremos a seguir.

5.2 Matematização

As atividades 2 e 3, que tiveram como tema “o consumo de chiclete” e o “óleo saturado”, respectivamente, foram conduzidas de modo bastante similar. Num primeiro momento, aconteceram palestras com profissionais ligados ao tema, para que houvesse um aprofundamento sobre ele. No caso da atividade 2, os(as) estudantes conversaram com a professora de Química para entender o processo de fabricação do chiclete, com uma nutricionista e um dentista para refletir sobre os malefícios do consumo de doce e chicletes. Já na atividade 3, todos(as) estudantes da escola “ participaram de uma palestra promovida por funcionários da Afubra3 3 Associação dos Fumicultores do Brasil. para reforçar a divulgação do programa na escola e incentivar a reciclagem do óleo de cozinha ” (RE3, 2019).

A partir disso, durante as aulas de Matemática, houve a elaboração de um questionário que foi aplicado com os(as) estudantes da escola:

[...] pesquisa realizada com os alunos de todas as turmas da escola, desde o primeiro ano do ensino fundamental, séries iniciais até a terceira série do ensino médio, questionando-os com que frequência os alunos consomem chiclete durante as aulas (RE2, 2018).

[...] os alunos de cada turma se dividiram em grupos para criar um questionário que seria aplicado com todos os estudantes da escola. Os grupos elencaram perguntas que gostariam de fazer e, ao final, a professora organizou um único questionário com as sugestões das três turmas (RE3, 2019).

[...] nós fizemos uma pesquisa em toda a escola [...] perguntando sobre como os alunos utilizavam o óleo, que fim levava esse óleo e quantos litros eram utilizados, se as pessoas tinham, se elas sabiam de como é, podia ser descartado esse óleo, se elas sabem fazer da maneira correta ou incorreta [...] (Entrevista com Amanda, 2021).

Como se percebe pelos trechos, nessas atividades, os(as) estudantes tiveram a oportunidade de construir e aplicar os questionários de modo coletivo. Campos, Wodewotzki e Jacobini (2011) consideram que, quando os(as) estudantes elaboram as variáveis que compõem o questionário, eles(as) desenvolvem com mais facilidade a descoberta ou determinação de métodos e técnicas. Para nós, essa elaboração coletiva também permite um “[...] aprender a perguntar [...]” ( FREIRE; FAUNDEZ, 2011FREIRE, P.; FAUNDEZ, A. Por uma pedagogia da pergunta . São Paulo: Paz e Terra, 2011. , p. 74), uma vez que, nesse processo, os(as) estudantes são estimulados a pensar e elaborar perguntas que ajudam na compreensão do problema inicial.

Após a aplicação dos questionários, em sala de aula, os(as) estudantes organizaram e analisaram as informações obtidas:

Concluída a pesquisa organizamos os dados e os representamos através de um gráfico de setor, analisando os números encontrados (RE2, 2018).

[...] aí a gente fez essas pesquisas e a partir dessas pesquisas que nós realizamos, nós desenvolvemos alguns gráficos, como gráficos de setores, gráficos de barras e gráficos de coluna (Entrevista com Amanda, 2021).

Campos, Wodewotzki e Jacobini (2011, p. 27) defendem que “[...] o entendimento e a interpretação da informação estatística requerem que o estudante tenha conhecimentos estatísticos e matemáticos [...]”. A partir das atividades e concordando com os autores citados, entendemos que os conhecimentos estatísticos foram elaborados juntos aos(às) estudantes para interpretação dos dados coletados e, consequentemente, da problemática inicial. Assim, esses conhecimentos foram uma ferramenta para tal interpretação, por meio da matematização, de modo que, teoria e prática se relacionam dialeticamente durante a atividade, numa perspectiva de práxis, de ação e reflexão. Há a identificação de um problema, a produção e aplicação do questionário, a organização dos dados e sua interpretação. No processo de matematização, entendido por nós como aquele que se dá a partir da transformação da linguagem natural para a linguagem matemática, as relações entre o conhecimento matemático e a situação problema se dão de forma dialética, em uma perspectiva de práxis.

Já na atividade 1, os(as) estudantes, após observação do problema do desperdício de água, iniciaram um experimento para mensuração desse desperdício.

[...] a gente tinha um bebedouro de água e naquele bebedouro, ele tipo, embaixo, tinha um negócio que ficava as canecas e ah, ali aonde que a água ia sair, porque é um bebedouro grande. E ali a gente engatou um cano e colocou um galão de 20 litros de água e a partir desse galão nós conseguimos medir quanto de água era desperdiçado num dia, então sempre que acabava a nossa aula a gente colocava a fita lá e era feita a medição (Entrevista com Carolina, 2021).

Após essa observação, a turma se dividiu em grupos que visitaram todas as salas de aula da escola, para uma sensibilização e conversa com os(as) estudantes sobre o desperdício de água, utilizando vídeos educativos, adequados ao ano escolar de cada turma. Ao final, entregaram uma garrafinha plástica para cada estudante. Passado um tempo não especificado desse momento, novamente os(as) estudantes fizeram medições no bebedouro, para então verificar se houve ou não impacto na ação realizada.

Tanto para a primeira quanto para a segunda medição, durante as aulas de Matemática, foram exploradas as ideias de medida, elaboração de tabelas e média como ferramentas para interpretação do problema inicial, em um processo de matematização. Além disso, outras atividades relacionadas ao tema foram desenvolvidas: o estudo da ideia de função a partir da vazão da água do bebedouro e o cálculo de volume do cilindro.

Desse modo, percebemos que no experimento realizado, para observação e anotação dos dados, antes e depois da ação realizada - entrega das garrafinhas -, os conhecimentos matemáticos desenvolvidos foram necessários para interpretação e comparação dos dados. Já o estudo das funções e do cálculo do volume, ainda que não tenha relação direta com o problema inicial, acabaram sendo motivados e relacionados com aquilo que se estava estudando.

Entendemos a experimentação, a partir de Freire, como a relação dialética entre a leitura do mundo e a leitura da palavra. Para o autor, a leitura do mundo precede a leitura da palavra (FREIRE, 2013b). Nesta atividade, em especial, a leitura do mundo se deu por meio da percepção do desperdício. A partir disso, eles buscaram alternativas para quantificar a perda da água, fato que fazemos paralelo com a leitura da palavra, no caso, aquela expressa a partir da linguagem matemática, por meio da matematização. Porém, o autor é enfático ao afirmar que “[...] nem só a leitura da palavra apenas, nem só a do mundo [...]” ( FREIRE, 2019FREIRE, P. Direitos Humanos e Educação Libertadora: gestão democrática da educação pública na cidade de São Paulo. São Paulo: Paz e Terra, 2019. , p. 118). A construção do conhecimento está no processo dialético, no qual a práxis, que é ação e reflexão dos homens e das mulheres para a transformação do mundo (FREIRE, 2013b) se fez presente, assim como percebido na referida atividade.

Por fim, a atividade 4 iniciou com a visita a uma propriedade que possui placas solares. Em seguida, os(as) estudantes, com as faturas de energia elétrica da escola, fizeram observações e análise dos gastos e consumos mensais, utilizando o cálculo de média. Então, por meio de pesquisas, estudaram o custo para implantação das placas na escola: quantas seriam necessárias, qual o investimento, o custo inicial, os benefícios a longo prazo.

[...] a gente comparou também, eu me lembro, a gente fez vários cálculos, agora não vou me lembrar de cabeça, mas, em todo mês a gente gastava uma certa quantia de dinheiro com a conta de luz, e a gente calculou que com as placas solares a gente ia ter uma redução muito significativa do custo que a nossa escola ia gastar com a luz. Então, nossa, foi feito muitos, muitos cálculos. A gente calculou durante o ano e nossa, e assim era um absurdo o que a gente gastava de energia, de conta de luz, sabe? A gente calculou todos os custos, não só das lâmpadas de luz, mas dos ares condicionados, dos computadores da escola. Então foi feita toda uma pesquisa assim. E daí a gente calculou e realmente colocar as placas solares não teria um custo muito alto, eu não me lembro bem certinho, se eu não me engano era em torno de 30 placas solares alguma coisa assim e a gente ia ter uma economia muito grande da nossa escola (Entrevista com Francisco, 2021).

Muito próxima a atividade 1, nessa atividade, a Matemática também aparece como ferramenta para interpretação do problema inicial. Os(as) estudantes desenvolveram os cálculos matemáticos para avaliar a viabilidade da implementação das placas solares na escola.

De modo geral, nas quatro atividades podemos perceber a utilização dos conhecimentos matemáticos para interpretação da problemática inicial, em um processo de matematização. A palavra “utilização”, neste caso, não se vinculava a uma prática utilitária da Matemática. Aqui, os conhecimentos matemáticos, desenvolvidos historicamente pelos homens e pelas mulheres, são apropriados pelos(as) estudantes como meio para compreensão da realidade. As medições, as comparações, os cálculos, a construção dos gráficos são os objetos cognoscíveis que mediatizam a situação educativa, na qual os(as) estudantes assumiram o papel de sujeitos ( FREIRE, 2020FREIRE, P. Extensão ou Comunicação? Rio de Janeiro/São Paulo: Paz e Terra, 2020. ).

5.3 Diálogo, colaboração e envolvimento com a comunidade escolar

A partir da descrição da matematização realizada nas atividades, é possível percebermos que o diálogo e a colaboração parecem estar inerentes em todo o processo. Isso porque, desde o início das atividades, acontece uma relação de diálogo com a comunidade escolar. Para além disso, percebemos, ao longo da descrição das atividades e das falas dos sujeitos, o envolvimento de todos(as) estudantes da turma ou até mesmo de turmas da escola do mesmo nível.

Em relação ao diálogo com a comunidade escolar, estamos considerando que ele pode ter envolvido estudantes da escola, professores(as), gestores(as), funcionários(as), mães, pais ou responsáveis. Carolina e Francisco reconheceram a importância desse diálogo, como vemos nos excertos:

[...] acho que é muito importante quando há esse contato com todos né, que todos possam participar um pouco, porque assim faz com que o trabalho se enriqueça né, quando tem a participação de todos. Quando ele é também para todos né (Entrevista com Carolina, 2021).

A gente fez assim uma interação assim bem legal com os meus pais, com a professora, com os próprios alunos. A gente levou as turmas pra conhecer as placas solares ali na propriedade que eu mencionei antes. Então foi assim bem legal, um estudo bem interessante (Entrevista com Francisco, 2021).

Para Freire, o diálogo pode ser entendido como um momento em que os sujeitos se encontram para refletir sobre sua realidade ( FREIRE; SHOR, 1986FREIRE, P.; SHOR, I. Medo e Ousadia: o cotidiano do professor. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986. ), o que foi evidenciado pelos estudantes nos excertos anteriores. O diálogo, nessa perspectiva, funda a colaboração que se realiza entre sujeitos

Um outro ponto em que isso fica evidente foram as pesquisas realizadas com todos(as) estudantes da escola, como é o caso das atividades 2 e 3. Tal prática não necessariamente se constitui de um diálogo, mas sugere um envolvimento entre os(as) estudantes. Na atividade 1, como descrita anteriormente, houve um diálogo com todas as turmas da escola para sensibilização sobre o desperdício de água.

Já no processo de organização e interpretação das pesquisas realizadas, as estudantes Fernanda e Amanda enfatizaram a colaboração da turma toda no processo:

[...] todo mundo trabalhou junto, a minha sala também principalmente, que ajudou a construir o projeto [...] os estudantes da nossa sala tinham o projeto, tipo, os cálculos, tudo o que foi feito no caderno, todos estavam por dentro do que tava acontecendo. [...] a turma toda estava envolvida e teve o projeto no papel assim, vamos dizer (Entrevista com Fernanda, 2021).

Na sala, cada turma fez, tinha três turmas, eram três turmas, sexto 1, sexto 2, sexto 3, daí cada turma fez os gráficos, que a gente dividiu em grupos a turma né, aí cada grupo fez um gráfico, daí os melhores gráficos foram levados para feira (Entrevista com Amanda, 2021).

No caso das atividades 1 e 4, Francisco e Carolina reforçam as relações estabelecidas com os demais estudantes da turma.

Daí foi a gente que desenvolveu junto com os alunos da nossa escola, não só eu e meu colega, mas sim a escola, a gente se juntou ali numas aulas dela e foi fazer os cálculos e ela nos deu uma aula só sobre esse tipo de cálculo e tudo mais e a gente fez e foi estudando. Que nem eu disse antes ali, é todo mundo junto, sabe? (Entrevista com Francisco, 2021).

[...] conseguíamos mais ideias de outros alunos de outras pessoas também e com a participação de toda a turma, todas se envolveram de uma forma diferente né (Entrevista com Carolina, 2021).

Percebemos que os quatro entrevistados valorizam e reconhecem o envolvimento dos outros estudantes da escola ou da sua turma. Nos discursos produzidos por eles, evidenciamos que o diálogo entre os sujeitos esteve presente em todo o processo, ainda que eles estivessem em níveis diferentes de função e responsabilidade – professora orientadora, estudantes expositores demais estudantes. É exatamente essas características que fundam o caráter da colaboração, descrita em Freire (2013a), que somente se realizam na comunicação. Daí que, os sujeitos não pensam sozinhos, “[...] não há um ‘penso’, mas um ‘pensamos’ [...]” ( FREIRE, 2020FREIRE, P. Extensão ou Comunicação? Rio de Janeiro/São Paulo: Paz e Terra, 2020. , p. 85). Esse pensamos, no desenvolvimento dessas quatro atividades, se dá também porque educadoras e educandos(as) não se colocam em posições antagônicas, o que, no entanto, não nega suas diferenças. A educação autêntica, para Freire, “[...] não se faz de A para B ou de A sobre B, mas de A com B, mediatizados pelo mundo [...]” (FREIRE, 2013a, p. 116, grifo do autor). Para que essa educação aconteça, a educação com os sujeitos, o diálogo e a colaboração são elementos fundantes do processo.

Especificamente quando falamos da escolha do tema, do próprio desenvolvimento da atividade e do diálogo, o envolvimento com a comunidade escolar estava presente, conforme mencionamos anteriormente. No entanto, é interessante destacar aqui as falas dos(as) estudantes em que eles próprios percebem esse envolvimento e fazemos com isso um paralelo às ideias de Freire (2019FREIRE, P. Direitos Humanos e Educação Libertadora: gestão democrática da educação pública na cidade de São Paulo. São Paulo: Paz e Terra, 2019. , p. 56), quando ele diz que todos os que atuam na escola são educadores(as) e que é fundamental “[...] a participação de toda a gente que se envolve na prática educativa. [...] nós precisamos de uma participação direta do povo nas nossas escolas, uma participação das famílias que têm seus filhos na escola [...]”.

Umas dessas falas é da estudante Carolina que afirmou que o trabalho desenvolvido “e nvolvia bastante a escola em si” (Entrevista com Carolina, 2021). Isso ficou evidente na descrição da atividade, apresentada anteriormente, em que uma das ações foi os(as) estudantes visitarem todas as salas da escola para uma conversa com os(as) demais estudantes sobre o desperdício da água.

Já Amanda e Francisco falaram da importância de estudar esses temas e levarem os conhecimentos para a comunidade:

nós temos que levar a população de maneira certa de ser descartada, uma maneira que a gente levava, teve palestra na escola, eles incentivavam os alunos a levar, era o óleo pra escola, para eles levarem para uma empresa, onde eles iam produzir o biocombustível pra reutilizar esse óleo (Entrevista com Amanda, 2021).

Isso, com a escola ali, é sobre a conta de luz né? Da economia que a gente ia ter com a escola, além da sustentabilidade, não só da escola, ali já entra também pra comunidade. Outra coisa o incentivo, a gente fez um certo incentivo com a comunidade para estar utilizando esse tipo de energia limpa. Com os alunos também que foi feita as viagens para aprender sobre as placas solares e tudo mais. Também ali com a comunidade, com os alunos da passarela, onde os ônibus pegam as crianças para não ficarem na chuva e tudo mais. Esse foi, que nem ali, um dos nossos requisitos pro tema do nosso trabalho, que é envolver a escola e a comunidade [...] A gente fez um projeto para escola, para a comunidade, pros alunos (Entrevista com Francisco, 2021).

A partir desses excertos, compreendemos que o diálogo com a comunidade escolar, assim como a colaboração, foram fundamentais para que as atividades pudessem ser desenvolvidas. Diálogo aqui entendido como elemento que “[...] sela o ato de aprender, que nunca é individual, embora tenha uma dimensão individual [...]” ( FREIRE; SHOR, 1986FREIRE, P.; SHOR, I. Medo e Ousadia: o cotidiano do professor. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986. , p. 14). Isso, para nós, é algo importante quando pensamos na educação que queremos, pois entendemos, a partir de Freire (2019)FREIRE, P. Direitos Humanos e Educação Libertadora: gestão democrática da educação pública na cidade de São Paulo. São Paulo: Paz e Terra, 2019. , que pais, mães, educandos(as), educadores(as) e funcionários(as) são os sujeitos que fazem a escola e esse fazer deve ser pautado na comunicação horizontal e na colaboração, com vistas à transformação social.

5.4 Ação-reflexão-transformação

Por fim, destacamos o ciclo ação-reflexão-transformação que esteve presente nas atividades desenvolvidas. Entendemos que os aspectos da ação-reflexão já foram explorados nas categorias anteriores, uma vez que destacamos as ações e reflexões desenvolvidas ao longo das atividades no que tange à escolha do tema e aos conhecimentos matemáticos, assim como na matematização. Aqui, queremos enfatizar o aspecto da transformação, que, para nós, acontece de duas maneiras. Na primeira delas, identificamos que há uma transformação dos sujeitos envolvidos, sejam eles os(as) estudantes expositores, os(as) demais estudantes da escola ou a comunidade escolar. No caso das atividades 1, 2 e 3, há um processo de conscientização quanto ao desperdício de água, ao descarte correto do óleo de cozinha e ao consumo de chiclete, que possibilitou uma transformação dos sujeitos, como vemos nos trechos a seguir:

A partir dos dados coletados nesta pesquisa pudemos perceber, que houve uma diminuição considerável de água desperdiçada em nosso bebedouro, assim como também a saída dos alunos de sala durante as aulas, acreditamos que ainda há muito para ser trabalhado com os alunos sobre o uso consciente de água, para ela seja usada sem desperdício, e que levem para o seu meio social todos esses aprendizados (RE1, 2018).

Então, em casa, como nós apresentamos o trabalho, nós sabemos sobre isso, nós estudantes temos que levar esse óleo pra escola para contribuir com o projeto. Então todos os alunos que sabiam sobre isso eles estavam levando o óleo de suas casas para a escola, mas às vezes eles não levavam muito isso a sério, porque eles não têm o conhecimento direto sobre isso (Entrevista com Amanda, 2021).

Então acho que a escola inteira deu uma pensada assim, e com certeza diminui a quantidade de alunos mascando chiclete no decorrer das aulas né, enfim [...] eu era uma pessoa que mascava muito chiclete. Eu ainda masco, de vez em quando, mas com aquele peso na consciência que eu tô mascando uma coisa que na verdade não é boa né? Porque a gente aprendeu bastante do que é formado o chiclete, dos malefícios que ele faz, então, com certeza diminuiu bastante isso (Entrevista com Fernanda, 2021).

A segunda maneira percebida se refere a uma possível transformação concreta, num sentido material, físico. Neste caso, se almeja concretizar os estudos, seja implantando lixeiras específicas para o chiclete ou instalando as placas solares nas respectivas escolas:

Eu lembro também que no final do projeto a gente apresentou, era tipo um, tipo um projeto mesmo pra escola, de fazer lixos exclusivos pro chiclete, dentro da escola né? [...] não foi adiante. Acho uma pena isso, talvez daria pra retomar ainda, porque acho uma coisa bem legal, acho que às vezes isso falta. De levar o projeto adiante e levar isso em prática sabe. Porque a ideia é muito boa, mas às vezes falta ação, sabe? (Entrevista com Fernanda, 2021).

Daí a gente foi apresentar pro prefeito, porque a gente tinha feito né, tudo os cálculos e tudo mais de quanto a gente ia gastar, a gente ia pegar o orçamento pra tá botando lá na nossa escola, tá botando em prática esse nosso projeto, então a gente foi falar com o prefeito (Entrevista com Francisco, 2021).

É viável a implantação de um sistema de energia solar fotovoltaico em nossa escola, pois os números mostram que além de ser uma energia renovável, ela também traz uma economia significativa na conta de energia da nossa escola (RE4, 2019).

As ações propostas nas atividades 2 e 4 não foram executadas pelas autoridades responsáveis, o que, para nós, não minimiza toda a atividade produzida, que promoveu nos(as) estudantes o desenvolvimento de um pensamento crítico, autônomo e criativo. O que, como nos alerta Paulo Freire em diálogo com Ira Shor, não é suficiente para torná-los aptos a efetuar transformação políticas na sociedade brasileira, mas “[...] é absolutamente necessário para o processo de transformação social [...]”, ou seja, “[...] o desenvolvimento crítico desses alunos é fundamental para a transformação radical da sociedade. Sua curiosidade, sua percepção crítica da realidade são fundamentais para a transformação social, mas não são, por si sós, suficientes [...]” ( FREIRE; SHOR, 1986FREIRE, P.; SHOR, I. Medo e Ousadia: o cotidiano do professor. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986. , p. 135).

Ainda, “[...] o contexto da transformação não é só a sala de aula, mas encontra-se fora dela. Se o processo for libertador, os estudantes e os professores empreenderão uma transformação que inclui o contexto fora da sala de aula [...]” ( FREIRE; SHOR, 1986FREIRE, P.; SHOR, I. Medo e Ousadia: o cotidiano do professor. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986. , p. 45). Para nós, essa transformação, fruto da ação-reflexão-ação, aconteceu, conforme evidenciado em excertos anteriores. A transformação não é apenas uma questão de métodos ou técnicas. Ela se dá a partir do “[...] estabelecimento de uma relação diferente com o conhecimento e com a sociedade [...]” ( FREIRE; SHOR, 1986FREIRE, P.; SHOR, I. Medo e Ousadia: o cotidiano do professor. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986. , p. 47). Ademais, a transformação se faz mediante a práxis verdadeira, “[...] que demanda a ação constante sobre a realidade e a reflexão sobre esta ação. Que implica um pensar e um atuar corretamente [...]” ( FREIRE, 2020FREIRE, P. Extensão ou Comunicação? Rio de Janeiro/São Paulo: Paz e Terra, 2020. , p. 82, grifos do autor).

Para Freire (2019FREIRE, P. Direitos Humanos e Educação Libertadora: gestão democrática da educação pública na cidade de São Paulo. São Paulo: Paz e Terra, 2019. , p. 38) “[...] a educação não é a chave, a alavanca, o instrumento para a transformação social. Ela não o é, precisamente porque poderia ser. E é exatamente essa contradição que explicita, ilumina, que desvela a eficácia limitada da educação [...]”. Ele continua dizendo que é exatamente por não poder tudo que a educação pode alguma coisa, e é nesse poder que se encontra a eficácia da educação. Assim, entendemos que atividades como as apresentadas neste artigo evidenciam o potencial que pode ser desenvolvido nas salas de aula, com vistas à uma educação libertadora.

6 Considerações finais: por uma práxis educativa!

Neste artigo apresentamos uma caracterização de quatro atividades matemáticas desenvolvidas e apresentadas numa FRMat, a fim de elaborar uma significação para práxis educativa. Assim, no processo de análise dos dados, quatro categorias foram identificadas: 1) escolha do tema a ser estudado; 2) matematização; 3) diálogo, colaboração e envolvimento com a comunidade escolar e 4) ação-reflexão-transformação.

Na primeira categoria, destacamos os aspectos que levaram os(as) educandos(as) e educadoras a escolher o tema a ser estudado. De modo geral, esses aspectos estavam relacionados a um problema identificado no contexto escolar, que despertou o interesse dos sujeitos. Para nós, esse é o primeiro passo para a constituição de uma práxis educativa: a percepção e reflexão da/sobre a realidade, com as quais educandos(as) e educadores(as) “[...] não só pensem criticamente sobre sua forma de estar, mas criticamente atuem sobre a situação em que estão [...]” (FREIRE, 2013a, p. 141).

Essa atuação, no caso de uma práxis educativa, pode se dar por meio da matematização adotada, que constitui nossa segunda categoria. Nela, evidenciamos as relações estabelecidas entre os conhecimentos matemáticos e estatísticos e o tema/problema estudado. Nas atividades analisadas, esses conhecimentos foram necessários para a compreensão do problema, ou seja, eles têm uma significação e relação com aquele contexto que está sendo estudado. Assim, eles fazem parte do processo, não estão ali por conta do currículo ou como mera aplicação prática. Esse ponto também nos é fundamental para pensarmos uma práxis educativa, uma vez que nesse processo o tema/problema se relaciona com os conhecimentos teóricos de modo natural.

Para que isso aconteça, entendemos que o diálogo, colaboração e envolvimento com a comunidade escolar são fundamentais. Isso porque o diálogo e a colaboração são, para Freire, uma exigência existencial e uma relação horizontal entre as pessoas, na busca por ser mais . O diálogo implica em um pensar crítico e não há diálogo sem esperança, sem a busca pela transformação (FREIRE, 2013a). Ainda, considerando as atividades desenvolvidas, o envolvimento com a comunidade escolar ocorreu por conta do diálogo e da colaboração. Desde a escolha do tema, que estava ligado ao contexto da comunidade até o envolvimento com ela, evidencia-se que a práxis educativa se faz com todos os sujeitos do contexto educacional por meio do diálogo. Assim, defendemos que a educação deve ser integradora, em um movimento de incluir todos os sujeitos e saberes na produção do conhecimento.

Todas as ações mencionadas anteriormente compuseram o ciclo ação-reflexão-transformação , que perpassou as etapas do desenvolvimento das atividades aqui apresentadas. Para nós, tal ciclo pode ser entendido como uma forma de educação libertadora, na qual o diálogo é o pressuposto principal. Para Freire (2013a, p. 166, inserção nossa), na educação libertadora, é fundamental que “[...] os homens [e as mulheres] se sintam sujeitos do seu pensar, discutindo o seu pensar, sua própria visão do mundo, manifestada implícita ou explicitamente, nas suas sugestões e de seus companheiros [...]”, que no caso das atividades apresentadas são os sujeitos da comunidade escolar. Essa educação supera a contradição educador(a)-educandos(as), ou seja, para Freire, a educação libertadora é uma atividade na qual os envolvidos, educandos(as) e educadores(as), apesar das diferenças, e mediatizados pelo mundo, se educam em comunhão. Além disso, tal educação não acontece de forma mecânica e, sim, por meio de investigação e reflexão, para o desenvolvimento da criticidade, pois para Freire (2013a), conhecer implica em interferir na realidade conhecida.

Assim, no caso das atividades analisadas neste artigo, vislumbramos a possibilidade de uma práxis educativa, em que os(as) educandos(as) e educadores(as) fazem uma leitura de mundo inicial, no âmbito da percepção, desenvolvem conhecimentos matemáticos para a compreensão dessa leitura e almejam uma ação transformadora coletiva, seja o incentivo do uso de garrafinhas, a implantação das placas solares na escola ou a conscientização quanto ao rejeite do óleo e o consumo de chicletes, bem como seu descarte. Tudo isso se dá permeado por relações dialógicas e colaborativas, entre os sujeitos e também com a comunidade.

A promoção dessas atividades em sala de aula ainda é um desafio, uma vez que lida com diversas incertezas - tempo de execução, conteúdos abordados, falta de incentivos da gestão, falta de recursos financeiros, entre outros. No entanto, essas ações que encontramos e apresentamos aqui, nos enchem de esperança para acreditarmos em mudanças na forma como o ensino de Matemática acontece.

Assim, para que essa esperança não seja espera, e sim um esperançar-se no sentido freireano, entendemos que os resultados deste estudo podem contribuir para os espaços e momentos de formação docente promovidos pelo MRFMat. Ademais, a ideia de práxis educativa aqui apresentada pode favorecer ações para a FMat, em uma perspectiva de valorizar o diálogo, a colaboração e envolvimento com a comunidade escolar, assim como o movimento de ação-reflexão-transformação nas salas de aula.

Para nós, a FMat nos possibilita conhecer essas resistências que existem nas escolas. Esses outros modos de ensinar e de aprender Matemática, pautados numa abordagem qualitativamente diferente das ditas tradicionais. Assim, devemos assumir um compromisso de divulgar ainda mais essas atividades, bem como promover a FMat. Afinal, ela se constitui de um espaço potencial para promoção de atividades pautadas numa perspectiva da práxis educativa, podendo ser um meio para incentivá-las. No entanto, é fundamental apontarmos que, ao dizermos que ela é um espaço potencial para promoção dessas atividades, não queremos dizer que todas as atividades apresentadas numa FMat possuem as características elencadas neste artigo, conforme será explorado na pesquisa de doutorado da primeira autora.

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  • 1
    Cada trabalho inscrito numa Feira de Matemática é apresentado, de acordo com o regimento, por até dois estudantes, que são chamados de expositores.
  • 2
    No caso das atividades aqui analisadas, todas as docentes responsáveis eram mulheres.
  • 3
    Associação dos Fumicultores do Brasil.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Set 2023
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2023

Histórico

  • Recebido
    18 Jul 2022
  • Aceito
    09 Fev 2023
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